Acessibilidade / Reportar erro

A arte na prática baseada em evidências na enfermagem sob a perspectiva de Florence Nightingale

RESUMO

Objetivos:

discutir, à luz de Florence Nightingale, sobre a posição histórica da arte enquanto dispositivo constituinte da prática baseada em evidências na enfermagem.

Métodos:

estudo reflexivo ancorado nos escritos de Nightingale e de outros pesquisadores com os quais se pode dialogar profundamente sobre a temática “arte na enfermagem”.

Resultados:

a arte possui relação com dois elementos essenciais no exercício da enfermagem: conhecimento e habilidade. Compreender ciência como conhecimento e arte como habilidade leva à ideia de que ambas permitem aliar competência técnica, compaixão, ética e individualização dos cuidados. Considerações Finais: a arte da enfermagem é o exercício contínuo da percepção detalhada, de modo que o aspecto subjetivo se torna o centro para o qual converge o olhar do enfermeiro, aquele que o permitirá desvelar a “verdade” posta pelo paciente, resultando na melhor intervenção para ele.

Descritores:
Arte; Padrões de Prática em Enfermagem; Enfermagem Baseada em Evidências; Ciência nas Artes; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to discuss, in the light of Florence Nightingale, the historical position of art as a constituent device of evidence-based nursing practice.

Methods:

reflective study anchored in the writings of Nightingale and other researchers with whom it is possible to have a profound dialogue on the theme “art in nursing”.

Results:

art is related to two essential elements in the practice of nursing: knowledge and skill. Understanding science as knowledge and art as skill leads to the idea that both make it possible to combine technical competence, compassion, ethics, and individualization of care. Final Considerations: the art of nursing is the continuous exercise of detailed perception, so that the subjective aspect becomes the center to which the nurse’s gaze converges, that which will allow them to unveil the “truth” posed by the patient, resulting in the best intervention for him.

Descriptors:
Art; Nursing Practice Patterns; Evidence-Based Nursing; Science in the Arts; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

discutir, basado en Florence Nightingale, sobre la posición histórica del arte mientras dispositivo constituyente de la práctica basada en evidencias en la enfermería.

Métodos:

estudio reflejo ancorado en los escritos de Nightingale y otros investigadores con los cuales se puede dialogar profundamente sobre la temática “arte en la enfermería”.

Resultados:

el arte posee relación con dos elementos esenciales en el ejercicio de la enfermería: conocimiento y habilidad. Comprender ciencia como conocimiento y arte como habilidad lleva a la idea de que ambas permiten aliar competencia técnica, compasión, ética e individualización de los cuidados.

Consideraciones Finales:

el arte de la enfermería es el ejercicio continuo de la percepción detallada, de modo que el aspecto subjetivo se vuelve el centro para lo cual converge el mirar del enfermero, eso que lo permitirá desvelar la “verdad” puesta por el paciente, resultándole en la mejor intervención.

Descriptores:
Arte; Pautas de la Práctica en Enfermería; Enfermería Basada en la Evidencia; Ciencia en las Artes; Enfermería

INTRODUÇÃO

O panorama atual da saúde tem reforçado substancialmente o uso de evidência científica nas condutas terapêuticas como forma de oferecer a melhor decisão. A enfermagem, enquanto profissão essencialmente voltada para responder às necessidades do ser humano em diferentes situações de saúde, utiliza o conceito de prática baseada em evidências ou boas práticas para fundamentar sua prática clínica e prestar assistência de qualidade.

Por prática baseada em evidências (PBE) entende-se um conjunto de técnicas, processos e atividades compreendido como o melhor para realizar determinada tarefa, consistente com os valores, objetivos, evidências da promoção da saúde e entendimento do ambiente no qual se desenvolve a prática(11 Erdmann AL, Andrade SR, Mello ALSF, Drago LC. Secondary Health Care: best practices in the health services network. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2013 [cited 2019 Oct 26];21(9):131-139. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21nspe/17.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21nspe/17...
). Na enfermagem, para além da técnica — tão relacionada ao seu exercício profissional —, exige-se amplo conhecimento de valores e crenças, assim como buscam-se habilidades que envolvem intuição para a tomada mais adequada de decisão.

No contexto institucional de saúde, a utilização da PBE tem sido fundamentada por estudos científicos que valorizam a lógica empírico-matemática por meio do positivismo — a corrente filosófica dominante nas ciências da saúde. Dela, deriva a aplicação de estudos quantitativos com a finalidade de descobrir invariâncias fáticas, para, então, formular regras comuns a todos os indivíduos(22 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec; 2013. 406 p.).

Contudo, estabelecer regras aplicáveis a todos os indivíduos parece estar em desacordo com o modelo de prática assistencial característico da equipe de enfermagem, em que o cuidado assume aspecto fundamental no fazer cotidiano. Desde o seu surgimento enquanto profissão, a enfermagem enfrenta transformações em sua prática, influenciadas por fatores históricos, sociais, políticos(33 Alves SGS, Vasconcelos TC, Miranda FAN, Costa TS, Sobreira MVS. Aproximação à subjetividade de enfermeiros com a vida: afetividade e satisfação em foco. Esc. Anna Nery [Internet]. 2011 [cited 2019 Dec 21];15(3):511-7. Available from: https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v15n3.pdf
https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v...
) e subjetivos que culminam em um desafio para a enfermagem: incluir o paciente na produção desse cuidado.

O exercício de cuidar de um ser humano não é uma atividade simples, haja vista que cada pessoa é única em sua essência e isso depende da particularidade vivida em situações que a tornam vulnerável, tais como durante desequilíbrio físico e/ou mental(33 Alves SGS, Vasconcelos TC, Miranda FAN, Costa TS, Sobreira MVS. Aproximação à subjetividade de enfermeiros com a vida: afetividade e satisfação em foco. Esc. Anna Nery [Internet]. 2011 [cited 2019 Dec 21];15(3):511-7. Available from: https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v15n3.pdf
https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v...
). Desse modo, a aplicação da PBE como atualmente instituída, em sua grande maioria, pode não incluir na mesma medida a subjetividade envolvida no processo de cuidar da enfermagem.

Na seara da subjetividade, a arte estabelece um fecundo diálogo em tempo real com o mundo por meio das realidades físicas e metafísicas; e está, por assim dizer, mais próxima da complexidade da vida e dos processos que envolvem os seres humanos. Para Nébia Almeida, a “enfermagem é também arte subjetiva pois imagina, interpreta, intui, se emociona, é uma ciência sensível (...)”, causadora de interação assim como uma obra de arte provoca aquele que a observa(44 Vale EG, Pagliuca LMF. Construção de um conceito de cuidado de enfermagem: contribuição para o ensino de graduação. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2019 Dec 21];64(1):106-13. Available from: https://www.scielo.br/pdf/reben/v64n1/v64n1a16.pdf
https://www.scielo.br/pdf/reben/v64n1/v6...
).

O entendimento de que as práticas assistenciais estão a cada dia mais ancoradas em pesquisas baseadas em evidências científicas oriundas de resultados de estudos positivistas já é claro para a enfermagem, mas há um movimento crescente pelo desenvolvimento de estudos com ênfase qualitativa, bem como também pela qualidade do cuidado ofertado ao paciente.

A enfermagem desempenha um cuidado que expressa um “saber-fazer” embasado na ciência, na arte, na ética e na estética, direcionado às necessidades do indivíduo, da família e da comunidade(55 Santos I, Figueiredo NMA, Duarte MJR, Sobral VRS, Marinho AM. Enfermagem Fundamental: realidades, questões, soluções. São Paulo: Atheneu; 2002. 302 p.), isto é, requisita sobremaneira o emprego do método de pesquisa qualitativo, ancorado na subjetividade.

Florence Nightingale foi a primeira enfermeira e pesquisadora a mencionar a arte em um escrito sobre enfermagem e o fez num período quando essa profissão havia saído recentemente do ostracismo, fruto do seu empenho durante a Guerra da Crimeia. A Dama da Lâmpada não chegou a detalhar, mas deixou indícios para que interpretações pudessem emanar de suas cartas e livros. Em uma delas, Miss Nightingale comparou a enfermagem com o trabalho de um artista, concluindo que haveria semelhanças, mas com certa superioridade da primeira profissão sobre a segunda.

Compreende-se que a PBE seja primordial para a saúde, porém torna-se necessário que a enfermagem adicione outros elementos no desempenho dessa prática para que tenha relação com seu saber-fazer. Ora, o raciocínio lógico, apesar de sua relevância, não responde sozinho a todas as questões no campo da enfermagem, mas, quando conectado à criatividade, desenvolvimento de técnicas e capacidade de reflexão e abstração, tem maior capacidade de compreender a complexidade do ser humano na contemporaneidade.

Apesar do reconhecimento da relevância da arte para a enfermagem desde o século XIX, ainda hoje há desconhecimento dela pela enfermagem. Tal lacuna pode ser decorrente do forte apelo iniciado no Brasil por pesquisadores estrangeiros no desenvolvimento de teorias de enfermagem para consolidar a profissão no rol das ciências na década de 1950. Portanto, há que se buscar a aproximação e o fortalecimento da associação entre PBE e arte na enfermagem.

Diante disso, fazem-se as seguintes indagações: Que afirmações foram elaboradas por Florence para que a arte pudesse ser comparada à enfermagem? Como a arte pode se fortalecer enquanto dispositivo da prática baseada em evidências na enfermagem?

OBJETIVOS

Discutir, à luz de Florence Nightingale, sobre a posição histórica da arte enquanto elemento constituinte da PBE na enfermagem.

O PERCURSO DA INVESTIGAÇÃO

Trata-se de um estudo reflexivo ancorado nos escritos de Florence Nightingale e de outros pesquisadores com os quais se pode dialogar profundamente sobre a temática “arte na enfermagem”. Baseando-se na época em que viveu a pesquisadora citada neste estudo (1820 - 1910), optou-se pela utilização de seus clássicos há muito publicados, mas que trazem os pressupostos de arte na profissão de enfermagem, razão principal para a elaboração deste trabalho. Realizou-se uma busca detalhada de trechos em suas cartas e/ou livros cujo conteúdo estabelecesse uma relação com o elemento “arte em enfermagem”. Tendo em vista o emprego de palavras há tempos em desuso na língua inglesa, houve o auxílio de um tradutor especialista em literatura inglesa.

Após a leitura do material em questão, foi elaborado um fichamento contendo todos os fragmentos que mencionassem a palavra “arte” para posterior envio ao tradutor. De posse da tradução, outra leitura foi realizada para contextualizar o uso do termo “arte” nos documentos.

Da arte dos artistas à arte da enfermagem

Para refletir sobre a inserção da arte na enfermagem, é indispensável um retorno até a Idade Média, quando todo o conhecimento da época encontrava-se reunido em artes. O arcabouço do ensino universitário no medievo era formado pelo agrupamento de disciplinas em torno do trivium (lógica, gramática e retórica) e do quadrivium (geometria, aritmética, música e astronomia). Ao juntarem-se, elas formavam as sete artes ou simplesmente artes liberais, compreendidas como essenciais para a formação do homem pleno, livre de uma profissão — considerada própria dos servos. Não havia distinção entre arte e ciência tal como conhecemos hoje. Era oferecido um conjunto de saberes partindo do conceito aristotélico de que a arte seria a capacidade de criar fundamentada na busca pela verdade. Diferindo das artes liberais, encontravam-se as artes mecânicas, que englobavam disciplinas voltadas à produção de utilidades, tais como ferramentas e objetos de uso comum.

Com o advento do positivismo, os conhecimentos científicos e artísticos foram divididos. Enquanto a ciência se consolidava produzindo conhecimento baseado no princípio da razão, da lógica e do pensamento matemático, as preocupações da arte incorporariam a subjetividade, a moralidade e a cultura como discussões de natureza individual e do julgamento do gosto(66 Ferreira FR. Ciência e arte: investigações sobre identidades, diferenças e diálogos. Educ Pesqui São Paulo. 2010[cited 2020 Mar 11];36(1):261-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36n1.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36...
). À medida que o conhecimento científico se afastava da arte e da filosofia, concentravam-se esforços na expansão da tecnologia por meio do industrialismo surgente no Velho Continente.

A Revolução Industrial teve seu berço no Reino Unido e provocou intensas transformações na economia, nos meios de produção e na vida em sociedade. Foi nesse panorama que viveu Florence Nightingale, membro de uma rica e aristocrática família de fazendeiros e mineradores. Ao optar pela enfermagem — uma atividade desqualificada e impensável para uma mulher da sua condição social —, Florence negou se casar, preferindo dedicar-se aos enfermos.

A opinião que possuía sobre os mais variados assuntos e sobretudo a percepção aguçada quando o tema era o cuidado ao doente fizeram dela uma notável entre os ingleses. Atentava para o corpo, ambiente, segurança, ventilação, perfil de pacientes, dados epidemiológicos, entre outros, que podem ser observados especialmente em Notas sobre Enfermagem e Notas sobre Hospitais — suas obras mais difundidas.

Tendo revolucionado o modo como as práticas de cuidado eram vistas e desempenhadas, Florence passou boa parte da vida preocupada com a formação das enfermeiras em sua escola no Saint Thomas Hospital, em usar o prestígio de que dispunha para denunciar as condições dos hospitais ingleses e em escrever suas impressões sobre a enfermagem. Em 1871, foi publicada uma pequena biografia post-mortem dedicada a Agnes Elizabeth Jones (uma de suas ladies nurses), na qual escreve a mais emblemática definição do que seja a enfermagem.

A Enfermagem é uma arte; e para realizá-la como arte, requer uma devoção tão exclusiva, um preparo tão rigoroso, quanto a obra de qualquer pintor ou escultor; pois o que é tratar da tela morta ou do frio mármore comparado ao tratar do corpo vivo, o templo do espírito de Deus? É uma das Belas Artes, e poderia dizer, a mais Bela das Artes(77 Nightingale F. Una and the lion. Cambridge: Riverside Press; 1871. 22 p.).

Ao aproximar enfermagem e arte, a Dama da Lâmpada não o fez de maneira clara, mas deixou alguns indícios espalhados em publicações — a maioria cartas — com as quais se podem tecer argumentos em busca desse entendimento. Ainda na mesma obra, Miss Nightingale complementou:

Vi impresso em algum lugar que a enfermagem é uma profissão a ser seguida pela “classe média baixa”. Vamos dizer que a pintura ou a escultura é uma profissão a ser seguida pela “classe média baixa”? Por que limitar a classe? Ou diremos que Deus só deve ser servido aos doentes apenas pela “classe média baixa”? A criança mais pobre sem sapatos ou a bem nascida seguiu todas essas profissões com sucesso, teve que passar pelo trabalho mais árduo para atingir o êxito. Não existe arte amadora; não existe enfermagem amadora(77 Nightingale F. Una and the lion. Cambridge: Riverside Press; 1871. 22 p.).

No início da escola no Saint Thomas, Florence demonstrou-se preocupada em encontrar meios para tornar a enfermagem uma profissão respeitada socialmente, tanto é que, ao selecionar suas alunas, optava pelas moças de família rica para ocupar os cargos mais elevados nas instituições.

No trecho supracitado, ela apresenta a enfermagem como uma atividade extremamente qualificada equivalente à pintura e a escultura (artes veneradas pelos estratos sociais elevados) e, ao fazer isso, questionava o exercício da enfermagem por mulheres de camadas mais baixas. O cuidado destinado aos doentes era uma tarefa nobre cercada de valores cristãos, em que o enfermo era o mais puro reflexo da divindade e merecedor de um tratamento refinado a ser oferecido por aqueles que puderam receber o melhor cuidado, isto é, a aristocracia.

Florence também comparou enfermagem e arte para buscar reconhecimento ao passo que reclamava melhorias salariais quando nos diz:

Parece ser a mais fútil de todas as distinções classificar entre arte “paga” e não paga, assim como entre enfermagem “paga” e não paga - para transformar em teste uma circunstância tão acidental quanto se o cabelo é preto ou marrom, ou seja, se as pessoas têm meios privados ou não, se são obrigadas ou não a trabalhar na sua arte ou na sua enfermagem como meio de vida. Provavelmente, ninguém jamais fez isso tão bem como ele - o artista - fez apenas por dinheiro. Certamente, ninguém jamais fez isso tão bem, como aquele que não trabalhou tão duro como se o fizesse apenas por dinheiro. Se por amadores da arte ou da enfermagem se entende aqueles que se dedicam a brincar, não é arte, não é enfermagem. Você nunca fez um artista pagando-lhe bem. Mas um artista deve ser bem pago(77 Nightingale F. Una and the lion. Cambridge: Riverside Press; 1871. 22 p.).

De acordo com Nightingale, a verdadeira enfermagem só poderia ser exercida por mulheres bem preparadas, sérias e comprometidas, senão seria qualquer coisa, menos enfermagem. Ainda que fosse uma profissão que exigisse abnegação para exercê-la, requereria muito esforço para atingir um nível de excelência, e toda essa dedicação deveria ser paga, como a qualquer artista. Ora, se os artistas são remunerados por sua arte e a enfermagem é uma arte, seus “artistas” devem ser muito bem pagos, pois lidam com a mais “bela-arte”: o corpo humano (receptáculo da alma).

Durante a evolução da arte, o francês Charles Batteux publicou, em 1746, o Les Beaux-arts réduits à un même principe, um livro no qual unifica beleza e gosto para imitar a natureza e, com isto, atingir um modelo ideal de perfeição. Charles foi o primeiro a usar o termo “belas-artes” para o conjunto de disciplinas que buscava a expressão da beleza por si só, reunindo a música, escultura, pintura, dança, poesia, eloquência e arquitetura.

Na Inglaterra vitoriana, a arte teve um papel importante, principalmente nas camadas mais elevadas. Ela deveria ser agradável aos olhos, provocar leveza, ser simples para ser útil, elevar o espírito de quem a possuísse tornando-se um objeto de consumo, um bem material, visto ser a arte uma atividade altamente valorizada pelos membros da aristocracia por meio da aquisição de pinturas e estátuas, promoção de exposições, saraus literários e óperas.

Em oposição às belas-artes, havia as artes aplicadas. Com caráter funcional, estas eram destinadas às camadas mais baixas ou envolvidas na produção de objetos em larga escala durante a Revolução Industrial. A dicotomia entre belas-artes e artes aplicadas foi intensificada por artistas e artesãos delimitando as atividades de cada grupo a fim de não serem confundidas.

Nesse período, ocorreu a separação entre artesãos-artífices, responsáveis pelo trabalho de cunho manual caracterizado pela repetição, utilizando saberes adquiridos pelo senso comum, e aqueles ora denominados artistas, que se utilizavam de uma pluralidade de conhecimentos científicos advindos da matemática, geometria, aritmética, química e física com a finalidade de criar obras dignas de admiração(88 Jimenez M. O que é estética?. São Leopoldo: Ed. Unisinos; 1999. 208 p.). Era necessário que a arte alcançasse o status quo de ciência vigente no Século das Luzes — tudo era válido para elevar a arte e distanciá-la do gosto e opinião popular. Do mesmo modo, a enfermagem também deveria ser resguardada por profissionais que unissem ciência, respeito, prática, treinamento e paciência.

O contato de Miss Nightingale com vários campos do saber pode ter dado a ela condições de aprofundar seus estudos nas ciências experimentais e positivistas, e com isso, utilizar esse conhecimento decorrente na formação de suas alunas. Durante os estágios em Kaiserswerth e Paris, ela percebeu que uma boa enfermeira necessitaria de um excelente preparo, somando aulas teóricas e práticas; assim, ela tornava-se a primeira enfermeira a dar um caráter mais científico à profissão.

Da arte da enfermagem à arte da evidência

Por meio dos escritos de Florence, a arte possui relação com dois elementos essenciais no exercício da enfermagem: conhecimento e habilidade. De um lado, há o saber científico proveniente da observação e do preparo formal utilizando a matemática, física, química, anatomia e biologia; de outro lado, a aquisição de habilidades para o cuidado ao enfermo seria uma condição para que a enfermagem fosse elevada ao grau de arte. Senão, seria apenas uma enfermagem amadora como ela mesma comenta.

Outros estudiosos enxergam a arte como um conhecimento inerente à enfermagem ao integrar técnica, intuição e sensibilidade(99 Torralba-Roselló F. Antropologia do cuidar. Petrópolis: Vozes; 2009. 200 p.). A arte enquanto habilidade ou técnica se difundiu na profissão por meio da máxima “enfermagem é a arte do cuidar”, mas, ao longo do tempo, o significado de arte sofreu algumas modificações.

Até o final do século XVIII, o termo “arte” foi utilizado em diversos assuntos para designar a perícia ou maestria no campo da matemática, da medicina ou da pesca. A filosofia define “arte” como intuição, expressão, projeção(66 Ferreira FR. Ciência e arte: investigações sobre identidades, diferenças e diálogos. Educ Pesqui São Paulo. 2010[cited 2020 Mar 11];36(1):261-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36n1.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36...
). A etimologia aponta que o termo sucede da palavra latina ars, cujo significado é habilidade. Para os gregos, essa palavra é derivada de τέχνη, que possui a mesma estrutura morfológica de τɛχνικόν (no latim, techné ou técnica). A mesma raiz acabaria provocando o equívoco de que “arte” e “técnica” seriam sinônimas. O termo τέχνη poderia também significar o desencobrimento que levava à verdade, ou seja, o desencobrimento que provoca uma abertura, alcançada somente com a έπιστήμη (epistéme) ou conhecimento verdadeiro — corroborado pelo conceito proposto por Aristóteles. É interessante notar que esse conhecimento da verdade é por nós compreendido como sendo ciência, cabendo concluir que ciência e arte buscam o desencobrimento que conduz à verdade utilizando saberes adquiridos de forma conjunta.

A oposição entre ciência e arte foi moldada com base em um pensamento que separou esses saberes, dando a eles características, linguagens, métodos e vinculações epistemológicas diferenciadas e até opostas em decorrência do pensamento positivista proposto por René Descartes(66 Ferreira FR. Ciência e arte: investigações sobre identidades, diferenças e diálogos. Educ Pesqui São Paulo. 2010[cited 2020 Mar 11];36(1):261-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36n1.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36...
). A contar desse período, a busca pelo status de ciência passou a ser o objeto de cobiça de todos os campos do saber, mas, para a enfermagem — até então uma mera atividade, semelhante àquela de artesãos, desqualificada, servil —, esse esforço não seria fácil. No entanto, Florence nos apresenta uma visão mais abrangente quando enuncia:

O paciente é para nós um interesse triplo: o interesse intelectual como um caso, que exige a observação mais próxima dos fatos, a ser explicada pela palestra e pelo ensino clínico; o interesse moral, como uma criatura a quem devemos fazer, enquanto está sob nossos cuidados […]; o interesse técnico, pelo qual aprendemos o que fazer pelo paciente e como fazê-lo(1010 Nightingale F. To the Nurses and Probationers trained under the nightingale fund. London: Spottiswoode & Co.;1897. 17 p.).

A enfermagem […] é uma coisa muito séria e agradável, como a vida, exigindo treinamento, experiência, devoção, não aos trancos e barrancos, exige paciência, um poder de acumular, em vez de perder todas essas coisas(1010 Nightingale F. To the Nurses and Probationers trained under the nightingale fund. London: Spottiswoode & Co.;1897. 17 p.).

Ao perceber o paciente como um ser que demanda conhecimento adquirido por observação e ensino, zelo e responsabilidade, enquanto prerrogativas intrínsecas, além de extrema aptidão, Miss Nightingale estava agrupando princípios de PBE. Um elemento-chave para a emergência dessas práticas é a existência de competências, vistas como um conjunto de conhecimentos e habilidades para atingir determinados resultados.

Desse modo, as PBEs são formadas essencialmente por uma tríade que engloba os melhores resultados de pesquisas científicas, perícia clínica e as necessidades de cada paciente/indivíduo. Compreender ciência como conhecimento e arte como habilidade (termo empregado por Florence) conduz à ideia de que ambas permitem aliar competência técnica, empatia, ética e cuidados individualizados — palavras comuns no discurso dos enfermeiros, mas relegadas aos espaços onde as evidências tendem a dominar.

Ao acumularem um corpo de conhecimentos derivados das ciências físicas, biológicas e do comportamento, as enfermeiras o fizeram para elaborar teorias de cuidado — o foco da ciência da enfermagem.

Limitações do estudo

A busca por publicações recentes se apresentou como um desafio frequente durante a elaboração do manuscrito.

Contribuições para a área da enfermagem

A preocupação dos pesquisadores de enfermagem em assegurar um lugar para a enfermagem na seara das ciências acabou nos distanciando daquilo que talvez torne-a mais humana: sua proximidade com a arte. É a vez de empreender estudos não mais para que uma substitua a outra, mas para que, unidas, possam responder melhor aos anseios da sociedade. A premissa de que enfermagem é tanto ciência quanto arte nos conduz a buscar um ponto de convergência e equilíbrio desses saberes no seio da profissão. A difusão de uma enfermagem pautada em ciência e arte, não apenas pelo uso do chavão “arte do cuidar”, é condição sine qua non seus profissionais poderão se autoconhecer para atuar confiantes de seu papel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao aprofundar-se nos escritos de Florence, pode-se afirmar que a utilização da arte na enfermagem não pode ser tratada como uma aptidão divina, presente apenas nos escolhidos, como tem sido propagado entre os profissionais da área. A arte da enfermagem é o exercício contínuo da percepção detalhada do Ser cuidado, de modo que o aspecto subjetivo se torna o centro para o qual converge o olhar do enfermeiro, aquele que o permitirá desvelar a “verdade” posta pelo paciente, resultando na melhor intervenção para ele. Nesse sentido, a arte da enfermagem é fortalecida na PBE quando se observa o paciente (obra de arte) em minúcias no intuito de revelá-lo, levando a uma interpretação para a ação, tal como um artista faz ao criar.

A prática baseada em evidências deriva do desenvolvimento de habilidades para a tomada de decisão, mas, para isso, o enfermeiro deve adquirir o status do artista do Renascimento, como sendo aquele que percebe ciência e arte enquanto algo indivisível e a utiliza no cotidiano para intervir, distanciando-se, assim, de uma prática artesanal, repetitiva, mecanizada.

  • FOMENTO
    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP.

REFERENCES

  • 1
    Erdmann AL, Andrade SR, Mello ALSF, Drago LC. Secondary Health Care: best practices in the health services network. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2013 [cited 2019 Oct 26];21(9):131-139. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21nspe/17.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21nspe/17.pdf
  • 2
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec; 2013. 406 p.
  • 3
    Alves SGS, Vasconcelos TC, Miranda FAN, Costa TS, Sobreira MVS. Aproximação à subjetividade de enfermeiros com a vida: afetividade e satisfação em foco. Esc. Anna Nery [Internet]. 2011 [cited 2019 Dec 21];15(3):511-7. Available from: https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v15n3.pdf
    » https://www.scielo.br/pdf/ean/v15n3/a10v15n3.pdf
  • 4
    Vale EG, Pagliuca LMF. Construção de um conceito de cuidado de enfermagem: contribuição para o ensino de graduação. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011[cited 2019 Dec 21];64(1):106-13. Available from: https://www.scielo.br/pdf/reben/v64n1/v64n1a16.pdf
    » https://www.scielo.br/pdf/reben/v64n1/v64n1a16.pdf
  • 5
    Santos I, Figueiredo NMA, Duarte MJR, Sobral VRS, Marinho AM. Enfermagem Fundamental: realidades, questões, soluções. São Paulo: Atheneu; 2002. 302 p.
  • 6
    Ferreira FR. Ciência e arte: investigações sobre identidades, diferenças e diálogos. Educ Pesqui São Paulo. 2010[cited 2020 Mar 11];36(1):261-80. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36n1.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/ep/v36n1/a05v36n1.pdf
  • 7
    Nightingale F. Una and the lion. Cambridge: Riverside Press; 1871. 22 p.
  • 8
    Jimenez M. O que é estética?. São Leopoldo: Ed. Unisinos; 1999. 208 p.
  • 9
    Torralba-Roselló F. Antropologia do cuidar. Petrópolis: Vozes; 2009. 200 p.
  • 10
    Nightingale F. To the Nurses and Probationers trained under the nightingale fund. London: Spottiswoode & Co.;1897. 17 p.

Editado por

EDITOR CHEFE: Álvaro Sousa
EDITOR ASSOCIADO: Rafael Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br