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Ligeiramente ilegais: posições femininas e percepções do direito na obra “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles

Resumo

Publicado em 1973 e ambientado na ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), o romance As meninas, de Lygia Fagundes Telles, acompanha três jovens mulheres moradoras de um pensionato que constroem, a vozes alternadas, uma narrativa complexa capaz de abranger tanto o jogo do cotidiano quanto a realidade sociopolítica do período. Por meio de uma análise do direito na literatura, a presente pesquisa se debruçou sobre as posições das protagonistas do romance para investigar as muitas formas de que pode se revestir o Direito em sua relação com as pessoas, especialmente as mulheres - ou, de maneira mais específica, como sua presença (ou ausência) pode resultar em opressão e violência. Concluiu-se, ao fim, não só pelo potencial revolucionário da literatura de testemunho para o avivamento da memória coletiva e a denúncia das injustiças sociais, mas também - e principalmente - pela permanência das críticas extraídas do romance às estruturas sexistas, indiferentes e coniventes do Direito brasileiro.

Palavras-chave:
Direito; Ditadura; Feminismo; Literatura; Testemunho

Abstract

Published in 1973 and set in the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1985), the novel The girl in the photograph, by Lygia Fagundes Telles, accompanies three young women living in a boarding house who build, in alternate voices, a complex narrative capable of covering both everyday life and the socio-political reality of the period. Through an analysis of law in the literature, the present research focused on the positions of the protagonists of the novel to investigate the many ways that Law can take on in its relationship with people, especially women - or, better, how its presence (or absence) can result in oppression and violence. It was concluded, in the end, not only the revolutionary potential of testimony literature for the revival of collective memory and the denunciation of social injustices but also - and mainly - the permanence of the criticisms extracted from the novel to the sexist, indifferent, and conniving structures of the Brazilian law.

Keywords:
Dictatorship; Law; Literature; Feminism; Testimony

Introdução

Lygia Fagundes Telles, conhecida como a dama da literatura brasileira, publicou em 1973 seu romance As meninas, simultaneamente narrado e protagonizado por três jovens mulheres, alunas de uma faculdade em greve e moradoras de um pensionato administrado por freiras.

O livro é uma reação ao contexto sociopolítico do período: cinco anos após a decretação do Ato Institucional nº 5, a censura imposta pela ditadura civil-militar já havia forçado novos padrões de criação a golpes de caneta e tesoura; a repressão era institucionalizada; e a violência do regime já havia levado ao exílio expressiva parcela de escritores e artistas.

Na obra de Telles, jurista formada pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco1 1 Conforme biografia da Academia Brasileira de Letras (2016), da qual a autora tornou-se parte em 1985, Lygia Fagundes Telles formou-se em Direito e conduziu sua trajetória literária em paralelo ao trabalho de procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, cargo que exerceu até a aposentadoria. , esse contexto não é mero cenário. Pelo contrário, a autora costurou a obra com o fio dessa repressão a marcar a psique e os gestos de cada uma de suas personagens, dotando o romance de uma nuance política e feminina construída nas entrelinhas e margeadora de todo o enredo.

Dentre os três modos usuais de articulação entre direito e literatura, isto é, o direito na literatura, o direito como literatura e o direito da literatura, este artigo adota o primeiro como método de abordagem. Não se trata, pois, de explorar a natureza literária do direito, tampouco de saber de que modo o direito regula normativamente a literatura. Trata-se, antes, de analisar o direito a partir da literatura, isto é, de examinar as contribuições que a literatura oferece para o entendimento do direito.

Isso é particularmente realizado pela exploração da capacidade da obra de Lygia Fagundes Telles de prestar uma compreensão refinada do fenômeno jurídico, especialmente daquele que se manifesta na realidade brasileira da época ditatorial. Procura-se esmiuçar, assim, a maneira pela qual o romance realiza uma espécie de registro histórico de distintas percepções do Direito que se cristalizam no modo como três personagens articulam explícita ou implicitamente suas perspectivas jurídicas. Por assim dizer, procede-se uma espécie de salto da narração à norma: o relato literário serve como instrumento de elucidação das sutis interpretações do fenômeno jurídico realizadas pelas protagonistas do romance: se um contraste relativamente nítido se nota entre o idealismo jurídico de Lorena e o materialismo jurídico de Lia, uma visão jurídica turva se observa em Ana Clara.

Concretamente, portanto, ao examinar a narrativa, especialmente as falas e os pensamentos das meninas, o artigo busca captar distintas concepções acerca do Direito, especialmente demonstrando sua articulação com a posição de cada uma delas no contexto da sociedade brasileira de então. E o resultado não é outro senão a aquisição de um conjunto de saberes jurídicos que auxilia até mesmo a captar o modo de operação de um Direito que age por omissão ou que atua de forma oculta e disfarçada.

Em síntese, por meio de uma abordagem do direito na literatura, o presente artigo busca sublinhar esse caráter crítico de As meninas, investigando as denúncias ao Direito formuladas a partir das posições femininas ocupadas por cada uma das personagens, que se articulam como jogos de espelhos e lançam, assim, luz sobre questões sociopolíticas ainda relevantes na atualidade.

A pesquisa está subdividida em três momentos principais: o primeiro, de análise do contexto histórico-social do romance; o segundo, pormenorizado em uma apresentação de cada uma das personagens; e o terceiro, dedicado à análise de seus olhares particulares sobre o fenômeno jurídico pátrio.

1. Antes, um pouco de história

Para Lygia Fagundes Telles, o conjunto de sua obra jamais poderia ter sido colocado no papel por uma autora estrangeira: “Veja o caso de As meninas, por exemplo. Está lá, cravado nas minhas personagens, um instante da maior importância para a História do Brasil. É o registro, é o meu testemunho de uma época” (2007, p. 84). Da mesma forma, com mais ironia: “como eu poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970?” (2009, p. 298).

Conforme a Comissão Nacional da Verdade (CNV), as graves violações de direitos praticados pelo regime ditatorial no Brasil (1964-1985) ocorreram em um contexto “[...] generalizado e sistemático de ataque do Estado contra a população civil” (CNV, 2014, p. 964). O direito humano à expressão artística, de maneira particular, foi violado sistematicamente por meio de instrumentos de censura e de perseguições, que resultaram em uma grandiosa diáspora de artistas, pensadores livres e professores brasileiros no período.

Houve inúmeros casos de censura, ameaças, prisões, expurgos, demissões em massa, inquéritos, afastamentos de professores; depredações de universidades; saques de bibliotecas públicas e privadas; apreensão de textos considerados subversivos... “[...] fatos atrozes e ao mesmo tempo patéticos, muito ridículos na sua vã truculência, evidenciando que, à primeira vista, a investida contra a cultura alimentava-se sobretudo da ignorância” (PELLEGRINI, 1997PELLEGRINI, Tania. Cultura e política em anos quase recentes: cinco cenas e algumas interpretações. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 2, n. 3, p. 87-97, 1997., p. 88).

Como explica Manguel (1997MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 314), regimes totalitários dão muita importância a livros: “[...] sabem, muito mais do que alguns leitores, que a leitura é uma força que requer umas poucas palavras iniciais para se tornar irresistível. Quem é capaz de ler uma frase é capaz de ler todas”.

Apesar de toda a violência, Telles permaneceu: publicou As meninas durante um período particularmente repressivo e escapou à censura mesmo que sua obra fosse densamente política. Para Santos e Fernandes (2016FERNANDES, Rosa Maria Valente; SANTOS, Thais Morgado dos. Por que a ditadura militar não censurou As meninas? Leopoldianum, Santos, n. 116, 117, 118, p.75-97, 2016.), a estruturação textual foi a principal responsável por esse escape: por seu estilo narrativo compor-se majoritariamente de fluxos de consciência e tornar-se ainda mais complexo pela alternância entre três narradoras, sem divisões explícitas, Telles pôde esconder a plenitude ideológica de sua obra em divagações, reflexões e pensamentos intrusos, que teriam de ser identificados como fragmentos soltos e então reinterpretados para que revelassem seu real significado.

Dentre outros artistas que também resistiram e permaneceram no país, os poetas marginais buscaram romper com o silenciamento ao espalhar seus trabalhos em folhetos vendidos e espalhados pelas cidades - daí o nome Geração Mimeógrafo -, escapando ao controle das publicações oficiais e dando voz às ideias e sentimentos sufocados pela ditadura. O caminho escolhido foi diverso do de Telles, que obscureceu o real significado de seu romance, tradicionalmente publicado, enquanto os poetas buscaram chegar diretamente à rua: o grito de liberdade, no entanto, mantém-se o mesmo.

Conforme Luis Olavo Fontes (2016FONTES, Luís Olavo. Propriedade privada. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org). 26 poetas hoje. [E-book]. São Paulo: Editora HB, 2016., p. 198) escreveu: “não tenho nada comigo/ só o medo/ e medo não é coisa que se diga”. Para Cacaso (2016, p. 54), de maneira irônica: “ficou moderno o Brasil/ ficou moderno o milagre:/ a água já não vira vinho/ vira direto vinagre”. Ana Cristina Cesar (1999CÉSAR, Ana Cristina. Correspondência incompleta. In: FREITAS FILHO, Armando; HOLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Correspondência incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999., p. 95), por sua vez, versou sobre a força do medo: “verbalizo de pura paralisia”; e Uchôa Leite (1979, p. 132) lamentou metaforicamente que sua figura fosse a elipse.

Ao término de tudo, entretanto, em razão da Lei de Anistia de 1979, o Brasil assistiu ao término da ditadura e ficou à espera de uma catarse coletiva que nunca ocorreu. Em outras palavras, nunca houve uma compreensão profunda dos fatos ocorridos durante esse período, bem como algo capaz de explicá-los e também de provê-los de algum sentido no rescaldo.

A ausência de reparação e de instituição de espaços de memória coletiva - como museus, memoriais e demais símbolos de lembrança do passado - pode ser interpretada não só como uma ausência de justiça, mas, também, como uma aguda maneira de silenciamento de todo o ocorrido.

Em resposta, é a literatura que tem exercido a função de catarse: tem revelado uma semântica própria da ditadura, explicitando e desnudando mais do que quaisquer documentos oficiais poderiam conseguir resgatar. Dessa forma, a literatura produzida no período ditatorial tem suplementado o trabalho da historiografia, conseguindo, adicionalmente, nos “[...] dizer o abjeto, conseguindo nos entregar aquela verdade nefanda e interdita que o relato ou a crônica dos acontecimentos não podem e, talvez, não devam dizer” (FINAZZI-AGRÒ, 2014FINAZZI-AGRÒ, Ettore. (Des)memória e catástrofe: considerações sobre a literatura pós-golpe. Estudos de literatura brasileira contemporânea. Literatura e Ditadura, Brasília, n. 43, jan.-jun. 2014., p. 181).

No romance As meninas, é como refletido pela mãe de Lorena:

Sempre estou encontrando alguém que se lembra de mim nesta ou naquela data, as testemunhas são tão atentas, uma memória! Por que as pessoas têm tanta memória? [...] Faço aquela cara vaga, disfarço mas não adianta, a testemunha é um bico voraz me arrancando os fiapos da carne, tuque-tuque, não vai deixar a presa, uma voracidade (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Companhia das Letras: São Paulo, 2009., p. 234).

Para Seligmann-Silva (1998), é na diferença entre a escrita e a leitura que se constroem os significados; ao ler, realizam-se múltiplas atualizações e traduções da obra em que se reconstroem os níveis de intertextualidade do original. Em sua dupla temporalidade, assim, a literatura de testemunho só se realiza no seu desmoronamento estrutural e no seu incessante trabalho de reestruturação.

Tomado como relato e memória dessa forma, As meninas esgarça a tensão entre realidade e ficção ao provocar um retorno ao passado pelas lentes do presente; ao revelar, na hesitação e nos silêncios, o que antes não se poderia dizer. Trata-se de memória viva que não permite o esquecimento.

A relevância dessa subversão literária, para o Direito, está em sua capacidade de produzir novos sentidos em contraponto ao senso-comum teórico dos juristas (WARAT, 1994WARAT, Luis Alberto. Senso comum teórico: as vozes incógnitas das verdades jurídicas. In: Introdução geral ao direito moderno - interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1994, v. I, p. 13-18., p. 13), como forma de reflexão filosófica em que os saberes e as sensibilidades são mobilizados para que o campo jurídico se abra à crítica e à reinterpretação.

Como sugerem Trindade e Gubert (2008TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Orgs.). Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-66., p. 63), afinal, à figura do jurista, em sua irredutível defesa da legitimidade do ordenamento em vigor, contrapõe-se historicamente o sujeito poeta que, clandestino ou preso, denuncia as injustiças e atrocidades desse mesmo sistema. Conforme ilustrado por Ost (2007OST, François. Contar a lei. As fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007., p. 13), o poeta abre o espaço da ficção imaginária; o jurista, do outro lado, reforça a imperatividade da ordem por ele instaurada.

Diante dessa histórica tensão, especialmente no que tange à memória, e no marco das promessas constitucionais que guiaram o retorno do Estado brasileiro à democracia, as relações entre direito e literatura, em sua intensa provocação mútua, acabam por abrir o convite a um olhar crítico sobre a história nacional e sobre o papel nela desempenhado pelo Direito.

Não se descuida que o papel da arte como contra-criação (OST, 2007OST, François. Contar a lei. As fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007., p. 33), de desafio ao mundo herdado, seja estranho ao jurista. Sua formação profissional suprime a imaginação, negando-lhe o poder de ir além do Direito; a ideia de qualquer utopia, em sua radicalidade, lhe é uma impossibilidade diante de seu apego à rede de poderes, papéis e hierarquias que constituem sua própria legitimação social, servindo também de base ao material de suas elocubrações narrativas (COSTA, 2011COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginação: hipóteses para uma antropologia do jurista. In: PETIT, Carlos (org.). As paixões do jurista. Curitiba: Juruá, 2011, p. 167-226., p. 199).

Ao abrir esse horizonte utópico, todavia, a literatura, como espaço de exercício imaginativo e crítico - em seu caráter desruptor, como nomeiam Trindade e Gubert (2008TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Orgs.). Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-66., p. 13) -, possibilita que a sensibilidade assuma um sentido não apenas íntimo, mas político. E, como defendido por Bittar, “[...] é necessário o exercício prático e efetivo da razão sensível para fazer face à intolerância, às violências, à truculência, à perversidade, às irracionalidades, à opressão, à brutalidade, à barbárie e aos barbarismos do cotidiano” (2020, p. 325).

De maneira a romper com a proibição de imaginação aos juristas, a literatura nos convida, assim, a repensar os sentidos atribuídos ao mundo e também ao próprio Direito, razão pela qual se opta, metodologicamente, por uma análise do direito na literatura (OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Amanda Muniz. Direito e literatura: um grande mal-entendido? As críticas de Richard Posner e Robert Weisberg ao direito na literatura. ANAMORPHOSIS, v. 5, n. 2, 2019, pp. 395-416. DOI: https://doi.org/10.21119/anamps.52.395-416.
https://doi.org/10.21119/anamps.52.395-4...
, p. 397), para que um exame literário cuidadoso do romance As meninas possa abrir à crítica o fenômeno jurídico.

É a partir dessa perspectiva que se propõe a interpretação do romance de Lygia Fagundes Telles, como leitura do período da ditadura e do Direito que o permitiu: como adoção de um ponto de vista feminino - marginal e concreto - para compreensão do passado e do presente, com vistas à abertura de um diferente caminho até o futuro.

2. As meninas

É Madre Alix a responsável pelo pensionato onde vivem as garotas e também quem desabafa, as mãos abertas em espanto:

- Vocês me parecem tão sem mistério, tão descobertas, chego a pensar que sei tudo a respeito de cada uma e de repente me assusto quando descubro que me enganei, que sei pouquíssima coisa. [...]. Como vou separar a realidade da invenção? (p. 143).

É de Lorena a maior parte dos capítulos, e também seu o fechamento aberto da obra. Por isso, se começa por ela, e Lia e Ana Clara seguem na ordem contrária do trecho que prefacia a obra: “Ana Clara, não envesga! - disse Irmã Clotilde na hora de bater a foto. - Enfia a blusa na calça, Lia, depressa. E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta! A pirâmide (p. 10).”

2.1. Lorena Vaz Leme

Lorena Vaz Leme é estudante de direito, herdeira de família paulista abastada, apegada aos livros, à poesia e ao mundo seguro que ergueu para si. Chega a ameaçar erguer uma placa à porta de seu quarto: “perdão pela ordem, pela limpeza, perdão pelo requinte e pelo supérfluo mas aqui reside uma cidadã civilizada da mais civilizada cidade do Brasil” (p. 63).

Chama seu próprio quarto de concha, onde vive como “pérola na ostra” (p. 69). Cobriu-o de azulejo cor de rosa, papel amarelo-dourado, discos, livros, caixas de chá, seus próprios itens finos e, a um canto, a coleção de pequenos sinos alimentada pelo irmão diplomata.

Lá fora as coisas podem estar pretas mas aqui tudo é rosa e ouro. “É preciso ter um peito de ferro pra aguentar esta cidade”, diz a Lião que cruza esta cidade com sua alpargata azul. Mas não entro na transa e nem quero. [...] o medo, não da cidade (tão remota para mim como seu povo) mas um medo de que nasce debaixo da minha cama (p. 60).

A distância que impõe a si mesma enriquece sua imaginação de ideias e embaralha sua percepção do que ocorre do lado de fora: dentre as citações em latim e a espera angustiada pelo telefonema de seu amado, Lorena afasta-se das pessoas e da cidade como se, de sua concha, pudesse refugiar-se em outro mundo.

A distância não afasta a dor, que marca a angústia da obra inteira - “[...] salve os meninos tão fortes e tão frágeis, somos todos muito frágeis” (p. 108) -, mas, mesmo ciente da gravidade do cenário político em que está imersa, Lorena é incapaz de juntar-se à militância de Lia.

Em sua defesa, ama sim o povo (Lião não precisa olhá-la dessa forma), mas é um amor cerebral - “[...] que outro gênero de amor pode ser? Se não me misturo na tal massa (morro de medo dela) pelo menos não fico esnobando como faz Aninha” (p. 64).

Com sua falta de contato com o que se passa lá fora, a amplitude exagerada do drama interno: a espera angustiada pelo telefonema de M.N., iniciais do homem com quem espera se envolver, médico casado e pai de cinco filhos, com quem se corresponde em segredo.

Em sua paixão, há peso no dilema da virgindade: Lorena vive uma busca pela emancipação que, tem certeza, lhe advirá quando deixar de ser virgem; ao mesmo tempo, sente-se virtuosa por assim ainda permanecer. Quando Lia a provoca para resolver de uma vez seu dilema, responde que está tentando, mas

[...] lá no escuro me respondo, acho que não estou querendo, não. A alegria que me dá a ideia de ver em torno a promiscuidade dos sexos se dando sem amor, por aflição, desespero. E o meu. Virgo et intacto. Abro os braços. Que dia maravilhoso (p. 35).

Em outra ocasião, Lia a chama de “quadrada e romântica, o que dá no mesmo” (p. 163), ao que Lorena lhe responde que sua blusa está do avesso, inabalável. Se Lia afirma que apenas padres e prostitutas desejam se casar, pois quem mais?, Lorena segue convicta:

Quis dizer: eu, eu! Adoraria me casar com M.N., não existe uma ideia mais joia, queria me casar com ele, sou frágil, insegura. Preciso de um homem em tempo integral. Com toda a papelada em ordem, acredito demais em papel, herdei isso da mamãezinha. (p. 73).

Da família, herdou também um trauma: durante a infância na fazenda, seus irmãos Remo e Rômulo brincavam com uma espingarda do pai que acreditavam estar descarregada, mas que resultou na morte acidental de Rômulo.

Transtornado, o pai de Lorena teve de ser internado e faleceu no sanatório - conforme Ana Clara, sem se lembrar de mais nada, nem mesmo da filha (p. 38). Para a mãe, em reescrita traumática do fato, o filho Rômulo faleceu ainda bebê, de forma que sequer há fotos suas pela casa.

Remo, o irmão sobrevivente, tornou-se diplomata, sofisticado, rico e também muito distante, embora Lorena tenha recordações diferentes de sua natureza: “[...] o olhar intenso. Você caçando mosca para jogar no suco de laranja de Rômulo. Escondendo a mariposa na minha cama. Diplomata, Remo? A voz bem impostada” (p. 58).

Em uma tradução da vida de aparências burguesa, a tragédia não é encarada de frente, de fato, por ninguém da família, mesmo que provoque uma fissura funda na psique de cada um deles. Sobre as raras visitas de seu irmão, Lorena reflete que “[...] na primeira hora disponível ele começava a falar depressa e alto. A mãe começava a rir estridente, ambos tentando cobrir o murmurejar que vem subindo lá do fundo pardacento” (p. 123).

A garota, por sua vez, reflete em seu próprio romance malfadado a sensação de solitude que o acidente lhe provocou, tanto pelo afastamento físico do pai e do irmão como o emocional de sua mãe. Compara sua espera longínqua à recordação de ir com o pai ver um bezerrinho recém-nascido na fazenda: “[...] estendo minha mão e não vem mais ninguém, eu ficaria com ela estendida até o fim dos tempos. Ad saecula et saeculorum. Ninguém.” (p. 208).

Se é Lia quem lhe aponta uma reflexão incômoda, lamentando não ter tempo de lhe explicar melhor que se apaixonou por um fantasma - “Esse M.N., putz. Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai?” (p. 209) -, também é ela quem provoca a despedida mais sentida da personagem. Sabe que se lembrará dela como a vê, “[...] sem poeira e sem suor, olhando tudo de dentro de seu vago mundo” (p. 216).

2.2. Lia de Melo Schultz

Lia de Melo Schultz é filha de uma baiana e de um alemão, Herr Paul, ex-nazista transformado em Seu Pô, tranquilo comerciante apaixonado por Dona Diú. Parte de uma família grande, a garota mudou-se para São Paulo em um grito por espaço, encarnando Clarice: “liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” (LISPECTOR, 1992LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1992., p. 36).

Para ela, seu pai é nazista como poderia ter sido comunista, “[...] passional puro, capaz de vibrar por uma farda, um hino. Um alemão bastante louco. Quando descobriu que o nazismo não era aquilo que imaginara, correu tanto que veio parar em Salvador. Saravá, meu irmão!” (p. 236).

Lorena vê ambos seus pais em sua expressão e seu jeito de ser: remediando um comentário azedo com uma alusão a Che Guevara, ela assiste no derretimento da amiga seus dois lados complementares: “[...] a água nazista virou pomba, coqueiro, coqueiro de Itapuã, coqueiro! A mãe, Dona Diú, sorriu na rede” (p. 117).

Lia é militante comunista ativa. Estudante de Ciências Sociais reprovada por faltas, encontra-se diretamente envolvida nas atividades subversivas do chamado “grupo”, dedicando-se à formação intelectual de seus colegas - chegou, afinal, a São Paulo com O Capital mal escondido debaixo do braço - e às manifestações políticas e de violência.

Utiliza o codinome Rosa, em homenagem a Rosa Luxemburgo, e rasgou em pedaços o livro de ficção que vinha escrevendo, frustrada com a passividade dos intelectuais - “[...] comovidos demais para falar, só ficam sacudindo a cabeça e bebendo” (p. 32) - e com a desesperança na luta.

Pela referência indireta ao sequestro do embaixador americano Charles Elbrick por forças da extrema-esquerda (que resultou na liberação de quinze presos políticos brasileiros), deduz-se a fixação do romance no ano de 1969, e o namorado da garota, Miguel, é ficcionalmente um dos presos libertados. É essa libertação que a renova:

Apanho um pedregulho que aperto na palma da mão com tanta força, ô, ele resiste, posso ficar apertando até o fim dos tempos e ele intacto. Que alegria me dão as coisas que resistem assim. Guardo-o na sacola e agora sou eu que tenho de gritar para o sol, Miguel! Nós te salvaremos, mundo. Nós te salvaremos - repito e meu solhos estão nadando em lágrimas (p. 165).

A conversa mais franca que trava acerca de suas convicções é com Madre Alix, com quem se rende ao reconhecer que não a violência, mas a união de todos para o diálogo talvez seja a verdadeira revolução. Inflamada, pede licença para ler o depoimento de um operário que ousou distribuir panfletos em uma fábrica, e é nesse momento que a narrativa se abre, de maneira muito direta, para a torpeza da violência do regime: Lia lê com solenidade o relato que descreve a cena de tortura com pormenores, dos fios elétricos às surras, desejo de morte e humilhação, até a crueldade bárbara do pau de arara (p. 148).

É a única cena de teor documental da obra; o único momento em que a narrativa expõe vibrantemente e em detalhes a violência do Estado. Contudo, quando Lia dobra a folha, Madre Alíx a encara.

Os olhos cinzentos têm uma expressão afável.

- Conheço isso, filha. Esse moço chama-se Bernardo. Tenho estado muito com a mãe dele, fomos juntas falar com o Cardeal (p. 149).

O diálogo se encerra, após o atordoamento de Lia, com um pedido da Madre:

- Posso lhe dar uma epígrafe? É do Gênesis, aceita? - pergunta e sorri. - Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei. É o que você está fazendo - acrescentou. Hesitou um pouco. - É o que eu fiz (p. 150).

Lia, já tendo deixado a Bahia, encerra o romance deixando também o Brasil. Parte para a Argélia, onde se reencontrará com Miguel, e é nos planos esfuziantes desse futuro que se desenham também suas incertezas e renasce o impulso de sua saída de casa.

A despeito das más lentes com que vê a família tradicional que os pais buscavam para ela - “[..] noivado na sala e casamento na igreja, com vestido de abajur. Arroz na despedida. Os netos se multiplicando, embolados na mesma casa, casa enorme, tinha tanto quarto, não tinha?” (p. 34) - e que no fim a levaram a sair da Bahia, Lia se vê em conflito com sua própria vontade de família.

Percebe Miguel como uma pessoa mais racional, que já lhe disse que não deseja ter filhos, e, mesmo tendo concordado, em dado momento inveja a gata grávida e gorda que vê repousar no jardim do Pensionato, “[...] plena até a saciedade, tão penetrada e compenetrada da sua gravidez que não tem no corpo lotado espaço sequer para um fiapo de palha” (p. 217).

Entretanto,

[...] minha cara se tinge de vermelho quando me imagino puxando Miguel pra vitrina na liquidação de inverno. Fechando-o, gastando sua força e paciência com as quinquilharias do cotidiano, recusando a palavra de ânimo no seu dia de desencanto, presença negativa, não! Se for pra falhar como tantos falharam que os ventos soprem meu avião com toda força das suas bochechas pro mais agudo pico dos penhascos, todos os passageiros salvos menos uma jovem estudante baiana que se precipitou no abismo. Fim. (p. 219).

Imersa nos conflitos sociais que tanto deseja resolver, Lia questiona com veemência sua própria condição. Pensa de Lorena, “[...] uma boa menina. Ana Clara também é uma boa menina, eu também sou uma boa menina” (p. 32). Sabe que não se conforma com as regras sociais, mas mesmo as liberdades ofertadas pela revolução lhe parecem insuficientes: precisa de respostas adequadas a sua vontade de maternidade, sua ideia de romance, uma liberdade verdadeiramente plena.

Sua passagem pelo romance é como um furacão, destoado por inteiro da concha bem-organizada e muito limpa de Lorena. É ela, entretanto, quem vê Lia pelo ângulo mais acertado, no começo do romance de uma maneira que se desdobra até o fim: “[...] abriu o portão com um gesto desabrido, heroico, gesto de quem assume não o seu caminho, prosaico demais, imagine, mas o próprio destino (p. 235).

2.3. Ana Clara Conceição

Para Lorena, tudo está nos detalhes, principalmente as origens. “Sei lá as minhas”, Ana Clara lhe diz, entretanto. “Nem quero saber” (p. 24). Mas é na busca por essas origens que a garota (ironicamente apelidada Ana Turva) se desencontra, entre a fantasia e a dureza da vida que tenta a todo custo remediar.

A solução que encontra é um casamento com um homem rico, pois, “[...] com dinheiro e casada não precisaria mais de nenhuma ajuda, ora análise. Nenhum problema mais à vista. Livre. Destrancaria a matrícula, faria um curso brilhante. Os livros que teria que ler. As descobertas sobre si mesma. Sobre os outros” (p. 44).

De pai desconhecido, Ana Clara possui apenas um sobrenome e o fato lhe pesa; acha ser possível sua conquista com uma fortuna, convicta de que, com um saco de ouro, Pilatos jamais teria lavado suas mãos: teria arrumado um cavalo e Jesus fugido pelos fundos, com escolta até a fronteira (p. 88).

Acabou isso de nome, acabou tudo. Tempos novos minha boneca. [...] Rasgo a certidão com o pai não sabido e ignorado e quero só ver. Certidão nova, pago uma certidão nova com pai conhecido e sabido. Batizo meu pai para casar, não posso? Nome de imperador (p. 84).

Com a faculdade de psicologia trancada e em meio ao vício em drogas, possui um amante traficante de nome Max, outrora um jovem muito rico. Seu noivo, contudo, é outro: um homem a quem chama de escamoso, por quem sente profundo asco, e que lhe prometeu casamento apenas se fosse virgem - “[...] já andou com tudo quanto é vagabunda mas na hora. Bastardo. Está certo. Se você faz mesmo questão eu sou a própria” (p. 50).

O que Ana pretende é a realização de uma cirurgia de reconstrução de hímen, procedimento que Lorena se comprometeu a subsidiar. Conforme ela, “[...] em dezembro me costuro e em janeiro, Valdo faz o vestido. Quero branco.” (p. 45). O que a aflige, entretanto, é o medo de uma nova gravidez que se anuncia: já realizou um aborto em uma clínica clandestina antes, com a mão de Lorena na sua, e não está preparada para outro.

Crê-se destinada a uma vida melhor (se poderia mesmo dizer feliz), apoiando-se muitas vezes na própria aparência com um racismo flagrante:

Chega de pergunta, não está vendo meu cabelo ruivo? Minha pele? Tudo autêntico. Branquíssima. Bastante suspeita é a Lião. E mesmo a Loreninha com seus bandeirantes. Sacudo Max: - Você também é branco, amor. Não temos nada com esses subdesenvolvidos, somos brancos, está ouvindo? (p. 85).

A busca por uma imaginária superioridade vem de uma necessidade de autoafirmação a partir de sua infância paupérrima, em que, filha de mãe prostituta, sofreu também toda espécie de abuso físico, emocional e moral - “[...] eu era criança e os sacanas. Nem podia me defender nem nada, eu era criança.” (p. 134).

Assistiu à mãe se suicidar com formicida, possivelmente após tentar provocar outro aborto. Em diversas outras ocasiões, havia “[...] apanhado feito um cachorro e agora estava deitada e encolhida gemendo ai meu Jesus ai meu Jesusinho. Mas o Jesusinho queria era distância da gente” (p. 86).

Bacana os gloriosos contando nas entrevistas que na infância reviravam a lata com os ratos, muito bacaninha tanta autenticidade. Coragem, não? Bonito. Mas é preciso ter quatro carros na garagem e caviar na geladeira e uma vila na puta-que-pariu pra confissão ficar interessante. É preciso cuspir dólar pra ter graça a história do mascarado-cu-rasgado é preciso, Madre Alix, minha santa santa santa. Por enquanto ainda não. Quando me estruturar conto tudo, esconder onde. Sabe o que é se estruturar? Se forrar de orienhid (p. 91).

Orienhid é a palavra dinheiro ao contrário, simpatia de Lorena adotada pelas outras duas amigas. “Levaria as duas para a casa da praia, até que gostava bastante daquelas duas bestas. Gostava sim.” (p. 97). Especialmente de Lorena: “Uma esnobe, se acha especialíssima. Mas é minha amiga, como não.” (p. 176).

É Lia quem lhe questiona sobre o vício, e é a ela que retruca, na verborragia rápida de sua mente:

Picada sim e daí. Paro com tudo quando bem entender. Vou ser capa de revista. Me casar com um milionário. Fique aí embananada porque o ano que vem. Como sou boa posso ainda ajudar você e seus piolhentos ajudo todos. Dou uma casa pras suas reuniões, dou uma casa pra Loreninha que vai ficar sem nada com aquela mãezinha esbordoando a fortuna, não tem importância, não interessa. Resolvo tudo. Então fico verdadeira. (p. 91).

Nada disso é dito em voz alta, como a maior parte dos pensamentos de Ana Clara. Ela utiliza o termo roque-roque para sinalizar a tensão de sua mente rodando o tempo inteiro, traquinando, doendo e lhe trazendo coisas desagradáveis sempre: “[...] se pudesse lavar por dentro minha cabeça. Com escova. Esfregar esfregar até sair sangue” (p. 56).

Ana gostaria de ter uma avó como Madre Alix, pois “[...] ter uma avó como Madre Alix é ter um reino” (p. 39). Quando Lorena lhe dá para ler uma das cartas de M.N., julgada piegas e antiquada por Lia, sua reação é outra: “[...] na metade, parou. Os olhos cheios de lágrimas. ‘Gostaria de ser amada por um homem como esse, pomba’” (p. 206). E pede ainda a Max, entre lágrimas: “[...] me dá sua infância! Ele me dá sua língua. Escorrego e fujo não é isso” (p. 57).

Ao término da história, Ana Clara retorna de algum lugar indistinto ao Pensionato, muito suja, com marcas de violência no corpo e falando incoerentemente sobre o Coração Sagrado que acredita ter no peito. Lorena lhe dá banho, troca suas roupas e a põe na cama.

Depois de escapulir para falar com Lia, buscando despedir-se da amiga que partiria na manhã seguinte, Lorena retorna ao quarto e encontra Ana Clara silenciosamente morta. É este o clímax tão próximo do desfecho da obra: a absorção do impacto acaba por ter de ser feita, de maneira atordoada, por aquele que lê.

3. Posições femininas, percepções do direito

Profundamente diferentes umas das outras, as meninas de Lygia Fagundes Telles falam muito dentro do espaço cronológico reduzido da narrativa, de apenas dois dias. Para Tezza (2009TEZZA, Cristóvão. As meninas: os impasses da memória. Posfácio. In: TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Companhia das Letras: São Paulo, 2009., p. 208), o principal ponto de atenção da obra é justamente a limitação de cada um dos seus olhares: “[...] isto é, elas ‘sabem pouco’ e mais ou menos se perdem no pouco que sabem”. Cabe ao leitor, portanto, acompanhar os três olhares ao mesmo tempo e lhes atribuir um sentido conjunto.

De maneira alternada, as meninas nos revelam como, à época, as opressões sociais eram tão múltiplas quanto a opressão institucionalizada pelo próprio Estado. O divórcio, por exemplo, apesar de existente e pretensamente aceito, ainda se chamava desquite e causava o ostracismo social da mulher envolvida, com consequências muito menores para o homem. O racismo e a homofobia eram práticas do cotidiano; a virgindade feminina possuía um valor incomensurável; e a família tradicional era uma instituição de peso político, social e até mesmo econômico.

Em suma, a condição feminina estava marcada por valores profundamente sexistas, apesar das universidades; de uma internacionalização da moda; da música estrangeira (exposta, na obra, pelos discos de Jimi Hendrix de Lorena); dos discursos emancipatórios e da crescente projeção das mulheres no mercado de trabalho.

É Lorena Vaz Leme quem melhor articula esse arranjo de contradições e impossibilidades, refletindo sobre a troca do ser pelo estar. Com o apelido de Magnólia Desmaiada na faculdade e a despeito da futilidade que marca seu tom no romance, ela vê-se com muita clareza: “‘Sou tonta e fresca.’ Mas e se M.N. a levasse mais a sério? Incrível, mas quando nos levamos a sério ficamos seríssimos” (p. 104).

Em relação à sociedade que aceita (quase demanda) seu nome, sua doçura e sua pureza, e que agradece por sua complacência - inteligência quieta -, a garota desenrola sua teoria própria:

Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível. Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que vem a dar no mesmo). Ora, se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me desintegrando (essencial e essência) até a pulverização total (p. 192).

Lia de Melo Schultz, por sua vez, não cede: nem interna e nem externamente. Se Lorena se dissocia entre o que é e o que precisa ser, Lia busca ainda um espaço para ser plenamente. A um dos colegas de seu grupo subversivo, conta como se envolveu, na Bahia, com uma amiga; como se envolveram ao se inventarem namorados, em uma brincadeira que se tornou séria, tão séria. “Éramos demais envergonhadas, entende? Nos abraçávamos e nos beijávamos com tanto medo. Chorávamos de medo” (p. 130).

Ao fim, as mentiras que precisavam contar em função dos outros acabaram por contaminá-las: “[...] não éramos amantes mas cúmplices. Ficamos cerimoniosas. Desconfiadas. O jogo perdeu a graça, ficou amargo” (p. 130).

Em conversa com a mãe de Lorena, Lia traz um pouco mais de sua experiência ao afirmar a crueldade máxima que é se preocupar com a sexualidade dos filhos: “[...] um preconceito tão odiento quanto o racial ou religioso. A gente tem que amar o próximo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse” (p. 238). Conta que sua tia-avó ficou tão avariada com o peso do sexo que se refugiou em um convento; que sua tia fez tantas que virou prostituta. “O mesmo medo, o mesmo medo. Se a gente não tivesse mais medo” (p. 135).

A pressão de sua família para que tivesse um relacionamento heterossexual, se casasse e tivesse filhos, a levou a sair de casa: ante a perspectiva da fuga para Argélia, contudo, ideais revolucionários de independência (de uma suposta libertação dessas obrigações femininas tidas como burguesas) também cerceiam, de outro lado, sua vontade própria de maternidade e de liberdade sexual.

É nesse paradoxo que Lia resiste e tenta encontrar seu espaço de ser plenamente, decidida a construí-lo: a se reinventar e também a tentar tornar o mundo mais elástico, em construções novas de liberdade que, à época, sequer ainda tinham nome.

É com Ana Clara Conceição, entretanto, que a posição feminina no mundo - o ser, o estar, as expectativas de todos os ângulos - encontra uma condição derradeira: imersa em uma situação de vulnerabilidade e pobreza desde o começo de sua vida, Ana Clara é a vítima mais direta de violência no romance.

De maneira narrativamente disfarçada - “Loreninha diria sutil” (p. 86) -, Ana é vítima de dois estupros no intervalo curto da obra, um perpetrado por Max, seu namorado, e outro por um homem que a encontrou perdida e sob efeito de entorpecentes em um restaurante.

Sua narrativa interna é entremeada pelos traumas de abusos sexuais, verbais e físicos que sofreu desde a infância. Desejada por seu apelo sexual e paradoxalmente valorizada por sua almejada virgindade, bem como atormentada pela necessidade de se ter nome e dinheiro (este último, ela acredita, capaz de comprar todo o resto) para ser independente, Ana Clara está trancafiada em um cenário social que a aprisiona de maneira muito parecida com a de sua própria mente. Sua morte trágica ao fim do romance sinaliza sua impossibilidade de sequer existir:

Lião vive pregando que a sociedade expulsa o que não pode assimilar. Ana foi expulsa pela espada flamejante, disse que tinha um florete no peito mas não era um florete, era uma espada. O que dá no mesmo. Coexistência pacífica, ensinam os ensinantes. E na prática. (p. 249).

É a partir das suas respectivas posições femininas no mundo, porém, que cada uma das personagens principais deixa escapar uma percepção específica do Direito, mesmo que, num primeiro lance, a obra aparente pouco retratar acerca do seu funcionamento. Com efeito, na medida em que a maior parte do enredo se desenrola no interior de um pensionato, no espaço íntimo das meninas, o fenômeno jurídico, enquanto forma neutra exterior, parece ali penetrar apenas pelos seus expedientes usuais de controle por omissão.

Não sem razão, quase todas as referências externas lá chegam com algum grau de imprecisão e de incompletude. O que se passa no espaço público é relativamente desconhecido e impronunciável. Em tempos de censura e terror, os quartos, santuários, se tornam o único lugar concebível de expressão: “Sim, Pensionato Nossa Senhora de Fátima, nome acima de qualquer investigação” (p. 21). O cenário é de onipresente insegurança. Mesmo aquele ambiente feminino, dirigido por freiras, carrega algo de ambíguo: escapa à dominação; reforça-a.

É nesta zona cinzenta de fuga e controle, liberdade e autoridade, voz e silêncio, no entanto, que um processo coletivo de tomada de consciência das meninas paulatinamente ocorre, catalisado pela articulação crítica das suas diferentes experiências particulares. De certa forma, dentro da pensão, “asilo (in)violável”2 2 “E como mãezinha ia na frente e Irmã Priscila se ocupava em fechar a janela, ele aproveitou e passou a mão na minha bunda.” (p. 26) , elas encontram-se fora do alcance das leis, embora não plenamente ilegais. Nada melhor, portanto, para compreender a situação jurídica das meninas, do que atentar para a sua vida pessoal. Daí a perspectiva feminista da obra que, mais do que relatar, integra o expediente de conscientização das meninas, descortinando o que há de errado até mesmo nos eventos mais usuais do seu cotidiano (MACKINNON, 2016MACKINNON, Catharine A. Feminismo, marxismo, método e o Estado: uma agenda para teoria. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 798-837, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.18647.
http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.1864...
, p. 826-829).

Lorena, à sua maneira, jurista em formação, é quem mais explicitamente reflete sobre o Direito, embora nela já se perceba um conflito entre um Direito real e um Direito ideal.

“Intelectual burguesa” (p. 44), ela encarna a figura típica do bacharelismo brasileiro, produto dos cursos jurídicos do país (cf. ADORNO, 2019ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: Edusp, 2019., cap. 4). Oriunda de uma família rica, integrante da elite nacional, apaixonada por latim, carrega os traços inconfundíveis que marcam o perfil específico do bacharel em Direito: de um lado, o cultivo de uma erudição linguística, representado pelo emprego de um “palavreado pomposo, sofisticado e ritualístico”; de outro, a adesão a um conhecimento ornamental, marcado por uma profunda ignorância das questões sociais (WOLKMER, 2002WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002., p. 99-100).

Sua cultura liberal espelha uma concepção jurídica idealizada, marcada pela contemplação e pela passividade. O modo como se enxerga - “Diz que é contemplativa passiva” (p. 175) - prefigura o seu retrato ideal de Direito. O liberalismo jurídico adotado traduz-se em ao menos quatro notas conjugadas: a) distância em relação à realidade social; b) indiferença ao estado jurídico de coisas; c) desejo de segurança; e d) culto ao código.

Em primeiro lugar, é Lorena quem reconhece o abismo que a separa da cidade e do seu povo, com o qual nitidamente não se identifica. Protegida em sua posição privilegiada, a realidade social é encarada de uma perspectiva remota, como a do Estado liberal, que, tendo supostamente estabelecido as condições mínimas para a sua reprodução autônoma, a acompanha sempre à distância3 3 “Contra todas as possíveis formas de Estado absoluto, o Liberalismo, ao nível da organização social e constitucional da convivência, sempre estimulou [...] a autonomia da sociedade civil como autogoverno local e associativo ou como espaço econômico (mercado) e cultural (opinião pública) no interior do Estado não diretamente governado por ele.” (MATTEUCCI, 2016, p. 700-701) . Ensimesmada em seus próprios dilemas de moça burguesa, as questões socais da massa não lhe importam, ainda quando se trate de desafios como o da libertação da mulher:

- Nome, por favor.

- Lorena Vaz Leme.

- Universitária?

- Universitária. Direito.

- Pertence a algum grupo político?

- Não.

- Por acaso faz parte de algum desses movimentos de libertação da mulher?

- Também não. Só penso na minha condição.

- Trata-se então de uma jovem alienada?

- Por favor, não me julgue, só me entreviste. Não sei mentir, estaria mentindo se dissesse que me preocupo com as mulheres em geral, me preocupo só comigo, estou apaixonada. Ele é casado, velho, milhares de filhos. Completamente apaixonada.

- Uma pergunta indiscreta, posso? Você é virgem?

- Virgem (p. 160).

O olhar de Lorena para a realidade social assemelha-se ao regard de surplomb da Casa-grande em direção à senzala. O liberalismo importado, que adota ex professo, não constrange seu enraizado e inadmitido patrimonialismo (SCHWARZ, 2007SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2007., p. 11-31). Lorena sente nojo dos membros da população. Lida com eles como quem não só está de fora mas também está de cima: “Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza.” (p. 59). Tal a(l)titude contemplativa, que estabelece uma radical separação entre as classes de cidadãos, “os que olham” e “os que são olhados”, numa clara distinção entre os titulares de uma sobrecidadania e os portadores de uma subcidadania (v.g.,CARVALHO, 2008CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. e SOUZA, 2003), é acompanhada de uma postura de passividade, marcada pela inação, pela não-ingerência e pela não-intromissão, características que bem definem a opção por um Direito espectador. Deixa-estar; deixa-fazer... Olha, mas não age: “Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite! passa de testemunha para participante” (p. 59).

Precisamente porque se distancia das mazelas que atormentam a sociedade brasileira, encastelando-se em si mesma e apartando-se do outro, é que Lorena tende a encarar o Direito como um instrumento de conservação do status quo. Sua antipatia à militância, seu pavor de revolução, sua repugnância pelo suor (p. 105) etc. somente corroboram sua preferência pela manutenção do estado jurídico de coisas, que praticamente não a incomoda: “Não sei até quando a gente vai ter que carregar esse povo nas costas, [...] estou pensando ainda que se Deus não está lá é porque deve ter suas razões.” (p. 23) De tal forma, Lorena é mais um produto cultural da academia jurídica paulista, responsável pela formação ideológica de uma intelligentzia defensora dos postulados liberais, mas pouco afeita aos princípios democráticos: liberdade! Sem igualdade... (ADORNO, 2019ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: Edusp, 2019., p. 85-87 e 174-175).

Sentindo-se frágil, delicada e indefesa, bem ao molde das qualidades femininas socialmente construídas e estereotipadas4 4 “Pesquisas sobre os papéis sexuais, baseada no insight de Simone de Beauvoir segundo o qual ‘não se nasce mulher, torna-se mulher’ revelaram um processo complexo: como e o que se aprende para se tornar uma. Foi percebido que o gênero, olhando através das diferentes culturas, é uma qualidade aprendida, uma característica adquirida, uma condição atribuída, com qualidades que variam independentemente da biologia e com uma ideologia que as atribui à natureza. A descoberta de que o arquétipo feminino é o estereótipo feminino expôs “mulher” como uma construção social. Sua versão contemporânea na sociedade industrial é dócil, suave, passiva, que se ocupa dos demais, vulnerável, fraca, narcisista, infantil, incompetente, masoquista e doméstica, feita para o cuidado dos filhos, da casa e do marido. O condicionamento a esses valores invade a criação das meninas e os modelos que se impõe às mulheres.” (MACKINNON, 2016, p. 819) , ela precisa da lei como aparato de proteção. Para Lorena, ser livre é estar segura. Por isso, ela engendra um processo psicanalítico de transferência que procede da figura do pai para a do amante5 5 “— Esse M.N., putz. Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai?” (p. 209) , e da figura do amante para a da lei, todas de natureza patriarcal6 6 “[...] embora as leis e as regulamentações, as normas superiores e as disciplinas triviais proliferem, a necessidade de reportá-las a uma pessoa ou a um texto autoritário atesta esse desejo de um Pai, ou de um legislador, que está fora de sua ação e a infunde com sua majestade e justiça ou, em termos psicanalíticos, com seu caráter sem lacunas e fechado.” (DOUZINAS, 2009, p. 334) . Como se fosse de biscuit (p. 123), o que espera das normas de conduta é que a guiem com o resguardo e a confiança transmitidos por M.N. no volante: “Fiquei à vontade ali com ele. Seu estilo de guiar também me impressionou, nunca me senti tão segura num carro.” (p. 195) Também em Lorena, o Estado liberal é um Estado guardião...

Seu juridicismo liberal a conduz, por outro lado, a um certo culto ao código. Com frequência, o relato da obra flagra Lorena lendo e repetindo trechos da lei e dos tratados jurídicos (p. 193 e 200, v.g.). Ela lê, fecha os olhos... Tendo gravado palavra por palavra, sorri: homologamente a Stendhal, que lia alguns parágrafos do Código Civil pour prendre le ton (HAFT, 2002HAFT, Fritjof. O estilo dos juristas. In: KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Caouste Gulbenkian, 2002, p. 304-310., p. 304), Lorena lê o texto seco e, para o regozijo de Napoleão, ainda se excita (p. 155). Elevando ao máximo a pretensão de completude das codificações modernas (HESPANHA, 2005HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteaux, 2005., p. 376-378), a estudante de Direito chega ao cúmulo frustrado de intencionar, com base num dispositivo legal sobre responsabilidade civil, resolver seu problema amoroso: “‘Perdas e danos’, repetiu Lorena procurando a própria imagem no espelho. [...]. ‘Isto é uma norma, meu amado. Norma jurídica. Por negligência sua perdi a alegria’, pensou enquanto se enrolava na toalha.” (p. 200)

Também para ela, o constructo jurídico só pode ser obra de uma positivação da razão ou do que ela chamaria sutilmente de um “amor cerebral” (p. 64). Ordem, limpeza, segurança... são mais do que atributos psicológicos da gens lorenensis: integram a constelação de valores do espírito moderno (cf. BITTAR, 2009BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade e reflexões frankfurtianas. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 53-67), que Lorena procura encontrar no universo jurídico: “[...] tudo calminho nas gavetas” (p. 155).

Tal parece ser a concepção ideal de Lorena acerca do Direito, que aos poucos, porém, é sacudida por laivos de realidade, como quando expressa a opinião, apresentada em termos de uma constatação universal, de que estudar o jurídico, materializado nas leis, talvez a tornasse “uma psiquiatra maravilhosa”:

Os loucos reinando sobre os vivos e mortos. Dominarão os poucos que conseguirem segurar as rédeas da loucura, quais? Pulmões e mentes poluídas. Importante papel está reservado aos psiquiatras. Aos profetas, acredito ainda mais nos profetas. Acho que eu seria mais útil se estudasse Medicina, de que vão adiantar no futuro as leis se agora já são o que se sabe. Uma psiquiatra maravilhosa. (p. 192)

Num mundo de loucos, uns mais, outros menos, mas todos definitivamente loucos, a função legal reside justamente em conservar a loucura num patamar razoável: “Os loucos menos loucos, esses que nem a gente. Uma neurose que não chama muita atenção porque faz parte. Enquanto o neurótico puder trabalhar e amar nessa loucura razoável, qual é o problema?” (p. 145-146).

O preço que se paga à administração jurídica da loucura é o da desintegração da personalidade. Como já dito, na cidade, onde o Direito dita as regras do jogo, não se é, mas se está. O resultado de uma multiplicidade de regras é a constituição de sujeitos jurídicos parciais, institucionalizados em papeis sociais que definem seus respectivos limites e possibilidades de ação. Numa metáfora espetacular, que bem poderia ter sido empregada por Foucault, Lorena descreve o mecanismo pelo qual o estabelecimento do normal é mediado pela atuação da norma7 7 Márcio Alves da Fonseca (2012, p. 149) identifica como, para Michel Foucault, os processos de normatização legal e normalização, se bem que inconfundíveis, estão mutuamente “engavetados”: “E a descrição desse ‘engavetamento’ só poderia ser feita a partir da consideração de dois conceitos: a ‘normatividade’ da lei e a ‘normalização’. Enquanto o primeiro, apesar dos ‘movimentos’ que envolve, está sempre referido a limites e interdições, ou seja, ao plano de um ‘dever-ser’, o segundo reporta-se às noções de ‘média’ ou ‘medida’, estando referido ao plano do ‘ser’. De um lado, a ‘normatividade’ da lei responde aos critérios de ‘medida’ dados pela norma. De outro lado, a norma se reporta às formas da lei para atuar concretamente. [...] Desse modo, vê-se o ‘deslizamento’ recíproco entre a normatividade da lei e os mecanismos da normalização.” : “O chato é que o pensamento delirante, tão lindamente desgrenhado acaba penteadíssimo. Triunfo das normas de conduta” (p. 157).

Por seu turno, o modo de Lia enxergar o fenômeno jurídico é revirando pelo avesso o Direito “lorenense”. Desde logo, o campo de percepção se altera uma vez que se inverte a perspectiva: do idealismo de Lorena ao materialismo de Lião.

Contrariamente à postura distante e inerte de Lorena, Lia está mergulhada nos conflitos da sociedade. Sempre ocupada com “coisas mais importantes” fora do pensionato (p. 139), é curioso que boa parte daquilo que se conheça acerca dela seja dito por Lorena. Rosa opõe à distância a sua militância. É militante comunista. É militante feminista. É militante da causa de todos os oprimidos: homossexuais (p. 238), negros (p. 118), índios (p. 139) - o rol seria maior se no livro coubessem mais páginas. Seu único preconceito “é contra o mau-caráter” (p. 135).

Sua imersão na cidade abre os olhos para os disparates de um país subdesenvolvido: na parte de cima, uma burguesia soberba, avarenta e gulosa (p. 72); na parte de baixo, crianças moribundas, analfabetos, favelados, retirantes, ambulantes etc., tudo isso que, como lixo e sujeira, precisa escorrer nos bueiros ou ser descartado nas privadas até o destino do bem longe (p. 137). Desigualdade escancarada, Lião não pode coadunar com um Direito-conservação. Sem acreditar em caridade (p. 146), sua opção é pela revolução: “Não consigo mais ficar sentada, me levanto. Assumo o risco.” (p. 148)

Lia, portanto, opera no sentido da atingir a quebra do arcabouço jurídico-político consolidado, com sua transformação radical. Embora não se possa encontrar uma posição nítida na obra, a personagem parece transitar de uma postura marxista original, que postula pela abolição do Estado e da forma jurídica que lhe corresponde (vide, p. ex., MARX, 2001MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. In: MARX, Karl; ENGELS, Friecrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 85-131., p. 108), para a defesa de um Estado Democrático de Direito: “Confesso que estou mudando, a violência não funciona, o que funciona é a união de todos nós para criar um diálogo” (p. 148).

É neste momento que Lia desconstrói o liberalismo jurídico advogado por Lorena, denunciando a sua camuflada face autoritária. O alegado Estado guardião, salvaguardador das liberdades, protetor dos indivíduos, é quem mais gera insegurança: “- Segurança? Mas quem é que está em segurança?” (p. 147). O Estado que guarnece, que distribui direitos subjetivos negativos, é também o Estado que primeiro tortura, depois mata8 8 Como relatou Izabel Fávero à Comissão Nacional da Verdade (2013, linhas 152-159; 168-170): “Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um carma, a gente, além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era ‘puta’, ‘menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta’, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja. [...] Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou obviamente um desequilíbrio.” ... O período é de ditadura. Lia não sente medo do “povo”, mas de quem o governa.

Os códigos certamente não passam, para ela, segundo suas lentes marxistas9 9 “Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel [...] compreendida sob o nome de ‘sociedade civil’. [...] A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política [...].” (MARX, 2008, p. 47) , de meros reflexos da infraestrutura social: “A estrutura social. Segundo Lia, a única responsável era a estrutura social” (p. 107). Lião não se excita, mas provavelmente se irrita, com eles. Os códigos jurídicos espelham os códigos sociais. “‘O mundo do burguês é o mundo das aparências’, Lião repetiu não sei quantas vezes” (p. 195). Na sociedade, os homens, reduzidos às mercadorias que pensam transportar, mas que, na realidade, os transportam, apresentam-se todos mascarados em disfarces juridicamente estilizados e codificados. O jeito é romper com os padrões. Com a protagonista militante, os papeis sociais sancionados comissiva ou omissivamente com o selo legal são implodidos em sua configuração habitual. Com efeito, a cena em que Lia ensina Pedro a beijar (p. 137) colapsa o modelo masculino de ação, segundo o qual “[o] homem fode a mulher; sujeito verbo objeto” (MACKINNON, 2016MACKINNON, Catharine A. Feminismo, marxismo, método e o Estado: uma agenda para teoria. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 798-837, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.18647.
http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.1864...
, p. 834).

Contudo, é Ana Clara quem mais parece sentir na pele os efeitos de um Direito que, não se assumindo testemunha nem participante do “espetáculo social”, chancela, em seu indiferentismo legal, tudo o que se passa a seu pretenso despeito.

Mais do que uma oposição verso-anverso, que marca o estatuto relacional de Loreninha e Lião, um regime de separação absoluta é o que define a disposição espacial preliminar entre Lorena Vaz Leme e Ana Clara Conceição. Com efeito, se se atentar ao contexto principal da obra, logo se nota que a menina de um sobrenome só não era para estar ali. Sua presença no pensionato, que não tem condições de custear, constitui uma espécie de invasão - quebra a longitude que Lorena gostaria de preservar. De certo modo, a “intrusa” representa tudo o que a elite patrimonial brasileira mais abomina: Aninha é pobre. Se bem que aguçados para a desigualdade social, o que os olhos descrentes de Lião não conseguem perceber, porém, são seus traços bíblicos de órfã e de estrangeira. Carente de pai, ausente não só do seu documento de identidade..., e também de pátria, já que de raízes ignoradas, está lançada numa situação de completa derrelicção: “Mas não é mesmo impressionante? Ana Clara não ter nenhum parente, ninguém no mundo, ninguém!” (p. 268).

É assim que, de uma condição deserta, a menina é arrastada para um estado quase de inexistência, que ela confunde com liberdade:

Como a gente é escondida. E como é livre. Por que aquela tonta fala tanto em liberdade, pomba. A gente é livre olha aí ninguém sabe o que tenho no bolso. Ninguém sabe o que estou engolindo. Milhares de pessoas em redor e ninguém. Só eu. Agora mesmo neste minuto uma porrada de gente está matando outra porrada e quem é que está sabendo (p. 185).

Por intermédio de Ana Clara, a percepção idealista de Lorena se desanuvia: o que esta entende por distância não passa de um termo brando para a dureza do abandono. Sem que precise tocar explicitamente em qualquer assunto jurídico, o Direito se faz presente nas falas da personagem por intermédio de um eloquente silêncio a seu respeito. Como poderia discorrer sobre aquilo que desconhece? Despossuída em toda a sua extensão, dá a si mesma como atestado do que produz um Direito ausente - aquilo que se pode chamar de uma vida precária: uma vida que não conta como vida, uma vida que não conta como humana, uma vida que não se conta... (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 40).

É seu namorado quem dá prova do tipo de identificação que está em jogo. Quando a chama pelo apelido supostamente carinhoso de “Coelha” (p. 36, v.g.), reafirma o seu estatuto infra-humano: o de um “animal que transa”. Encarada como animal disponível para a cópula, a menina, tolhida de humanidade, é também tolhida de direitos, até mesmo dos mais básicos, como o direito de dormir: “Por que nunca posso dormir o quanto quero? Por que tem sempre alguém me cutucando, vamos fazer um amorzinho vamos fazer um amorzinho?” (p. 37)

Embora não seja cega ao problema da justiça (p. 83), inclusive demonstrando, por vezes, uma afinada consciência social, como em suas reflexões sobre a miséria, sem mais pretender mudar profundamente o estado jurídico de coisas, agredida que foi já demasiadamente, o que quer é algo ao mesmo tempo muito mais simples e muito mais complexo - o direito de ser feliz: “Estou cheia de agressão que pra meu gosto já fui demais agredida. Agora quero agrados presentes. (...) quero ficar boba. Uma louca aquela lá com as reivindicações.” (p. 49)

Seu desejo de ser feliz, de caráter exclusivo e individual, bem a molde do direito subjetivo construído pelos juristas modernos (cf. VILLEY, 2005VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 250 e ss.), não implica, portanto, uma transformação na realidade coletiva de outras pessoas: a dos milhares de Anas espalhadas por aí (p. 103). Ana Clara quer ser Lorena (p. 133). Para ela, o único caminho é o da riqueza: a “felicidade” está na “liberdade” da “segurança” financeira (p. 45), ainda que à custa de uma dependência ou de uma nova anulação: a de ser “englobada jurídica e politicamente pelo marido” (DAMATTA, 1997DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 111).

Não incluída nos códigos legais senão mediante uma deliberada omissão, sua saída para entrar no universo do Direito, fadada ao fracasso, é a de se casar com um homem rico e proprietário, titular de direitos e cujas ações interessam ser positivamente reguladas, mesmo se o seu tipo abstrato de sujeito jurídico contrasta com o seu tipo concreto de sujeito escamoso. Sem qualquer reverência para com o sistema de normas que a deixa de fora de qualquer aparato de proteção e que apenas a alcança diretamente quando se trata de estabelecer proibições ou obrigações, Ana Clara não demonstra temer violá-lo, como no caso do aborto clandestino, nem o instrumentalizar, como na hipótese do casamento arranjado.

Para o ordenamento, a rigor, é como se ela não existisse - como se Ana Clara fosse Ana Turva... Enquanto Lião expõe o autoritarismo implantado no seio do Estado liberal brasileiro (videADORNO, 1995ADORNO, Sérgio. A violência na sociedade brasileira: um painel inconcluso em uma democracia não consolidada. Revista Sociedade e Estado, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 299-342, jul.-dez. 1995.), denunciando sua violência comissiva que salta aos olhos sobretudo nos períodos de exceção, o corpo ferido - e também o cérebro atordoado - de Aninha testemunham os efeitos sobremodo materiais da sua violência omissiva em tempos de “normalidade”: quando o Estado se retira, os homens fazem a festa...

Para além dos extremos representados por Loreninha e Lião, isto é, não se encaixando na direita nem na esquerda, não se enquadrando como burguesa muito menos como revolucionária, não se acomodando no estereótipo feminino da mulher forte tampouco no da mulher frágil, Ana Clara é uma espécie de terceiro termo excluído da lógica. Num extremo acima das fáceis polarizações, rasgando os papeis sociais juridicamente institucionalizados, encontra-se num terreno próprio, que é o da mais absoluta alteridade. Em seu ambíguo infinito, ao tempo em que se entrega, igualmente se evade:

Ana Clara é a única que se deu sem reservas. Pois diante dela me sinto tão inútil quanto diante de vocês, reduzida como estou a um gravador, gravo o que me diz, aceito a carga, mas quando procuro influir, mudar o que deve ser mudado ela me escapa como uma enguia. (p. 144).

Bem entendido, a menina está retirada do mundo burguês das aparências. Seu rosto pasmo, afundado, estático é a cara da morte. Está morta por dentro e minguando por fora. Por isso, a tentação de Lorena, ao final substituída pela obrigação de lhe conferir uma morte digna, é a de matá-la em definitivo (p. 167): “[...] o rosto do outro, na sua precariedade e na sua indefesa, representa para mim ao mesmo tempo a tentação de matar e o apelo à paz, o ‘não matarás’” (LEVINAS, 1995, p. 145). O desfecho da obra representa apenas a consumação de um crime que se executa a cada dia sob o manto legal: moças morrendo; rapazes matando. Podendo e devendo agir, o Estado, inerte, torna-se cúmplice: “Precisava fazer alguma coisa. Mas o quê? Ser compreensiva não era ser conivente?” (p. 107).

Certamente, no âmago de um Estado conivente, serão mínimas as consequências jurídicas do homicídio de uma menina morta, encontrada assim no espaço público, que não é sequer considerado espaço de mulher (cf. VENTURI; GODINHO, 2013VENTURI, Gustavo; GODINHO, Tatau (Orgs). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Perseu Abramo; SESC, 2013.). Menina drogada, dando sopa na praça, só pode ser puta! - diriam os juízes da zona sul alheia. Por isso, o epílogo é uma espécie de chamado à união das meninas, especialmente de Loreninha e Lião, de ideologias a princípio contrárias, em torno da causa feminista. Uma conciliação de posições distintas do mundo feminino ocorre alicerçada numa experiência de luto pela perda de uma delas. É então que o título abre a radicalidade do seu sentido: mais do que um relato individualizado de cada uma das protagonistas-narradoras, a obra trata de um “nós” ou de um “nó” que se tece apesar e a partir das diferenças: “Acho apenas que você nunca será como eu e eu nunca serei como você, não é simples? E não é complicado?” (p. 216). Na realidade, o que está em causa no artigo definido indicativo do feminino plural é um pronome pessoal. O fio perdido restabelece a consciência do laço que as une: não só o luto, também a luta é conjunta. Não é preciso que todas estejam em plena sintonia no campo teórico para que congreguem forças ativas em face da violência perpetrada legalmente contra as mulheres (BUTLER, 2019BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Tradução de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 42 e 70).

De um modo ou de outro, todas se encontram em alguma condição não completamente legal: “- Você não estuda Direito? Putz, sabe que estamos ligeiramente ilegais, não sabe?” (p. 275). Desde logo, estão de algum modo fora do alcance das leis na medida em que a elas está reservada a esfera particular, da pensão, da casa, do quarto etc., lugares em que o Direito deliberadamente não se mete sob o fundamento jurídico da autonomia privada, outro nome para o domínio do homem, seja ele Deus, pai, marido, companheiro, amante, namorado etc.

O artifício é bastante efetivo: na medida em que o império masculino já está socialmente estabelecido, desnecessário é que a lei institua por decreto a desigualdade entre os gêneros (MACKINNON, 1995MACKINNON, Catherine A. Hacia uma teoría feminista del Estado. Tradução de Eugenia Martín. Madrid: Cátedra, 1995., p. 293). Por meio da sua não interferência, o Estado se legitima e ainda permite a reprodução do status quo (MACKINNON, 1995, p. 292). O Estado negativo, que protege os cidadãos contra ele próprio, não os resguarda uns contra os outros. No âmbito particular, só o homem é efetivamente livre; nele, todo tipo de abuso contra a mulher acontece e ninguém se intromete. Daí a afirmação precisa de Catherine A. MacKinnon (1995, p. 301): “O âmbito da liberdade privada dos homens é o âmbito da subordinação coletiva das mulheres.” Enquanto as coisas acontecem como se quer, isto é, sem que nenhum embargo sério as coloque sob questão, despiciendo é que se as ratifique mediante dispositivos legais expressos. “A lei só tem que estar presente passivamente, refletindo a cena que se desenrola.” (MACKINNON, 1995, p. 300).

O Estado liberal, portanto, não se confunde apenas com o Estado que se afasta da sociedade a fim de permitir que as relações econômicas ocorram sem intervenção. Lorena teme sua participação social. Prefere estar em casa porque na sociedade ela se desintegra. O Estado de contornos liberalizantes aprisiona a mulher no seio doméstico. Ali, porém, no círculo da intimidade, onde tudo tende a ficar entre quadro paredes, à distância do Grande Irmão, há um seu representante, livre para dispor sem nenhum pudor do sexo oposto. O Direito contemplativo passivo nem precisa fechar os olhos: basta tapar os ouvidos. Está tudo permitido! Neste sentido, a bem dizer, as meninas estão todas, sob algum aspecto, numa zona de indiferença legal.

Indubitavelmente, não obstante, as relações que cada uma das meninas trava com o universo jurídico não estão regidas por um isomorfismo.

Lorena, pela classe em que está inserida, acha-se num estado de menor ilegalidade do que as demais. Integrante de um país em que os vínculos pessoais determinam o peso de incidência da lei (BITTAR, 2014BITTAR, Eduardo C. B. O Decreto nº 8.243/2014 e os desafios da consolidação democrática brasileira. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 203, ano 51, p. 7-38, jul./set. 2014., p. 10-11), ela pode se considerar menos afetada: “Um jurista parente da Lorena, todos os juristas são parentes dela” (p. 183).

Lia, por sua vez, numa posição intermediária, estaria melhor não fosse sua postura crítica diante do estabelecido, que a conduz a um estatuto contra legem. Sua opção revolucionária a coloca inevitavelmente nos interstícios da legalidade. Está situada precisamente naquele ponto em que a única forma de instituir uma ordem nova, pela destituição da antiga, implica apoiar-se em procedimentos, senão ilegais, cujo caráter não se pode considerar jurídico (TELLES JR., 1955TELLES JR., Goffredo da Silva. Resistência violenta aos governos injustos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 50, p. 192-219, 1955. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66228. Acesso em: 14 fev. 2021.
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/artic...
, p. 217-218).

Ana Clara, por fim, é quem está mais apartada de todo aparato legal. Sua existência jurídica tem um aspecto espectral. Afinal, Aninha existia ou tudo não passava de uma grande loucura? Nas suas nódoas roxas à altura dos seios, pode-se enxergar as marcas concretas de um Direito ausente e que mata por contumácia.

Duro? Com as mulheres! Com os homens? Um tanto quanto frouxo... Num espasmo de lucidez, Lorena arremata:

“Sabe muito bem”, pensou Lorena apanhando na estante o tratado de legislação social. Agitou-o fazendo farfalhar as longas tiras de papel que marcavam as páginas. Leu as anotações na extremidade de uma das fitas. Debruçou-se na janela e ficou olhando o jardim. O Direito nasceu espontâneo como aquelas florinhas brotando no meio do mato. “Mas vieram os homens cavilosos e complicaram tudo com suas cavilosidades”, pensou arrancando outra fita de dentro do livro. Leu-a com atenção e picou-a em pedacinhos miúdos como confete. Soprou-a na palma da mão. “Jesus era caviloso? Imagine. Os que vieram depois é que fizeram aquelas caras espertas e inventaram a sed lex.” E que no fundo não é tão dura assim. Com Madre Alix aprendera essa palavra, caviloso. “Esse seu gato é tão caviloso”, ela disse apontando Astronauta, que nesse momento exato começou a fazer a toalete das partes. Foi ao dicionário: capcioso, manhoso, sofista. (p. 154).

Nas últimas décadas, certos avanços foram promovidos no plano jurídico como forma de enfrentamento à desigualdade de gênero, por força de movimentações maciças de mulheres, ao redor de todo o mundo, por condições de vida mais igualitárias e mais justas. O sistema-mundo moderno, no entanto, que reforça a submissão das mulheres e conserva representações e símbolos que perpetuam a opressão feminina, não pode ser modificado apenas pelo Direito (cf. PALAR; SILVA, 2018PALAR, J.V.; SILVA, M. B. O. O direito como instrumento contra a opressão feminina. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 2, pp. 721-248, 2018. ISSN 2179-8966. DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2017/25258.
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2017/2...
).

Trata-se, afinal, de uma opressão articulada não somente no plano jurídico, mas também na esfera do político e do ideológico, capaz apenas de ser rompida por uma reconstrução do próprio conceito de poder, dissociado da ideia de dominação e controle sobre terceiros para que se ressignifique dentro de um mundo em que hierarquias não sejam a base das relações humanas, como proposto por bell hooks (2019).

Especialmente no avanço de forças conservadoras e totalitárias, redobra-se a necessidade de atenção. Como relata Pedro, um dos colegas revolucionários de Lia: “- Acho que tenho mais medo da gente lá de casa do que da polícia. Meu irmão mais velho faz parte daquela onda de tradição e família, você precisa ver como ficou histérico. Morro de medo dele” (p. 134).

O resgate contemporâneo de uma narrativa antiga, em que se supervalorizam as simbologias e os discursos da família, da igreja, da submissão feminina, da repressão e da autoridade (de figura masculina e violenta), bem como de todos os seus valores implícitos e correlatos, não significa apenas um questionamento dos avanços, mas, principalmente, também uma ameaça a eles.

Nesse cenário, apesar de ser impossível ao Direito corresponder sozinho a todas as emancipações e mudanças sociais necessárias, é, por outro lado, incontestável seu papel na preservação das premissas de um espaço político-jurídico em que se busquem as melhores e mais adequadas formas de tutela da dignidade humana - por mais desafiadora que seja sua oposição ao poder estatal, ao qual está intrinsecamente ligado, mas também ao qual não se reduz.

Considerações finais

Em meio a um contexto tão repressivo e homogeneizante, as meninas de Lygia Fagundes Telles encarnam a condição feminina de formas muito distintas. Enquanto Lorena assume, em alguma medida, seu papel no cenário repressor e burguês em que concebida, escondendo para si suas próprias impressões, Lia busca, por outro lado, por meio da militância, da luta e da filosofia, a abertura de um caminho alternativo para existir, com independência e liberdade, a partir da transformação da sociedade e das pessoas.

De alguma maneira tão próxima e tão distante das duas, Ana Clara, por sua vez, confere nome e rosto à tragicidade das mulheres que, por inúmeras razões, tornam-se diretamente mais vulneráveis à violência dos homens e das estruturas sociais de subjugação, impossibilitada, por derradeiro, até mesmo de existir.

Por meio de uma análise do direito na literatura, o romance revela, todavia, não só um retrato delicado da vida feminina no período da ditadura civil-militar, mas, principalmente, percepções críticas complexas acerca do fenômeno jurídico pátrio, atravessadas pelo olhar marginalizado das personagens.

Visto pela sensibilidade de Lorena, o Direito se revela como expressão institucional da própria autoridade paterna - que tanta falta faz à personagem e que ela busca suprir, com demasiado afinco, apegando-se ao latim, aos ritos, às idiossincrasias jurídicas. Colocando-se em uma posição de confortável altitude, Lorena encara com lucidez o Direito apenas em raras ocasiões, por meio de relampejos de clareza, sem que fique inteiramente claro até que ponto a personagem é, e até que ponto está, em um jogo de expectativas e espelhos muito bem internalizado pela filosofia lorenense.

Em sentido diametralmente oposto se encontra a percepção de Direito de Lia, que o encara, com os olhos muito fixos, a partir da realidade da concretude da vida e das inúmeras desigualdades do cotidiano. Visto por esse prisma materialista, o Direito acaba exposto como instrumento indiferente à perpetuação do sofrimento das pessoas, muito embora a personagem oscile, ao longo do romance, entre a busca pela ruptura absoluta com a ordem jurídica e a tentativa de alguma conciliação com ela.

Ana Clara percebe tão pouco o Direito, na exata medida em que parece existir à revelia dele, como se sua mera vivência não passasse de um acaso, de uma imprevisibilidade às margens da cuidadosa e controladora regência normativa. Às margens, Ana Clara experiencia não só o descaso jurídico, mas, principalmente, as consequências desse abandono, tornando-se uma vítima antes que lhe sobrevenha qualquer chance de perseguir seu intenso desejo por felicidade.

É dessa maneira que As meninas denuncia, de seu posicionamento histórico e literário, a realidade das mulheres da época, sendo capaz, no entanto, também de lançar luz à nudez e à crueza do Direito, ao abrir uma fissura nas memórias coletivas do período da ditadura civil-militar para, através dela, permitir a expressão de subjetividades femininas, secularmente silenciadas e, de maneira não pouco irônica, reveladas, ao longo da obra, de maneiras quase oblíquas, atravessadas, parcialmente ocultas por trás de cortinas finas.

É quase como se as críticas fossem feitas por meio de um olhar de soslaio. Ao longo da obra, todavia, avolumam-se os pedidos por atenção: “[...] a verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões. Não nos esqueçamos das cicatrizes feitas pela morte” (p. 75).

Como literatura de testemunho e convite à uma compreensão crítica desse violento período da história nacional, As meninas reveste-se de relevância diante do avanço pouco contido de forças conservadoras e autoritárias no Brasil. Aos juristas, em especial, as reflexões referentes ao Direito desafiam sua pretensão de neutralidade e distância, tensionando, com a facilidade habitual à literatura, sua recusa à imaginação e sua missão de zelo pela ordem estabelecida.

Nesse cenário, mesmo décadas depois, constata-se a importância das lições histórico-literárias contidas na obra Lygia Fagundes Telles, capazes de conduzir à sensibilização indispensável ao afinamento da compreensão de mundo de seus leitores, e, no campo jurídico, à humanização que é imprescindível ao combate à barbárie.

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  • TELLES, Lygia Fagundes. A invenção da memória. 10 anos dos Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles: São Paulo, 2007.
  • TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.
  • TELLES, Lygia Fagundes. Entrevista concedida à Folha de São Paulo. Folha de São Paulo: 03 de abril de 1994. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/brasil/27.html Acesso em: 24 fev. 2021.
    » https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/brasil/27.html
  • TEZZA, Cristóvão. As meninas: os impasses da memória. Posfácio. In: TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.
  • TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Orgs.). Direito & Literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-66.
  • VENTURI, Gustavo; GODINHO, Tatau (Orgs). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Perseu Abramo; SESC, 2013.
  • VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • WARAT, Luis Alberto. Senso comum teórico: as vozes incógnitas das verdades jurídicas. In: Introdução geral ao direito moderno - interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1994, v. I, p. 13-18.
  • WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
  • 1
    Conforme biografia da Academia Brasileira de Letras (2016), da qual a autora tornou-se parte em 1985, Lygia Fagundes Telles formou-se em Direito e conduziu sua trajetória literária em paralelo ao trabalho de procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, cargo que exerceu até a aposentadoria.
  • 2
    “E como mãezinha ia na frente e Irmã Priscila se ocupava em fechar a janela, ele aproveitou e passou a mão na minha bunda.” (p. 26)
  • 3
    “Contra todas as possíveis formas de Estado absoluto, o Liberalismo, ao nível da organização social e constitucional da convivência, sempre estimulou [...] a autonomia da sociedade civil como autogoverno local e associativo ou como espaço econômico (mercado) e cultural (opinião pública) no interior do Estado não diretamente governado por ele.” (MATTEUCCI, 2016, p. 700-701)
  • 4
    “Pesquisas sobre os papéis sexuais, baseada no insight de Simone de Beauvoir segundo o qual ‘não se nasce mulher, torna-se mulher’ revelaram um processo complexo: como e o que se aprende para se tornar uma. Foi percebido que o gênero, olhando através das diferentes culturas, é uma qualidade aprendida, uma característica adquirida, uma condição atribuída, com qualidades que variam independentemente da biologia e com uma ideologia que as atribui à natureza. A descoberta de que o arquétipo feminino é o estereótipo feminino expôs “mulher” como uma construção social. Sua versão contemporânea na sociedade industrial é dócil, suave, passiva, que se ocupa dos demais, vulnerável, fraca, narcisista, infantil, incompetente, masoquista e doméstica, feita para o cuidado dos filhos, da casa e do marido. O condicionamento a esses valores invade a criação das meninas e os modelos que se impõe às mulheres.” (MACKINNON, 2016MACKINNON, Catharine A. Feminismo, marxismo, método e o Estado: uma agenda para teoria. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 798-837, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.18647.
    http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.1864...
    , p. 819)
  • 5
    “— Esse M.N., putz. Será que ainda não percebeu que ele ficou sendo seu pai?” (p. 209)
  • 6
    “[...] embora as leis e as regulamentações, as normas superiores e as disciplinas triviais proliferem, a necessidade de reportá-las a uma pessoa ou a um texto autoritário atesta esse desejo de um Pai, ou de um legislador, que está fora de sua ação e a infunde com sua majestade e justiça ou, em termos psicanalíticos, com seu caráter sem lacunas e fechado.” (DOUZINAS, 2009DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução de Luzia Araújo. Porto Alegre: Unisinos, 2009., p. 334)
  • 7
    Márcio Alves da Fonseca (2012, p. 149) identifica como, para Michel Foucault, os processos de normatização legal e normalização, se bem que inconfundíveis, estão mutuamente “engavetados”: “E a descrição desse ‘engavetamento’ só poderia ser feita a partir da consideração de dois conceitos: a ‘normatividade’ da lei e a ‘normalização’. Enquanto o primeiro, apesar dos ‘movimentos’ que envolve, está sempre referido a limites e interdições, ou seja, ao plano de um ‘dever-ser’, o segundo reporta-se às noções de ‘média’ ou ‘medida’, estando referido ao plano do ‘ser’. De um lado, a ‘normatividade’ da lei responde aos critérios de ‘medida’ dados pela norma. De outro lado, a norma se reporta às formas da lei para atuar concretamente. [...] Desse modo, vê-se o ‘deslizamento’ recíproco entre a normatividade da lei e os mecanismos da normalização.”
  • 8
    Como relatou Izabel Fávero à Comissão Nacional da Verdade (2013, linhas 152-159; 168-170): “Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um carma, a gente, além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era ‘puta’, ‘menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta’, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja. [...] Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou obviamente um desequilíbrio.”
  • 9
    “Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel [...] compreendida sob o nome de ‘sociedade civil’. [...] A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política [...].” (MARX, 2008MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 47)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2022
  • Aceito
    12 Mar 2023
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