Acessibilidade / Reportar erro

Familiares de presos na segunda instância: acórdãos dos Tribunais de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo

The detainees’ families in the second instance: decisions from the Court of Justice of Minas Gerais, São Paulo and Rio de Janeiro

Resumo

A proposta deste texto é analisar as decisões proferidas em segunda instância que envolvem familiares de presos, com foco nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Foram coletados acórdãos publicados entre 1998 e 2021 nas três localidades, formando uma base de dados, escrutinada posteriormente numa perspectiva quantitativa. Foi possível notar que os processos judiciais têm dois focos principais: pedidos relacionados ao excesso de prazo da prisão provisória e pedidos relacionados às dificuldades na visitação em unidades prisionais. No primeiro ponto, fica clara a importância das famílias na busca de concretização dos direitos dos custodiados. As decisões dos três tribunais sobre a questão divergem substantivamente, sendo que o pleito só se efetiva em muitos casos no Rio de Janeiro. Já sobre o segundo ponto, tem-se um indicativo de como o aprisionamento ultrapassa a pessoa do preso para atingir seus entes queridos. Nesses casos, as decisões das três corte têm contribuído para a transformação, sobretudo, de familiares de presos, em especial mulheres, em criminosas, autorizando a vigilância constante de seus corpos, e dificultado a manutenção dos vínculos de afeto entre essas e seus entes presos.

Palavras-chave:
Familiares de presos; Decisões em segunda instância; Tribunais de Justiça; Criminalização; Violações de direitos

Abstract

The purpose of this text is to carry out as analysis of the decisions issued in the second instance involving family members of prisoners, focusing on the Courts of Justice of Minas Gerais, São Paulo and Rio de Janeiro. Decisions published between 1998 and 2021 were collected in the three locations, forming a database, that was scrutinized in a quantitative perspective. Based on this, it was possible to notice that the judicial processes have two main focuses: requests related to the excess term of provisional detention and requests related to difficulties in visiting prisons. In the first point, the importance of families in the persecution of the rights of the inmates is clear. The decisions of the three courts on the matter differ substantially, and the claim is only effective in many cases in Rio de Janeiro. On the second point, there is an indication of how imprisonment goes beyond the person of the prisoner to reach their loved ones. In these cases, the decisions of the three courts have contributed to the transformation of family members of prisoners, especially women, into criminals, authorizing the constant surveillance of their bodies, in addition to the denial or hardening to maintain the bonds of affection between these and their prisoners.

Keywords:
Prisoners’ families; Second instance decisions; Courts of Justice; Criminalization; Violations of rights

1. Introdução1 1 Esta pesquisa foi financiada com recursos da Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT).

Nos últimos anos, são crescentes as análises que sublinham como o encarceramento ultrapassa a pessoa do condenado. Nos Estados Unidos, essa literatura tem sido reunida na categoria efeitos colaterais do encarceramento (Kirk; Wakefield, 2018KIRK, D. S.; WAKEFIELD, S. Collateral consequences of punishment: A critical review and path forward. Annual Review of Criminology, v. 1, p. 171-194, 2018.), a qual aborda como a prisão afeta toda a rede de familiares, alterando diferentes aspectos da sobrevivência dos membros que permanecem extramuros, em termos de relações de afeto, chances de mobilidade social e experiências com o sistema de justiça criminal (Beckett; Goldberg, 2022BECKETT, Katherine; GOLDBERG, Allison. The Effects of Imprisonment in a Time of Mass Incarceration. Crime and Justice, v. 51, n. 1, p. 000-000, 2022.). Granja (2016GRANJA, Rafaela. Beyond prison walls: The experiences of prisoners’ relatives and meanings associated with imprisonment. Probation Journal, v. 63, n. 3, p. 273-292, 2016.) estima que, para cada pessoa presa, pelo menos, outras cinco são afetadas pelo aprisionamento, em especial, as mulheres, que ocupam as posições de cônjuges, mães e filhas. Assim, se o encarceramento ainda é majoritariamente masculino, com as mulheres respondendo por 5% da população prisional mundial, a fila dos estabelecimentos prisionais e a gestão do mundo exterior é feminino, independentemente do sexo da pessoa privada de liberdade (Condry; Minson, 2020).

No caso brasileiro, o último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Públia (FBSP, 2022) informa que a população carcerária está estimada em, aproximadamente, 820 mil pessoas privadas de liberdade. Seguindo os cálculos de Granja (2016GRANJA, Rafaela. Beyond prison walls: The experiences of prisoners’ relatives and meanings associated with imprisonment. Probation Journal, v. 63, n. 3, p. 273-292, 2016.), podemos afirmar que, pelo menos, outras 4,1 milhões sofrem diretamente com a experiência do cárcere: seja pela perda de renda; seja pelo aumento dos gastos domésticos, muitas vezes relacionado ao deslocamento para visita e à manutenção da pessoa privada de liberdade; seja pela distância do ente querido preso; seja pelo sofrimento em decorrência das violações de direitos às quais o preso é submetido, o que demanda a busca por órgãos judiciais e da administração pública com os quais o parente, muitas vezes, não tem muita familiaridade.

Em terras brasileiras, as pesquisas enfatizam como as mulheres mobilizam uma série de arranjos (financeiros, emocionais e familiares) para fazer frente a essas demandas do encarceramento (Silvestre, 2011SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões em Itirapina. (Mestrado em Sociologia) - Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.; Godoi, 2017GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.; Lago, 2019LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.). Um ponto que se sobressai nas análises mais contemporâneas é o processo de criminalização das famílias de presos, como se o simples vínculo emocional com o custodiado transformasse essas mulheres em “bandidas”. A etnografia de Lago (2021) sobre uma associação de familiares de presos indica como a participação das mulheres em determinadas atividades as permite ressignificar suas próprias trajetórias. Muitas vezes deixam de estar vinculadas às funções de cuidado (como mães e esposas) para se constituírem em ativistas, cujo objetivo é buscar pela proteção da dignidade das pessoas presas. No entanto, mesmo nessas situações, a nova e a velha identidade se sobrepõem operando como barreiras no acesso a direitos “em contextos que envolvem, sobretudo, as negociações com o Estado” (Lago, 2021, p. 231).

A crescente produção sobre as ramificações da prisão na vida dos familiares das pessoas privadas de liberdade é, contudo, bastante baseada em histórias de vida, com foco no curto espaço de visita dos familiares aos amados nos espaços carcerários (Lourenço; Alvarez, 2018LOURENÇO, L. C.; ALVAREZ, M. C. Estudos sobre prisão: um balanço do estado da arte nas ciências sociais nos últimos vinte anos no Brasil (1997-2017). Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), n. 84, v. 2, p. 1-9, 2018.). Assim sendo, a proposta deste texto é realizar uma análise das decisões em segunda instância que envolvem familiares de presos, com foco nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, os três estados com as maiores populações prisionais do país2 2 Segundo os dados mais recentes (Infopen, 2022), São Paulo possui 195.194 presos em unidades prisionais; Minas Gerais, 65.738; e Rio de Janeiro, 48.196. . Trata-se de um esforço diferente do tradicionalmente mobilizado pelos estudos da área, os quais, em geral, se preocupam em compreender como os familiares trazem notícias de violações de direitos dos presos dentro das unidades prisionais como forma de viabilizar o reconhecimento e, consequentemente, a reversão do problema junto aos Poderes Executivo e Judiciário (Lago, 2021LAGO, Natália Bouças do. Nem mãezinha, nem mãezona. Mães, familiares e ativismo nos arredores da prisão. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 36, p. 231-254, 2021.).

Nossa proposta é focalizar nas famílias como vítimas de violações de direito por parte de agências estatais, como o Judiciário (Lago, 2019LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.; Godoi, 2017GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.). A proposta é entender como “dispositivos de segurança e gênero” se articulam nos processos de produção dessas mulheres. Isto é, familiares de presos como “classes perigosas” (Paixão, 1995PAIXÃO, Antônio Luiz. Crime, controle social e a cultura oficial da sociologia. Sociedade e estado, v. 10, n. 02, p. 513-521, 1995.) e, por isso, susceptíveis às mesmas violências que os custodiados, ainda que nas margens do sistema prisional (Padovani, 2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.).

2. A pesquisa com acórdãos judiciais

É relativamente longo o caminho a ser percorrido até termos uma decisão em 2ª instância (acórdão). É necessário que se estabeleça um conflito ou uma demanda judicial que será encaminhada à Justiça por uma das partes ou pelo Ministério Público. A administração desse conflito se dará, inicialmente, por um Juiz de primeira instância, em uma determinada comarca3 3 Menor unidade territorial judiciária, podendo conter um ou mais municípios e distritos, circunscrita a um estado da federação, no caso da Justiça comum. . A primeira decisão judicial sobre esse conflito se concretizará através da sentença emitida pelo Juiz no 1º grau de jurisdição.

Os acórdãos são as decisões dos Tribunais de 2ª instância, em julgamento de recurso da sentença proferida em 1º grau de jurisdição. Esses recursos são julgados por, no mínimo, três desembargadores, sendo um o relator e os outros revisores e/ou vogais. O relator é quem primeiro analisa o processo, dando o seu voto, seguido dos vogais, que também julgam a questão através do voto, concordando ou discordando do relator. O conjunto dessas três decisões compõe o acórdão, que tem obrigatoriamente três elementos: a) o relatório, com os nomes das partes, a síntese do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências registradas no andamento do processo; b) os fundamentos, em que o membro do Judiciário analisará as questões de fato e de direito; c) o dispositivo, em que o magistrado resolverá as questões que as partes lhe submeterem, reconhecendo ou não o direito e, consequentemente, concedendo ou negando a revisão solicitada (Coacci, 2013COACCI, Thiago. A pesquisa com acórdãos nas Ciências Sociais: Algumas reflexões metodológicas. Mediações, v. 18, n. 2, p. 86-109, 2013.).

Os Tribunais de Justiça, através dos acórdãos, produzem jurisprudência que orienta a aplicação da lei dentro do Estado, consolidando paradigmas jurídicos. Por isso, esses documentos são fontes importantes para se entender quais são as violações enunciadas e sofridas por familiares de pessoas presas e como o Poder Judiciário entende tais enunciações. Em suas páginas, encontramos a voz do Estado que procura, inclusive, conformar entendimentos sobre como outros problemas de natureza semelhante devem ser encaminhados (Coacci, 2013COACCI, Thiago. A pesquisa com acórdãos nas Ciências Sociais: Algumas reflexões metodológicas. Mediações, v. 18, n. 2, p. 86-109, 2013.). Por outro lado, esses documentos judiciais cristalizam situações, o que nos permite caminhar entre fatos e narrativas passadas em um período específico de tempo, acompanhando a variedade de situações que levou o Judiciário a se posicionar.

Analisar os acórdãos judiciais nos possibilita, portanto, a exploração das experiências narradas, nos dando acesso franqueado “ao conjunto de valores sociais que os sujeitos supõem que orientam as suas ações e as do mundo ao seu redor” (Vianna, 2014VIANNA, A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho, S. R. R.; LIMA, A. C. S.; TEIXEIRA, C. C. (org.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 43-70., p.60). Nesses documentos, temos acesso tanto a discursos emitidos pelos juízes sobre o que seria a violência cometida contra os familiares de presos e suas manifestações, quanto sobre como os desembargadores discorrem sobre o fato colocado diante deles. Ainda, há as razões apresentadas por esses julgadores para reconhecer (ou não) que houve uma violação de direitos, além de se possibilitar analisar em que medida existe ou não a legitimação judicial de pedidos de reparação à questão.

Em suma, o escrutínio dessas decisões judiciais nos permite ver como Estado enxerga os familiares de presos e, a partir dessas representações, que entrelaçam discursos relativos à segurança e gênero (Padovani, 2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.), como Este se posiciona nas resposta às violações, situações de tortura e, até mesmo, morte. Neste ponto, faltas e parcialidades na produção do acórdão podem nos informar sobre a necessidade ou intencionalidade de conduzir o olhar do outro a um caminho específico, revelando os processos pelos quais se dão a operacionalização de mecanismos de controle burocrático e de afirmação de “verdade” (Vianna, 2014VIANNA, A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho, S. R. R.; LIMA, A. C. S.; TEIXEIRA, C. C. (org.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 43-70., p. 57).

Ao nos debruçarmos sobre a análise dos acórdãos, queremos compreender os regimes de fala, identificando alguns argumentos ou testemunhos que se destacam para sustentar uma dada decisão. Ainda, pretendemos analisar os regimes de silêncio, aqueles apagamentos desconsiderados por serem fragmentos que não interessam à construção de uma narrativa coerente (Vianna, 2014VIANNA, A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho, S. R. R.; LIMA, A. C. S.; TEIXEIRA, C. C. (org.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 43-70., p. 47).

3. Coleta de dados nos sites dos Tribunais de Justiça

Para entendimento de quais são as violações de direitos que levam os familiares de pessoas privadas de liberdade a acionar, em segunda instância, o Judiciário dos três estados escolhidos, foi realizada uma pesquisa de mapeamento dos acórdãos nos repositórios virtuais das respectivas cortes, sem um lapso temporal definido. Isto é, buscou-se mapear todos os documentos já publicados sobre o assunto em questão, o que resultou em documentos produzidos no intervalo entre 1998 e 2021. Este levantamento foi feito entre os meses de novembro e dezembro do último ano da série, tendo envolvido sete pesquisadores da área do direito que, em razão da formação jurídica, teriam maior facilidade em navegar na linguagem técnica, bem como nas funcionalidades das páginas pesquisadas. Afinal, a busca de acórdãos sobre um tema é atividade realizada por qualquer advogado para a redação de argumentos relacionados a um dado pedido (Queiroz; Feferbaum, 2019QUEIROZ, R. M R.; FEFERBAUM, M. Metodologia da pesquisa em Direito. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.).

Inicialmente, os esforços se centraram na busca de combinações de duplas de palavras chaves, quais sejam: prisão + visita e, como contraposto, familiares + visita. Essas duas díades foram pensadas em razão do crescimento de denúncias de revistas vexatórias a que são submetidos os familiares (Lago, 2019LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.), em que pese a existência da Lei 13.271, que as proíbe em todos os estabelecimentos penais brasileiros desde abril de 2016. Por fim, a díade familiares + preso foi estruturada com vistas a compreender se os pleitos apresentados aos tribunais são violações à dignidade da família ou casos de tortura a que os presos são submetidos, cabendo aos parentes atuarem como “vasos comunicantes” entre a prisão e o mundo exterior (Godoi, 2017GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.).

Inicialmente, partimos dessas três duplas de descritores para verificar quantos acórdãos poderiam ser identificados nos sites dos tribunais de justiça do estado de Minas Gerais (TJMG), São Paulo (TJSP) e Rio de Janeiro (TJRJ). Dado que o lapso temporal incluiu o período de pandemia de Covid-19, deflagrada em março de 2020, uma quarta díade (prisão + Covid-19) foi acrescentada. Contudo, em alguns casos, os sistemas retornavam muitos resultados, alguns bastante distantes dos nossos objetivos. Um exemplo nesse sentido seria a problematização de como a decisão de fechamento do comércio tinha mudado as interações de uma família, porque tinha transformado a casa em uma prisão. Então, fizemos uma nova combinação com três palavras (Prisão + Covid-19 + Familiares) para tentar chegar àqueles acórdãos que, de fato, interessavam. Como essa concatenação de palavras foi bem mais promissora que as díades anteriormente estabelecidas, optamos por criar outras duas: (i) Familiares + visita + prisão, (ii) Familiares + preso + Covid-19.

A opção metodológica foi registrar numa planilha de controle todos os acórdãos que aparecessem como resultado do uso das respectivas palavras chaves, ainda que essas decisões não se encaixassem no escopo da pesquisa. Com o uso de três díades e três tríades, foram mapeadas 695 decisões, sendo 213 no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 188 no Tribunal de Justiça de São Paulo e 294 no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A distribuição das decisões que responderam a cada critério de busca encontra-se na Tabela 1.

Tabela 1
Decisões que correspondem a cada critério de busca operacionalizado nos três tribunais entre novembro e dezembro de 2021

Um dado que salta aos olhos é que a maior quantidade percentual de retornos para cada um dos tribunais é distinta a depender da combinação de palavras utilizadas. Por exemplo, em Minas Gerais, a categoria com maior quantidade de retornos foi familiares + visita, que, contudo, não apresentou qualquer decisão quando empregada para busca em São Paulo. Nessa localidade, a combinação prisão + visita foi a campeã de resultados, mas essa díade tem baixa expressividade tanto em Minas Gerais como no Rio de Janeiro. Por fim, no tribunal fluminense familiares + preso + Covid-19 foi a tríade com maior quantidade de acórdãos, mas essa mesma combinação não retornou qualquer decisão em Minas Gerais. Ou seja, uma primeira constatação da pesquisa foi a de que as formas como se operacionalizam as indexações dos acórdãos são diversas, haja vista que uma mesma categoria pode resultar em decisões altamente distintas a depender do tribunal em questão. Exatamente por isso, a segunda etapa do estudo foi a leitura de todas as ementas, que são uma espécie de resumo do que foi discutido em 2ª instância e qual decisão foi tomada pelos tribunais.

Depois da primeira leitura, cada acórdão foi categorizado em “interessa à pesquisa” (265 decisões), porque dizia respeito à violação de direitos de familiares de presos; ou “não interessa à pesquisa” (263 decisões), posto que problematizava questões que não envolviam pessoas privadas de liberdade tampouco seus familiares. No entanto, algumas decisões geraram dúvidas sobre a sua adequação em uma ou outra categoria (167 casos) e, por isso, foram lidas por um outro membro da equipe de pesquisa, para decidir se deveria ser incluída na análise ou não. Após a varredura nas ementas, o banco de dados original foi reduzido de 695 casos para 343 casos, indexados pelas seguintes palavras-chaves (Tabela 2).

Tabela 2
Decisões que correspondem a cada critério de busca operacionalizado nos três tribunais entre novembro e dezembro de 2021, após leitura das ementas

Novamente, com base na Tabela 2, é possível indicar que a natureza dos problemas tratados em cada um dos tribunais é altamente diversa. Enquanto a restrição dos direitos dos familiares durante a Covid-19 foi amplamente debatida em segunda instância no Rio de Janeiro, representando 49% dos acórdãos mapeados no estado, em Minas Gerais esse problema responde a apenas 14% das decisões catalogadas e, em São Paulo, somente 2%. Lado outro, a categoria genérica familiares de preso, que é bastante mobilizada na busca por reconhecimento da legitimidade dessas pessoas como porta-vozes dos encarcerados, é responsável por 61% das decisões catalogadas em Minas Gerais, mas sequer aparece em São Paulo, estado onde a principal controvérsia parece girar em torno do direito à visita.

A partir da identificação das decisões que diziam respeito ao nosso objeto de pesquisa, o próximo passo foi realizar uma análise automatizada de texto. Neste caso, foram escolhidas algumas categorias e palavras-chaves presentes nas ementas, de forma a compreender como esses documentos sinalizam o conteúdo do inteiro teor. Trata-se de uma análise altamente descritiva que visa, por exemplo, identificar decisões que fazem menção às mudanças nos regimes de visitação durante a pandemia, ou sobre as tecnologias de segurança que se desvelam nas revistas vexatórias. No entanto, essa etapa não exclui a leitura do inteiro teor com vistas a permitir, sobretudo, a identificação de possíveis associações ou pessoas que falam em nome dos familiares de pessoas privadas de liberdade.

4. O que os dados indicam?

Na literatura sobre o sistema prisional, somente recentemente os familiares entraram como atores de destaque (Lourenço e Alvarez, 2018LOURENÇO, L. C.; ALVAREZ, M. C. Estudos sobre prisão: um balanço do estado da arte nas ciências sociais nos últimos vinte anos no Brasil (1997-2017). Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), n. 84, v. 2, p. 1-9, 2018.). Tais estudos indicam que, entre outras dimensões, eles se incumbem do sustento das pessoas privadas de liberdade, dada a incapacidade do Estado em prover adequadamente bens e serviços (Silvestre, 2011SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões em Itirapina. (Mestrado em Sociologia) - Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.). Ainda, eles sofrem indiretamente com a ausência de recursos (Kirk; Wakefield, 2018KIRK, D. S.; WAKEFIELD, S. Collateral consequences of punishment: A critical review and path forward. Annual Review of Criminology, v. 1, p. 171-194, 2018.) e com a necessidade de reorganização das atividades de cuidado dos filhos (Hordones; Ribeiro, 2021). Há de se destacar também a demanda para maior esforço de manutenção do vínculo afetivo com quem cumpre a privação de liberdade (Lago, 2019LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.).

Tendência semelhante parece ser identificada pelos acórdãos mapeados nos três Tribunais (Gráfico 1). Em que pese a identificação de algumas decisões do começo dos anos 2000, a maioria data de 2017 em diante, com 1/3 concentrada em 2021 no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Uma das hipóteses sobre este primeiro resultado é que, em alguma medida, a pandemia de Covid-19 resulta num agravamento de violações dos direitos dos familiares, com a suspensão das visitas, a proibição da entrega de kits com materiais que garantem a sobrevivência das pessoas privadas de liberdade e, ainda, a ausência de informações sobre o que ocorre longe do escrutínio público num contexto em que a maior exortação era “se possível, fique em casa” (Duarte; Ribeiro, 2021DUARTE, Thais; RIBEIRO, Ludmila. Los derechos humanos y las cárceles brasileñas durante la pandemia de Covid-19. Delito y Sociedad, 2021, v. 30, n. 52, e0042.).

Gráfico 1
Distribuição percentual das decisões judiciais por ano de publicação dos acórdãos e tribunal

Outra informação de destaque no Gráfico 1 é a tendência levemente discrepante de São Paulo em relação aos outros dois estados, haja vista que tal local conta com decisões mais espraiadas ao longo da série histórica e menos concentradas nos últimos anos. Este padrão pode ser resultado de dois fenômenos que tornam esse sistema prisional tão único.

Por um lado, o parque carcerário construído para abrigar a maior população prisional do país fez com que, ao longo dos anos 2000, fosse inaugurada uma grande quantidade de unidades, várias delas distantes dos grandes centros urbanos (Godoi, Araújo; Mallart, 2020GODOI, R.; ARAÚJO, F.; MALLART, F. Espacializando a Prisão: A conformação dos parques penitenciários em São Paulo e no Rio de Janeiro. Novos Estudos CEBRAP, v. 38, p. 591-611, 2020.). Este fenômeno poderia contribuir para maiores violações de direitos, como as revistas vexatórias, em locais onde os familiares vão tão somente para visitar o ente querido e que estão mais distantes de órgãos de controle. Por outro lado, São Paulo foi o berço do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que se espalhou por todo o país, sendo muitas vezes tematizada como responsável pela institucionalização de uma nova forma de gestão dos cárceres (Manso; Dias, 2017MANSO, B. P.; DIAS, C. N. PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 2, p. 10-29, 2017.). Sob o argumento de que era preciso conter o PCC, os estabelecimentos prisionais de São Paulo criaram, em 2001, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Posteriormente convertido na Lei 10.792/2003, o RDD prevê a permanência da pessoa privada de liberdade em cela individual, com limitações ao direito de visita e do direito de banho de sol (Salla; Dias; Silvestre, 2012SALLA, F.; DIAS, C. N.; SILVESTRE, G. Políticas Penitenciárias e as facções criminosas: uma análise do regime disciplinar diferenciado (RDD) e outras medidas administrativas de controle da População carcerária. Estudos de Sociologia, v. 17, n. 33, p. 333-352, 2012.). Talvez, o que o padrão de decisão de São Paulo indique é o questionamento da supressão do direito da família de manter o vínculo afetivo, quando essa violação não era tão visível nos outros dois estados da federação estudados.

A segunda informação escrutinada foi a natureza do processo que originou a decisão. Para cada problema encontrado no cotidiano de uma unidade prisional cabe um mecanismo jurídico específico para pleitear o seu reconhecimento e/ou resposta à situação. Novamente, os tribunais são muito distintos neste quesito, como indica o Gráfico 2.

Gráfico 2
Tipo de recurso/processo impetrado em 2ª instância para pleitear o reconhecimento de direitos

Em Minas Gerais, o recurso mais presente é o agravo em execução penal, o qual questiona mudanças no tempo de privação de liberdade como decorrência de faltas graves, ou diz respeito à transferência de presos para lugares longe da família, mecanismo muitas vezes utilizado como forma de punição do custodiado, ainda que penalize também seus filhos, esposas e mães (Ribeiro; Diniz, 2020). Em seguida, aparecem as apelações cíveis que pleiteiam a possibilidade de indenização por danos materiais e morais em razão da morte da pessoa privada de liberdade; o direito do filho menor de 18 de visitar o pai ou a mãe em penitenciária para a manutenção de laços afetivos e familiares; além de ação civil pública demandando o restabelecimento do direito de visita suspenso em razão da pandemia. Então, nesse caso, estamos falando simultaneamente de violações de direitos dos presos e dos respectivos familiares, o que indica o quão precárias são as unidades penitenciárias mineiras.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, a situação é muito distinta da observada em Minas Gerais. Mais da metade dos acórdãos foi originária de Habeas Corpus, que é o remédio cabível sempre que uma pessoa tem a sua liberdade restringida de forma ilegal. A vantagem desse recurso é não demandar advogado para ser submetido ao exame dos julgadores, podendo se constituir numa peça redigida de próprio punho, razão pela qual foi um instrumento extensamente utilizado para solicitar o cumprimento da Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça. Este documento recomendou aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

Dos 158 Habeas Corpus identificados na pesquisa, 53% estavam relacionados com o agravamento da pandemia. Nessas situações, como indicam Vasconcelos; Machado; Wang (2020VASCONCELOS, N. P.; MACHADO, M. R.; WANG, D. W. L. COVID-19 nas prisões: um estudo das decisões em habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo. Revista de Administração Pública, v. 54, p. 1472-1485, 2020.), os pacientes - como são chamados aqueles que sofrem coação ilegal - pleiteavam que os tribunais concedessem a eles a liberação antecipada ou a substituição da prisão preventiva por outra medida como forma de evitar a contaminação por Covid-19 e diminuir a superlotação. No entanto, as respostas recebidas por essas pessoas estiveram longe das desejadas, com a reafirmação de que a prisão era, inclusive, uma medida de mitigação da pandemia. Afinal, o cárcere permitia, segundo a narrativa dos acórdãos, o isolamento dos presos até mesmo dos familiares (Quintão; Ribeiro, 2022QUINTÃO, Beatriz Aranha; RIBEIRO, Ludmila. Judiciário em tempos de pandemia: um estudo das decisões em habeas corpus do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Revista do Instituto de Ciências Penais, v. 7, n. 1 (aberto), p. 95-130, 2022.). Essa compreensão colide com a dos familiares dos presos, que pleiteavam a maior proximidade de seus entes queridos para que pudessem cuidar deles num momento em que as ajudas sociais e assistenciais se tornaram muito diminutas (Duarte; Ribeiro, 2021DUARTE, Thais; RIBEIRO, Ludmila. Los derechos humanos y las cárceles brasileñas durante la pandemia de Covid-19. Delito y Sociedad, 2021, v. 30, n. 52, e0042.).

Outro ponto que chama a atenção, no caso de São Paulo, é o fato de 1/3 dos acórdãos serem oriundos de apelações criminais, as quais são apresentadas quando a pessoa condenada não se contenta com a decisão proferida em 1ª instância. Nesses casos, estamos diante de uma miríade de ementas sem grandes variações entre si, afirmando que a pessoa foi condenada pelo delito de tráfico, o qual se configurou da seguinte maneira: “Conduta de trazer consigo, por ocasião de visita em estabelecimento prisional, xxx gramas de maconha para fornecimento a consumo de terceiros”. Chama muito a atenção o fato de que apenas a quantidade de drogas é alterada, o que indica, de certa maneira, a existência de uma justiça em linha de montagem, pouco preocupada em analisar particularmente cada caso (Sapori, 1995SAPORI, Luís Flávio. A administração da justiça criminal numa área metropolitana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.).

Num estudo automatizado de texto, uma etapa importante para a identificação de termos chaves foi a criação de uma nuvem de palavras com todas as 343 ementas. Como indica a Figura 1, a palavra que mais se destaca é “prisão”, seguida por algumas outras como (i) “paciente”, que é maneira como a pessoa presa é chamada em ações de Habeas Corpus, (ii) “medida”, que faz alusão à demanda por providências relacionadas à situação indigna na qual muitas pessoas se encontram na prisão e/ou à maneira humilhante pela qual os familiares são tratados nas unidades prisionais. A Figura 1 indica que a Covid-19 está longe de ser uma temática de destaque, posto que outras questões relacionadas à privação de liberdade aparecem com maior evidência.

Figura 1
Nuvem de palavras criadas a partir das ementas que se enquadram no recorte de pesquisa

Diante desse resultado, algumas perguntas passaram a guiar a nossa reflexão, quais sejam: (i) qual seria a natureza da prisão questionada em 2ª instância (a definitiva, resultado da condenação, ou a provisória, quando a pessoa ainda deveria ser considerada suspeita)?; (ii) quais são as violações de direito a que os familiares de pessoas privadas de liberdade estão mais submetidos?; (iii) em que medida há um processo de criminalização dos familiares de presos como estratégia para ocultar os mercados ilegais operacionalizados por agentes do sistema penitenciário? Nas próximas subseções, tentaremos responder a essas três indagações.

4.1. O drama da prisão provisória

Em sua pesquisa sobre os acórdãos criminais por excesso de prazo publicados pelo Supremo Tribunal de Justiça ao longo de toda a sua história, Ribeiro (2019RIBEIRO, Ludmila. Excesso de prazo no processo penal: a gramática do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, p. 50-81, 2019.) constata que a quase totalidade dos casos mapeados são, em verdade, Habeas Corpus que apresentam problematizações sobre a privação provisória por um tempo maior do que o considerado razoável. Nessa seção, procuramos verificar, em que medida, as decisões dos tribunais estaduais não são enviesadas por um problema estrutural da justiça criminal, qual seja, a morosidade no processamento e julgamento de um evento registrado como crime.

A prisão provisória é uma situação dramática, porque, em tese, em nosso país teríamos o direito à presunção de inocência. Não é preciso destacar, como bem o fazem os balanços da literatura sobre os estudos empíricos realizados na justiça criminal, que esse princípio é cotidianamente violado (Azevedo; Sinhoretto, 2018AZEVEDO, R. G.; SINHORETTO, J. O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais-BIB, v.2, n. 84, p. 188-215, 2018.). Um dos maiores problemas, em termos de efeitos colaterais da prisão, é o encarceramento provisório (Kirk; Wakefield, 2018KIRK, D. S.; WAKEFIELD, S. Collateral consequences of punishment: A critical review and path forward. Annual Review of Criminology, v. 1, p. 171-194, 2018.), posto que a pessoa poderá ser absolvida ao final do processo, mas, mesmo assim, sua vida financeira, sua rede de afetos e, muitas vezes, sua organização familiar já se desestruturam por completo (Beckett; Goldberg, 2022BECKETT, Katherine; GOLDBERG, Allison. The Effects of Imprisonment in a Time of Mass Incarceration. Crime and Justice, v. 51, n. 1, p. 000-000, 2022.). Além disso, como os processos judiciais demoram muito, não raro, quando a pessoa termina condenada, é imediatamente liberada, haja vista o advento da prescrição, que é a perda do direito de punir pelo Estado em razão do decurso do tempo (CNJ, 2019).

A regra é que o encarceramento que não resulta da condenação deveria ser evitado ao máximo, mas isso não parece ser o caso de estados como Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde a população de presos provisórios em dezembro de 2021 chegava a quase 40%, enquanto em São Paulo esse percentual era de 20% (FBSP, 2022). Como o Código de Processo Penal não estabelece um prazo para fim da instrução criminal, o que tivemos historicamente foi uma série de entendimentos jurisprudenciais que indicavam a necessidade de reavaliação da prisão provisória após decorridos 90 dias da detenção.4 4 Nesse sentido, ver: https://www.senado.gov.br/noticias/agencia/quadros/qd_180.html, acesso em 21 de dezembro de 2021. Com a aprovação do pacote anticrime, sancionada como 13.964/ 2019, uma alteração no Código Penal incorporou o prazo de 90 dias ao determinar a reavaliação periódica das prisões preventivas5 5 “Art. 316, Parágrafo único: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.” . Com isso, não são raros os pedidos de Habeas Corpus que demandam a liberação dos presos provisórios com base nesta concepção.

Para compreender em que medida esse padrão também foi encontrado nas decisões coletadas no TJMG, TJSP e TJRJ, foram identificadas todas as ementas que apresentavam de forma evidente que a discussão principal era a prisão como uma medida cautelar, o que representa 41% do total de casos pesquisados. Em seguida, essa informação foi contrastada com a referente à natureza do processo discutido em 2ª instância, o que nos permitiu verificar que 86% de todos os Habeas Corpus são relacionados a casos de prisão preventiva, problematizando especificamente o excesso de prazo (Gráfico 4). Em seguida, aparecem as apelações cíveis que pleiteiam o dano moral em razão das mortes dos seus entes queridos, que eram presos provisórios.

Gráfico 4
Distribuição percentual do tipo de processo, por temática relacionada ao excesso de prazo da prisão cautelar

Outra questão que chama bastante a atenção é a distribuição da discussão relacionada à prisão preventiva e excesso de prazo nos diferentes tribunais estaduais. Minas Gerais tem 2/5 das pessoas atrás das grades na condição de presos provisórios, mas é, comparativamente, a localidade com menor quantidade de questionamentos dessa natureza. Somente 19% dos acórdãos mineiros dizem respeito à prisão preventiva, em que pese o estado ter um dos maiores percentuais de presos provisórios do país (FBSP, 2022). O Rio de Janeiro, por sua vez, tem 57% de todos os acórdãos mapeados relacionados à prisão provisória. Por fim, São Paulo se situa na metade do espectro, com 38% dos acórdãos se referindo a essa temática.

Por fim, interessa saber se as demandas relativas à prisão preventiva, sobretudo, as que dizem respeito ao excesso de prazo, conseguem alcançar sua finalidade principal, qual seja, a soltura da pessoa que se encontra atrás das grades. Os dados coletados por intermédio de uma análise semiautomatizada das ementas indicam que os pleitos de soltura de presos preventivos foram atendidos em pequenos percentuais em São Paulo (somente 2,7% de liberações) e Minas Gerais (11%). Por outro lado, foram mais bem-sucedidos no Rio de Janeiro, onde pouco mais de 1/3 dos questionamentos referentes ao excesso de prazo da prisão provisória reverberaram em soltura da pessoa privada de liberdade. Mais uma vez, vemos que as realidades institucionais são muito diferenciadas e que, por isso, nossas ações de intervenção devem obedecer a essas diferenças regionais.

Esses resultados também indicam outras questões importantes. Mesmo quando buscamos decisões que digam sobre o lugar dos familiares das pessoas privadas de liberdade e suas respectivas violações de direito, a prisão provisória tende a dominar ou ocupar espaço de destaque na 2ª instância. Em parte, isso ocorre em razão da própria movimentação dos familiares, que irão buscar nas defensorias públicas apoio para os seus pleitos de soltura de seu ente querido antes que os efeitos colaterais do encarceramento se tornem irreversíveis.

Com exceção do Rio de Janeiro, os pedidos de soltura de presos provisórios são muito inócuos. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro tem ganhado espaço cada vez maior nos estudos sobre funcionamento do sistema de justiça criminal em razão de sua posição mais garantista e litigante, na tentativa de evitar, sobretudo, o uso da prisão como medida cautelar. Pouco sabemos como se posicionam as Defensorias Públicas de Minas Gerais e São Paulo, em termos de se existe essa ação estratégica por parte do órgão, o que talvez nos ajudasse a entender a baixa ressonância do tema da prisão enquanto medida cautelar na 2ª instância.

Outro ponto que merece ser sublinhado é a quantidade não desprezível de apelações cíveis que pleiteiam indenizações por danos morais e pensões por morte em razão da morte de alguém que era preso provisório. Neste caso, o raciocínio é que a leniência do Estado em processar e julgar e, muitas vezes, em reconhecer a inocência do suspeito erroneamente apontado, contribuiu para o fim de sua vida. São ementas que citam, inclusive, que o tema foi assunto da Repercussão Geral 592, do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual a responsabilidade civil objetiva do Estado por morte de preso que aguardava o julgamento deve ser reconhecida.

4.2. As violações dos direitos das famílias

Com tamanha proeminência da discussão relacionada ao excesso da prisão provisória em 2ª instância, uma conclusão direta é que não há muitas outras violações de direitos das pessoas presas chegando ao conhecimento dos desembargadores dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, um quantitativo não desprezível de acórdãos está relacionado a questões que para os familiares dos presos são essenciais, porque representam a possibilidade de manutenção do vínculo de afeto com quem está atrás das grades. De maneira geral, os problemas identificados nas ementas dos acórdãos podem ser vislumbrados na Tabela 3.

Tabela 3
Decisões que correspondem especificamente à violação de direitos dos familiares nos três tribunais - acórdãos mapeados entre novembro e dezembro de 2021*-**

Em nosso levantamento, o direito principal em questionamento, haja vista o seu não atendimento ou as barreiras colocadas para a sua não efetivação, é a visita à unidade prisional. Em que pese um quantitativo bastante substantivo de acórdãos nos três estados fazer menção a como esse direito é violado por meio de uma série de estratégias muito sofisticadas adotadas pelas administrações prisionais, certas questões específicas chamam atenção, em consonância com alguns achados da literatura sobre sistema prisional no Brasil.

Talvez, o primeiro eixo que mereça destaque é a problematização das revistas vexatórias, que muitas vezes expõem as mulheres (em maior medida) e os homens a uma série de inspeções e penetrações em todos os seus orifícios corporais como forma de verificar se o familiar ingressa na unidade prisional com bens proibidos (Padovani, 2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.). Trata-se de um mecanismo securitário, gerenciado de forma muito sofisticada pelas unidades prisionais (Lage, 2019), posto que se aproveitam do custo de deslocamento até a localidade (Padovani, 2017)6 6 Como as unidades prisionais, em razão da mudança do parque carcerário dos três estados analisados, estão cada vez mais distantes dos grandes centros urbanos, os deslocamentos até ele são muito caros, razão pela qual, várias visitantes informam, nas pesquisas etnográficas, que é melhor se submeter às exigências das revistas do que perder o dinheiro investido. Nesse sentido, ver Padovani (2017). e do temor de suspensão do direito de visitante (Sander, 2021SANDER, Vanessa. PAVILHÃO DAS SEREIAS: uma etnografia dos circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais. (Tese em Sociologia) - Antropologia Social, Universidade de Campinas, Campinas, 2021.)7 7 Se a visitante responde ao agente ou se recusa a se submeter à revista, ela pode ser autuada por desacato e perder a sua carteira de visitante pelo prazo de até 90 dias. Nesse sentido, ver Sandes (2021). . Por isso, mesmo em estabelecimentos que contam com a presença de body scan, a pessoa pode ser constrangida a essa inspeção que, na verdade, é um jogo de poder e, também, de humilhação.

Em São Paulo, não foi encontrado qualquer acórdão problematizando esse fenômeno das revistas como uma tentativa de impedir que as visitas aconteçam, silêncio que merece ser melhor aprofundado em outras pesquisas. Em Minas Gerais, foram encontrados nove acórdãos (que representam 9% dos casos mineiros), destacando como essas políticas de gestão dos corpos têm como efeito deletério a separação das famílias e a impossibilidade de manutenção dos laços de afeto. No entanto, no Rio de Janeiro, 1/3 dos acórdãos (49 casos) faziam menção a essa estratégia de sujeição das famílias a situações humilhantes para evitar a constância das visitas. A Defensoria Pública estadual chegou a impetrar uma Ação Civil Pública para que os visitantes do sistema prisional fossem tratados de acordo com a Resolução da Secretaria de Administração Prisional N.º 584, de 23/10/2015.

Um segundo ponto destacado nas violações dos direitos dos familiares foi a impossibilidade de realização das visitas em razão das políticas de transferências adotadas pelos sistemas prisionais estaduais. Essa é uma questão por deveras polêmica, mesmo num contexto de pandemia (Ribeiro; Diniz, 2021). As transferências, das quais as famílias não são previamente avisadas, se configuram em estratégias de punição propriamente ditas, já que implicam em maior isolamento e privação de itens indispensáveis providos apenas pelos familiares, bem como submetem os familiares a deslocamentos infrutíferos até os estabelecimentos de onde seus familiares foram transferidos (Salla; Dias; Silvestre, 2012SALLA, F.; DIAS, C. N.; SILVESTRE, G. Políticas Penitenciárias e as facções criminosas: uma análise do regime disciplinar diferenciado (RDD) e outras medidas administrativas de controle da População carcerária. Estudos de Sociologia, v. 17, n. 33, p. 333-352, 2012.).

Especificamente quanto a essa questão, o estado com maior nível de pleito é Minas Gerais, onde 20% dos 853 municípios contam com unidade do sistema prisional (Bastos; Ribeiro, 2016RIBEIRO, L. M. L.; BASTOS, L. M.. O que determina a ocorrência e/ou o registro de um crime em Minas Gerais?. Sociedade e Cultura, v. 19, n. 1, p. 61-74, 2016.), muitos deles distantes dos grandes centros urbanos. Isso ajuda a entender porque 33 decisões problematizam essa política de transferência como uma estratégia para se evitar as visitas e, consequentemente, a manutenção de relações que garantem sustento e afeto entre as pessoas privadas de liberdade e seus familiares. No Rio de Janeiro, somente 8% das decisões mapeadas mencionaram essa questão e, em São Paulo, esse quantitativo se reduziu para 3% dos acórdãos.

Uma terceira questão que apareceu como dificuldade para a manutenção do vínculo familiar foi o entendimento de muitos juízes de 1ª instância de que privação da liberdade significa o rompimento de relações de paternidade. Assim, foram diversas as apelações cíveis problematizando diferentes aspectos da guarda de filhos, sendo as mais prementes delas as negativas aos pedidos de visitas de filhos menores de idade. Não raro, as apelações questionavam como o direito de exercício da função paterna não poderia ser suprimido do preso, cabendo ao Estado criar estratégias e garantir mecanismos para que as crianças pudessem visitar as unidades.

Poucas situações dessa natureza foram encontradas nos três estados, sendo somente um caso em São Paulo, 10 em Minas Gerais e 29 no Rio de Janeiro. Contudo, os três estados convergem em termos do que se pleiteia (o direito de a criança visitar o pai privado de liberdade para garantia do vínculo de guarda) e do que se recebe. O que parece estar em destaque é em que medida a simples visita a uma unidade prisional pode transformar a pessoa em formação num potencial criminoso, o que mostra muito da imagem feita desses espaços como depósitos de “classes perigosas” (Paixão, 1995PAIXÃO, Antônio Luiz. Crime, controle social e a cultura oficial da sociologia. Sociedade e estado, v. 10, n. 02, p. 513-521, 1995.). E, ainda, a impossibilidade de pais privados de liberdade de exercerem a paternidade, como se uma coisa fosse desdobramento da outra. Felizmente, o posicionamento dos tribunais tem sido no sentido de reconhecer o direito da pessoa privada de liberdade a manter os vínculos com seus filhos, garantindo-lhes a nomeação de um responsável que possa acompanhar a criança durante a visita.

Portanto, os dados apresentados nesta seção indicam que os familiares têm se configurado cada vez mais em vítimas do poder punitivo do Estado, como já apontam os trabalhos de Padovani (2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.), Lages (2019, 2021) e Sander (2021SANDER, Vanessa. PAVILHÃO DAS SEREIAS: uma etnografia dos circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais. (Tese em Sociologia) - Antropologia Social, Universidade de Campinas, Campinas, 2021.). Interessante destacar que São Paulo, apesar de ter a maior população carcerária do país, conta com a menor quantidade de acórdãos referentes a essas violações de direito. Infelizmente, os dados que possuímos não nos permitem dizer o motivo de isso acontecer, mas talvez as tramas existentes entre o legal e o ilegal façam com que essas questões não possam ser objeto de ações judiciais.

Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, as demandas aparecem entremeadas de questões relativas à moralidade e fixações das expectativas de gênero (Lago, 2021LAGO, Natália Bouças do. Nem mãezinha, nem mãezona. Mães, familiares e ativismo nos arredores da prisão. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 36, p. 231-254, 2021.), demarcando o que seriam as funções de homens e mulheres, com eles dentro das unidades e elas como visitantes e cuidadoras da prole. Não raro, as flexões de gênero das decisões judiciais descrevem em detalhes a violência à qual elas são submetidas com as revistas (indicando que talvez eles não tenham as suas intimidades escrutinadas) e os papéis que os homens, apesar de encarcerados, podem desempenhar (como a paternidade). No entanto, não foi possível perceber a mesma complacência com elas, seja em termos de maternidade, seja em termos de não serem tratadas como “classes perigosas” (Paixão, 1995PAIXÃO, Antônio Luiz. Crime, controle social e a cultura oficial da sociologia. Sociedade e estado, v. 10, n. 02, p. 513-521, 1995.), sendo esse o tema da próxima seção.

4.3. “Ser família não é crime”8 8 Lema das brigadas populares que lutam pelo direito de visitação dos seus entes queridos na prisão. Neste sentido, ver: https://brigadaspopulares.org.br/sc-familiares-de-presos-vao-a-luta-e-as-ruas-ser-familia-nao-e-crime/, acesso em 03 de novembro de 2022. : Será mesmo?

Nesta última subseção, queremos compreender como os acórdãos nos apresentam uma série de representações relacionadas à expectativa de que os familiares dos presos seriam, naturalmente, criminosos e que, por isso, deveriam ser tratados com suspeição. A sociologia das prisões portuguesa há muito destaca como os padrões de policiamento, centrados nos estereótipos dos criminosos e, depois, prolongando-se para as suas esposas, mães e filhas, levam ao aprisionamento de verdadeiras comunidades (Cunha, 2018CUNHA, Manuela Ivone. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Etnográfica Press, 2018.). Não à toa, a experiência da privação da liberdade seria entrecortada por redes de amizade e inimizade anteriores à prisão (Granja, 2015GRANJA, Rafaela Patrícia Gonçalves. Para cá e para lá dos muros: relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Minho, Gualtar, 2015.), mas que produzem novas redes, viabilizando, inclusive, a rearticulação de dinâmicas criminais (Cunha, 2014).

Trazendo essas leituras portuguesas para a realidade brasileira, é possível argumentar que as áreas de periferia têm produzido uma nova teia de representações sobre como a identidade de bandido, anteriormente tão demarcada por atributos de sexo, raça e masculinidade (Zaluar, 2004ZALUAR, Alba. "Apresentação violência, cultura e poder". In: CECCHETTO, F. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.), agora transborda para as mulheres relacionadas aos presos (Lago, 2019LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.). Com isso, elas passam a ser não apenas mais vigiadas pela polícia, mas especialmente submetidas a uma série de controles, dado o entendimento de que, em algum momento, terão a sua identidade de criminosa finalmente desvelada (Padovani, 2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.).

Nesta forma de gestão do poder estatal, são criadas uma série de regulamentações que visa, por exemplo, impedir o cadastro dessas mulheres como familiares nas unidades prisionais. Ser família significa, entre outras coisas, estar autorizada a receber ligações e cartas, algo que os estabelecimentos penais querem impedir a qualquer custo sob o argumento de que informações podem ir e vir, aumentando a porosidade da prisão e, por sua vez, a reorganização do crime (Silvestre, 2011SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões em Itirapina. (Mestrado em Sociologia) - Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.). Então, uma das justificativas mais utilizadas pelas administrações prisionais é a de que, se a mulher tiver antecedentes criminais, ela não poderia ser autorizada como visita de preso. Inclusive, um dos acórdãos revisados era relacionado a uma dessas decisões, considerada uma espécie de constrangimento ilegal.

Caso a barreira do cadastro seja transposta, é necessário submetê-las às revistas vexatórias, de maneira a impedir que as mulheres ingressem nas unidades prisionais com objetos proibidos. Nos três estados pesquisados, apesar da vigência de uma lei que proíbe expressamente essa prática, sua mobilização permanece no cotidiano dos “dias de visita”. No entanto, como argumenta Padovani (2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.), não há qualquer dado empírico que respalde essa prática. Primeiro, porque os familiares, em geral, e as mulheres, em especial, são os únicos com corpos sujeitos a tal escrutínio. Segundo, porque os dados produzidos pela Rede Justiça Criminal em 2014 mostram que somente 0,034% do total de visitantes analisados foram flagrados com drogas, sendo que armas e celulares sequer chegaram a ser registrados.

Contudo, nos acórdãos revisados, o sucesso na identificação de mulheres nesta situação era utilizado como uma espécie de reforço acerca das necessidades de a administração prisional não apenas instituir barreiras que proíbam os cadastros das visitantes, como a necessidade de elas serem submetidas a um escrutínio extremo. O Judiciário as encara como “classes perigosas” dentro do sistema prisional. Em São Paulo, foram encontradas cinco decisões com esse teor, sendo que em Minas Gerais e Rio de Janeiro não há decisão que faça menção a qualquer estratégia de revista vexatória que tenha resultado na apreensão de drogas.

Porém, isso não significa que os desembargadores não representem os familiares de presos como “verdadeiros traficantes”: pessoas não apenas suspeitas, mas que podem ter seus corpos revistados para garantia de que o comércio ilegal dentro das prisões seja finalmente controlado. Com tal conteúdo, foram encontradas 10 decisões em Minas Gerais, 24 no Rio de Janeiro e uma em São Paulo: decisões que reafirmam a necessidade de revistas nos corpos dos familiares mesmo diante de processos nos quais tais revistas não resultaram na apreensão de nenhum objeto ilícito. Contudo, esses julgadores parecem se esquecer de algo há muito sublinhado por Padovani (2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.): os familiares são os únicos sujeitos às revistas e ao controle de suas roupas, pertences e orifícios. Se mesmo assim as prisões continuam a contar com uma miríade de mercadorias ilegais, então, talvez fosse interessante sair dessa chave interpretativa e perscrutar sobre o papel dos agentes prisionais e da administração estatal na manutenção desses comércios. Com certeza, tais dinâmicas garantem muitos rendimentos e mais interseções entre o legal e o ilegal do que os três tribunais de justiça querem antever.

Em resumo, uma hipótese de pesquisa que merece ser melhor trabalhada é como são analisados, pelos desembargadores, os funcionários do cárcere e quais são as representações feitas com relação a sua conduta enquanto burocrata de nível de rua (Martins; Dias, 2018MARTINS, T. P.; DIAS, C. C. N.. A atuação do agente penitenciário como burocrata de nível de rua: para além da discricionariedade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 1, p. 550-572, 2018.). Talvez, isso ajude a entender como a criminalização dos familiares de pessoas privadas de liberdade se consolida numa estratégia política eficiente de tirar as luzes sobre alguns vasos comunicantes do mundo de dentro e de fora da prisão (Godoi, 2017GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.).

5. Considerações finais

Este texto buscou realizar um diagnóstico das decisões em segunda instância que envolvem familiares de presos, com foco nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Com base nisso, fez-se um esforço de compreender, por um lado, os pleitos que surgem nessas decisões e, por outro, quais são as violações de direitos sofridas pelos familiares de pessoas privadas de liberdade que transbordam o contexto prisional chegando nos judiciários em foco.

Com base nesses dois eixos de análise, uma conclusão direta é que não há muitas outras violações de direitos das pessoas presas que chegam ao conhecimento dos desembargadores dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, com exceção de pedidos por excesso de prazo da prisão provisória. A despeito dessa constatação, um quantitativo não desprezível de acórdãos está relacionado a questões que para os familiares dos presos são essenciais, porque representam a possibilidade de manutenção do vínculo de afeto com quem está atrás das grades. Em vista disso, há pedidos que clamam a atenção sobre visitação, transferência de presos ou a guarda dos custodiados.

Somado a esse aspecto, é possível constatar que os judiciários analisados têm contribuído para a transformação, sobretudo de mulheres (mães, esposas e filhas de pessoas privadas de liberdade), em criminosas, autorizando a vigilância constante de seus passos, a negativa da manutenção dos vínculos de afeto e a submissão de seus corpos à diferentes estratégias de escrutínio, como a revista vexatória. Em outros termos, os judiciários têm contribuído para a criminalização dos familiares de presos. Consolidam uma estratégia política eficiente de tirar as luzes sobre pessoas essenciais ao contato entre o mundo de dentro e de fora da prisão, as colocando em posição de forte e contínua suspeição.

6. Referências bibliográficas

  • AZEVEDO, R. G.; SINHORETTO, J. O sistema de justiça criminal na perspectiva da antropologia e da sociologia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais-BIB, v.2, n. 84, p. 188-215, 2018.
  • BECKETT, Katherine; GOLDBERG, Allison. The Effects of Imprisonment in a Time of Mass Incarceration. Crime and Justice, v. 51, n. 1, p. 000-000, 2022.
  • CHAVES, L. H.; RIBEIRO, L. M. L. Efeitos do encarceramento feminino nas dinâmicas familiares. Análise Social, v. 56, n. 1 (238), p. 30-55, 2021.
  • COACCI, Thiago. A pesquisa com acórdãos nas Ciências Sociais: Algumas reflexões metodológicas. Mediações, v. 18, n. 2, p. 86-109, 2013.
  • CONDRY, Rachel; MINSON, Shona. Conceptualizing the effects of imprisonment on families: Collateral consequences, secondary punishment, or symbiotic harms?. Theoretical Criminology, v. 25, n. 4, p. 540-558, 2021.
  • CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça criminal, impunidade e prescrição. Brasília: CNJ, 2019. Online. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2019/02/levantamento-CNJ-justica-pesquisa.pdf Acesso em: 12 jun. 2019.
    » https://static.poder360.com.br/2019/02/levantamento-CNJ-justica-pesquisa.pdf
  • CUNHA, Manuela Ivone. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Etnográfica Press, 2018.
  • CUNHA, Manuela Ivone. Etnografias da prisão: novas direções. Configurações. Revista Ciências Sociais, n. 13, p. 47-68, 2014.
  • DUARTE, Thais; RIBEIRO, Ludmila. Los derechos humanos y las cárceles brasileñas durante la pandemia de Covid-19. Delito y Sociedad, 2021, v. 30, n. 52, e0042.
  • GODOI, R.; ARAÚJO, F.; MALLART, F. Espacializando a Prisão: A conformação dos parques penitenciários em São Paulo e no Rio de Janeiro. Novos Estudos CEBRAP, v. 38, p. 591-611, 2020.
  • GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
  • GRANJA, Rafaela Patrícia Gonçalves. Para cá e para lá dos muros: relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Minho, Gualtar, 2015.
  • GRANJA, Rafaela. Beyond prison walls: The experiences of prisoners’ relatives and meanings associated with imprisonment. Probation Journal, v. 63, n. 3, p. 273-292, 2016.
  • KIRK, D. S.; WAKEFIELD, S. Collateral consequences of punishment: A critical review and path forward. Annual Review of Criminology, v. 1, p. 171-194, 2018.
  • LAGO, Natália Bouças do. Dias e noites em Tamara-prisões e tensões de gênero em conversas com “mulheres de preso”. Cadernos Pagu, n. 55, e195506, 2019.
  • LAGO, Natália Bouças do. Nem mãezinha, nem mãezona. Mães, familiares e ativismo nos arredores da prisão. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 36, p. 231-254, 2021.
  • LOURENÇO, L. C.; ALVAREZ, M. C. Estudos sobre prisão: um balanço do estado da arte nas ciências sociais nos últimos vinte anos no Brasil (1997-2017). Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), n. 84, v. 2, p. 1-9, 2018.
  • MANSO, B. P.; DIAS, C. N. PCC, sistema prisional e gestão do novo mundo do crime no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 2, p. 10-29, 2017.
  • MARTINS, T. P.; DIAS, C. C. N.. A atuação do agente penitenciário como burocrata de nível de rua: para além da discricionariedade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 1, p. 550-572, 2018.
  • PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.
  • PAIXÃO, Antônio Luiz. Crime, controle social e a cultura oficial da sociologia. Sociedade e estado, v. 10, n. 02, p. 513-521, 1995.
  • QUEIROZ, R. M R.; FEFERBAUM, M. Metodologia da pesquisa em Direito. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.
  • QUINTÃO, Beatriz Aranha; RIBEIRO, Ludmila. Judiciário em tempos de pandemia: um estudo das decisões em habeas corpus do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Revista do Instituto de Ciências Penais, v. 7, n. 1 (aberto), p. 95-130, 2022.
  • RIBEIRO, L. M. L.; BASTOS, L. M.. O que determina a ocorrência e/ou o registro de um crime em Minas Gerais?. Sociedade e Cultura, v. 19, n. 1, p. 61-74, 2016.
  • RIBEIRO, Ludmila. Excesso de prazo no processo penal: a gramática do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, p. 50-81, 2019.
  • SALLA, F.; DIAS, C. N.; SILVESTRE, G. Políticas Penitenciárias e as facções criminosas: uma análise do regime disciplinar diferenciado (RDD) e outras medidas administrativas de controle da População carcerária. Estudos de Sociologia, v. 17, n. 33, p. 333-352, 2012.
  • SANDER, Vanessa. PAVILHÃO DAS SEREIAS: uma etnografia dos circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e transexuais. (Tese em Sociologia) - Antropologia Social, Universidade de Campinas, Campinas, 2021.
  • SAPORI, Luís Flávio. A administração da justiça criminal numa área metropolitana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 143-157, 1995.
  • SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões em Itirapina. (Mestrado em Sociologia) - Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.
  • VASCONCELOS, N. P.; MACHADO, M. R.; WANG, D. W. L. COVID-19 nas prisões: um estudo das decisões em habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo. Revista de Administração Pública, v. 54, p. 1472-1485, 2020.
  • VIANNA, A. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos judiciais. In: Castilho, S. R. R.; LIMA, A. C. S.; TEIXEIRA, C. C. (org.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014, p. 43-70.
  • ZALUAR, Alba. "Apresentação violência, cultura e poder". In: CECCHETTO, F. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
  • 1
    Esta pesquisa foi financiada com recursos da Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT).
  • 2
    Segundo os dados mais recentes (Infopen, 2022), São Paulo possui 195.194 presos em unidades prisionais; Minas Gerais, 65.738; e Rio de Janeiro, 48.196.
  • 3
    Menor unidade territorial judiciária, podendo conter um ou mais municípios e distritos, circunscrita a um estado da federação, no caso da Justiça comum.
  • 4
    Nesse sentido, ver: https://www.senado.gov.br/noticias/agencia/quadros/qd_180.html, acesso em 21 de dezembro de 2021.
  • 5
    “Art. 316, Parágrafo único: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.”
  • 6
    Como as unidades prisionais, em razão da mudança do parque carcerário dos três estados analisados, estão cada vez mais distantes dos grandes centros urbanos, os deslocamentos até ele são muito caros, razão pela qual, várias visitantes informam, nas pesquisas etnográficas, que é melhor se submeter às exigências das revistas do que perder o dinheiro investido. Nesse sentido, ver Padovani (2017PADOVANI, Natália Corazza. Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas”. Cadernos Pagu, v. 51, p. e175103, 2017.).
  • 7
    Se a visitante responde ao agente ou se recusa a se submeter à revista, ela pode ser autuada por desacato e perder a sua carteira de visitante pelo prazo de até 90 dias. Nesse sentido, ver Sandes (2021).
  • 8
    Lema das brigadas populares que lutam pelo direito de visitação dos seus entes queridos na prisão. Neste sentido, ver: https://brigadaspopulares.org.br/sc-familiares-de-presos-vao-a-luta-e-as-ruas-ser-familia-nao-e-crime/, acesso em 03 de novembro de 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2022
  • Aceito
    16 Jun 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com