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O sistema familiar buscando a transformação do seu comportamento alimentar diante da obesidade infantil

RESUMO

Objetivos:

compreender os comportamentos e as práticas alimentares de famílias diante da obesidade infantil.

Métodos:

estudo qualitativo, que utilizou como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados, e, referencial teórico, a Teoria da Complexidade. Participaram do estudo 26 informantes, que integraram dois grupos amostrais. Os dados foram coletados por meio de entrevista intensiva, com uso de roteiro semiestruturado.

Resultados:

emergiu como conceito central “O sistema familiar buscando a transformação dos padrões de comportamento alimentar diante da obesidade infantil”, relacionando três categorias conceituais: “Reconhecendo os seus padrões de comportamentos e práticas alimentares”; “Reorganizando-se diante da obesidade infantil; “Respondendo às mudanças”.

Considerações Finais:

a família influencia o comportamento alimentar da criança e contribui para mudanças que ocorrem nele, o que evidencia a relevância da abordagem familiar na atenção à obesidade infantil, suscitando reflexão sobre a prática de enfermagem atual juntos às famílias que vivenciam a mesma problemática.

Descritores:
Família; Obesidade Infantil; Comportamento Alimentar; Teoria Fundamentada; Enfermagem

ABSTRACT

Objectives:

to understand families’ behaviors and eating practices in the face of childhood obesity.

Methods:

a qualitative study, which used the Grounded Theory as a methodological framework and the Complexity Theory as a theoretical framework. Twenty-six informants participated in the study, who were part of two sample groups. Data were collected through intensive interviews, using a semi-structured script.

Results:

“The family system seeking to change eating behavior patterns in the face of childhood obesity” emerged as a central concept, relating three conceptual categories: “Recognizing its behavior patterns and eating practices”; “Reorganizing in the face of childhood obesity”; “Responding to change”.

Final Considerations:

the family influences children’s eating behavior and contributes to changes that occur in it, which highlights the relevance of the family approach in childhood obesity care, raising reflection on the current nursing practice together with families who experience the same problem.

Descriptors:
Family; Pediatric Obesity; Feeding Behavior; Grounded Theory; Nursing

RESUMEN

Objetivos:

comprender los comportamientos y prácticas alimentarias de las familias frente a la obesidad infantil.

Métodos:

estudio cualitativo, que utilizó como marco metodológico la Teoría Fundamentada en Datos y, como marco teórico, la Teoría de la Complejidad. Veintiséis informantes participaron en el estudio, que formaron parte de dos grupos de muestra. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas intensivas, utilizando un cuestionario semiestructurado.

Resultados:

surgió como concepto central “El sistema familiar que busca la transformación de los patrones de conducta alimentaria frente a la obesidad infantil”, relacionando tres categorías conceptuales reconociendo sus patrones de comportamiento y prácticas alimentarias”; “Reorganizarse frente a la obesidad infantil; “Respondiendo al cambio”.

Consideraciones Finales:

la familia influye en la conducta alimentaria del niño y contribuye a los cambios que se producen en ella, lo que destaca la relevancia del abordaje familiar en el cuidado de la obesidad infantil, suscitando la reflexión sobre la práctica actual de enfermería junto a las familias que viven el mismo problema.

Descriptores:
Familia; Obesidad Pediátrica; Conducta Alimentaria; Teoría Fundamentada; Enfermería

INTRODUÇÃO

A obesidade resultante do desequilíbrio energético entre as calorias consumidas e as calorias gastas pode prejudicar a saúde(11 World Health Organization. Obesity and overweight [Internet]. 2021 [cited 2021 Jun 7]. Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight
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). A prevalência mundial da obesidade quase triplicou nos últimos 40 anos, pois pouco menos de 1% das crianças e adolescentes de 5 a 19 anos eram obesos em 1975. Já em 2016, 6% das meninas e 8% dos meninos estavam acometidos por essa comorbidade. Se os índices continuarem crescendo nessa proporção, poderá haver mais crianças e adolescentes com obesidade do que com desnutrição moderada e grave até 2022(22 Abarca-Gómez L, Abdeen ZA, Hamid ZA, Abu-Rmeileh NM, Acosta-Cazares B, Acuin C, et al. Worldwide trends in body-mass index, underweight, overweight, and obesity from 1975 to 2016: a pooled analysis of 2416 population-based measurement studies in 128·9 million children, adolescents, and adults. Lancet. 2017;390(10113):2627-42. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(17)32129-3
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). De acordo com dados oficiais do relatório do estado nutricional do Sistema de Vigilância Alimentar(33 Ministério da Saúde (BR). Sistema de vigilância alimentar e nutricional: relatórios públicos [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [cited 2021 Jun 7]. Available from: http://sisaps.saude.gov.br/sisvan/
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), no Brasil, em 2020, 8,69% das crianças entre 0 e 5 anos e 11,95% entre 5 e 10 anos apresentavam peso elevado para a idade.

Estudo de revisão sistemática sobre a situação da obesidade infantil no Brasil, no período de 2014 a 2019, apontou elevada incidência de sobrepeso e obesidade em crianças de 0 a 11 anos de idade, em ambos os sexos e independente do nível socioeconômico. Esses dados foram associados ao padrão alimentar inadequado das crianças, caracterizado pelo alto consumo de alimentos processados e comportamento sedentário. Considera-se que, para a reversão do quadro atual vivenciado pela população infantil do Brasil, fazem-se necessárias novas abordagens de conscientização, visando à prevenção da obesidade infantil e à promoção de hábitos de vida saudáveis, tendo como estratégia o ambiente escolar, as creches e o convívio familiar, os quais têm grande impacto nessa faixa etária(44 Corrêa VP, Paiva KM, Besen E, Silveira DS, Gonzales AI, Moreira E, et al. Impact of childhood obesity in brazil: systematic review. RBONE [Internet]. 2020 [cited 2021 Jun 7];14(85):177-83. Available from: http://www.rbone.com.br/index.php/rbone/article/view/1208/949
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).

A literatura evidencia ainda a influência significativa do ambiente familiar nas escolhas alimentares e nas intervenções relacionadas à obesidade infantil(55 Pineda, E, Bascunan, J, Sassi, F. Improving the school food environment for the prevention of childhood obesity: what works and what doesn't. Obes Rev. 2021;22(2):e13176. https://doi.org/10.1111/obr.13176
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). Destaca-se, assim, o conceito de práticas e comportamentos alimentares como sendo a associação dos atributos socioculturais aos aspectos subjetivos, individuais e coletivos relacionados com o comer e a comida, alimentos e preparações apropriadas para situações diversas, escolhas alimentares, combinação de alimentos, comida desejada e apreciada, valores atribuídos a alimentos e preparações e aquilo que pensamos que comemos ou que gostaríamos de ter comido(66 Poulain JP, Property RPC, Diez-Garcia RW. Diagnóstico de práticas e comportamentos alimentares: aspectos metodológicos. In: Diez-Garcia RW, Cervato-Mancuso AM, editors. Mudanças alimentares e educação nutricional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016. p. 149-63.).

Destarte, família é um importante sistema gerador de comportamentos perante a vivência de cada membro, como o simples ato de atribuir e relacionar o alimento como fonte energética. Estudos internacionais revelam que a prática alimentar da família influencia diretamente no modo da criança se alimentar(77 Skjåkødegård HF, Danielsen YS, Morken M, Linde SF, Kolko RP, Balantekin KN, et al. Study protocol: a randomized controlled trial evaluating the effect of family-based behavioral treatment of childhood and adolescent obesity-The FABO-study. BMC Public Health. 2016;16(1):1106. https://doi.org/10.1186/s12889-016-3755-9
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-88 Rhee KE, Herrera L, Strong D, DeBenedetto AM, Shi Y, Boutelle KN. Design of the GOT Doc study: a randomized controlled trial comparing a Guided Self-Help obesity treatment program for childhood obesity in the primary care setting to traditional family-based behavioral weight loss. Contemp Clin Trials Commun. 2021;(22):100771. https://doi.org/10.1016/j.conctc.2021.100771
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). Nessa perspectiva, o resultado do tratamento da obesidade infantil pode ser afetado por fatores familiares, os quais incluem a compreensão das causas do ganho de peso, os estigmas, os recursos da família e a motivação para fazer e manter as mudanças alimentares no sistema familiar(99 Lobstein T, Neveux M, Brown T, Chai LK, Collins CE, Ells LJ, et al. Social disparities in obesity treatment for children age 3-10 years: a systematic review. Obes Rev. 2021;22(2). https://doi.org/10.1111/obr.13153
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).

Tendo em vista que a obesidade infantil é um problema de saúde pública persistente, a Teoria da Complexidade se apresenta com proposta para buscar novas respostas para problemas antigos. No entanto, sua aplicação na prática clínica e assistência à saúde ainda precisa ser explorada(1010 Tuffin R. Implications of complexity theory for clinical practice and healthcare organization. BJA Educ. 2016;16(10):349-52. https://doi.org/10.1093/bjaed/mkw013
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). Essa teoria tem sido utilizada em pesquisas de translação do conhecimento, e as propriedades mais comumente utilizadas na área da saúde são os relacionamentos, a auto-organização e a diversidade. Na complexidade, os relacionamentos e a comunicação entre os indivíduos de um sistema podem influenciar a mudança(1111 Thompson DS, Fazio X, Kustra E, Patrick L, Stanley D. Scoping review of complexity theory in health services research. BMC Health Serv Res. 2016;16(87). https://doi.org/10.1186/s12913-016-1343-4
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).

A família é apreendida como um sistema complexo capaz de criar um equilíbrio diante das instabilidades vivenciadas com as mudanças. Cada membro da família é um subsistema ou sistema individual que constitui o sistema familiar, e a mudança ocorrida em um de seus membros afeta todos os outros(1212 Capra F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix; 1996.). Além de ser um sistema biológico, a família é um sistema social permeado por símbolos e conceitos mutáveis relacionados com papéis e funções. É ainda considerada redes complexas, que têm componentes, como auto-organização, retroalimentação, automanutenção, dentre outras propriedades. Em virtude disso, a família pode ser estudada a partir da concepção de auto-organização e, para isso, faz-se necessário compreender a importância do padrão como característica de um sistema e que as propriedades sistêmicas não podem ser medidas, mas mapeadas, já que se apresentam nas configurações das relações dos seus componentes(1313 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para a avaliação e intervenção na família. São Paulo: Roca; 2018.).

Sendo assim, a família desempenha um papel importante no desenvolvimento de padrões alimentares na infância, por meio de comportamento, atitudes e escolhas alimentares(1414 Patrick H, Nicklas TA. A review of family and social determinants of children’s eating patterns and diet quality. J Am Coll Nutr. 2005;24(2):83-92. https://doi.org/10.1080/07315724.2005.10719448
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). A atuação da família mediante a obesidade infantil tem sido abordada sob a ótica quantitativa avaliando os resultados do cuidado e manejo familiar. No entanto, as intervenções comportamentais centradas na família são uma abordagem subutilizada e baseada em evidências que podem prevenir significativamente a doença(1515 Smith JD, Berkel C, Jordan N, Atkins DC, Narayanan SS, Gallo C, et al. An individually tailored family-centered intervention for pediatric obesity in primary care: study protocol of a randomized type ii hybrid effectiveness-implementation trial (Raising Healthy Children Study). Implement Sci. 2018;13(11). https://doi.org/10.1186/s13012-017-0697-2
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).

Dessa forma, a compreensão da experiência familiar conceituada em dados, por meio dos pressupostos metodológicos da Teoria Fundamentada nos Dados e teóricos da Complexidade, pode subsidiar avaliações e intervenções de enfermagem com as famílias, tendo em vista a relevância do comportamento alimentar familiar para o controle da obesidade infantil.

OBJETIVOS

Compreender os comportamentos e as práticas alimentares de famílias diante da obesidade infantil.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná. Documentou-se a anuência dos participantes com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes familiares, Termo de Assentimento Livre e Esclarecido, quando participante criança e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para pais ou responsável legal pela criança. Seguiram-se as normas da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e, para preservar o anonimato dos participantes as entrevistas, foram identificadas com códigos alfanuméricos e da mesma forma as transcrições.

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo do tipo Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), que tem como propósito a criação de uma estrutura de conceitos ou construção de teoria por meio da análise indutiva dos dados(1616 Charmaz K. Constructing grounded theory. London: Sage; 2006.). Para compreender as práticas alimentares na experiência das famílias com crianças com obesidade, optou-se pela abordagem construtivista de Kathy Charmaz(1717 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009.).

As principais caraterísticas do método são elencadas por Charmaz(1717 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009.), conforme estabelecido por Glaser e Strauss(1818 Glaser BG, Strauss AL. The discovery of grounded theory: strategies for qualitative research. New York: Aldine; 1967.), inicialmente: coleta e análise de dados simultaneamente; construção de códigos e categorias analíticas baseadas nos dados; comparações constantes em cada fase de análise; avanço no desenvolvimento da teoria em cada etapa da coleta e da análise dos dados; redação de memorandos para desenvolver as categorias, especificar suas propriedades e identificar lacunas; amostragem teórica; e revisão bibliográfica após o desenvolvimento da análise. O estudo foi direcionado pelo COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ)(1919 Souza VR, Marziale MH, Silva GT, Nascimento PL. Traducción y validación al idioma portugués y evaluación de la guía COREQ. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE02631. https://doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO0263
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).

Cenário do estudo

O cenário do estudo foi um ambulatório de endocrinologia pediátrica de um hospital público de um município da região Sul do Brasil, que, atualmente, atende em média 350 crianças mensalmente com diferentes condições endócrinas, o qual é referência para o atendimento a crianças com obesidade pelo Sistema Único de Saúde.

Fonte de dados

Para o início da coleta de dados, escolheram-se os familiares que acompanhavam a criança no momento da consulta médica. Adotou-se como critério de inclusão ser familiar de criança (na faixa etária de 0 a 10 anos) em tratamento da obesidade infantil, e como critério de exclusão, ser menor de idade.

A análise dos dados coletados, inicialmente com 7 familiares, sugeriu a hipótese de que a obesidade na infância impacta a vivência e a rotina alimentar do sistema familiar e que há um movimento deste em torno da criança, objetivando a mudança de hábitos para o tratamento da obesidade. Diante disso, suscitaram-se os seguintes questionamentos: como a família vivencia as mudanças na prática alimentar diante da obesidade infantil? Como é para a família dar o alimento para a criança?

Seguindo com a coleta e análise, após entrevistar mais 8 familiares, emergiram nos dados lacunas relacionadas às ações de controle alimentar desenvolvidas pela família e à perspectiva da criança, com os questionamentos: como tem sido para a criança vivenciar as mudanças na prática alimentar, no tratamento da obesidade? O que mudou?

Por isso, considerou-se relevante ouvir a criança, a fim de compreender seu próprio ponto de vista e significados atribuídos às suas experiências com a obesidade infantil. Por conseguinte, as crianças compuseram o segundo grupo amostral no estudo. Os critérios de inclusão para esse grupo foram ter idade entre 7 e 10 anos e estar em atendimento para obesidade no mesmo ambulatório, e como critério de exclusão, ter menos de três meses de tratamento (tempo de retorno para consulta). Assim, o primeiro grupo amostral foi composto por 20 familiares (14 mães, 3 pais, 1 avó, 1 tia e 1 primo) e o segundo, por 6 crianças.

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados de janeiro de 2019 a março de 2020, por meio de entrevista intensiva, com roteiro semiestruturado contendo questões relacionadas à experiência da família com a obesidade infantil. As entrevistas foram realizadas pela pesquisadora principal, enfermeira, discente de curso de doutorado em enfermagem durante o período de desenvolvimento do estudo.

Na entrevista com as crianças, utilizou-se como estratégia de aproximação uma história em quadrinhos sobre obesidade e um flanelógrafo (quadro recoberto com feltro, sobre o qual ilustrações e letreiros podem ser colocados, retirados ou deslocados de sua posição inicial (Figura 1)), no qual as crianças identificavam a família e sua rotina diária e alimentar. Também foi utilizado um roteiro estruturado, para coletar os dados sociodemográficos dos participantes, que foi respondido pelos familiares.

Figura 1
Registro fotográfico de flanelógrafo montado ao término de entrevista com criança

As entrevistas foram conduzidas em sala reservada do referido ambulatório, audiogravadas em aparelho smartphone, com duração média de 40 minutos para os familiares e 25 minutos para as crianças. Nas entrevistas com os familiares, estava presente a criança em tratamento para obesidade infantil, mesmo quando esta não era participante da pesquisa. Na entrevista com as crianças, os familiares acompanhantes também ficaram presentes na sala durante a entrevista.

Realizaram-se duas entrevistas como teste piloto, que também foram inclusas na análise de dados. Dentre os convidados para participar da pesquisa, dois familiares (mães) se recusaram e uma delas indicou o pai da criança, que aceitou participar. A coleta de dados foi encerrada após o alcance da saturação teórica, quando a coleta de novos dados não provocou mais nova reflexão nem revelou novas propriedades nas categorias. Os áudios das entrevistas foram transcritos e analisados logo após sua realização, com coleta e análise simultânea, conforme preconizado no método.

Análise dos dados

A análise dos dados aconteceu pelo processo de codificação, na qual os dados foram sintetizados e reorganizados em três etapas(1717 Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009.): 1) codificação inicial (linha a linha), para identificar os significados dos enunciados; 2) codificação focalizada, para a reunir os códigos iniciais mais significativos, agrupá-los em categorias e subcategorias ainda com nomes provisórios e especificar suas propriedades; 3) codificação teórica, para auxiliar “a contar uma história analítica de forma coerente” (p. 94), ajudar a conceituar e integrar os códigos reunidos na etapa anterior, contornando a história sob uma orientação teórica. Nessa etapa, com o desenvolvimento da análise, alguns códigos emergem como categorias conceituais. Os dados foram explorados e a saturação teórica foi alcançada quando a coleta de dados não originou novos insights nem revelou novas propriedades nas categorias.

Para isso, a análise percorreu de forma dedutiva-indutiva, e os códigos se tornaram abstratos, ao passo que integraram e se relacionaram para conferir consistência intra e inter-categorias. Ao codificar os dados e especificar as propriedades das categorias (conforme sintetizados no Quadro 1), emergiu o conceito central intitulado “O sistema familiar buscando a transformação dos padrões de comportamento alimentar diante da obesidade infantil”, que interconecta as três categorias conceituais que representam os comportamentos e práticas alimentares da família diante da obesidade infantil.

Quadro 1
Apresentando as categorias conceituais, subcategorias e enunciados dos participantes

Para auxiliar no processo de organização e comparação dos códigos, utilizou-se o software WebQDA a partir da etapa da codificação focalizada até a integração das categorias conceituais.

RESULTADOS

Os 20 participantes familiares tinham idade entre 25 e 53 anos, sendo 16 mulheres e 4 homens. A metade desses tinha ensino fundamental incompleto, 1, ensino fundamental, 7, ensino médio, 1, ensino superior incompleto e 1, ensino superior. As profissões dos participantes incluíram diarista, auxiliar de serviços gerais, financeiro, de mercado e de costura, operador de caixa, trabalhador rural, eletricista, professor, atendente escolar, fotógrafo.

As 6 crianças que participaram tinham idade entre 7 e 10 anos, sendo 3 do sexo masculino e 3 do sexo feminino. Quanto à escolaridade, 1 criança cursava o 2º ano, 1, o 3º, 3, o 4º ano e 1, o 5º ano.

O conceito central “O sistema familiar buscando a transformação dos padrões de comportamento alimentar diante da obesidade infantil” relaciona as três categorias conceituais (Figura 2). “Reconhecendo os seus padrões de comportamentos e práticas alimentares” revela a condição da família diante da obesidade infantil, em que reconhece os seus padrões de comportamentos e práticas alimentares habituais e identifica que alguns desses favorecem o ganho de peso na criança. Diante disso, em “Reorganizando-se diante da obesidade infantil”, a família desenvolve estratégias para as alcançar as modificações esperadas nos hábitos alimentares da criança, buscando desenvolver nova rotina a partir desta vivência, atendendo às demandas desse processo. “Respondendo às mudanças” emerge como consequência das adaptações familiares e dos novos comportamentos aprendidos pelos seus membros em prol do equilíbrio do sistema familiar. No entanto, as dificuldades que surgem nesse movimento familiar podem contribuir para a manutenção do padrão de comportamento revelado inicialmente, impedindo a mudança.

Figura 2
Diagrama do conceito central “O sistema familiar buscando a transformação dos padrões de comportamento alimentar diante da obesidade infantil”

“Reconhecendo os seus padrões de comportamentos e práticas alimentares” aponta a habitualidade dos horários às principais refeições, representada pela subcategoria “Tendo horários habituais para as refeições”. Para as famílias, o café da manhã acontece entre 08:00 e 10:00 horas, o almoço, entre 11:00 e 12:00 horas, e o jantar, entre 19:00 e 20:00 horas. Algumas famílias fazem “café da tarde” no lanche da tarde. Todavia, algumas famílias referem não seguir nenhuma rotina de horários para alimentação. As crianças têm uma alimentação controlada, ou seja, não comem fora do horário previsto pelo cuidador principal, que geralmente é a mãe.

No processo de reconhecimento do seu padrão de comportamento alimentar “Escolhendo, preparando e combinando os alimentos”, demonstra-se que, na maioria das famílias, as refeições são preparadas pela mãe. Quanto à combinação de alimentos, pela manhã, a criança tem o hábito de comer pão com queijo e presunto, suco ou achocolatado, café com leite e fruta. As crianças lancham na metade da manhã uma fruta. Geralmente, o almoço é composto por um carboidrato (macarrão, arroz ou polenta), feijão, salada (legumes ou verduras) e uma proteína (carne, linguiça, frango). Essa combinação é referida por algumas famílias como o trivial. No jantar, costumam repetir os mesmos alimentos que compuseram o almoço do dia. Algumas famílias referem comer algo mais leve, como sopa de legumes e pão. A sopa no jantar é comum em várias famílias.

Há famílias que mencionaram diferenças na composição do prato da criança em relação ao restante da família, por exemplo, prato da criança com mais legumes e menos carboidrato, e prato da família com mais proteína, mais carboidrato e menos verduras e legumes.

Relatando onde e com quem alimentam-se mostrou que a família tem o hábito de comer juntos na mesa diariamente e em todas as refeições. No entanto, quando um membro da família tem namorado, este, às vezes, não se senta à mesa e faz as refeições com o(a) namorado(a). Em algumas famílias, a criança faz as refeições com o irmão, quando os familiares estão trabalhando.

Sendo uma tradição comer na mesa, o comportamento padrão das famílias é fazer suas refeições em casa. No entanto, surgem algumas variantes, como a família comer no sofá, porque não tem mesa, e também brigar para a criança comer na mesa.

Um dos ambientes onde as crianças nessa idade realizam as refeições é a escola. Aquelas que frequentam em período integral fazem todas ou quase todas as refeições na escola, mas também ocorre de a criança comer o lanche que leva de casa para a escola e/ou comer o lanche da escola preparado, conforme as orientações médicas prescritas para ela. Ainda acontece de a criança fazer as refeições em outros ambientes, como casa de familiar e projeto social. Nessas ocasiões, as famílias relatam que os alimentos disponíveis para a criança, geralmente, não são saudáveis ou ela come “à vontade”, uma vez que não há como a família controlar a quantidade. Também podem ter disponíveis alimentos saudáveis nesses ambientes.

A família também reconhece outro comportamento em “Agradando a criança com o alimento”, utilizando-o como estratégia para acalmar a criança quando está agitada, ofertando alimento para evitar conflito ou para ela não fazer birra, ou porque a criança está pedindo, ou ainda porque ela pede de uma maneira que comove a família emocionalmente.

A disponibilidade tangível de alimentos emergiu no comportamento “A criança comendo o que vê”. O alcance e a facilidade do alimento são fatores relacionados pela família à alimentação não saudável. Outra situação é quando os familiares não praticam as refeições no mesmo horário, e a criança quer comer com cada familiar que se senta à mesa.

Semelhante à disponibilidade alimentar, “A criança pedindo para comer” se relaciona a um comportamento compulsivo ao se alimentar. A criança busca alimento durante o dia para “ficar beliscando”. A criança come o que gosta até acabar, por exemplo, uma pizza inteira. A família refere vontade de comer manifestada pela criança e a necessidade de colocar limite para que ela pare de comer.

“Reorganizando-se diante da obesidade infantil” é uma categoria conceitual que representa um processo iniciado com “Buscando ter hábitos alimentares saudáveis”, estratégia para alcançar as modificações necessárias na prática alimentar da criança. Para isso, substituiu-se açúcar por adoçante, diminuiu-se a quantidade de achocolatado, passa-se a consumir alimentos integrais e a complementar a alimentação com frutas e verduras. Alimentos, como macarrão, doces, guloseimas, frituras, bolachas e salgadinhos, foram retirados da alimentação da criança. Também foram retirados pizza e lanche consumidos diariamente. A retirada de alimentos é implementada por meio de não comprá-los e/ou não prepará-los, com o objetivo de não ter aquele alimento disponível em casa.

Outra estratégia vivenciada foi a substituição de utensílios de cozinha, por exemplo, frigideira de teflon, com o objetivo de utilizar menos gordura no preparo de alimentos, e também a utilização de prato com divisórias, conforme orientado por nutricionista, para limitar a quantidade de alimentos.

“O tratamento da obesidade repercutindo na família” revela que a família passa a se privar de alguns tipos de alimentos, consumindo alimentos indicados para o tratamento da obesidade infantil. Sendo assim, alimentos não recomendados para a criança são colocados à mesa. Caso alguém da família queira algum alimento diferente, faz o preparo separadamente. Assim, as famílias perceberam que a ação de um membro influencia o restante da família. Também aconteceu, em algumas famílias, de um membro modificar a sua prática alimentar e passar a seguir as mesmas orientações de alimentação saudável que a criança, devido a também estar com excesso de peso ou, ainda, para que a criança não pense ou sinta que está se alimentando de maneira diferente do restante da família.

“Saindo da nova rotina alimentar” se refere a situações nas quais ocorre variação na nova alimentação da criança e o comportamento alimentar inicial é vivenciado. Geralmente, no fim de semana, a família permite alguns dos alimentos de preferência da criança, que não são recomendados no tratamento da obesidade, como salgadinhos, pizza, sorvete, chocolate, torta e lanche. Esse comportamento é referido como algo agradável para a criança e toda a família como forma de compensar a limitação e o controle da prática alimentar durante a semana. Essas variações da mudança da prática alimentar ocorrem só para a criança e também nas refeições com a família.

“Restringindo a alimentação da criança” é uma estratégia para controlar o consumo de alimento pela criança. Todavia, essa tentativa é feita ao máximo possível durante a semana e uma das medidas utilizadas é conversando e explicando sobre a necessidade de restrição de alimentos e evitando que a criança coma fora de casa. Para a criança não comer mais ou não comer algum tipo de alimento específico, os familiares também oferecem frutas, verduras, ou comidas mais leves. As famílias relatam que passaram a ser mais controladoras, ou seja, antes não conseguiam dizer não quando a criança pedia alimento e mudaram com o tempo, porém colocar em prática foi pela maior parte das famílias como sendo muito difícil.

Mediante as novas experiências que o sistema familiar vivencia para modificar as suas práticas alimentares, “Respondendo às mudanças” é a categoria conceitual que representa as respostas da família mediante o processo de reorganização. “Adaptando-se bem” significa que, algumas vezes, as crianças aceitam o controle alimentar e “ficam bem”. O tempo é um aspecto que influencia essa adaptação, visto que algumas famílias relataram ser mais difícil no início da implementação das novas práticas alimentares.

Além disso, “Verificando mudanças no comportamento alimentar da criança” denota o novo comportamento alimentar da criança, uma consequência de uma das mudanças adotadas pela família no processo de reoganização, ao oportunizá-la fazer escolhas alimentares saudáveis. Segundo a família, a criança reconheceu a necessidade de modificação do seu comportamento alimentar a partir das orientações médicas no decorrer do tratamento da obesidade infantil.

As dificuldades foram identificadas em “Tendo dificuldades para adaptar-se”, quando há famílias que reagem não conseguindo compreender e acompanhar as mudanças nas práticas alimentares necessárias para o tratamento da obesidade infantil, resultando em dificuldades para fazer o controle alimentar, por exemplo. Eles referiram como muito difícil e complicado negar o alimento para a criança. Além disso, há reclamações dos demais componentes familiares diante das mudanças vivenciadas. Geralmente, a dificuldade ocorre quando existem irmãos com idades próximas da criança com obesidade, em que há necessidade de supervisão da alimentação do filho com excesso de peso e do outro não.

Em “Acreditando na reeducação alimentar como estratégia”, a família demonstra conhecer os alimentos saudáveis e adequados para a criança e acreditar que a principal maneira de conseguir realizar o tratamento da obesidade é por meio da alimentação com a reeducação alimentar e monitoração da alimentação da criança. Além disso, reconhecem a necessidade de adequar os comportamentos e as práticas alimentares de todo o sistema familiar para que a criança possa modificar e reestabelecer o seu estado de saúde.

DISCUSSÃO

O sistema familiar parte do reconhecimento dos seus padrões de comportamento, hábitos e rituais alimentares que podem fragilizar ou não o estado nutricional da criança. À medida que racionaliza seus erros na alimentação, a família também condiciona e relativiza sua rotina alimentar para se organizar diante da criança. Nesse sentido, a dinâmica familiar pode alterar os padrões de comportamento ou prática alimentar da criança com obesidade, como sugerem evidências em que crianças expostas ao ambiente comunicativo, funcional e regrado estão menos predispostas ao ganho de peso corporal(2020 Skelton JA, Van Fossen C, Harry O, Pratt KJ. Family dynamics and pediatric weight management: Putting the family into family-based treatment. Curr Obes Rep. 2020;9(4):424-41. https://doi.org/10.1007/s13679-020-00407-9
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).

Embora o presente estudo represente a perspectiva da família, a ação individual da criança ou de outro membro da família emerge como condição para o fenômeno, em que a oferta de alimentos em momentos de fragilidade da criança ou o desejo contínuo pelo alimento também influencia o comportamento e a prática alimentar da família. Isso tem sido descrito como funcionalidade familiar, em que a organização familiar em torno dos horários, hábitos e rituais pode promover ou não um ambiente saudável(2121 Pratt KJ, Skelton JA. Family functioning and childhood obesity treatment: a family systems theory-informed approach. Acad Ped. 2018;18(6):620-7. https://doi.org/10.1016/j.acap.2018.04.001
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).

O reconhecimento dos padrões de comportamento e prática alimentar da família conectados com a obesidade infantil foi identificado na disponibilidade de alimentos à criança, em algumas preferências alimentares e na atribuição do significado afetivo do alimento quando a família o utiliza para acalmá-la. Dados semelhantes a esses foram observados em uma revisão sistemática(2222 Shloim N, Edelson LR, Martin N, Hetherington MM. Parenting styles, feeding styles, feeding practices, and weight status in 4-12 year-old children: a systematic review of the literature. Front Psychol. 2015;6:1849. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2015.01849
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), na qual o estilo e o comportamento alimentar dos pais se associaram a hábitos saudáveis da criança, como predefinição dos horários às refeições, o tipo dos alimentos ofertados e a abordagem parental mediante os pedidos de guloseimas pelas crianças.

Diante do exposto, o sistema familiar inicia um processo de criação de novos comportamentos a partir do reconhecimento da condição inicial de suas práticas alimentares. Segundo o pensamento complexo, os modelos auto-organizadores só emergem com novas formas de comportamento quando o sistema está afastado de equilíbrio(1313 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para a avaliação e intervenção na família. São Paulo: Roca; 2018.); dessa mesma maneira, foi compreendida a emergente organização da rotina alimentar das famílias das crianças com obesidade, ao buscar novos comportamentos. Neste estudo, o sistema familiar percebeu que precisava modificar sua prática alimentar, para que, efetivamente, a criança pudesse modificar a sua, fato emergente na categoria conceitual “Reorganizando-se diante da obesidade infantil”.

A reorganização representa as estratégias construídas pela família a partir do reconhecimento de suas forças e recursos em busca de hábitos saudáveis e um ambiente familiar favorável à mudança na prática alimentar da criança. A partir disso, fizeram-se necessários a adequação da escolha, o preparo e a combinação de alimentos nas refeições da criança, de acordo com as orientações médicas recebidas no tratamento. Além das mudanças na escolha alimentar, buscou-se limitar o comportamento alimentar da criança, reconhecido pelas famílias como compulsivo.

Ressalta-se que a escolha alimentar da criança não é exclusiva dela, visto que depende também da família e de quem é responsável pelo seu cuidado. Além disso, preparo, escolha e combinação são elementos diferentes da escolha alimentar, mas, nesta pesquisa, foram unificados, para representar que, para a criança, a pessoa que prepara também escolhe e combina os alimentos.

Neste estudo, também se identificou que o funcionamento da família pode ser um ponto estratégico para a adoção de medidas saudáveis ou nocivas à alimentação. Ao ser considerado fator de proteção para a saúde, a atenção a crianças com obesidade deve ampliar o enfoque para esta abordagem familiar como forma de melhorar os comportamentos que influenciam no peso(2323 Sepúlveda AR, Lacruz T, Solano S, Blanco M, Moreno A, Rojo M, et al. Identifying loss of control eating within childhood obesity: the importance of family environment and Child Psychological Distress. Children (Basel). 2020;7(11):225. https://doi.org/10.3390/children7110225
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). Por isso, as intervenções familiares para tratar a obesidade infantil são bastante utilizadas, porém é preciso conhecer como a família é afetada por essas intervenções(2424 Hoeeg D, Christensen U, Lundby-Christensen L, Grabowski D. Contextual complexities in implementing a family-based childhood obesity intervention: the perspectives of enrolled children and their parents. Children (Basel). 2020;7(12):267. https://doi.org/10.3390/children7120267
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). Em vista disso, compreender a influência do funcionamento familiar no ganho de peso pode permitir a mudança de comportamentos familiares modificáveis, como a comunicação, o controle comportamental e a resolução de problemas, para melhorar os comportamentos de saúde(2525 Berge JM, Wall M, Hsueh TF, Fulkerson JA, Larson N, Neumark-Sztainer D. The protective role of family meals for youth obesity: 10-year longitudinal associations. J Pediatr. 2015;166(2):296-301. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2014.08.030
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).

Nesta investigação, a comunicação foi uma estratégia utilizada pelos familiares para definição dos limites no comportamento alimentar compulsivo da criança e para esclarecer a necessidade das novas práticas alimentares para toda a família a partir das orientações médicas recebidas ao iniciar o tratamento da obesidade infantil. Neste aspecto, a comunicação é utilizada como forma de tentar restringir a alimentação da criança e está intimamente relacionada com os limites dentro do subsistema pai-filho, impactando no funcionamento familiar.

Apesar das relevantes adaptações, outras famílias não foram exitosas em buscar práticas alimentares saudáveis. Isso pode estar correlacionado com o grau de instrução, a cultura alimentar ou a posição socioeconômica. A maneira como as famílias lidam com as reações da criança diante da imposição de limites tem sido abordada como uma estratégia intervencionista, a qual pode ser inserida na prática da enfermagem(2626 Ball GDC, Sebastianski M, Wijesundera J, Keto-Lambert D, Ho J, Zenlea I, et al. Strategies to reduce attrition in managing pediatric obesity: a systematic review. Pediatr Obes. 2021;16(4):e12733. https://doi.org/10.1111/ijpo.12733
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). Destarte, a mudança no comportamento alimentar da criança é uma consequência da reorganização da rotina alimentar da família. Mesmo quando não conseguem, devido às dificuldades, as famílias seguem e continuam no processo, buscando transformar seus padrões de comportamento. Essa circularidade de ações da rede familiar em busca da mudança e das inter relações dos membros entre si, e dentro dos subsistemas pai-filho, e irmãos foi representada no conceito central “O sistema familiar buscando a transformação dos padrões de comportamento alimentar diante da obesidade infantil”.

Portanto, esse empenho da família para mudança é considerado como um movimento circular consequente no paradigma da complexidade, quando se trata de sistemas complexos como o sistema familiar. À luz da complexidade, esse comportamento é natural, para que novos rearranjos sejam incorporados para a própria sobrevivência do sistema(1313 Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para a avaliação e intervenção na família. São Paulo: Roca; 2018.). Semelhante a isso, estudos intervencionistas baseados na teoria sistêmica familiar têm demonstrado que as famílias perpassam por dificuldades diante das adaptações, mas conseguem alterar o status de forma positiva(2222 Shloim N, Edelson LR, Martin N, Hetherington MM. Parenting styles, feeding styles, feeding practices, and weight status in 4-12 year-old children: a systematic review of the literature. Front Psychol. 2015;6:1849. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2015.01849
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,2626 Ball GDC, Sebastianski M, Wijesundera J, Keto-Lambert D, Ho J, Zenlea I, et al. Strategies to reduce attrition in managing pediatric obesity: a systematic review. Pediatr Obes. 2021;16(4):e12733. https://doi.org/10.1111/ijpo.12733
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).

Conforme pode ser observado na representação gráfica da Figura 2, o processo de transformação das práticas alimentares inicia com reconhecimento dos padrões de comportamento alimentar do sistema familiar, seguindo movimentando-se na direção de buscar modos para alcançar as mudanças necessárias. Mas a família é um sistema vivo, interativo, dinâmico e organizado, tendo em vista as suas regras internas e rotinas, e assim o processo de transformação de comportamentos da família emergiu como um fenômeno de reorganização da prática alimentar.

O movimento da família em busca de adaptação é circular, ou seja, contínuo, e as mudanças ocorrem sucessivamente, e os componentes da rede familiar transformam uns aos outros(1212 Capra F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix; 1996.). Porém, neste estudo, ao conceituar o sistema familiar buscando a transformação dos seus comportamentos e práticas alimentares diante da obesidade, mesmo quando estão passando por modificações e se reoganizando, a família pode se comportar, também, mantendo sua identidade e padrão alimentar inicial, quando sai da nova rotina alimentar como estratégia de manutenção da estabilidade do sistema como em um sistema complexo adaptativo.

Contudo, pressupõe-se que o sistema familiar fica afastado do equilíbrio, ao vivenciar uma situação de estresse, problema, perturbação ou doença como a obesidade infantil. Isso ocorre ainda que esse sistema retorne ao seu estado inicial de equilíbrio, modificando seus padrões de comportamento e práticas alimentares por meio das mudanças experimentadas. Algumas medidas descobertas e implementadas na vivência desse processo provavelmente ainda precisarão ser mantidas, a fim de garantir o estado de saúde e a manutenção do peso adequado da criança, bem como o equilíbrio de todo a rede a familiar.

Limitações do estudo

O estudo apresenta como limitação o fato de ter sido realizado com famílias oriundas de um único contexto de atendimento público, sendo necessário explorar outras realidades sociais nas quais a experiência familiar com a obesidade infantil seja também vivenciada. Outra limitação se refere à não validação dos conceitos emergidos com famílias que possuam experiências semelhantes.

Contribuições para área de enfermagem

A principal contribuição deste estudo consiste na produção de evidências sobre a experiência da família no processo de mudança dos comportamentos e práticas alimentares da criança com obesidade, bem como na identificação das dificuldades vivenciadas e estratégias exitosas implementadas pela família nesse processo.

Assim, espera-se que os dados emergidos desta pesquisa gerem reflexões sobre o modelo de tratamento atual para obesidade infantil, que tem enfoque na mudança de comportamento individual, ainda que haja o reconhecimento de que a obesidade é produto de um sistema adaptativo complexo(2727 Nobles J, Summerbell C, Brown T, Jago R, Moore T. Uma análise secundária da revisão Cochrane de prevenção da obesidade infantil por meio de determinantes mais amplos das lentes da saúde: implicações para financiadores de pesquisas, pesquisadores, legisladores e profissionais. Int J Behav Nutr Phys Act. 2021;18(22). https://doi.org/10.1186/s12966-021-01082-2
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). Por conseguinte, este estudo pode contribuir para a prática clínica da enfermagem familiar, ampliando a atenção para o contexto familiar, quando o cuidado envolver o comportamento e as práticas alimentares de crianças com obesidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sistema familiar busca modificar seus comportamentos diante da necessidade de mudança da prática alimentar da criança com obesidade, uma vez que a doença repercute na família em consequência da responsabilidade com cuidado infantil e compromisso com o tratamento.

A TFD construtivista permitiu revelar a experiência na prática alimentar da família no desenvolvimento de estratégias com a categoria conceitual “Reorganizando-se diante da obesidade infantil”, que pode corroborar para a construção de modelo teórico e ser considerada em intervenções de enfermagem com outras famílias que vivenciam a mesma realidade.

Diante da compreensão de que o sistema familiar é capaz de contribuir positivamente para a mudança do padrão de comportamento alimentar, este estudo gerou nova evidência para que a família seja inclusa na abordagem do tratamento da obesidade infantil, já que, geralmente, a abordagem da doença é individual.

Contudo, sugere-se que novas pesquisas busquem explorar os aspectos relacionados às dificuldades do sistema familiar no processo de transformação dos seus padrões de comportamento alimentar, já que algumas famílias conseguem modificá-los e outras não, e identificar os aspectos do funcionamento familiar relevantes para a modificação das práticas alimentares de famílias de crianças com obesidade.

  • FOMENTO
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    11 Dez 2021
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