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Percepções contraditórias de docentes de enfermagem sobre o contexto neoliberal do trabalho

RESUMO

Objetivos:

Identificar e analisar as percepções de docentes de Enfermagem acerca das novas configurações do mundo do trabalho e as repercussões para suas atividades laborais.

Métodos:

Pesquisa qualitativa, descritiva, exploratória, realizada em duas faculdades de enfermagem federais, no Rio de Janeiro. A coleta de dados ocorreu com 27 docentes de Enfermagem, entre maio e junho de 2016, por meio de entrevista semiestruturada. Os dados foram tratados pela técnica de análise temática de conteúdo.

Resultados:

Os resultados apontaram contradições nas percepções dos docentes sobre o mundo do trabalho, o qual tem se pautado por preceitos neoliberais. Tais contradições se caracterizam por manifestações a favor da incorporação desses preceitos, evidenciando seus efeitos negativos sobre o trabalho docente de Enfermagem.

Considerações finais:

Há dissonâncias na maneira de perceber a atual configuração do mundo do trabalho, propondo-se mais e profundas reflexões sobre tal cenário laboral.

Descritores:
Docentes; Saúde do Trabalhador; Enfermagem; Mercado de Trabalho; Política

ABSTRACT

Objectives:

To identify and analyze the perceptions of nursing teachers on the new configurations of the job world and the repercussions for their labor activities.

Methods:

Qualitative, descriptive, exploratory research, carried out at two federal nursing colleges in Rio de Janeiro. Data collection occurred with 27 nursing teachers, between May and June 2016, through semi-structured interviews. The data were treated using the thematic content analysis technique.

Results:

The results showed contradictions in the teachers’ perceptions about the job world, which has been guided by neoliberal precepts. Such contradictions are characterized by manifestations in favor of incorporating these precepts, highlighting their negative effects on nursing teaching work.

Final considerations:

There are incongruities in the way of perceiving the current configuration of the job world, proposing more and profound reflections on such a work scenario.

Descriptors:
Teachers; Worker’s health; Nursing; Job Market; Policies

RESUMEN

Objetivos:

Identificar y analizar las percepciones de docentes de Enfermería acerca de las nuevas configuraciones del mundo laboral y las repercusiones para sus actividades laborales.

Métodos:

Investigación cualitativa, descriptiva, exploratoria, realizada en dos facultades de Enfermería federales, en Rio de Janeiro. La recogida de datos ocurrió con 27 docentes de Enfermería, entre mayo y junio de 2016, por medio de entrevista semiestructurada. Los datos tratados por técnica de análisis temático de contenido.

Resultados:

Apuntaron contradicciones en las percepciones de los docentes acerca del mundo laboral, lo cual ha se pautado por preceptos neoliberales. Tales contradicciones se caracterizan por manifestaciones a favor de incorporación de eses preceptos, evidenciando sus efectos negativos acerca del trabajo docente de Enfermería.

Consideraciones finales:

Hay disonancias en la manera de percibir la actual configuración del mundo laboral, proponiéndose más y profundas reflexiones acerca de tal escenario laboral.

Descriptores:
Docentes; Salud Laboral; Enfermería, Mercado Laboral; Política

INTRODUÇÃO

O atual mundo do trabalho é marcado por fortes influências do modelo neoliberal, o qual se caracteriza por ser mais que um conjunto de doutrinas econômicas. Ele vai além: influencia e constrói modos de ser, valores, éticas, moldando e capturando subjetividades e, desse modo, transformando a vida em sociedade e as relações de trabalho de forma radical(11 Souza NVDO, Gonçalves FGA, Pires AS, David HMSL. Influência do neoliberalismo na organização e processo de trabalho hospitalar de enfermagem. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):912-9. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0092
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
).

Esse modelo valoriza o individualismo sobre o coletivismo e defende a ideia de que o Estado deve ser “mínimo”, com extrema redução do seu poder de interferir nas políticas públicas, desdobrando-se na situação de que o indivíduo é responsável pelo seu próprio bem-estar social(22 Queiroz F. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Cad CRH. 2018;31(82):187-91 https://doi.org/10.1590/s0103-49792018000100012
https://doi.org/10.1590/s0103-4979201800...
).

O modelo neoliberal surge no cenário mundial no fim da década de 1960, estando fortemente relacionado à pressão para a expansão do mercado livre, por meio do aumento da desregulamentação do trabalho e da privatização de empresas estatais. No Brasil, ele iniciou-se no final da década de 1980, ainda no governo de José Sarney, perpassou os governos de Fernando Collor e Itamar Franco, aprofundando-se e consolidando-se com o presidente Fernando Henrique Cardoso(11 Souza NVDO, Gonçalves FGA, Pires AS, David HMSL. Influência do neoliberalismo na organização e processo de trabalho hospitalar de enfermagem. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):912-9. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0092
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
).

Entre os desdobramentos dos preceitos neoliberais nas organizações públicas está a ausência de concursos, o que incrementa a contratação flexível do trabalho e estimula os múltiplos vínculos laborais. Essa multiplicidade de vínculos ocorre devido à pouca estabilidade no emprego e ao sucateamento dos salários(33 Souza NVDO, Pires AS, Gonçalves FGA, Tavares KFA, Baptista ATP, Bastos TMG. Formação em enfermagem e mundo do trabalho: percepções de egressos de enfermagem. Aquichan [Internet]. 2017[cited 2020 Apr 09];17(2):204-16. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/aqui/v17n2/1657-5997-aqui-17-02-00204.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/aqui/v17n2/...
).

Tal contexto vem acirrando a competitividade entre os trabalhadores, diminuindo os postos de trabalhos formais e fazendo crescer o trabalho informal, com pouco ou nenhum direito trabalhista. Também se configura pela aplicação de elevada tecnologia, que acaba por aumentar o ritmo de trabalho em vez de permitir maior tempo livre para o lazer dos trabalhadores(44 Benfatti XD, Dantas LMR. A intensificação e precarização do trabalho: um estudo bibliográfico sobre seu sentido na contemporaneidade. Rev Humanidades. 2017;32(1):82-93. https://doi.org/10.5020/23180714.2017.32.1.82-93
https://doi.org/10.5020/23180714.2017.32...
).

Ademais, exigem-se profissionais com alta qualificação, polivalentes e multifuncionais; prontos para responder aos mais elevados desafios e metas organizacionais. Desse modo, estudiosos sobre o tema salientam que as organizações laborais que se pautam em preceitos neoliberais apresentam alto potencial para o adoecimento dos trabalhadores, pois se exige o máximo dos trabalhadores, oferecendo-lhes o mínimo(33 Souza NVDO, Pires AS, Gonçalves FGA, Tavares KFA, Baptista ATP, Bastos TMG. Formação em enfermagem e mundo do trabalho: percepções de egressos de enfermagem. Aquichan [Internet]. 2017[cited 2020 Apr 09];17(2):204-16. Available from: http://www.scielo.org.co/pdf/aqui/v17n2/1657-5997-aqui-17-02-00204.pdf
http://www.scielo.org.co/pdf/aqui/v17n2/...
-44 Benfatti XD, Dantas LMR. A intensificação e precarização do trabalho: um estudo bibliográfico sobre seu sentido na contemporaneidade. Rev Humanidades. 2017;32(1):82-93. https://doi.org/10.5020/23180714.2017.32.1.82-93
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).

Nessa perspectiva, a ausência de condições organizacionais adequadas e a cobrança extremada, associada à sobrecarga de trabalho, formam o conjunto de exigências sobre o docente, as quais interferem não apenas na qualidade do ensino e da pesquisa, mas principalmente na saúde desse trabalhador, podendo conduzi-lo ao adoecimento(55 Lorenzetti J, Trindade LL, Pires DEP, Ramos FRS. Tecnologia, inovação tecnológica e saúde: uma reflexão necessária. Texto Contexto Enferm. 2012;21(2):432-9. https://doi.org/10.1590/S0104-07072012000200023
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).

Assim, verifica-se a ocorrência de doenças psicossomáticas como úlceras duodenais, cólon irritável, vertigens e enxaquecas. Também se identificam depressão, ansiedade patológica, estresse ocupacional, síndrome de burnout, tentativas de suicídios, entre outras repercussões negativas decorrentes de tal configuração laboral(66 Penteado RZ, Souza Neto S. Mal-estar, sofrimento e adoecimento do professor: de narrativas do trabalho e da cultura docente à docência como profissão. Saude Soc. 2019;28(1):135-53. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180304
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201918...
).

Enfim, são diversas cobranças organizacionais que pressionam o trabalhador a produzir cada vez mais e melhor, sem que a própria organização do trabalho lhe ofereça condições materiais, sociais e emocionais para alcançar tais metas(77 Lemos D. Trabalho docente nas universidades federais: tensões e contradições. Cad CRH. 2011;24(1):105-20. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400008
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).

No entanto, verificam-se contraposições a essa visão de que o modelo neoliberal viria para deteriorar as relações e as condições de trabalho. Asseveram que esse modelo possibilita flexibilidade da jornada de trabalho, dando mais liberdade ao trabalhador de executar suas atividades laborais nos momentos em que lhe for mais conveniente. Outro exemplo é sobre o uso das tecnologias que favorecem o trabalho à distância, via internet, redes sociais virtuais e dispositivos como WhatsApp, Messenger e SMS (Short Message Service) ((55 Lorenzetti J, Trindade LL, Pires DEP, Ramos FRS. Tecnologia, inovação tecnológica e saúde: uma reflexão necessária. Texto Contexto Enferm. 2012;21(2):432-9. https://doi.org/10.1590/S0104-07072012000200023
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201200...
-66 Penteado RZ, Souza Neto S. Mal-estar, sofrimento e adoecimento do professor: de narrativas do trabalho e da cultura docente à docência como profissão. Saude Soc. 2019;28(1):135-53. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180304
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). Tais tecnologias permitem aos trabalhadores executarem suas atividades laborais em locais de maior comodidade e conveniência.

Mais uma situação entendida como positiva em relação aos preceitos do neoliberalismo é sobre a possibilidade de os profissionais serem os “donos” de suas próprias carreiras, não se prendendo a empregos vitalícios que engessam os trabalhadores e os desmotivam a buscarem novas e melhores oportunidades de atuação no mercado de trabalho(55 Lorenzetti J, Trindade LL, Pires DEP, Ramos FRS. Tecnologia, inovação tecnológica e saúde: uma reflexão necessária. Texto Contexto Enferm. 2012;21(2):432-9. https://doi.org/10.1590/S0104-07072012000200023
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-66 Penteado RZ, Souza Neto S. Mal-estar, sofrimento e adoecimento do professor: de narrativas do trabalho e da cultura docente à docência como profissão. Saude Soc. 2019;28(1):135-53. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180304
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).

Acerca de tais aspectos elencados como pontos positivos advindos da implantação do modelo neoliberal nas organizações, autores salientam que este é um processo de captura da subjetividade dos trabalhadores em favor de uma lógica capitalista que nubla a capacidade de análise dos trabalhadores e os imobiliza para ações contra esse modelo perverso para a classe trabalhadora(55 Lorenzetti J, Trindade LL, Pires DEP, Ramos FRS. Tecnologia, inovação tecnológica e saúde: uma reflexão necessária. Texto Contexto Enferm. 2012;21(2):432-9. https://doi.org/10.1590/S0104-07072012000200023
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201200...
-66 Penteado RZ, Souza Neto S. Mal-estar, sofrimento e adoecimento do professor: de narrativas do trabalho e da cultura docente à docência como profissão. Saude Soc. 2019;28(1):135-53. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180304
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).

Por conseguinte, essa política neoliberal repercute nas instituições públicas como um todo, portanto abarca as instituições de ensino superior. Gera a diminuição dos concursos públicos para o cargo de docentes efetivos, precariza os salários, aumenta o ritmo de trabalho e as exigências laborais, cobrando dos trabalhadores polivalência e multifuncionalidade a fim de darem conta das várias atividades que lhes são exigidas no âmbito do ensino, da extensão e da pesquisa(77 Lemos D. Trabalho docente nas universidades federais: tensões e contradições. Cad CRH. 2011;24(1):105-20. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400008
https://doi.org/10.1590/S0103-4979201100...
).

Entende-se que o presente estudo apresenta relevância, pois busca estudar um contexto de trabalho pautado em um modelo econômico que é relativamente novo para enfermagem e que, por sua vez, vem trazendo repercussões para o trabalho e para a saúde dos docentes. Ademais, permite analisar os meandros da docência de Enfermagem, a qual ainda é pouco discutida entre esse coletivo profissional(88 Lazzari DD, Martini JG, Prado ML, Backes VMS, Rodrigues J, Testoni AK. Entre os que pensam e os que fazem: prática e teoria na docência em enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170459. https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2017-0459
https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-20...
).

Assim, este estudo contribui para uma crítica reflexiva e um maior e mais profundo esclarecimento sobre a interferência do modelo neoliberal na organização do trabalho de docentes de Enfermagem. Além disso, ele é pertinente para o atual momento econômico e político nacional, quando se observam constantes ataques aos direitos previdenciários e trabalhistas, cortes e atrasos de salários do funcionalismo público em vários estados do Brasil, aí incluídos docentes de grandes universidades deste país, com a justificativa de que se precisa enxugar a máquina pública e gerar lucros para o Estado.

OBJETIVOS

Identificar e analisar as percepções de docentes de Enfermagem acerca das novas configurações do mundo do trabalho e as repercussões para suas atividades laborais.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi cadastrado no Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (SISNEP), posteriormente submetido à avaliação do CEP e aprovado, conforme Resolução nº 466, de 2012(99 Ministério da Saúde (BR). Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União 12 dezembro de 2012 cited 2020 Jul 2]. Seção 1. Available from: https://www.conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
https://www.conselho.saude.gov.br/resolu...
), do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Tipo de estudo

Esta pesquisa teve caráter descritivo, exploratório, de abordagem qualitativa. A estrutura do artigo explicita os passos metodológicos com base no Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ).

Procedimentos metodológicos

Participantes do estudo

Os participantes do estudo foram 27 docentes, sendo que 14 eram da Universidade A; e 13, da Universidade B. A fim de selecioná-los, foram estabelecidos critérios de inclusão, a saber: docentes de Enfermagem que possuíssem vínculo empregatício estatutário e que estivessem em pleno exercício de suas funções há mais de 15 anos nas instituições investigadas. Esse recorte temporal foi importante, pois os docentes com esse tempo de atuação nas universidades puderam discorrer com mais propriedades sobre as mudanças ocorridas no mundo do trabalho antes e após a incorporação de preceitos neoliberais em tais instituições.

Já os critérios de exclusão foram: docentes que estivessem licenciados, em período de férias ou cedidos a outras instituições no período de coleta de dados; e docentes que estivessem diretamente envolvidos com a presente pesquisa (integrassem a banca examinadora da dissertação que deu origem a este recorte da pesquisa).

Cenário do estudo

A pesquisa foi realizada em duas faculdades de Enfermagem da rede pública federal, localizadas no Rio de Janeiro. A fim de manter o sigilo sobre as instituições em que se desenvolveu o estudo, optou-se por denominá-las Universidade A e Universidade B.

A Universidade A tem suas atividades em nível de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu (mestrado e doutorado). O corpo docente é composto por 41 profissionais, distribuídos entre quatro departamentos, que são: Departamento de Enfermagem Fundamental; Departamento de Enfermagem em Saúde Pública; Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica; Departamento de Enfermagem Materno-Infantil.

A Universidade B também desenvolve atividades em nível de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu (mestrado e doutorado). Seu corpo docente é constituído por 72 profissionais, atuantes em cinco departamentos de ensino: Departamento de Enfermagem Fundamental; Departamento de Enfermagem e Medicina Cirúrgica; Departamento de Enfermagem MaternoInfantil; Departamento de Metodologia da Enfermagem; Departamento de Enfermagem e Saúde Pública.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados ocorreu nos meses de maio e junho de 2016, por meio de uma entrevista semiestruturada, somente após se obter parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

O roteiro de entrevistas era composto por duas questões, em que se pedia para o participante descrever sua rotina laboral e discorrer sobre seu processo de trabalho após a inserção do modelo neoliberal, fato decorrido em torno da década de 1990.

Foi realizado o convite aos docentes para participação na pesquisa, com explicação dos objetivos e método deste estudo, esclarecendo também os benefícios esperados com a presente investigação. Esse contato ocorreu por meio de abordagem pessoal, telefônica e por endereço eletrônico. Aqueles que aceitaram participar receberam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em duas vias.

Foram esclarecidas as dúvidas a respeito do TCLE, instrumento de coleta de dados, divulgação dos dados e garantia do anonimato. Procedeu-se à aplicação da entrevista em lugar tranquilo, geralmente nas salas dos departamentos nos quais eram lotados os docentes. Cabe destacar que, vez por outra, as entrevistas eram interrompidas devido à demanda de trabalho, mas foram pequenas interrupções, as quais não prejudicaram a qualidade do conteúdo captado.

Para resguardar a identidade dos entrevistados, optou-se pela utilização de códigos de identificação dos participantes. Tais códigos foram iniciados pela letra D (docente), acompanhada pelas letras A ou B referentes às instituições a que se eles vinculavam, seguidas por um número cardinal, que indicou a ordem cronológica de realização das entrevistas.

Análise dos dados

O tipo de análise de conteúdo empregado nesta pesquisa foi a análise temática, que consiste em operações de desmembramento do texto em unidades, segundo reagrupamentos analógicos. Essas operações visam descobrir os núcleos componentes de uma comunicação, preocupando-se com a frequência em que surgem esses núcleos, sob a forma de dados segmentáveis e comparáveis, e não com sua dinâmica e organização. Operacionalmente, essa técnica é sintetizada em três fases: préanálise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação(1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016.).

Dessa forma, as entrevistas tiveram duração média de 30 minutos, foram gravadas em mídia digital e transcritas em documento do Microsoft Word, versão 2010, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entre linhas de 1,5 cm, resultando em um arquivo com 105 páginas, caracterizando, assim, o corpus de análise. Este consiste no conjunto de documentos tidos em conta para serem submetidos aos procedimentos analíticos. Para que ocorra sua constituição, exige-se a formulação de regras como exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência(1010 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2016.).

A aplicação dessa técnica de tratamento dos dados fez emergir a seguinte categoria: “Apreensão da subjetividade dos docentes de Enfermagem acerca da lógica neoliberal”.

RESULTADOS

Apreensão da subjetividade dos docentes de Enfermagem acerca da lógica neoliberal

Com a análise das entrevistas, buscou-se realizar apreciações críticas sobre as percepções dos participantes em relação ao modelo neoliberal e suas consequências no trabalho docente de Enfermagem. Nesse sentido, constatou-se um processo de captura da subjetividade de muitos docentes para a defesa do modelo neoliberal como o mais adequado ao mundo do trabalho atual.

O discurso apresentado a seguir exemplifica a defesa de preceitos neoliberais para as atividades docentes em nível de pós-graduação stricto sensu, especificamente em relação à pesquisa.

[…] então, hoje em dia, a visão que eu tenho se aproxima desse modelo neoliberal. Eu penso que, dentro da universidade, com exceção da graduação, a pesquisa, sobretudo, não é realmente para todo mundo. Eu penso que o governo não tem mesmo que destinar recursos para que a pesquisa seja desenvolvida no âmbito da universidade e que esses recursos sejam obrigatoriamente oriundos das divisas privadas. (DA10)

Merece destaque a pouca ou nenhuma apreciação crítica de alguns docentes em relação às mudanças empreendidas no processo de trabalho advindas do neoliberalismo, pois atribuem tais mudanças a esforços individuais, especificamente à capacitação acadêmica individualizada.

Eu não sei se eu posso afirmar que eu vivo no modelo neoliberal, pois eu não teria uma régua para medir que eu sofro influência ou se eu deixo de sofrer influência desse modelo. Até porque, como eu falei anteriormente, eu não enxergo essas mudanças. Eu entrei como docente na universidade em 1996 e, de lá para cá, eu posso dizer para você que nada mudou. Continuo fazendo as mesmas coisas, aumentei meu expediente de trabalho, porque eu me vejo fazendo algumas atividades que até então no início da minha carreira eu não fazia. Essas atividades são desenvolvidas porque me qualifiquei. (DA3)

Eu acho que tem muito a ver com as demandas mesmo. Quando entrei para a universidade, eu estava terminando o mestrado, então você tem outro tipo de demanda. Na medida em que você vai se qualificando, especificamente quando você chega a doutor, a sua vida muda. Porque aí as demandas são muito grandes. Não sei se tem a ver com um contexto neoliberal. (DB8)

Evidenciaram-se também discursos que trazem em seu bojo certa competitividade e desmerecimento de alguns docentes devido às pesquisas que desenvolvem. Nessa perspectiva, salientam-se as consequências do neoliberalismo, uma das quais é a competividade e os tensionamentos nas relações, desarticulando o coletivo profissional, para que uns poucos docentes tenham um lugar de destaque na organização laboral e se vejam garantidos em espaços de maior prestígio, como na pós-graduação stricto sensu.

O recurso está aí, são vários editais que existem hoje em dia. Estou falando especificamente no que diz respeito à pesquisa. Cabe a cada pesquisador submeter os seus projetos a esses editais e que eles sejam aprovados e contemplados a partir da avaliação pelos seus pares, considerando o mérito. Muitas pesquisas dentro da universidade não têm o mérito que a gente espera que tenha. Não é para qualquer docente, é para os melhores. (DA10)

Hoje você não tem um trabalho coletivo, trabalho em grupo, você tem que correr para ter uma produção, porque o tal do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] exige essa produção para manter a nota da pós-graduação. Daí você se desgasta, gasta seu próprio dinheiro para publicar, fortalecer o lattes para se manter na briga, para melhorar a condição de competitividade. (DB4)

Apesar de todas essas questões supracitadas, alguns participantes, de ambas as universidades, apresentaram preocupação com o panorama político, fazendo referência às gestões dos presidentes: I) Fernando Henrique Cardoso, a qual foi mencionada como de pouco investimento em educação e saúde, trazendo repercussões negativas para o processo de trabalho desses profissionais, além de ter sido um período de constantes incertezas para o funcionalismo público; e II) Luiz Inácio Lula da Silva, na qual houve importantes conquistas sociais e o rompimento com a questão da privatização das universidades. As falas apresentadas a seguir podem exemplificar essa análise.

Outra percepção sobre esse momento é sobre o governo de Fernando Henrique, que tinha o ideário de reduzir a máquina pública. Por mais que houvesse resistência, havia um grande temor a tudo. Algo deliberadamente criado por parte do governo de criar esse temor; então, além de você trabalhar com quantitativo reduzido de pessoal e aumento da demanda de trabalho, você tinha um temor que nos assolava cotidianamente, batendo em nossas portas em relação às demissões, à mudança no perfil da entrada no serviço público, à questão da estabilidade que poderia ser efetivamente alterada. (DB9)

Eu acho que isso é um problema sério que se iniciou na década de 1990, quando a gente teve o governo Fernando Henrique, que foi quando o modelo neoliberal se apresentou de uma forma muito mais objetivada, muito mais clara. Essa época mostrou para a gente que saúde e educação são coisas que não servem como investimento estatal. Eu acho que o governo Lula rompeu com esse processo de privatização das universidades, pois ele voltou a investir na universidade. […] agora a gente volta à tona com o discurso neoliberal mais forte […]. (DA12)

Ficou evidente nos discursos que os docentes vêm observando um comprometimento na qualidade da formação dos estudantes que ingressam na universidade, fruto, muitas vezes, das dificuldades enfrentadas pelos discentes ao longo do ensino médio. Há também a necessidade em garantir um ensino público que possibilite a reflexão crítica e a transformação da realidade vigente. A seguir, apresentam-se discursos que evidenciam essa análise.

O nosso trabalho não gera uma lucratividade mais palpável; ao contrário: nós formamos justamente uma massa crítica que deveria criticar essa política. Também acho que nós tivemos muitas perdas em relação à qualidade da educação no ensino médio e fundamental a partir da implantação deste modelo. (DB11)

Uma diferença que eu percebo é a qualidade do ensino do aluno que está ingressando na universidade. Essa qualidade é muito inferior à dos alunos que entravam antes do modelo neoliberal. A impressão que eu tenho é de um sucateamento geral. (DB12)

Uma das participantes fez um comentário interessante que se aproxima da questão da alienação de classes mais intelectualizadas:

Nós temos uma fragilidade que não tínhamos na década de 1990. Nós tínhamos lideranças, independentemente do tipo, mas tínhamos liderança de diversos aspectos, que hoje a gente não tem. E não tem porque as pessoas hoje pensam principalmente a partir de si mesmas, e isso tem seus prós e seus contras. Mas, para o neoliberalismo, esse nosso comportamento é muito profícuo. Viver a era Fernando Henrique na qual a gente vivia às mínguas e lutando para ensinar o mínimo para o aluno sem nenhuma condição de trabalho, eu acho que agora vai ser o processo de privatização mesmo. Então, sobrevive quem tem dinheiro para pagar o ensino, quem não tem vai ser escravizado no mercado de trabalho. (DA12)

DISCUSSÃO

No que tange à defesa de preceitos neoliberais para as atividades docentes em nível de pósgraduação stricto sensu, especificamente em relação à pesquisa, foi evidenciado um conteúdo em relação à argumentação de recursos advindos do setor privado para a realização de pesquisas nas universidades públicas.

Ressalta-se que os recursos das parcerias público-privadas advêm também de impostos pagos pela população, não deixando de ser recurso público. Além disso, quando a pesquisa se destina a interesses de capital privado, tem-se o risco de não se investigarem problemas que venham a solucionar o estado de saúde de populações mais carentes, uma vez que é interesse do capital privado apenas o que gera lucro(77 Lemos D. Trabalho docente nas universidades federais: tensões e contradições. Cad CRH. 2011;24(1):105-20. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400008
https://doi.org/10.1590/S0103-4979201100...
).

Essa análise é corroborada pela Associação de Servidores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul quando afirma que uma relação acentuada entre pesquisadores universitários e empresas possibilita a entrada de recursos nas universidades, porém, ao mesmo tempo, modifica as funções tradicionais das universidades públicas, causando efeitos socialmente perversos(1111 Associação de Servidores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Interesses privados e universidade pública: privatização do financiamento universitário [Internet]. Rio Grande do Sul; [cited 2020 Jul 2]. Available from: http://www.assufrgs.org.br/noticias/interesses-privados-e-universidade-publica-privatizacao-do-financiamento-universitario/
http://www.assufrgs.org.br/noticias/inte...
).

Salienta-se que se verificou a pouca ou nenhuma compreensão de alguns docentes em relação às mudanças empreendidas no processo de trabalho advindas do neoliberalismo, pois atribuem tais mudanças a esforços individuais, especificamente à capacitação acadêmica individualizada.

O neoliberalismo, uma vertente mais cruel do capitalismo, se articula de tal forma que os trabalhadores imersos em seu cotidiano laboral acabam por não perceber os efeitos dessa política em suas vidas(1212 Souza NVDO. O reconhecimento e a valorização do trabalho docente universitário: implicações para a saúde dos trabalhadores. Rio de Janeiro. Produção Científica, Técnica e Artística. Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2014.).

Assim, nos discursos citados anteriormente, pode-se inferir que esses profissionais, apesar de terem sofrido grandes mudanças em seu cotidiano laboral, não as correlacionam com a inserção de preceitos neoliberais na organização laboral das universidades. Inclusive, é interessante analisar que tais participantes associam essas transformações ao contexto capitalista do momento, pois assumem a culpa por seu aumento de trabalho, tomando-o como decorrência de uma melhor qualificação profissional.

Cabe dizer que o mais coerente seria criticarem o aumento de trabalho apesar do não crescimento real dos salários, se posicionarem contra essa lógica produtivista no ensino e na pesquisa e lutarem a favor de uma educação pública e de qualidade, bem como de melhores condições de trabalho.

Nos discursos, verificou-se que emergiu a questão da competitividade e desmerecimento de alguns docentes devido às pesquisas que desenvolvem. Assim, a forma como se configura o cotidiano laboral docente - caracterizado, em especial, pela exacerbada cobrança por produtividade - fragiliza o relacionamento interpessoal por incentivar a meritocracia e a competitividade entre os pares em vez da colaboração e do trabalho em equipe(1313 Trindade MA, Morcef CCP, Oliveira MS. Teacher's mental health: a review of literature with experience reports. Conecte-se! Rev Interdisc Extensão[Internet]. 2018 [cited 2020 Jul 5];2(4):42-59. Available from: http://periodicos.pucminas.br/index.php/conecte-se/article/view/17609
http://periodicos.pucminas.br/index.php/...
).( )

Tal situação conduz a uma precariedade subjetiva para os docentes, e essa precariedade tem potencial para ocasionar o sofrimento psíquico e o adoecimento. Em estudo realizado sobre esse tema, foi constatado que, apesar de alguns docentes se mostrarem conscientes do processo que vivenciam, muitas vezes, buscam adotar táticas individuais cotidianas de “sobrevivência”, enquanto as estratégias coletivas com vistas à transformação são pouco utilizadas(1313 Trindade MA, Morcef CCP, Oliveira MS. Teacher's mental health: a review of literature with experience reports. Conecte-se! Rev Interdisc Extensão[Internet]. 2018 [cited 2020 Jul 5];2(4):42-59. Available from: http://periodicos.pucminas.br/index.php/conecte-se/article/view/17609
http://periodicos.pucminas.br/index.php/...
).

Cabe ressaltar que a coleta de dados ocorreu durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Após assumir a presidência da república, Michel Temer, a exemplo do ocorrido durante a vigência do governo de Fernando Henrique(1414 Senado Federal (BR). Constituição de 1988. Proposta de emenda à constituição nº 55, de 13 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências [Internet]. 2016[cited 2020 Jul 5]. Available from: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337
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-1515 Senado Federal (BR). Constituição de 1988. Proposta de emenda à constituição nº 287, de 5 de dezembro de 2016. Altera os arts. 37, 40, 42, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências [Internet]. 2016[cited 2020 Jul 5]. Available from: http://www.camara.gov.br/proposicoes Web/prop_mostrarintegra?codteor=1514097&filename=PEC+287/2016
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), vem tomando medidas para reduzir os gastos da máquina pública, como: a Proposta de Emenda Constitucional nº 55 (PEC 55), a reforma do ensino médio e a reforma da previdência social (Proposta de Emenda Constitucional nº 287).

Nessa perspectiva, a PEC 55 tem por objetivo congelar as despesas do governo federal, mantendo um teto de gastos, com cifras corrigidas pela inflação, por até 20 anos, numa tentativa enganosa e manipuladora de sair da crise econômica atual(1414 Senado Federal (BR). Constituição de 1988. Proposta de emenda à constituição nº 55, de 13 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências [Internet]. 2016[cited 2020 Jul 5]. Available from: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337
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15 Senado Federal (BR). Constituição de 1988. Proposta de emenda à constituição nº 287, de 5 de dezembro de 2016. Altera os arts. 37, 40, 42, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências [Internet]. 2016[cited 2020 Jul 5]. Available from: http://www.camara.gov.br/proposicoes Web/prop_mostrarintegra?codteor=1514097&filename=PEC+287/2016
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-1616 Carta Capital [Internet]. PEC 55, que congela gastos sociais, é aprovada em 2º turno no Senado [Internet]. Brasília; [cited 2017 Jul 11]. Available from: http://www.cartacapital.com.br/politica/pec-que-congela-gastos-sociais-e-aprovada-em-segundo-turno-no-senado.
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).

Essa emenda constitucional afetará duplamente os docentes de Enfermagem, pois são profissionais que atuam tanto na saúde (em hospitais e outros cenários que são campos de estágio) quanto na educação (na formação de enfermeiros para o mundo do trabalho). Se, sem esse referido teto de gastos, os ambientes laborais dos docentes já se encontram adversos devido aos déficits de recursos humanos, materiais e estruturais, então a perspectiva de futuro para esses profissionais é ainda mais assoladora(1616 Carta Capital [Internet]. PEC 55, que congela gastos sociais, é aprovada em 2º turno no Senado [Internet]. Brasília; [cited 2017 Jul 11]. Available from: http://www.cartacapital.com.br/politica/pec-que-congela-gastos-sociais-e-aprovada-em-segundo-turno-no-senado.
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).

Além dessas dificuldades, os docentes das universidades públicas vêm enfrentando atualmente um panorama de maiores desigualdades, pois constatam-se o aumento da população em estado de pobreza e um acesso precário da população a setores primordiais como saúde e educação. Tais dificuldades exigirão desses profissionais forte capacidade adaptativa a fim de que não adoeçam em decorrência desse cenário hostil e perverso(1717 Damasceno V. Se a PEC 55 limita direitos sociais, é uma proposta também racista [Internet]. Brasília; 2020 [cited 2020 Jul 2]. Available from: http://www.cartacapital.com.br/politica/se-a-pec-55-limita-direitos-sociais-e-uma-proposta-tambem-racista
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).

Em relação às falas dos docentes no que diz respeito ao comprometimento da qualidade da formação dos estudantes que ingressam na universidade, verifica-se que o movimento atual é de uma formação tecnicista intencionalmente pouco crítico-reflexiva. Ela se configura porque há um interesse hegemônico de manter a massa alienada das consequências que esse modelo neoliberal representa para a população, ou seja, não investimento do governo em serviços básicos como educação, saúde, segurança, transporte de qualidade; isso, por sua vez, garante que a classe dominante continue a exercer seu poder de manipulação sobre os dominados(1818 Gomes CMC. O choque neoliberal e o padrão de hegemonia burguesa do lulo-petismo. Rev Katálysis. 2018;21(1):86-95. https://doi.org/10.1590/1982-02592018v21n1p86
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). Ainda, sabe-se que medidas propostas pelo modelo neoliberal, as quais acentuam as desigualdades, colocam em xeque a democracia do país, pois, com níveis elevados de desigualdades, a população em estado de pobreza não participa da democracia, visto que, para ela existir, faz-se necessário certo nível de igualdade social(1919 Candiotto C. Neoliberalismo e democracia. Princípios: Rev Filos UFRN[Internet]. 2015 [cited 2020 Jul 2];19(32):153-79. Available from: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/7568/5631
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).

No âmbito do ensino superior e dos hospitais universitários, o cenário também é adverso, onde se observam ações do governo para a privatização dessas instituições e flexibilização dos vínculos trabalhistas dos profissionais. Nessa perspectiva, cita-se que, em 15 de dezembro de 2011, por meio da Lei nº 12.550, foi criada a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que é vinculada ao Ministério da Educação e tem como finalidade reestruturar hospitais universitários, gerenciandoos e prestando apoio às universidades na gestão dessas instituições e de tudo o que lhes diz respeito(2020 Presidência da República (BR). Lei nº 12.550, de 15 de dezembro de 2011. Autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - EBSERH; acrescenta dispositivos ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências[Internet]. Diário Oficial da União 15 dez. 2011[cited 2020 Jul 2]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12550.htm
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).

Assevera-se que o governo reduziu o repasse de verbas às instituições federais de ensino superior, as quais, consequentemente, têm ficado cada vez mais sucateadas. Junto com a pressão da mídia, que veicula a ideia da falência e da incompetência de tudo o que é público, reafirmam, assim, a opinião de que a única saída dentro desse contexto é o contrato com a Ebserh ou com alguma empresa pública de direito privado(2121 Menezes DHL, Leite JL. A nova configuração da política de saúde no Brasil: o Rio de Janeiro como laboratório. Rev Pol Públ [Internet] 2016 [cited 2020 Jul 2];20(1):121-36. Available from: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/5040/3087
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
). Cabe destacar que, de 35 instituições de ensino superior existentes no Brasil, 31 possuem contrato com a Ebserh, 1 universidade possui contrato com uma empresa pública e apenas 3 seguem na luta contra esse movimento de privatização(2222 Ministério da Educação (BR). Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Portal MEC [Internet]. Brasília; 2020[cited 2020 Jul 4]. Available from: http://www.ebserh.gov.br/web/portal-ebserh/historia
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).

Nos discursos dos participantes, verificou-se o embotamento das classes mais intelectualizadas da enfermagem. A ausência de atitudes e posicionamento diante desse quadro pode ser observada por meio da representatividade na política atual, na qual uma categoria com aproximadamente 1.750.000 profissionais tem apenas uma deputada - representante na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro(2323 Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Pesquisa inédita traça perfil da enfermagem no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2015 [cited 2020 Jul 2]. Available from: http://portal.fiocruz.br/pt-br/content/pesquisa-inedita-traca-perfil-da-enfermagem-no-brasil
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). Além disso, pode-se constatar que, independentemente de a categoria ter um elevado quantitativo de trabalhadores, não tem forte influência na elaboração de políticas públicas.

Essa falta de influência ou mesmo de representatividade na política se deve à sua trajetória histórica de vinculação à medicina e também à formação acrítica adotada em algumas universidades(2424 Martins MJR, Fernandes SJD. The visibility of nursing giving voice to the profession: an integrative review. Rev Enferm UFPE [Internet]. 2014 [cited 2020 Apr 10];8(1):2422-33. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/9934/10232
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). Faz-se necessária uma transformação no processo de formação em enfermagem, pois apenas enfermeiros críticos, que têm identidade profissional, são capazes de romper com essa inadequada escassez de participação política e de reinvindicação por melhores condições de trabalho, pautar políticas públicas e mudar realidades adversas(2424 Martins MJR, Fernandes SJD. The visibility of nursing giving voice to the profession: an integrative review. Rev Enferm UFPE [Internet]. 2014 [cited 2020 Apr 10];8(1):2422-33. Available from: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/9934/10232
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).

Limitações do estudo

Destaca-se como limitação desta pesquisa o fato de ter sido desenvolvida em um único estado do Brasil e em duas universidades com o mesmo caráter de vinculação, ambas federais.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

Considera-se que a contribuição principal deste estudo é apresentar percepções dialéticas em relação a um modelo econômico que impacta sobremaneira a vida dos docentes de Enfermagem. Essas visões contrárias são influenciadas por valores, visão de mundo e entendimentos distintos e, tais distinções ficam claras nos posicionamentos docentes. Portanto, os resultados e análises servem para provocar uma reflexão e crítica a respeito do neoliberalismo, tanto positiva quanto negativa, oferecendo subsídios para uma compreensão mais amadurecida e consistente sobre os impactos desse modelo no trabalho docente.

Outra contribuição é possibilitar uma discussão sobre as influências e repercussões do ideário neoliberal na produtividade, no processo de trabalho e nas relações interpessoais dos docentes de Enfermagem, bem como seus impactos na pesquisa e no ensino da profissão. Tal discussão favorece um entendimento crítico de situações complexas, multifacetadas e graves que vêm ocorrem no mundo do trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos resultados encontrados, verificou-se que há dissenso na maneira de analisar a atual configuração do mundo do trabalho, o qual vem se fundamentando insidiosamente em preceitos neoliberais. Desse modo, apesar de se obterem resultados que expõem os efeitos nefastos do neoliberalismo sobre a classe e especificamente no trabalho docente, houve participantes que defendem os benefícios desse modelo.

Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, a competitividade pela melhor produção acadêmica. Tal proceder deteriora as relações e incorpora no coletivo profissional o lema de “cada um por si”, encucando nos trabalhadores um sentimento de abandono e solidão, que repercute negativamente na subjetividade deles, tendo potencial para causar sofrimento psíquico, doenças mentais e alterações de comportamentos.

Também há de se ressair a intensificação do ritmo laboral, que se concretiza por meio da captura da subjetividade do trabalhador, fazendo-o atender às demandas da organização laboral, mas que nem sempre são alcançadas, o que também tem potencial para gerar sofrimento psicofísico e adoecimento. Ademais, tal intensidade exorta o coletivo profissional a utilizar o tempo de não trabalho, ou seja, de lazer e de convívio com familiares e amigos para atingir as metas organizacionais, muitas vezes inalcançáveis.

No entanto, não obstante esse quadro perverso imposto pelos preceitos neoliberais nas organizações laborais e apontado por alguns participantes, existem aqueles trabalhadores que defendem a sua incorporação no trabalho docente de Enfermagem, com o argumento de que permite a flexibilidade de tempo, a liberdade para captar seus próprios recursos financeiros para o desenvolvimento de pesquisa e a autonomia nas decisões profissionais.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Alexandre Balsanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    04 Fev 2021
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