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Seguridade social e desestabilização do sujeito epistêmico pela teoria queer: uma proposta expansiva para a proteção da transição de gênero pela Assistência Social

Social security and destabilization of the epistemic subject by queer theory: an expansive proposal for the protection of gender transition by Social Assistance

Resumo

Sob a vertente metodológica jurídico-sociológica, questiona-se a possibilidade da expansão do conceito de hipossuficiência da Assistência Social, para abarcar a transição de gênero como uma vulnerabilidade dentro do campo jurídico-teleológico do direito previdenciário. Este trabalho se justifica pela existência de uma ordem cis-heterossexual dentro da ciência do direito previdenciário e como uma forma de apresentar outras possibilidades e institucionalidades para a proteção social. Assim, mediante uma proposta pautada na teoria queer, entende-se que é possível defender a juridificação de vulnerabilidades interseccionais com o intuito específico de promover o acesso a benefícios dentro da Seguridade Social.

Palavras-chave:
Direito Previdenciário; Assistência Social; Hipossuficiência; Pessoas em transição de gênero; Teoria Queer

Abstract

Under the juridical-sociological methodological aspect, the possibility of expanding the concept of social assistance hyposufficiency is questioned, to encompass the gender transition as a vulnerability within the juridical-teleological field of social security law. This work is justified by the existence of a cis-heterosexual order within the science of social security law and as a way of presenting other possibilities and institutions for social protection. Thus, through a proposed agenda in queer theory, it is understood that it is possible to defend the jurisprudence of intersectional vulnerabilities with the specific of promoting access to benefits within social security.

Keywords:
Social Security Law; Social assistance; Hyposufficiency; People in gender transition; Queer Theory

1. INTRODUÇÃO1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 concedido ao autor em sede de pesquisa doutoral. O autor agradece pelo subsídio teórico e a possibilidade do diálogo com a professora e pesquisadora Dra. Flávia Souza Máximo Pereira (UFOP). Agradeço, ainda, ao Grupo de Pesquisas RESSABER (UFOP) que contribui para a construção coletiva da pesquisa.

Os direitos sociais encontram-se em constantes ataques. Sejam por Reformas, por ofensas institucionais, discursos de austeridade (GENTIL, 2017GENTIL, Denise. A previdência social paga o preço do ajuste fiscal e da expansão do poder financeiro. Revista da ABET, [S. l.], v. 16, n. 1, jan./jun. 2017.), pelo seu desprestígio oriundo da valorização do “eu”, pela governabilidade neoliberal (BROWN, 2013BROWN, Gavin. Thinking beyond homonormativity: performative explorations of diverse gay economies. Environment and Planning, [S. l.], v. 41, n. 6, p. 1496-1510, 2013.; DARDOT, LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) ou mesmo pela insuficiência da proteção de todas e todos que precisam desses direitos.

Entretanto, muitas/os2 2 Em termos de desobediência epistêmica, utiliza-se o feminino na frente para demonstrar que o padrão neutro é uma escolha política. pesquisadoras/es desse campo continuam, ainda, apostando nas tradicionais formas de proteção do trabalho e apontando a expansão da proteção da relação de emprego como a única alternativa de proteção de direitos (MÁXIMO PEREIRA, NICOLI, 2021). Em sentido diverso, visa-se explorar outras janelas de proteção de vidas dentro dos direitos sociais, em especial da Seguridade Social a fim de alcançar sujeitas/os que são invisibilizados3 3 O Estado, enquanto uma estrutura de poder, sabe da existência dessas/es sujeitas/os, mas prefere pelo aparato institucional não protegê-las. para Estado. A intenção é apostar em novas possibilidades e institucionalidades para essa proteção a partir da pluralização do/a sujeito/a epistêmico/a do direito (MÁXIMO PEREIRA, NICOLI, 2022). A proteção dos direitos sociais deve ser pensada e estruturada em espectros plurais e perspectivas radicais4 4 Pensar em perspectivas radicais requer repensar até mesmo as estruturas protetivas do Estado, devido a sua estrutura de seleção da proteção social. .

Nesse sentido, esta pesquisa jurídico-sociológica (GUSTIN, DIAS, NICÁCIO, 2020GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca; NICÁCIO, Camila Silva. (Re) Pensando a Pesquisa Jurídica: teoria e prática. 5. ed. Belo Horizonte: Almedina, 2020.) versa sobre a possibilidade da expansão do conceito de hipossuficiência da Assistência Social, para abarcar a transição de gênero como uma vulnerabilidade dentro do campo jurídico-teleológico do Direito Previdenciário.

O trabalho é dividido em seis tópicos. Apresenta-se a teoria queer, desde o seu surgimento até sua localização como norma jurídica. Em seguida, localiza-se o ramo jurídico da pesquisa dentro da seara da Seguridade Social e justifica-se a Assistência Social como lócus de expansão do conceito de hipossuficiência, por abarcar a proteção daquelas/es que são afetadas/os por riscos sociais e ontológicos.

A pesquisa vai além, para denunciar a complexa sistemática de exclusão impetrada pela Seguridade Social nos seus diversos ramos e pela existência de uma narrativa binária de gênero pelas institucionalidades. Trata-se de uma desproteção cistemática e institucionalizada em relação aos corpos trans que estão em situação de vulnerabilidade social (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais no Brasil em 2018, 2019.).

Dito isso, denota-se a Assistência Social como o lócus propício para a proteção da transição de gênero, que é um período de vulnerabilidade. A Resolução n° 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina5 5 Ressalta-se que esta é última normativa promulgada e publicada por este órgão a respeito da hormonioterapia. , no seu Anexo III, considera este um momento de intensa vulnerabilidade (BRASIL, 2019).

Assim, mediante uma proposta pautada na teoria queer, esta pesquisa é tencionada como uma concretização do Princípio da Solidariedade. Dessa forma, conclui-se que é possível defender a juridificação de vulnerabilidades interseccionais com o intuito específico de promover o acesso aos benefícios dentro da Seguridade Social.

2. TEORIA QUEER COMO ELEMENTO DE DESESTABILIZAÇÃO

Para estruturar a potência do queer como elemento de crítica e desestabilização do status quo é preciso apresentar e localizar os conceitos, ainda mais em territórios do Sul6 6 Utiliza-se Sul e Norte no sentido geopolítico da produção do conhecimento e não adstrito ao geográfico (GROSSFOGUEL, 2008) .

Inicialmente, cabe apresentar o que é Queer, Movimento7 7 Pode ser utilizado como sinônimo a expressão ativismo queer. Queer e Teoria Queer. Não cabem aqui conceituações taxativas, pois, como será demonstrado, faz parte das construções deste ramo de estudo tentar implodir as limitações conceituais e linguísticas encaixotadas por cânones teóricos (GOMES PEREIRA, 2015GOMES PEREIRA, Pedro Paulo. “Queer decolonial: quando as teorias viajam”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 5, n. 2, p. 411-437, jul./dez. 2015., p. 424).

Queer é um termo notoriamente escorregadio que resiste a definições precisas. Originariamente, era uma interpelação pejorativa utilizada em países de língua inglesa, demarcando diferença, assinalando os desviantes da norma heterossexual (LOURO, 2004). Nos países lusófonos e hispânicos, queer não significa nada no senso comum do termo, mas nos países de língua inglesa significa bizarro, estranho, poc8 8 O termo poc era utilizado para se referir, principalmente, aos gays considerados afeminados, usado de forma pejorativa, em alusão ao barulho de salto alto. Entretanto, o termo foi ressignificado pela comunidade LGBTI, para passar de ofensa à uma referência de orgulho, em que as "pocs" (em uma leitura expansiva) se chamem de pocs sem que isso seja algo pejorativo. , viado, bicha, sapatão (PELÚCIO, 2014, p. 4).

Em relação ao surgimento do termo e sua ressignificação, nos Estados Unidos da América (EUA), anos 80, existia um contexto de “caldo cultural” que ficou conhecido como guerras culturais. Trata-se de um deslocamento do espaço público (reduzido nesta análise na macropolítica) para abordar questões de ordem moral, que foi desenvolvido em tensão com a academia. Dessa maneira, as guerras culturais, como ficaram conhecidas, organizavam a resistência de grupos oprimidos e, a partir disso, começaram a surgir os departamentos de estudos de gênero, gays e lésbicos nas universidades, mas também as lutas por direitos humanos da população gay e lésbica.

Apesar da importância da luta de movimentos de gays e lésbicas, que conquistaram direitos fundamentais visando uma existência digna, iniciou-se o questionamento a reprodução de uma lógica que as/os discriminou por muito tempo: essas/es sujeitas/os começam a se expressar de acordo com a normatividade, com a formação de famílias (monogâmicas), com hierarquizações de posições sociais conforme constituição de casamento e adoção. Para isso, há uma tentativa de confinar a sexualidade dentro de um espaço privado, que é a lógica do “não importa o que você faz entre quatro paredes”, do homossexual e da lésbica discreta “que nem parece gay ou lésbica”.

Entretanto, para algumas/alguns autoras/es, isso é impossível, pois a lógica do corpo dissidente denuncia quem são elas/es (MELLO, 2022MELLO, Gê. Minha corpa é voz de afeto: a cisheteronormatividade encarnada na cidade e o direito como impedimento para o fim do mundo. Porto Alegre. Editora Fi, 2022; MOMBAÇA, 2016MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2016.). Contudo, as/os adeptas/os à crítica queer não desejam se adequar a um sistema que tanto lhes reprimiu. As/os estudiosas/os queer elucidaram que a política assimilacionista da identidade gay e lésbica reafirma o regime normalizador e reinscreve aquelas pessoas que não se encaixam a possíveis violências e discriminações (LACERDA, 2020, p. 8; MISCOLKI, 2015, p. 26-27).

Nesta lógica assimilacionista, a possibilidade de pertencer ao mundo em sua totalidade não é permitida, mas negada em espaços públicos e mesmo em alguns espaços privados. Verifica-se neste contexto que, para pessoas subalternas falarem, pertencerem e existirem, é preciso abrir mão das características que são partes do seu corpo e da sua imagem (ANZALDÚA, 1987ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco, 1987.).

Dessa maneira, tais pessoas não precisam se assimilar, pois não querem pertencer à norma. As lógicas dos seus corpos e das suas existências são outras, e essas não querem abrir mão dessa existência. Tais sujeitas/os não querem ter seus corpos e subjetividades higienizadas, mesmo que isso importe em perda de direitos concedidos pela ordem jurídica-política cis-heteronormativa (MELLO, 2023; MOMBAÇA, 2016MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2016.).

O termo queer, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido9 9 Assumido em todas as multiplicidades que o termo comporta em um jogo constante com os armários (SEDGWICK, 2007) e barreiras sociais. por tais pessoas, criando-se movimentos políticos nos EUA que não desejam se enquadrar no padrão dominante (MISKOLCI, 2017MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.b). Esse termo carrega consigo críticas ao regime normalizador denominado cis-heteronormatividade. É uma denúncia da existência de um quadro de referência, regime de verdade e até mesmo uma compulsoriedade ligada à heterossexualidade10 10 Emerson Granja de Araújo Lacerda traz que: "A heterossexualidade, enquanto regime de verdade, é compreendida não como um poder a ser destruído e destituído, mas sim enquanto regime de normalização que disciplina os modos de vida; vida esta que se insere nas teias microfísica do poder relacional, cultural e contingente. [...] Esse regime está fundado em uma política de humilhação, do rechaço social, da abjeção àqueles(as) que performatizam, vivenciam, experienciam práticas, identidades, desejos e sexualidades distintas das já dadas anteriormente pelo regime de normalização das subjetividades. Logo, a possível binarização dessa ação política resvala diretamente em novas investidas violentas, hostis, ou melhor, LGBTfóbicas, já que existirá pessoas à margem dessa linha demarcatória e assimilacionista" (LACERDA, 2020, p. 100-101). como padrão de sexualidade (COLLING, 2015COLLING, Leandro. Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer. Salvador: EDUFBA, 2015., p. 30-32; LACERDA, 2020, p. 109) e cisgeneridade como expressão de padrão de gênero (ALMEIDA, 2019, p. 21). Como traz Vinicius Santos Almeida:

Tal normatividade nem sempre se expressa em discurso de ódio explícitos contra pessoas que não se encaixam nos papéis de gênero e sexualidade estabelecidos historicamente pelas diferentes sociedades. Discursos silenciosos, como as duas únicas opções para o registro do sexo do recém-nascido, expõem que sexo e gênero são construções discursivas baseadas na binariedade masculino e feminino, também uma construção social. Essa normalização dos corpos tem como objetivo, como vemos em Michel Foucault (2014), a relação heterossexual para a reprodução da sociedade moderna. (ALMEIDA, 2019, p. 21).

A própria existência de tais sujeitas/os já se mostra como uma contestação às heteronormas; como uma oposição às políticas de igualdade meramente reivindicatórias de direitos (REA; AMANCIO, 2018), inclusive aquelas efetuadas pelo movimento gay, lésbico e bissexual.

Judith Butler (2017, p. 111) entende que “[...] o termo queer não designa uma identidade, mas aliança, e é um bom termo para invocar quando fazemos alianças imprevisíveis e desconfortáveis na luta pela justiça social, política e econômica [...]”, sendo que se trata de uma recente política de gênero.

As pesquisas de Judith Butler (2017), baseadas na teoria da abjeção11 11 A abjeção, pode ser traduzida como aquilo que é rejeitado e expelido pelo - e do - sujeito, pois perturba sua identidade, a estabilidade do sistema, a ordem binária de gênero (KRISTEVA, 1980). de Julia Kristeva e na teoria da discursividade de Monique Wittig, estabelecem essa possibilidade de transformações de significantes de uma invocação sempre repetida. Por exemplo, um insulto que ecoa e reitera os gritos de muitos grupos, atribuindo às minorias um lugar abjeto - como era o termo queer - pode ser ressignificado ao longo do tempo para a construção discursiva de um símbolo de resistência à normalização. Destarte, homens abjetos e mulheres abjetas assumem esse termo como forma de demonstrar sua oposição e contestação perante aqueles lugares que lhes foram eleitos (LOURO, 2004, p. 546) e lhes atribuem valores político-estratégicos (PRECIADO, 2014, p. 10). Assume-se o orgulho ao invés da ofensa, pois a ofensa só é possível se você a rejeita (BUTLER, 2003, p. 9-23).

O sentido injurioso do queer foi estrategicamente adotado para denunciar as experiências da abjeção sofridas pelos grupos que integravam as minorias sexuais e corpos dissidentes12 12 A sociedade moderna ocidental estabeleceu um padrão de sujeito: homem, branco, cristão, heterossexual, burguês, produtivo (produtivista) e isso é feito a partir de normalidades, de linearidades, comportamentos que criam “caixas” dentro das quais pessoas e identidades deveriam caber (BAHIA, 2017). Há uma normalização compulsória centrada em binarismo, na homogeneização e otimização dos indivíduos para a construção da sociedade na qual se exerce um poder disciplinar para o controle e gestão (adestramento social) sobre os corpos em todos os seus aspectos a partir de conhecimentos especializados e institucionalizados. A especialidade dos conhecimentos se dava pelos meios médicos, jurídicos, acadêmicos, entre outros, que de alguma forma estabelecia a normalidade dos sujeitos e, consequentemente, quem era excluído daquela sociedade (FOUCAULT, 1999b). Tal normalidade era estabelecida através de binarismos (normal/anormal), como doente/não doente, louco/saudável, e aquelas/es que eram postos do lado negativo do conceito deveriam ser excluídos ou reabilitados (FOUCAULT, 1999b). Por sua vez, a institucionalização é feita pelo aparato estatal e social que verificava tais comportamentos como violentos, desumanizadores, mas se portavam da mesma forma pela normalização de tais condutas, visto que aquelas práticas se justificavam por se tratar de sujeitos dissidentes daquela norma, identidade, comportamento e/ou padrão imposto. Diante desse cenário descrito, os sujeitos dissidentes são aqueles que, no contexto atual, não estão no padrão hegemônico estabelecido, mas não estão necessariamente excluídas/os, expulsas/os do convívio social e/ou têm seus comportamentos criminalizados. De tal forma que mulheres, negros, LGBTI podem ser tratados como sujeitos dissidentes dado esse contexto de não adequação ao padrão conceituado. (POCAHY; COUTO JUNIOR, 2017, p. 610). Esses grupos, que aos poucos começaram a se caracterizar como um movimento queer, passaram a ressignificar o termo pejorativo, transformando-o em uma forma de manifestar a diferença como pauta política, em um empoderamento das margens ante aqueles anseios dominantes (POCAHY; COUTO JUNIOR, 2017, p. 610). Nesse sentido, para a crítica radical emanada do movimento queer, a diferença não pode ser apenas traduzida como diversidade, pois isso envolve, em algum nível, um padrão de reconhecimento assimilacionista (HANNA, 2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.).

A teoria queer vai apostar na ação contestatória e subversiva que o diferente coloca diante do regime de normalização. E é por essa razão que parece problemática a ideia de diversidade cultural ou diversidade sexual. Uma política pós-identitária trabalha com o diferente. A ideia de diversidade sempre terá o outro como alguém a ser tolerado e respeitado. O quadro de referência - no caso aqui a heterossexualidade - não seria objeto de questionamentos, já que seria a partir desse ponto que se olharia o outro. Nesse aspecto, o diferente assume uma postura diversa da diversidade (LACERDA, 2015, p. 14).

Conforme essa crítica radical queer, a estratégia política-jurídica da diversidade ainda mantém em si, em alguns aspectos, a superfície ontológica normativa moderna, na medida em que teoriza sobre variações dentro do mesmo paradigma de sujeito epistêmico. Compreende-se que a tolerância advinda da diversidade é uma espécie de suavidade na violência, sendo que ainda se mantém o olhar central da sociedade (plural, multicultural ou mesmo diversa) partindo de um ponto de vista de referência (LACERDA, 2020, p. 109). Esta estratégia é reconhecidamente apontada como assimilacionismo, que:

[...] é a estratégia utilizada pelos movimentos sociais e pela academia para que determinadas demandas sociais sejam aceitas e regulamentadas pelo Estado, como por exemplo o casamento ou reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo, adoção por casais homossexuais ou lésbicos, além de outras demandas. O assimilacionismo é uma resposta da sociedade em que já se permite a existência ou o reconhecimento de pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo, entretanto, sempre dentro do disposto, ordenado pelo regime de normalização. Para os estudos queer, esse regime é denominado de regime normativo da heterossexualidade e não dá conta de uma possível transformação social, já que, ter alguns assimilados socialmente, relegaria outras pessoas ao campo da abjeção. (LACERDA, 2020, p. 104).

Desse modo, parte do movimento queer contemporâneo desafia reivindicações de direitos para o reconhecimento do casamento e do serviço militar gay, contestando esta política entendida como complacente do mainstream13 13 Esta política pode ser pensada como uma forma de absorção de pautas identitárias que despolitiza a diferença a partir de uma perspectiva de tolerância com o outro (WARNER, 1991). Trata-se de um movimento que é balizado por aqueles que já são integrantes da sociedade (homens brancos, de classe média) e exclui aqueles que são dissidentes e retira a radicalidade de suas reinvindicações (WARNER, 1991). gay e lésbico, que buscou incluir pessoas gays em um estilo de vida cis-heteronormativo capitalista (BROWN, 2013BROWN, Gavin. Thinking beyond homonormativity: performative explorations of diverse gay economies. Environment and Planning, [S. l.], v. 41, n. 6, p. 1496-1510, 2013.). Conforme essa crítica do movimento queer, esse estilo é altamente despolitizado, pois é baseado no consumo capitalista e na primazia do casal romântico monogâmico (BROWN, 2013).

Segundo essa parcela do movimento queer, a assimilação e incorporação como identidade é uma das estratégias do neoliberalismo em capturar a subversão e vender como produtos para o consumo dessas/es sujeitas/os que não se enquadram na lógica cis-heterocentrada, na medida em que a não adequação ao padrão é um nicho de vendas para produtos e pessoas que estão dentro dessa multiplicidade de desconformidade com a norma (PERRA, 2014, p. 1-7). A eleição de tal produto/concepção como queer leva à produção de imaginários e até mesmo uma popularização do termo queer em campos que não seriam alcançados se o conceito se restringisse à academia (PERRA, 2014, p. 1-7).

A faceta negativa dessa eleição é a construção de identidades para o consumo de produtos, reafirmando aquilo que é produzido como contra-hegemônico (PERRA, 2014, p. 1-7). É a construção de “shopping queer em nossas latitudes” (PERRA, 2014, p. 6), com produtos que levam ao discurso e à produção estética da subversão queer, que entram no contexto do capitalismo mainstream14 14 Capitalismo mainstream é a construção do sistema econômico que é pautado exclusivamente a partir da ótica do consumo (WARNER, 1991). No qual aquela pessoa só se torna sujeita/o se consume dentro dos padrões esperados na sociedade (WARNER, 1991). .

A teoria queer é uma tentativa de levar esses padrões não-assimilacionistas e não-higienistas para a academia, como uma possibilidade de desconstruir e romper com o conhecimento científico tradicional, baseado em dogmas científicos, com produções localizadas e centralizadas no Norte (GOMES PEREIRA, 2015GOMES PEREIRA, Pedro Paulo. “Queer decolonial: quando as teorias viajam”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 5, n. 2, p. 411-437, jul./dez. 2015., p. 420; POCAHY; COUTO JUNIOR, 2017, p. 622-624). Paul Preciado (2014) define a teoria queer como uma teoria de empoderamento dos corpos subalternos nas margens, o que exclui um empoderamento assimilacionista.

Essa é uma construção que recusa as identidades e as categorias no sentido de reconhecer que são formas de operacionalização do poder e que causam exclusões (BUTLER, 2003, p. 256). É colocar um xingamento anglicano ao lado de uma teoria que questiona o sentido do que é ser uma categoria nos moldes modernos do termo (GOMES PEREIRA, 2015GOMES PEREIRA, Pedro Paulo. “Queer decolonial: quando as teorias viajam”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 5, n. 2, p. 411-437, jul./dez. 2015., p. 421). Da mesma forma que, em termos de saber-práxis, assumir como uma teoria é questionar como esta se apresentaria dentro dos ambientes acadêmicos em termos de hierarquização do conhecimento.

A teoria queer não nega a importância das conquistas que foram feitas em termos de representatividade, redistribuição e reconhecimento de direitos pelos movimentos gays, lésbicos e feministas. Contudo, para a crítica queer, essas ainda se tratam de questões que estão afetas a um reconhecimento dentro da norma, que mantém o mesmo paradigma de sujeito definido por identidades como universais e totalizantes (BUTLER, 2003, p. 255):

Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. (BUTLER, 2003, p. 256).

Dentro da temática, o reconhecimento de identidades duais e encaixotadas realizado pelos movimentos LGBTIs (como casamento, adoção, doação de sangue, criminalização da LGBTIfobia) se inserem em uma perspectiva de igualdade que é pautada por uma lógica do direito moderno que racializa, higieniza e assimila as/os sujeitas/os (PERRA, 2014, p. 1-7).

Para a crítica queer, isso é o resultado do constructo social que hierarquiza as vidas que importam, estabelecendo quais vidas são passíveis de luto, pois, quando seus corpos abjetos conseguem ser absorvidos pelo espectro de proteção jurídico-normativo do Estado, ainda se mantêm como existências precárias (BUTLER, 2019b). De tal maneira que, mesmo com todas essas políticas de reconhecimento, o número de transexuais, especialmente as travestis negras, que morrem a cada ano ainda cresce, a população negra ainda morre mais de hiv/aids15 15 Utilizei o termo “hiv/aids” ou “aids” em minúsculo para marcar uma perspectiva crítica ao pânico sexual criado pela aids, especialmente, nos anos 80, que ainda persiste atualmente (PELÚCIO, 2005). do que as/os brancas/os na mesma idade16 16 É importante lembrar que, há anos, órgãos como a UNAIDS têm alertado que a correlação entre discriminação, desigualdade (social, econômica, etc.), racismo e vulnerabilidade aumenta o risco de exposição a doenças, de tal sorte que não há política pública de saúde sem, ao mesmo tempo, políticas de reconhecimento e de direitos humanos (ONUSIDA, 2017). (BOMFIM, BAHIA, SALLES, 2020; ONU AIDS, 2017). O reconhecimento de direitos não faz com que a LGBTIfobia deixe de existir ou mesmo com que tensões culturais deixem de existir (HANNA, 2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.).

Desse modo, não está se descartando a formação de alianças subalternas em um ideal de construção político-social para a confrontação e produção contra-hegemônica, mas sim o uso do termo queer como apenas sinônimo de diversidade, que pode carregar em si uma variação ontológica de sujeito jurídico dentro do mesmo paradigma normativo moderno. Essa estratégia é ou pode ser utilizada, desde que tenha menção expressa desse truque transitório, com intenção política definida, para o acesso aos direitos de reconhecimento, mas que não se constituam como finalidade última para a construção (BOMFIM, BAHIA, 2022BOMFIM, Rainer; BAHIA, Alexandre. Coloniality of law: a historical-instituonal pattern of power. Revista Videre, 2022.). Gamson explica essa estratégia: “A política queer (...) adota a etiqueta da perversidade e faz uso da mesma para destacar a ‘norma’ daquilo que é ‘normal’, seja heterossexual ou homossexual. Queer não é tanto se rebelar contra a condição marginal, mas desfrutá-la”. (GAMSON, 2002GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimientos identitarios? Un extraño dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002. Cap. 12, p. 141-172., p. 151).

Esta pesquisa se pauta em eixos de desestabilização da sexualidade e, especialmente, das definições acerca da identidade de gênero, bem como uma rearticulação da identidade enquanto um mecanismo interseccional das/os sujeitas/os. Trata-se de uma proposta de articulação de luta política, que deve ser descentralizada e, ao mesmo tempo, multidimensional com foco na proteção de vidas precárias.

Não obstante, entende-se que o termo queer, sua militância e toda sua teoria não são apenas uma defesa da diversidade da orientação sexual17 17 As expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” podem ser definidas de várias formas e é importante a lembrança de Alexandre Bortolini no sentido de que qualquer tentativa de conceituação e de classificação é sempre redutora de complexidade, já que a sexualidade humana é plural (BORTOLINI, 2009, p. 20). De toda sorte, apenas para dar os contornos sobre o que se pretende com as expressões acima, cabe definir que a orientação sexual diz respeito à “[...] ‘atração’, o desejo sexual e afetivo que uma pessoa sente por outras” (BORTOLINI, 2009, p. 22). Assim, de forma simplificada, podem ser enumeradas as orientações homossexual, heterossexual, bissexual, assexual, pansexual etc. Já a “identidade de gênero” (ou identidade sexual) “[...] tem a ver com como eu me coloco diante da sociedade, com quais grupos, representações e imagens eu me identifico e me reconheço” (BORTOLINI, 2009, p. 22). Classificados os seres humanos sob este aspecto se pode falar em: gênero masculino, gênero feminino, transgêneras (travestis e transexuais) e ainda as/os intersexuais. Como dito acima, como toda classificação, também essas conceituações são redutoras de complexidade. A experiência humana, inclusive quanto à sexualidade e à identidade é muito mais rica do que se pode tentar classificar. Ao fim e ao cabo, toda tentativa é mais uma manifestação tipicamente moderna de tentar encontrar normalidades e colocá-las em caixas conceituais (BAHIA, 2017, p. 499). O pensamento moderno - e o Direito Ocidental é parte dessa estrutura da Modernidade - está desenvolvido dessa forma (BOMFIM, BAHIA, SALLES, 2020; BOMFIM, BAHIA, 2022). Um dos grandes desafios do Direito é tentar pensar aquelas pessoas/grupos para além da tentação de encaixá-las. 18 18 Tipicamente realizada pelos movimentos gays e feministas. ou uma única identidade de gênero19 19 Quando se fala em formar multidões queer sendo essas identidades únicas. , mas sim uma recusa dos valores político-jurídicos unívocos violentamente instituídos na modernidade; uma recusa das higienizações, das identidades socioculturais modernas e das naturalizações da família heterocisgênera burguesa; da reapropriação dos discursos da medicina anatômica e do controle dos corpos desviantes (LÓPEZ, 2016LÓPEZ, Daniel J. García. ¿Teoría jurídica queer? Materiales para una lectura queer del derecho. AFD, [S. l.], n. XXXII, p. 323-348, 2016., p. 328-335; PRECIADO, 2014, p. 17). Essa é a potência da desestabilização dos institutos do direito. É questionar quais sujeitos já integram esta ordem para problematizá-la. Não se trata de construir um direito queer ou mesmo algum ramo jurídico queer, o que é veementemente criticado20 20 Quando se trata da construção de um ramo jurídico queer está delimitando a potência do queer ao direito. Teria-se uma limitação da potência e uma apropriação contraditória. . A potência dessa proposição é a crítica, a destruição do status quo baseado em binaridades. É a expansão do sujeito epistêmico do direito e não a assimilação normativa do queer.

Por isso que se elege tal vertente teórica multifacetada, pautada na concepção da existência de uma multidão de diferenças, com uma transversalidade das relações de poder/saber, para questionar as estruturas dominantes.

Neste sentido, escolhe-se o direito previdenciário como ramo subalterno21 21 Trabalha-se aqui com a subalternidade a partir de Spivak (2010), que compreende um grupo que não integra a elite e permanece dela alijado dos seus recursos. É um conceito que reside na sua utilidade a partir da contraposição às narrativas dos sujeitos homogêneos dos colonizadores (SPIVAK, 2010), de tal forma que, dentro das relações coloniais, pode se entender que é aquele sujeito racializado, atravessado pelas subalternizações, também em razão de gênero de conquista das/os trabalhadoras/es a proteção do risco social. Estes riscos e temporalidades precisam ser contados sob a ótica cisgênero? Não há elementos dessa visão e ramo do direito que podem ser subvertidos para a construção política e proteção de vidas precárias. Esta é a discussão do próximo tópico.

2. DIREITO PREVIDENCIÁRIO COMO LÓCUS DE PROTEÇÃO

Para realizar a discussão da desestabilização deste ramo jurídico em uma das suas vertentes é preciso apresentar seus fundamentos.

O Direito Previdenciário se fundamenta na proteção humana e atua por meio de um conjunto de medidas do poder público e da sociedade, destinadas a assegurar direitos que se operam em três dimensões: a previdência social, a Assistência Social e a saúde pública (BRASIL, 1988; ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 44-46). Esses pilares indissociáveis na proteção humana formam o sistema da Seguridade Social.

No Brasil, a seguridade, enquanto um complexo jurídico-social22 22 "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988, grifo nosso). , consiste em um sistema constitucional de proteção, que preza pelo trabalho humano digno, pelo bem-estar das/os sujeitas/os e pela realização de justiça redistributiva. Trata-se do ramo jurídico que concentra o conjunto de medidas constitucionais de proteção23 23 Como traz Flávio Roberto Batista (2012, p. 12): "Os direitos sociais são aqueles que a teoria do direito comumente denomina direitos de ‘segunda geração’, por vezes também inseridos em uma categoria mais ampla de direitos ‘econômicos, sociais e culturais’. No atual ordenamento jurídico brasileiro, são direitos sociais aqueles constantes dos artigos 6º aos 11 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e todos os seus consectários espelhados pelo restante do texto, mormente no capítulo que aborda a ordem social - art. 193 e seguintes.". dos cidadãos na seara estatal, seja em termos de direitos individuais ou coletivos (BRASIL, 1988). Essa proteção está prevista especificamente nos arts. 19324 24 "Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais." (BRASIL, 1988). e 19425 25 "Art. 194. A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à Assistência Social." (BRASIL, 1988). da Constituição.

Assim, entender o sistema de seguridade brasileiro é compreender que, normativamente, existe um dever Estatal em efetivar a proteção humana em vários campos de existência social, por meio de suas diversas formas de financiamento26 26 "Art. 195. A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II -do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III -sobre a receita de concursos de prognósticos. IV- do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar." (BRASIL, 1988). . As receitas desse financiamento são oriundas de tributos sobre diversas bases de custeio, conforme princípio estabelecido no art. 194, parágrafo único, IV27 27 “Art. 194. A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à Assistência Social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a Seguridade Social, com base nos seguintes objetivos: VI: diversidade da base de financiamento, identificando-se, em rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e Assistência Social, preservado o caráter contributivo da previdência social.” (BRASIL, 1988). da Constituição (BRASIL, 1988), que envolvem fatos geradores para além da prestação de serviços remunerada, a exemplo da contribuição social que incide sobre o concurso de prognósticos (art. 195, III, CFRB/88).

Além disso, prevalece o princípio da equidade na forma de participação do custeio, previsto no art. 194, parágrafo único, IV da Constituição (BRASIL, 1988), pelo qual a proteção social deve ser garantida às pessoas hipossuficientes, sendo exigida, quando possível, contribuição equivalente ao seu poder aquisitivo, adotando o princípio da progressividade tributarista.

A saúde pública e a Assistência Social são consideradas deveres do Estado, razão pela qual são de acesso universal e se apresentam como não-contributivas (ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 46). Qualquer indivíduo que delas necessite ou experimente algum tipo de risco social28 28 O risco social é evidenciado pela perda da sua capacidade laborativa, experimentado pela vida em coletividade. pode acessá-las, desde que esteja contemplado pelos procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) ou pelas políticas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Por sua vez, a previdência social é contributiva29 29 Para acessar a sua proteção dos riscos sociais é preciso custear parte dessas despesas com contribuições mensais (ESTEVES, 2015, p. 48). , de tal forma que o seu acesso está restrito para "[...] àqueles que contribuíram durante a vida considerada ativa [...]" (ESTEVES, 2015, p. 46).

Destarte, a Seguridade Social fixa um seguro para todas/os as/os cidadãs/ãos, com o objetivo de proteger aquelas/es30 30 Dentro da previdência social são protegidas/os aquelas/es que são designadas/os como beneficiárias/os, que podem ser as/os seguradas/os, aquelas/es que experimentam os riscos sociais, ou as/os dependentes, aquelas/es que dependiam economicamente delas/es (ESTEVES, 2015, p. 48). São exemplos de dependentes: cônjuges, filhas/os menores e aqueles que são designados pela/o segurada/o como dependentes (pai(s)/mãe(s), filhas/os maiores). No âmbito dos segurados há os obrigatórios (empregados, empregados domésticos, trabalhadores avulsos, contribuintes individuais e segurados especais) e facultativos (ESTEVES, 2015, p. 48). que são afetadas/os pelos riscos sociais (ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 46). Essa afetação é uma disputa constante daquelas/es membros da sociedade perante o Estado, sendo que esse sistema de proteção é uma conquista da classe trabalhadora, que luta pela progressividade da proteção daquelas/es que estão em situação de vulnerabilidade (COHN, 1980, p. 58).

Logo, a criação de um sistema securitário busca a proteção de múltiplos aspectos da vida, baseando-se em um conjunto de serviços públicos de qualidade que deve ser concedido a todas as pessoas em situação de risco social. É o estabelecimento dos três pilares da Seguridade Social, dentro da estrutura constitucional, que garante o atendimento às/aos cidadãs/ãos que não conseguem prover as suas necessidades mais básicas, tampouco de seus familiares. Para isso, destaca-se a Assistência Social como ramo não-contributivo para realizar a proteção social que tem como teleologia a produção das/os mais vulneráveis.

3. ASSISTÊNCIA SOCIAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DAS/OS VULNERÁVEIS

Apresenta-se a Assistência Social enquanto o pilar jurídico que opera dentro da Seguridade Social, com a finalidade de proteção das/os mais vulneráveis. Isso não isenta de contradições: é um instrumento do direito moderno/colonial que se encarrega de proteger quem está em condição de miserabilidade. Enquanto mecanismo conciliador, também tem a função de apaziguar a luta coletiva daquelas/es que estão em uma condição precária (BUTLER, 2019b). É um mecanismo que opera com a proteção majoritária de pessoas cisgêneros. As violências que acontecem com as pessoas sexodissidentes, ainda, não tiveram uma proteção específica desse ramo, mesmo que dentro da sua sistemática.

Na análise da vulnerabilidade abarcada pela Assistência Social não se considera apenas o critério da baixa renda, mas sim a privação de necessidades básicas (SEN, 1999, p. 36-37). É necessário compreender que na sociedade brasileira a distribuição dos riscos sociais ocorre de maneira distinta daquelas operadas no Norte, pois as marcas da estrutura de poder da modernidade colonial ainda estão presentes nas relações sociais.

Isso reafirma a necessidade de uma Assistência Social universal atenta às opressões locais, com a finalidade específica de proteger aquelas/es mais pobres, que são afetadas/os também pelo racismo e pelo sistema cis-heteronormativo da colonialidade: trata-se de vivenciar diretamente e diariamente os riscos sociais (MELLO, 2023; MOMBAÇA, 2016MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2016.).

A Assistência Social foi uma conquista construída pelos atores sociais da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, que visavam um maior destaque desse setor a nível constitucional, para garantir o seu funcionamento e a proteção às/aos suas/seus destinatárias/os. Havia o propósito de cooperação coletiva e solidária para o desenvolvimento social daquelas/es em situação de vulnerabilidade, motivo pelo qual prevaleceu a ideia de construção igualitária de um fundo comum, ao qual se recorreria no caso de determinadas eventualidades (DUARTE, 2002, p. 138-141).

Tradicionalmente, a proteção social é pensada para trabalhadoras/es formais e seus familiares, conforme ditames do sistema cognominado bismarckiano31 31 É um sistema contributivo compulsório no qual empregadas/os se vinculam a este fundo de previdência. . Assim, esta conquista ampla da imposição do dever Estatal de assistência, vinculada à normatividade constitucional, eleva a proteção assistencial como um direito humano e fundamental (SAVARIS, 2016, p. 10), rompendo com a dimensão da caridade assistencialista. A assistência, na Constituição de 1988, assume o desafio de ultrapassar o caráter moralista, religioso, individualista e anticlassista da política pública herdada do sistema moderno/colonial, em um campo de disputa da riqueza socialmente produzida (COUTO, 2015COUTO, Berenice Rojas. Assistência Social: direito social ou benesse? Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 665-677, out./dez. 2015.).

Logo, a política assistencial tem o dever de erradicar a miséria e reduzir desigualdades, propiciar as condições para a existência digna e destinar recursos para o desenvolvimento da personalidade humana e para a sua participação social (SAVARIS, 2016, p. 10). A melhoria da condição socioeconômica, em uma política pública seletiva para promover a redistribuição de riquezas e renda às/aos mais vulneráveis, consiste em efetivar o princípio constitucional da distributividade e a seletividade de benefícios e serviços da seguridade (art. 194, parágrafo único, III da CFRB/88), que encontra seu núcleo axiológico na Assistência Social (BRASIL, 1988).

O princípio da seletividade consiste em selecionar quais são/serão os infortúnios mais pertinentes para gerar uma proteção positiva por parte do Estado. O referido princípio deve ser contextualizado no cenário de abrangência da cobertura da Assistência Social, em que este sempre está em disputas no plano ideológico e material das diferentes concepções e projetos do Estado (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7). O princípio da distributividade estabelece quais são as/os sujeitas/os que necessitam de maior proteção, e que devem ser contemplados, conforme a teleologia da assistência que busca a justiça social como uma forma de redução das desigualdades socioeconômicas mediante uma política de distribuição de renda. O questionamento que reside aqui é quais são os termos de seletividade e distributividade escolhidos pelo Estado-moderno?

No âmbito da Assistência Social, destaca-se a aplicabilidade imediata das suas normas, efetivadas mediante políticas públicas que são divididas entre as três esferas de governo, federal, estadual e municipal (SERPA; VÍRGINIA, CAVALCANTE, 2015). Tais políticas se dividem em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, que se distinguem pela função dos programas, serviços, ações e benefícios (SERPA; VÍRGINIA; CAVALCANTE, 2015). As ações de proteção básica são de caráter preventivo, com vistas à diminuição das vulnerabilidades e riscos sociais, enquanto aquelas de proteção especial são efetivadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), base territorial local que oferece serviços em áreas de maior vulnerabilidade social (SERPA; VÍRGINIA; CAVALCANTE, 2015). Considerando esses fatores, é necessário distinguir os conceitos de seguro social e Assistência Social:

[...] seguro e assistência, por suas naturezas e técnicas completamente diferentes, agem, em realidade, em dois planos completamente distintos. O seguro social garante o direito a prestações reparadoras ao verificar-se o evento previsto, antes que os danos possam determinar o estado de indigência, de privação, da pessoa golpeada. A assistência intervém, não de direito, mas segundo avaliação discricionária, somente quando, por causa de eventos previstos ou não previstos, esteja já em ato um estado de indigência, de privação, que ela tem o fim de combater. (CARDONE, 1990, p. 24, grifo nosso).

Nota-se que o seguro social é per se uma proteção frente à possibilidade de riscos que podem ocorrer quando se vive em sociedade. Por sua vez, a assistência atua naqueles casos em que os riscos sociais já são uma realidade experimentada, mesmo que em caráter preventivo.

Vale ressaltar que a materialização do seguro social no âmbito Estatal se situa na previdência social, atingindo, majoritariamente no Brasil, trabalhadoras/es protegidas/os pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Logo, a proteção jurídica concedida pela previdência social atinge apenas uma parte da população, que é aquela que está inserida no mercado formal de trabalho.

Assim, o trabalho e a Assistência Social vivem uma contraditória inter-relação entre tensão e atração, em termos de acesso à cidadania. Para aquelas/es que estão fora do mercado formal e em uma situação vulnerável, em uma visão otimista, há a prestação em forma de proteção, o que caracteriza a Assistência Social, em que não se exige qualquer contribuição dos suas/es beneficiárias/es.

No entanto, Berenice Rojas Couto (2015COUTO, Berenice Rojas. Assistência Social: direito social ou benesse? Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 665-677, out./dez. 2015., p. 669-676) explica que essa contradição entre trabalho e Assistência Social é falaciosa, pois ambos são instrumentos de efetivação das potencialidades humanas. Esse conflito, de fato, é instaurado por narrativas de austeridade, que se utilizam do argumento meritocrático da culpabilização da pobreza de pessoas vulneráveis:

Na atualidade, considera-se que a contraposição entre Assistência Social e trabalho é parte do engodo que quer sombrear as relações que sempre se estabeleceram no campo do trabalho no Brasil. Não só temos um grande número de trabalhadores informais como também trabalhadores formais que, por contarem com salários muito baixos, necessitam ser protegidos também pela política de Assistência Social (COUTO, 2015COUTO, Berenice Rojas. Assistência Social: direito social ou benesse? Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 665-677, out./dez. 2015., p. 669).

O preconceito em relação à "dependência" de um benefício assistencial (COUTO, 2015COUTO, Berenice Rojas. Assistência Social: direito social ou benesse? Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 665-677, out./dez. 2015.) é alimentado pelo capital cultural colonial brasileiro, mascarado pelo mito da meritocracia e da democracia racial e de gênero, que presumem igualdade nas condições de acesso e permanência no trabalho formal. Logo, nesse debate é importante reafirmar a centralidade do trabalho protegido como protoforma do ser social (ANTUNES, 2009ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, Boitempo, 2009. (Coleção Mundo do Trabalho).), mas também é necessário extravasar a realidade da colonialidade brasileira, que, ao instituir as formas interseccionais de opressão e acumulação, impôs à classe trabalhadora mecanismos de reiteração de subalternidade (COUTO, 2015, p. 665-669; SPIVAK, 2010).

Assim, a Assistência Social é a vertente securitária que atua na proteção social de pessoas vulneráveis do mercado de trabalho, seja em âmbito formal ou informal. A proteção desse ramo social está vinculada à justiça redistributiva (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7). Nota-se que não se está defendendo a proteção apenas de vulnerabilidades econômicas transitórias, visto que a justiça redistributiva está intrinsecamente relacionada à justiça de reconhecimento para a diminuição das desigualdades sociais:

Lutas pelo reconhecimento ocorrem num mundo de exacerbada desigualdade material - desigualdades de renda e propriedade; de acesso a trabalho remunerado, educação, saúde e lazer; e também, mais cruamente, de ingestão calórica e exposição à contaminação ambiental [...]. Ao invés de simplesmente endossar ou rejeitar o que é simplório na política da identidade, devíamos nos dar conta de que temos pela frente uma nova tarefa intelectual e prática: a de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade [...] Significa também teorizar a respeito dos meios pelos quais a privação econômica e o desrespeito cultural se entrelaçam e sustentam simultaneamente (FRASER, 2006, p. 31).

Observa-se assim, a instauração da falsa dicotomia entre objetividade das estruturas e subjetividade das representações; de um lado, o cultural e o simbólico e, de outro, o econômico e a vida material (MBEMBE, 2015, p. 123-134). Nesse ideal de proteção dicotômica, mantém-se o direcionamento mínimo de recursos para a população em situação de miserabilidade social, como uma política assistencialista de pacificação social (ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 44-46). Essa política já se mostra existente desde o Estado Liberal e é sofisticada pelo Estado de Bem-Estar Social, que não chegou a se consolidar no Brasil, em que a proteção jurídica assistencial sistêmica da/o sujeita/o assume um caráter paternalista e benevolente (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7). Assim, cabe ao Estado Democrático de Direito, com todas as suas contradições em termos de normalização, repensar essa categoria em torno de um conceito complexo e plural de vulnerabilidade32 32 Este conceito será desenvolvido com maior profundidade no tópico seguinte. .

No Brasil, tem-se como marco jurídico determinante da Assistência Social, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) - Lei n° 8.742/1993, que a define como: “A Assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. (BRASIL, 1993).

Esse dispositivo legal estabeleceu três frentes de ação para o combate de vulnerabilidades sistêmicas, que são as prestações pecuniárias (benefício de prestação continuada - BPC - e benefícios eventuais), os programas assistenciais e os projetos de enfrentamento da pobreza. A LOAS também consolida a construção constitucional da assistência, que visa a proteção universal atentando-se para as concretudes da existência humana.

Outro marco importante é a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), instaurada em 2004, e o Sistema Único da Assistência Social (SUAS), em 2005, como medidas de concretização da LOAS, bem como a descentralização e o controle social - através dos conselhos deliberativos, atenção central das políticas nas famílias. Esta descentralização é consolidada pela criação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).

No que se refere ao enfrentamento à pobreza o PNAS, SUAS e CRAS ampliaram os beneficiários alcançados pelas políticas, no sentido de atingir um maior número de segmentos sociais atendidos pelo programa.

Nesta concepção, evidenciam-se condições de pobreza e vulnerabilidade associadas a um quadro de necessidades objetivas e subjetivas, onde se somam dificuldades materiais, relacionais, culturais que interferem na reprodução social dos trabalhadores e de suas famílias. Trata-se de uma concepção multidimensional de pobreza, que não se reduz às privações materiais, alcançando diferentes planos e dimensões da vida do cidadão. Uma ausência nesse conjunto de necessidades apontadas pela PNAS é a condição de classe que está na gênese da experiência da pobreza, da exclusão e da subalternidade que marca a vida dos usuários da Assistência Social. Ou seja, é preciso situar os riscos e vulnerabilidades como indicadores que ocultam/revelam o lugar social que ocupam na teia constitutiva das relações sociais que caracterizam a sociedade capitalista contemporânea. (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2011, p. 34).

Atualmente, conforme determina o art. 203, caput e inciso V da CFRB/88, existem dois grandes riscos sociais que são protegidos por meio de benefícios assistenciais: o envelhecimento em situação de miserabilidade social e as pessoas com deficiência (BRASIL, 1988). Tais riscos sociais são protegidos pelo benefício de prestação continuada (BPC), pelo auxílio inclusão das pessoas com deficiência e pelo bolsa-família, os quais não são o objeto central deste estudo33 33 Registro a existência de Benefícios Eventuais, conforme descrito no art. 22 da LOAS, os quais podem ser instituídos pelos municípios e estados em virtude de nascimento, morte, situação de vulnerabilidade temporária ou de calamidade pública (BRASIL, 1993). São de caráter provisório e suplementar, sendo definidos pelos entes descritos em suas leis orçamentárias, de acordo com os Conselhos de Assistência Social. O benefício eventual pode ser requerido pela/o cidadã/ão junto às unidades de Assistência Social no seu município ou no distrito federal, ou ainda pode ser identificado pelas equipes de Assistência Social no decorrer da sua atuação. _34 34 O estatuto da pessoa com deficiência (EPCD) reconhece o trabalho e o emprego da pessoa com deficiência como um direito inalienável, e tem um caráter de inserção social e de interação com os indivíduos da sociedade (BRASIL, 2015). Assim, o artigo 94 do EPCD prevê a existência de um auxílio-inclusão à pessoa com deficiência, com o objetivo de proporcionar uma abertura do mercado para que os jovens com deficiência obtenham uma formação profissional, sem alterar a condição de beneficiário da Assistência Social. Então, este dispositivo tem o intuito de garantir a autonomia de pessoas com deficiência, bem como buscar a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho. Esse auxílio seria pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e consiste em uma derivação do BPC para aqueles que ingressam no mercado de trabalho. Ver a recente Lei 14.176/21. .

Os benefícios assistenciais têm o intuito de proteção ao ser humano em face de vulnerabilidades experimentadas pela vida cotidiana. Apresentada toda a sistemática da proteção vinculada à Assistência Social, bem como aquelas/es que podem receber os benefícios por ela oferecidos, convém perguntar: por que não reivindicar uma proteção assistencial dos corpos precários em transição de gênero? O Estado não tem o dever de reconhecer a transição de gênero como uma vulnerabilidade a ser protegida pela Assistência Social?

Para iniciar a resposta desta pergunta, investiga-se o conceito de vulnerabilidade, para averiguar se a hipossuficiência, que estrutura juridicamente a Assistência Social, consegue efetivar a proteção de corpos trans pela perspectiva socioeconômica, no intuito de causar danos às opressões interseccionais vivenciadas por pessoas em transição de gênero.

Alerta-se que essa investigação não visa tratar o direito previdenciário como um instrumento messiânico de emancipação de sujeitas trans em um sistema capitalista, colonial, patriarcal e cis-heteronormativo totalizante, do qual ele faz parte. Não se cogita a emancipação de tais sujeitas por meio de um benefício assistencial. Contudo, ele não deixa de ser um recurso estratégico extremamente importante para vidas precárias (BUTLER, 2019; SPIVAK, 2010).

4. VULNERABILIDADE COMO UMA CONSTRUÇÃO JURÍDICA

Para essa construção ter sentido é preciso entender a construção jurídica-social da vulnerabilidade dentro do Estado Democrático de Direito. O conceito de vulnerabilidade é debatido em suas diversas versões e posições jurídicas, seja no “direito privado” ou no “direito público”, em números quantitativos, em vários ramos das ciências, em termos históricos, políticos e sociais. A sua definição é alvo de disputa pelos diversos setores de conhecimento, sendo que, nas ciências sociais, está atrelada ao conceito das minorias (SCOTT et al., 2018, p. 601-602). Essas minorias não representam os termos absolutos da população, haja vista que a concepção de “vulnerabilidade” se desenvolve em contato com a sociedade e seus conceitos e pré-conceitos (SCOTT et al., 2018, p. 601-602).

A vulnerabilidade interconecta-se com o direito à diferença, visto que se identifica um elo mais fraco ou diferente dentro daquela relação e protege-se com direitos, seja nos contratos de emprego, consumo ou entre particulares (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p. 180). Por sua vez, a hipossuficiência é entendida como o estado jurídico e a vulnerabilidade o estado material-social.

Dentro desse contexto, a precariedade, discutida neste trabalho nos tópicos anteriores, dentro do direito, pode ser materializada e balizada pelo conceito sociológico e ontológico de vulnerabilidade, transposto para o direito como hipossuficiência. Não apenas como uma constatação, mas no sentido de reivindicar uma discussão jurídica de corpos que estão em posições sociais e ontológicas desfavoráveis. Assim, esta seção trabalhará com a articulação da vulnerabilidade dentro da Assistência Social para viabilizar a transposição jurídica do conceito de precariedade no locus da hipossuficiência do direito previdenciário.

A vulnerabilidade, dentro do espectro jurídico da hipossuficiência, é movida pela precariedade desenvolvida em virtude da exposição aos riscos eminentemente sociais e subjetivos, que são articulados por seus marcadores de sociabilidade e de caráter ontológico.

Na Seguridade Social, os conceitos de vulnerabilidade consolidam-se na área da saúde, com a finalidade específica de reordenar práticas de prevenção e promoção para um espectro atento ao contexto social. Em 1980, o conceito foi relacionado com a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 6-8; SCOTT et al., 2018, p. 601-602). A definição vem para substituir a ideia de "grupo de risco", haja vista que os estudos indicavam o aumento das chances e formas de contágio pela doença em majoritariamente toda população (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 6). Essa evolução remete ao aspecto social que uma população sofre em determinadas estruturas de localização hierárquicas (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7-8).

No âmbito da área da saúde, reconheço a preponderância das diversas conjunturas macrossociais “[...] sem desconsiderar a dimensão pessoal requisitada para o enfrentamento das situações vulnerabilizantes [...]" (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 6). Dessa forma, o que se observa é que o conceito de vulnerabilidade não está atrelado a um grupo específico, mas sim a uma determinação subjetiva gerada em contato com o coletivo.

Por sua vez, as vulnerabilidades dentro da previdência social são estabelecidas a partir do reconhecimento jurídico de que existem determinados riscos sociais que geram hipossuficiência das/os sujeitas/os, que devem ser protegidos em detrimento de outros. Destaco as aposentadorias especiais35 35 Essas aposentadorias especiais se referem ao benefício previdenciário pago às/aos trabalhadoras/es que exercem suas atividades laborais expostas a agentes nocivos, que podem gerar algum prejuízo à sua saúde e integridade física ao longo do tempo (CASTRO; LAZZARI, 2020, p. 819-821). Esse tipo de benefício também foi atingido pela EC n ° 103/2019. em razão da exposição a ambientes perigosos, como os ambientes insalubres ou penosos, ou mesmo a previsão constitucional de que as mulheres podem se aposentar 5 anos36 36 Com a vigência da EC n° 103/2019, a diferença dentro do RGPS será de 3 anos, visto que foi consagrada a norma que prevê a idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens CASTRO; LAZZARI, 2020). Trata-se de um discurso necropolítico que desconsidera os efeitos da divisão sexual do trabalho para as mulheres (MBEMBE, 2015). antes em relação aos homens em decorrência da divisão sexual do trabalho. Por fim, um outro exemplo que se destaca é a aposentadoria programada no caso das/os trabalhadoras/es rurais37 37 Uma condição para a implementação da aposentadoria por idade de trabalhadora/trabalhador rural é a obrigatoriedade da comprovação da carência, qual seja, a contribuição pelo período mínimo de 15 anos (180 contribuições) durante o exercício de atividades rurais (independentemente do gênero). , que também têm a sua idade mínima reduzida em 5 anos pela existência de um alto desgaste físico no exercício das suas atividades laborais.

Na Assistência Social, o termo “vulnerabilidade” é necessariamente interligado ao vocábulo “social”, que indica a evolução do entendimento sobre as privações e desigualdades derivadas da pobreza (SCOTT et al., 2018, p. 601-605). A assistência é, por definição, o ramo que lida com as vulnerabilidades no âmbito dos direitos sociais.

Nos anos 1990, estimulada pela existência de variáveis puramente econômicas vinculadas à pobreza, ocorre a reorientação da política pública da Assistência Social. Como demonstram Michelly E. do Carmo e Francini L. Guizardi:

As imbricações entre os conceitos de risco e vulnerabilidade no campo da Assistência Social levam a concepções que tomam desde a dimensão mais individual do primeiro sobre o segundo, passando pela assunção daquele como a condição da frágil sociedade contemporânea e deste como a condição dos indivíduos inseridos nesta sociedade culminando por atrelar a situação de vulnerabilidade dos sujeitos a um certo risco. Ainda que as discussões empreendidas prezem por distinções conceituais, temos de admitir que o termo vulnerabilidade, no escopo da Assistência Social, se destaca pela aptidão com que engloba situações entre a iminência de um risco e a desvinculação ou desfiliação social, de fato. (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7).

Destaca-se que, muito embora a questão de vulnerabilidade possa atingir majoritariamente a população que é considerada como pobre no sentido econômico, nas sociedades capitalistas contemporâneas, especialmente aquelas que foram colonizadas - como o Brasil -, as relações não podem ser tabuladas apenas em termos de classe, visto que os marcadores dessa vulnerabilidade são distribuídos desigualmente (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7). Estes marcadores em territórios do Sul são interpenetrados por relações e posições vinculadas à raça e ao gênero. Como salienta:

Devido ao precário acesso à renda, os sujeitos ficam privados ou acessam com mais dificuldade os meios de superação das vulnerabilidades vivenciadas, sejam tais meios materiais ou capacidades impalpáveis, como a autonomia, a liberdade, o autorrespeito. É nesse sentido que se torna possível associar a vulnerabilidade à precariedade no acesso à garantia de direitos e proteção social caracterizando a ocorrência de incertezas e inseguranças e o frágil ou nulo acesso a serviços e recursos para a manutenção da vida com qualidade. (CARMO; GUIZARDI, 2018, p. 7).

Percebe-se, então, que, com o advento da CRFB/88, a vulnerabilidade econômica não basta como elemento diferencial dos próprios direitos sociais (SOUTO MAIOR; CORREIA, 2007SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. O que é direito social? São Paulo: LTr, 2007., p. 24-25). Para a constituição dessa proteção com base nos direitos fundamentais, é necessária a intersecção de mais de uma dessas variantes, a fim de que a proteção adequada seja efetivada pelo Estado.

O Conselho Federal de Medicina já reconhece a transição de gênero como um período de vulnerabilidade, como demonstrado na Resolução n° 2.265/2020 no seu Anexo IV:

A vulnerabilidade psíquica e social do indivíduo com incongruência de gênero ou transgênero é, em geral, intensa. São elevados os índices de morbidades existentes nessa população, entre eles transtornos depressivos graves, abuso/dependência de álcool e outras substâncias químicas, transtornos de personalidade, transtornos de estresse pós-traumático e transtornos de ansiedade. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).

Entender a vulnerabilidade nos termos da Assistência Social é um processo no qual se tem diversos fatores e marcadores sociais dentro da materialidade daquele caso concreto, articulado com uma precariedade não apenas econômica. Assim, a desestabilização do encontro com o queer se mostra no sentido: porque as vidas trans estão sendo dizimadas pelo Estado e não se criam proteção para esse grupo dentro da assistência? Até quando a contagem do tempo da vida será pautada na cisgeneridade, que impõe, dentro das suas construções e moldes, a exclusão do mercado de trabalho de pessoas trans e travestis. A assistência para cumprir a sua função teleológica precisa considerar as vidas trans e abjetas dentro do seu arcabouço, mesmo que isso se faça de uma forma transitória para a proteção dessas precariedades.

A construção da transição de gênero enquanto forma de proteção possível vem da imposição da cisgeneridade como uma forma de governança. Desta forma é preciso compreender a transição de gênero.

5. PROTEÇÃO JURÍDICA DA TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Paul B. Preciado (2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.) denuncia a existência de padrões configurados por biodispositivos que operam e definem as identidades de maneira binária.

Essa construção se mostra central para a delimitação do que se trata a transição de gênero e quais são as motivações e as finalidades de se realizar uma proteção específica pelo aparato estatal. Assim, tem-se as atuais normativas sobre a transição de gênero que trazem questões afetas a hormonioterapia38 38 No âmbito das ciências médicas existe a previsão da realização dos procedimentos de hormonioterapia para alguns tratamentos, a exemplo da utilização de forma paliativa para câncer de mama e de próstata. Assim, nesta pesquisa adoto o conceito de hormonioterapia como a utilização de hormônios para obter resultados desejados. . A Resolução n° 2.265/2020 tem os novos e os atuais critérios para a realização dos procedimentos de hormonioterapia e cirurgias de readequação sexual. Já no seu artigo primeiro são abordadas algumas definições:

Art. 1º Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero. § 1º Considera-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero. § 2º Consideram-se homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem. § 3º Consideram-se mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher.§ 4º Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália. § 5º Considera-se afirmação de gênero o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).

Nessa resolução se vê a preocupação do Conselho em delimitar conceitos introdutórios, uma vez que foi estabelecida uma espécie de cartilha básica, ou mesmo destinatárias/os daquela resolução, o que per si já se revela uma exclusão, como em relação às pessoas não binárias que desejam realizar a transição de gênero.

A definição contida no parágrafo 5° do art. 1° mostra-se como um avanço ao dispor que o procedimento da hormonioterapia e as cirurgias são consideradas afirmação de gênero, e não como constitutivas do gênero (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020). Dessa forma, em uma leitura otimista, noto uma tentativa de transparecer que o gênero não é um produto biológico, mas sim uma construção social.

O art. 2° discorre sobre a necessidade de atenção integral à pessoa transexual, devendo-se compreender todas as suas necessidades (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020), que não se resumem ao aspecto biomédico, apesar de este também ser importante. Além disso, destaco a importância da disposição sobre questões vinculadas à realização do bloqueio puberal39 39 Definido na resolução no seu anexo II como: "O bloqueio puberal é a interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico pelo uso de análogos de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH)" (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020). e hormonioterapia cruzada40 40 "A hormonioterapia cruzada é a forma de reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outras medicações hormonais são administradas ao transgênero para feminização ou masculinização, de acordo com sua identidade de gênero." (BRASIL, 2020). , que deve começar a partir dos 16 anos (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).

A realização de procedimentos cirúrgicos pode acontecer a partir dos 18 anos - o que é uma novidade, pois antes era a partir dos 21 anos -, e deve acontecer cumulativamente com o acompanhamento prévio de um ano pela equipe multidisciplinar e interdisciplinar41 41 Apesar do tema desta dissertação ser distinto da transição de gênero nas crianças e adolescentes, faço alguns comentários com aportes no livro Um apartamento em Urano de Paul B. Preciado (2020b) que, no seu capítulo intitulado Quem defende a criança queer, discute qual a discursividade dentro destes debates. O autor (PRECIADO, 2020b) afirma que a forma faz ronda ao redor dos recém-nascidos e que existe um artefato biopolítico que permite a normalização para o adulto. Um dos grandes pontos sensíveis à transição de gênero hoje é a sua realização em crianças e adolescentes, abordando seu sofrimento mental, mas também questões polêmicas sobre supostas “desistências” da hormonização. No Brasil, a tomada de decisão da hormonioterapia não é realizada de forma autônoma pela criança/adolescente: é uma decisão conjunta e negociada, com os pais, médicos e psicólogos, que nem sempre é definitiva, pois é um processo de autoconhecimento, conforme previsão explícita na Resolução n° 2.265/2020. Questiono o processo de transição de gênero ainda como uma perspectiva binária, sendo que é preciso se identificar com o gênero oposto, mas qual o ideal de corpo? Longe de abster dessa discussão apoio-me, mais uma vez, nas ideias de Preciado (2020b) para defender a transição de gênero para as crianças e os adolescentes como um direito de todo corpo, que independe de idade, de seus órgãos sexuais ou genitais, de seus fluidos reprodutivos. “O direito de todo corpo de não ser educado para transformar-se exclusivamente em força de trabalho ou força de reprodução. É preciso defender o direito das crianças, de todas as crianças, de seres consideradas como subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.” (PRECIADO, 2020b, p. 73). (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).

É por meio destas normativas que se percebe a formulação sexo-somato-política dada ao gênero. Percebe-se que existe uma regulação específica dos procedimentos permitidos e listas de hormônios para serem utilizados:

A hormonioterapia cruzada no adulto deverá ser prescrita por médico endocrinologista, ginecologista ou urologista, todos com conhecimento científico específico, e tem por finalidade induzir características sexuais compatíveis com a identidade de gênero. Assim, objetiva-se:

a) reduzir os níveis hormonais endógenos do sexo biológico, induzindo caracteres sexuais secundários compatíveis com a identidade de gênero;

b) estabelecer hormonioterapia adequada que permita níveis hormonais fisiológicos compatíveis com a identidade de gênero. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020, grifo nosso).

Há a delimitação pelo Estado e pelo direito do que é ou não permitido dentro da institucionalidade do gênero. Esta é a produção farmacopornográfica da subjetividade, bem como é a atribuição das funcionalidades ligadas à produção do gênero. Percebe-se, a partir do saber médico, a eleição de critérios que permitem decidir se o corpo é masculino ou feminino (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 111). O modelo de reconhecimento visualmente produzido pelas moléculas também é aquele que se define como o produtor do tecnogênero (PRECIADO, 2018, p. 111-112). São estabelecidas produções que permitem às pessoas a se identificarem com aquele gênero pretendido e, por conseguinte, formarem a sua própria identidade de gênero42 42 Insta observar que não está se limitando a produção da identidade de gênero a um discurso biologizante. Ao revés, pelas normas, está sendo produzida uma identidade de gênero. . O gênero passa a ser uma construção possível, não apenas aos cisgêneros. Essa construção, a partir dessas resoluções, é disciplinada pelo Estado.

Por conseguinte, a produção ontológica do sujeito é feita pela construção de padrões óticos de corpos e dos papéis sociais que lhes são atribuídos, por meio do bioagenciamento de hormônios (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 112-113). Por meio de procedimentos cirúrgicos conjugados com os dispositivos anteriormente descritos são produzidos "[...] regimes de poder e conhecimento; reguladores ideais, ficções biopolíticas que encontram seu suporte somático na subjetividade individual." (PRECIADO, 2018, p. 112-113).

Assim, há a construção de regimes sexo-gênero que são produzidos e assentados na produção da indústria médica e biotécnica construtivistas, em que os papéis e as identidades de gênero podem ser artificialmente concebidos. Isso se torna nítido no Anexo II da Referida Resolução estudada quando se discorre sobre a utilização dos hormônios:

As doses dos hormônios sexuais a serem adotadas devem seguir os princípios da terapia de reposição hormonal para indivíduos hipogonádicos de acordo com o estágio puberal. Não são necessárias doses elevadas de hormônios sexuais para atingir os objetivos descritos da hormonioterapia cruzada e os efeitos desejados, além de estarem associadas a efeitos colaterais. Os hormônios utilizados são:

a) a testosterona, para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários masculinos nos homens transexuais;

b) o estrogênio, para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários femininos nas mulheres transexuais e travestis;

c) o antiandrógeno, que pode ser utilizado para atenuar o crescimento dos pelos corporais e as ereções espontâneas até a realização da orquiectomia. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020, grifo nosso).

A invenção do hormônio, o seu estudo e a sua produção representam uma quebra epistemológica em relação ao corpo moderno mecânico, que também rompe com o modelo psicológico daquilo que se espera em termos de cis-heteronormatividade (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 171-183).

Não restam dúvidas acerca do caráter construído dos gêneros, que agora têm nítida a sua produção (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 242). Os corpos são produzidos pelos hormônios como próteses químicas que estão à disposição das pessoas (tanto transgêneros, como cisgêneros) (PRECIADO, 2018, p. 413). Dessa forma, vislumbro que o padrão farmacopornográfico43 43 A era farmacopornográfica se trata da política econômica do sexo dentro do contexto de uma crítica política do capitalismo, em um experimento subversivo do sexo-gênero (OLIVEIRA, 2018, p. 399; PRECIADO, 2018, p. 84-89). É um padrão de poder manifestado na estrutura contemporânea de naturalização de controle molecular-informático (PRECIADO, 2018, p. 84), mas também de microrrevoluções surgidas desses mesmos pressupostos bioquímicos e biopolíticos (OLIVEIRA, 2018, p. 399). Então, são tecnologias biomoleculares, digitais e de transmissão de informações que se infiltram nos nossos corpos e interpenetram a vida cotidiana (PRECIADO, 2018, p. 85). Explicar a farmarcopornografia tem como objetivo demonstrar as formas de atuação desta biopolítica tecnológica, que vai além dos binarismos modernos de gênero, reificando-os. Este contexto é composto por uma rede produtiva-vigilante de micromoléculas, capazes de redefinir regimes comportamentais político-capitalistas que engendram a população dentro de noções herméticas dialéticas, as quais são absorvidas pelo jurídico (PRECIADO, 2018, p. 85-88). de poder está presente nas construções do que é o corpo, de quais são os fatores de sua classificação (miligramas de hormônios) e seu atual, e tradicional, entrelace com a medicina (como é nítido nas construções biopolíticas) (PRECIADO, 2018).

As normativas e resoluções determinam quais corpos importam, ou seja, quem são aquelas/es que podem realizar a transição de gênero de maneira gratuita e pública no Brasil. As normas, em um sentido lato, têm a função de disciplinar corpos e os inserir no cistema (VERGUEIRO, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). A existência de normas jurídicas que regulam a transição representa um grande avanço para a garantia do direito à existência digna de pessoas trans. No entanto, de alguma forma, tais dispositivos jurídicos também manifestam a conformação de existências limítrofes dentro do direito e da medicina. Há, a partir destas normas, a produção de corpos e, muito mais, de subjetividades que podem existir dentro deste Estado de direito44 44 Insta salientar que o reconhecimento da transição de gênero como direito não se mostra suficiente para proteger tais subjetividades, mas este papel institucional do Estado em considerar tais procedimentos como medida de Saúde Pública é extremamente importante. .

Lou Hanna (2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.) aponta que um novo patamar de lutas políticas ou mesmo de transformações pode ser a leitura da transição de gênero como um trabalho: um trabalho biológico-ontológico45 45 Sara Ahmed (2020) traz que o trabalho ontológico consiste em um trabalho invisível realizado por pessoas negras que se desdobra em duas vertentes. A primeira se manifesta no enfrentamento da violência diária para permanecer em instituições que são historicamente naturalizadas como brancas, a exemplo da academia jurídica, inclusive aquela trabalhista. Este trabalho ontológico se desenvolve no âmbito do ser, na medida em que pessoas negras não se sentem pertencentes àquele lugar, o que pode resultar em adoecimento mental, suicídio, desvalorização do trabalho, assédio moral e sexual, discriminação, silenciamento, roubo da fala, entre outras modalidades de microviolência diária. A segunda vertente diz respeito ao trabalho de pessoas pretas em adquirir um know-how para desenvolver estratégias de sobrevivência em instituições brancas, mesmo que isso implique muitas vezes a mutilação de si mesmo. Tal exemplo é trazido para essa pesquisa entendendo que existe um trabalho biológico das pessoas trans em permanecer dentro das instituições cisgêneras e de se adaptarem a elas. Existe uma forma que está integrada e desenvolvida dentro daquelas pessoas para sobreviverem a estas realidades. , como uma hipótese de comodificação do ser. Nas palavras da autora:

A transição de gênero é um trabalho biológico no sentido forte do termo, quer dizer, implica diretamente o próprio corpo do sujeito trans. O percurso “oficial” de transição implica a hormonoterapia, seja para as pessoas transfemininas através do uso de estrogênio e de antiandrógenos para bloquear a produção de testosterona ou as pessoas transmasculinas através da aplicação de testosteronas. O uso de hormônios modifica nosso corpo, como também nossa relação com o espaço e o mundo público exterior. (HANNA, 2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.).

O discurso da autora está inserido em uma reivindicação frente aos valores econômicos e culturais gerados na lógica da própria transição de gênero (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.). Não se trata apenas de abordar e trabalhar com questões vinculadas aos efeitos biológicos, mas sim de pensar como aquele corpo trans se apresenta frente àquela hormonionormatividade46 46 O conceito de hormonionormatividade, que é a regulamentação do gênero a partir de substâncias bioquímicas como ficções sexopolíticas, que têm a finalidade de ditar quais são os corpos que podem ou não integrar um determinado contexto; que estão (des)vinculados a organizações políticas dominantes (PRECIADO, 2018, p. 205). Existe uma necessidade da gestão legal e comercial das moléculas para a produção biopolítica de corpos, a partir de fenótipos que são culturalmente reconhecidos e nomeados como masculino e feminino (PRECIADO, 2018, p. 123) como um produto (HANNA, 2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.). Na era farmacopornográfica, um dos objetivos é transformar os corpos em padrões que podem ser (re)produzidos.

Então, este trabalho adota o conceito de Lou Hanna (2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.) como marco central de sua análise acerca da transição de gênero e com a finalidade estratégica de reconhecer esse trabalho biológico como uma vulnerabilidade experimentada pelas pessoas trans dentro da sua vida em sociedade. Trata-se, assim, de reconhecer que estas são dignas de proteção assistencial pelo Estado ante a vulnerabilidade experimentada por estes corpos durante esse período de transição.

Essa vulnerabilidade foi discutida sob o enfoque da precariedade e das interdependências dentro das relações sociais com a sua interface com o direito. Assim, reafirma-se que a vulnerabilidade dentro da assistência deve ser entendida como aquela que compreende as relações sociais interseccionais vinculadas às identidades de sujeitas/os que experimentam as situações de exclusão social, pobreza, determinantes históricos e políticos. A proposta apresentada nesta pesquisa com o conceito de vulnerabilidade é articulada interseccionalmente com identidade de gênero. Tal vulnerabilidade é uma realidade vivida por aquelas/es que não se adequam ao padrão reducionista e enrijecedor binário dos gêneros masculino e feminino (PEDRA et al., 2018PEDRA, Caio Benevides et al. Políticas públicas para inserção social de travestis e transexuais: uma análise do Programa Transcidadania. Revice - Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 170-199, jan./jul. 2018., p. 194), e, consequentemente, também são expulsos do lócus do trabalho digno.

A ideia da proteção dessa vulnerabilidade recai sobre o fato de a Assistência Social ser um direito subjetivo que tutela a proteção dos riscos sociais para aquelas/es que necessitarem. Contudo, não são todos os riscos que possuem tal proteção, como já foi apresentado nesta pesquisa. A proposta da proteção da transição de gênero pela Assistência Social é viável, pois: (i) esse marcador social segue as regras gerais da proteção das vulnerabilidades, em termos econômicos, sociais, farmacopornográficos e existenciais; (ii) esse ramo jurídico tem como finalidade a erradicação de misérias para propiciar condições de existências dignas para os beneficiários; e (iii) a Assistência Social tem como objetivo a criação de uma cooperação social para aquelas/es pertencentes à sociedade plural, bem como proteger essas pessoas dos riscos sociais mais agudos.

6. CONCLUSÃO

Discutiu-se a proposição da crítica queer ao direito como um instrumento de contestação das normas impostas pelo sistema sexo/gênero/desejo. Desta forma, utiliza-se a teoria queer como uma forma de desestabilizar quais vidas importam para o campo da Assistencial Social.

Com base nestas construções, percebe-se que a Assistência Social é uma conquista subalterna ao proteger aquelas/es vulneráveis dentro do sistema capitalista. Neste sentido, questionou-se quais são os padrões inteligíveis desse cistema e vislumbra-se que lógica de proteção segue a cis-heteronormatividade.

Com essas constatações, faz-se necessária a pluralização da/o sujeita/o epistêmica/o do direito na seara dos direitos sociais a partir de outras-potencialidades47 47 Outras-potencialidades para os direitos sociais se articula com a proposição de epistemologias dissidentes (MÁXIMO PEREIRA, NICOLI, 2022) como o afrofuturismo (CORRAIDE, 2022), teorias decoloniais (MURADAS, MÁXIMO PEREIRA, 2018; SILVA, 2022), leituras queers (MELLO, 2023); feminismos (ALCOFF, 2020), epistemologias da greve (FARIA, 2023), revalorização do tempo improdutivo (COSTA, 2022), trabalho de cuidado (VIEIRA, 2018), teorias ecofeministas (ZBYSZEWSKA, 2023), dentre outras. para abarcar novas possibilidades e institucionalidades. Para isso construiu-se uma proposição estratégica acerca da transição de gênero como um tencionamento para a proteção das vidas de pessoas trans pela Assistência Social. O conceito de Lou Hanna (2020HANNA, Lou. Reivindicar a transição de gênero como um trabalho: esse corpo que não é o meu? Tradução de Luiz Morando. [S. l.], 2020.) se mostrou fundamental para a proposta da juridificação da transição de gênero como um período de vulnerabilidade.

Neste sentido, é possível confirmar hipótese inicialmente levantada, qual seja: o reconhecimento jurídico-previdenciário da transição de gênero, mediante uma leitura queer, que impulsiona a expansão do conceito de hipossuficiência da Assistência Social, é vantajosa para pessoas trans, na medida em que estas poderão desfrutar de benefícios assistenciais. A existência dessas precariedades dos corpos trans durante a transição de gênero e os propósitos da Assistência Social podem ser articulados para oferecer uma proteção jurídica durante esse processo de constituição de seus corpos, dentro das regulamentações já existentes.

Então, a sugestão é entender que se trata da proposição de um benefício que não é um fim em si mesmo, mas sim mais um passo na luta pelo reconhecimento jurídico da precariedade das vidas das pessoas trans. Logo, são necessárias outras ocupações estratégicas do direito, que concretizam as lutas por justiça redistributiva e de reconhecimento, e que têm como finalidade a expansão de direitos para as pessoas trans, para eliminar, ou ao menos diminuir, a situação de precariedade dessa população. Afinal, todas as vidas importam.48 48 Para viabilizar a discussão deste trabalho optou-se por utilizar os escritos de mulheres e pessoas LGBTI+ dentro da sua escrita. Está ideia está vinculada com a publicação do artigo que também adotou uma forma similar de estruturar a produção: MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza; BERSANI, Humberto. Crítica à interseccionalidade como método de desobediência epistêmica no Direito do Trabalho brasileiro. Revista Direito e Práxis, v. 11, p. 2743-2772, 2020.

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    » https://journals.openedition.org/rccs/697
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  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 concedido ao autor em sede de pesquisa doutoral. O autor agradece pelo subsídio teórico e a possibilidade do diálogo com a professora e pesquisadora Dra. Flávia Souza Máximo Pereira (UFOP). Agradeço, ainda, ao Grupo de Pesquisas RESSABER (UFOP) que contribui para a construção coletiva da pesquisa.
  • 2
    Em termos de desobediência epistêmica, utiliza-se o feminino na frente para demonstrar que o padrão neutro é uma escolha política.
  • 3
    O Estado, enquanto uma estrutura de poder, sabe da existência dessas/es sujeitas/os, mas prefere pelo aparato institucional não protegê-las.
  • 4
    Pensar em perspectivas radicais requer repensar até mesmo as estruturas protetivas do Estado, devido a sua estrutura de seleção da proteção social.
  • 5
    Ressalta-se que esta é última normativa promulgada e publicada por este órgão a respeito da hormonioterapia.
  • 6
    Utiliza-se Sul e Norte no sentido geopolítico da produção do conhecimento e não adstrito ao geográfico (GROSSFOGUEL, 2008)
  • 7
    Pode ser utilizado como sinônimo a expressão ativismo queer.
  • 8
    O termo poc era utilizado para se referir, principalmente, aos gays considerados afeminados, usado de forma pejorativa, em alusão ao barulho de salto alto. Entretanto, o termo foi ressignificado pela comunidade LGBTI, para passar de ofensa à uma referência de orgulho, em que as "pocs" (em uma leitura expansiva) se chamem de pocs sem que isso seja algo pejorativo.
  • 9
    Assumido em todas as multiplicidades que o termo comporta em um jogo constante com os armários (SEDGWICK, 2007SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu, [S. l.], v. 28, jan./jun. 2007.) e barreiras sociais.
  • 10
    Emerson Granja de Araújo Lacerda traz que: "A heterossexualidade, enquanto regime de verdade, é compreendida não como um poder a ser destruído e destituído, mas sim enquanto regime de normalização que disciplina os modos de vida; vida esta que se insere nas teias microfísica do poder relacional, cultural e contingente. [...] Esse regime está fundado em uma política de humilhação, do rechaço social, da abjeção àqueles(as) que performatizam, vivenciam, experienciam práticas, identidades, desejos e sexualidades distintas das já dadas anteriormente pelo regime de normalização das subjetividades. Logo, a possível binarização dessa ação política resvala diretamente em novas investidas violentas, hostis, ou melhor, LGBTfóbicas, já que existirá pessoas à margem dessa linha demarcatória e assimilacionista" (LACERDA, 2020, p. 100-101).
  • 11
    A abjeção, pode ser traduzida como aquilo que é rejeitado e expelido pelo - e do - sujeito, pois perturba sua identidade, a estabilidade do sistema, a ordem binária de gênero (KRISTEVA, 1980KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l’horreur: Essai sur l’abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980.).
  • 12
    A sociedade moderna ocidental estabeleceu um padrão de sujeito: homem, branco, cristão, heterossexual, burguês, produtivo (produtivista) e isso é feito a partir de normalidades, de linearidades, comportamentos que criam “caixas” dentro das quais pessoas e identidades deveriam caber (BAHIA, 2017BAHIA, Alexandre G. M. F. M. . Sobre a (in)capacidade do direito de lidar com a gramática da diversidade de gênero. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 18, n. 116, 2017.). Há uma normalização compulsória centrada em binarismo, na homogeneização e otimização dos indivíduos para a construção da sociedade na qual se exerce um poder disciplinar para o controle e gestão (adestramento social) sobre os corpos em todos os seus aspectos a partir de conhecimentos especializados e institucionalizados. A especialidade dos conhecimentos se dava pelos meios médicos, jurídicos, acadêmicos, entre outros, que de alguma forma estabelecia a normalidade dos sujeitos e, consequentemente, quem era excluído daquela sociedade (FOUCAULT, 1999b). Tal normalidade era estabelecida através de binarismos (normal/anormal), como doente/não doente, louco/saudável, e aquelas/es que eram postos do lado negativo do conceito deveriam ser excluídos ou reabilitados (FOUCAULT, 1999b). Por sua vez, a institucionalização é feita pelo aparato estatal e social que verificava tais comportamentos como violentos, desumanizadores, mas se portavam da mesma forma pela normalização de tais condutas, visto que aquelas práticas se justificavam por se tratar de sujeitos dissidentes daquela norma, identidade, comportamento e/ou padrão imposto. Diante desse cenário descrito, os sujeitos dissidentes são aqueles que, no contexto atual, não estão no padrão hegemônico estabelecido, mas não estão necessariamente excluídas/os, expulsas/os do convívio social e/ou têm seus comportamentos criminalizados. De tal forma que mulheres, negros, LGBTI podem ser tratados como sujeitos dissidentes dado esse contexto de não adequação ao padrão conceituado.
  • 13
    Esta política pode ser pensada como uma forma de absorção de pautas identitárias que despolitiza a diferença a partir de uma perspectiva de tolerância com o outro (WARNER, 1991WARNER, Michael. Fear of a Queer Planet. Queer Politics and Social Theory. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 1991). Trata-se de um movimento que é balizado por aqueles que já são integrantes da sociedade (homens brancos, de classe média) e exclui aqueles que são dissidentes e retira a radicalidade de suas reinvindicações (WARNER, 1991).
  • 14
    Capitalismo mainstream é a construção do sistema econômico que é pautado exclusivamente a partir da ótica do consumo (WARNER, 1991WARNER, Michael. Fear of a Queer Planet. Queer Politics and Social Theory. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 1991). No qual aquela pessoa só se torna sujeita/o se consume dentro dos padrões esperados na sociedade (WARNER, 1991).
  • 15
    Utilizei o termo “hiv/aids” ou “aids” em minúsculo para marcar uma perspectiva crítica ao pânico sexual criado pela aids, especialmente, nos anos 80, que ainda persiste atualmente (PELÚCIO, 2005).
  • 16
    É importante lembrar que, há anos, órgãos como a UNAIDS têm alertado que a correlação entre discriminação, desigualdade (social, econômica, etc.), racismo e vulnerabilidade aumenta o risco de exposição a doenças, de tal sorte que não há política pública de saúde sem, ao mesmo tempo, políticas de reconhecimento e de direitos humanos (ONUSIDA, 2017).
  • 17
    As expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” podem ser definidas de várias formas e é importante a lembrança de Alexandre Bortolini no sentido de que qualquer tentativa de conceituação e de classificação é sempre redutora de complexidade, já que a sexualidade humana é plural (BORTOLINI, 2009, p. 20). De toda sorte, apenas para dar os contornos sobre o que se pretende com as expressões acima, cabe definir que a orientação sexual diz respeito à “[...] ‘atração’, o desejo sexual e afetivo que uma pessoa sente por outras” (BORTOLINI, 2009, p. 22). Assim, de forma simplificada, podem ser enumeradas as orientações homossexual, heterossexual, bissexual, assexual, pansexual etc. Já a “identidade de gênero” (ou identidade sexual) “[...] tem a ver com como eu me coloco diante da sociedade, com quais grupos, representações e imagens eu me identifico e me reconheço” (BORTOLINI, 2009, p. 22). Classificados os seres humanos sob este aspecto se pode falar em: gênero masculino, gênero feminino, transgêneras (travestis e transexuais) e ainda as/os intersexuais. Como dito acima, como toda classificação, também essas conceituações são redutoras de complexidade. A experiência humana, inclusive quanto à sexualidade e à identidade é muito mais rica do que se pode tentar classificar. Ao fim e ao cabo, toda tentativa é mais uma manifestação tipicamente moderna de tentar encontrar normalidades e colocá-las em caixas conceituais (BAHIA, 2017BAHIA, Alexandre G. M. F. M. . Sobre a (in)capacidade do direito de lidar com a gramática da diversidade de gênero. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 18, n. 116, 2017., p. 499). O pensamento moderno - e o Direito Ocidental é parte dessa estrutura da Modernidade - está desenvolvido dessa forma (BOMFIM, BAHIA, SALLES, 2020; BOMFIM, BAHIA, 2022). Um dos grandes desafios do Direito é tentar pensar aquelas pessoas/grupos para além da tentação de encaixá-las.
  • 18
    Tipicamente realizada pelos movimentos gays e feministas.
  • 19
    Quando se fala em formar multidões queer sendo essas identidades únicas.
  • 20
    Quando se trata da construção de um ramo jurídico queer está delimitando a potência do queer ao direito. Teria-se uma limitação da potência e uma apropriação contraditória.
  • 21
    Trabalha-se aqui com a subalternidade a partir de Spivak (2010), que compreende um grupo que não integra a elite e permanece dela alijado dos seus recursos. É um conceito que reside na sua utilidade a partir da contraposição às narrativas dos sujeitos homogêneos dos colonizadores (SPIVAK, 2010), de tal forma que, dentro das relações coloniais, pode se entender que é aquele sujeito racializado, atravessado pelas subalternizações, também em razão de gênero
  • 22
    "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
  • 23
    Como traz Flávio Roberto Batista (2012BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da tecnologia dos direitos sociais. 2012. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012., p. 12): "Os direitos sociais são aqueles que a teoria do direito comumente denomina direitos de ‘segunda geração’, por vezes também inseridos em uma categoria mais ampla de direitos ‘econômicos, sociais e culturais’. No atual ordenamento jurídico brasileiro, são direitos sociais aqueles constantes dos artigos 6º aos 11 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e todos os seus consectários espelhados pelo restante do texto, mormente no capítulo que aborda a ordem social - art. 193 e seguintes.".
  • 24
    "Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais." (BRASIL, 1988).
  • 25
    "Art. 194. A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à Assistência Social." (BRASIL, 1988).
  • 26
    "Art. 195. A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II -do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III -sobre a receita de concursos de prognósticos. IV- do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar." (BRASIL, 1988).
  • 27
    “Art. 194. A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à Assistência Social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a Seguridade Social, com base nos seguintes objetivos: VI: diversidade da base de financiamento, identificando-se, em rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e Assistência Social, preservado o caráter contributivo da previdência social.” (BRASIL, 1988).
  • 28
    O risco social é evidenciado pela perda da sua capacidade laborativa, experimentado pela vida em coletividade.
  • 29
    Para acessar a sua proteção dos riscos sociais é preciso custear parte dessas despesas com contribuições mensais (ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 48).
  • 30
    Dentro da previdência social são protegidas/os aquelas/es que são designadas/os como beneficiárias/os, que podem ser as/os seguradas/os, aquelas/es que experimentam os riscos sociais, ou as/os dependentes, aquelas/es que dependiam economicamente delas/es (ESTEVES, 2015ESTEVES, Juliana Teixeira. O Direito da Seguridade Social e da Previdência Social: a Renda Universal Garantida, a taxação dos fluxos internacionais e a nova proteção social. Recife: UFPE. 2015., p. 48). São exemplos de dependentes: cônjuges, filhas/os menores e aqueles que são designados pela/o segurada/o como dependentes (pai(s)/mãe(s), filhas/os maiores). No âmbito dos segurados há os obrigatórios (empregados, empregados domésticos, trabalhadores avulsos, contribuintes individuais e segurados especais) e facultativos (ESTEVES, 2015, p. 48).
  • 31
    É um sistema contributivo compulsório no qual empregadas/os se vinculam a este fundo de previdência.
  • 32
    Este conceito será desenvolvido com maior profundidade no tópico seguinte.
  • 33
    Registro a existência de Benefícios Eventuais, conforme descrito no art. 22 da LOAS, os quais podem ser instituídos pelos municípios e estados em virtude de nascimento, morte, situação de vulnerabilidade temporária ou de calamidade pública (BRASIL, 1993). São de caráter provisório e suplementar, sendo definidos pelos entes descritos em suas leis orçamentárias, de acordo com os Conselhos de Assistência Social. O benefício eventual pode ser requerido pela/o cidadã/ão junto às unidades de Assistência Social no seu município ou no distrito federal, ou ainda pode ser identificado pelas equipes de Assistência Social no decorrer da sua atuação.
  • 34
    O estatuto da pessoa com deficiência (EPCD) reconhece o trabalho e o emprego da pessoa com deficiência como um direito inalienável, e tem um caráter de inserção social e de interação com os indivíduos da sociedade (BRASIL, 2015). Assim, o artigo 94 do EPCD prevê a existência de um auxílio-inclusão à pessoa com deficiência, com o objetivo de proporcionar uma abertura do mercado para que os jovens com deficiência obtenham uma formação profissional, sem alterar a condição de beneficiário da Assistência Social. Então, este dispositivo tem o intuito de garantir a autonomia de pessoas com deficiência, bem como buscar a inclusão dessas pessoas no mercado de trabalho. Esse auxílio seria pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e consiste em uma derivação do BPC para aqueles que ingressam no mercado de trabalho. Ver a recente Lei 14.176/21.
  • 35
    Essas aposentadorias especiais se referem ao benefício previdenciário pago às/aos trabalhadoras/es que exercem suas atividades laborais expostas a agentes nocivos, que podem gerar algum prejuízo à sua saúde e integridade física ao longo do tempo (CASTRO; LAZZARI, 2020, p. 819-821). Esse tipo de benefício também foi atingido pela EC n ° 103/2019.
  • 36
    Com a vigência da EC n° 103/2019, a diferença dentro do RGPS será de 3 anos, visto que foi consagrada a norma que prevê a idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens CASTRO; LAZZARI, 2020). Trata-se de um discurso necropolítico que desconsidera os efeitos da divisão sexual do trabalho para as mulheres (MBEMBE, 2015).
  • 37
    Uma condição para a implementação da aposentadoria por idade de trabalhadora/trabalhador rural é a obrigatoriedade da comprovação da carência, qual seja, a contribuição pelo período mínimo de 15 anos (180 contribuições) durante o exercício de atividades rurais (independentemente do gênero).
  • 38
    No âmbito das ciências médicas existe a previsão da realização dos procedimentos de hormonioterapia para alguns tratamentos, a exemplo da utilização de forma paliativa para câncer de mama e de próstata. Assim, nesta pesquisa adoto o conceito de hormonioterapia como a utilização de hormônios para obter resultados desejados.
  • 39
    Definido na resolução no seu anexo II como: "O bloqueio puberal é a interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico pelo uso de análogos de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH)" (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).
  • 40
    "A hormonioterapia cruzada é a forma de reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outras medicações hormonais são administradas ao transgênero para feminização ou masculinização, de acordo com sua identidade de gênero." (BRASIL, 2020).
  • 41
    Apesar do tema desta dissertação ser distinto da transição de gênero nas crianças e adolescentes, faço alguns comentários com aportes no livro Um apartamento em Urano de Paul B. Preciado (2020b) que, no seu capítulo intitulado Quem defende a criança queer, discute qual a discursividade dentro destes debates. O autor (PRECIADO, 2020b) afirma que a forma faz ronda ao redor dos recém-nascidos e que existe um artefato biopolítico que permite a normalização para o adulto. Um dos grandes pontos sensíveis à transição de gênero hoje é a sua realização em crianças e adolescentes, abordando seu sofrimento mental, mas também questões polêmicas sobre supostas “desistências” da hormonização. No Brasil, a tomada de decisão da hormonioterapia não é realizada de forma autônoma pela criança/adolescente: é uma decisão conjunta e negociada, com os pais, médicos e psicólogos, que nem sempre é definitiva, pois é um processo de autoconhecimento, conforme previsão explícita na Resolução n° 2.265/2020. Questiono o processo de transição de gênero ainda como uma perspectiva binária, sendo que é preciso se identificar com o gênero oposto, mas qual o ideal de corpo? Longe de abster dessa discussão apoio-me, mais uma vez, nas ideias de Preciado (2020b) para defender a transição de gênero para as crianças e os adolescentes como um direito de todo corpo, que independe de idade, de seus órgãos sexuais ou genitais, de seus fluidos reprodutivos. “O direito de todo corpo de não ser educado para transformar-se exclusivamente em força de trabalho ou força de reprodução. É preciso defender o direito das crianças, de todas as crianças, de seres consideradas como subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.” (PRECIADO, 2020b, p. 73).
  • 42
    Insta observar que não está se limitando a produção da identidade de gênero a um discurso biologizante. Ao revés, pelas normas, está sendo produzida uma identidade de gênero.
  • 43
    A era farmacopornográfica se trata da política econômica do sexo dentro do contexto de uma crítica política do capitalismo, em um experimento subversivo do sexo-gênero (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Rafael. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Resenha da edição em língua inglesa 2013. Revista Humus, [S. l.], v. 8, n. 24, 2018., p. 399; PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 84-89). É um padrão de poder manifestado na estrutura contemporânea de naturalização de controle molecular-informático (PRECIADO, 2018, p. 84), mas também de microrrevoluções surgidas desses mesmos pressupostos bioquímicos e biopolíticos (OLIVEIRA, 2018, p. 399). Então, são tecnologias biomoleculares, digitais e de transmissão de informações que se infiltram nos nossos corpos e interpenetram a vida cotidiana (PRECIADO, 2018, p. 85). Explicar a farmarcopornografia tem como objetivo demonstrar as formas de atuação desta biopolítica tecnológica, que vai além dos binarismos modernos de gênero, reificando-os. Este contexto é composto por uma rede produtiva-vigilante de micromoléculas, capazes de redefinir regimes comportamentais político-capitalistas que engendram a população dentro de noções herméticas dialéticas, as quais são absorvidas pelo jurídico (PRECIADO, 2018, p. 85-88).
  • 44
    Insta salientar que o reconhecimento da transição de gênero como direito não se mostra suficiente para proteger tais subjetividades, mas este papel institucional do Estado em considerar tais procedimentos como medida de Saúde Pública é extremamente importante.
  • 45
    Sara Ahmed (2020) traz que o trabalho ontológico consiste em um trabalho invisível realizado por pessoas negras que se desdobra em duas vertentes. A primeira se manifesta no enfrentamento da violência diária para permanecer em instituições que são historicamente naturalizadas como brancas, a exemplo da academia jurídica, inclusive aquela trabalhista. Este trabalho ontológico se desenvolve no âmbito do ser, na medida em que pessoas negras não se sentem pertencentes àquele lugar, o que pode resultar em adoecimento mental, suicídio, desvalorização do trabalho, assédio moral e sexual, discriminação, silenciamento, roubo da fala, entre outras modalidades de microviolência diária. A segunda vertente diz respeito ao trabalho de pessoas pretas em adquirir um know-how para desenvolver estratégias de sobrevivência em instituições brancas, mesmo que isso implique muitas vezes a mutilação de si mesmo. Tal exemplo é trazido para essa pesquisa entendendo que existe um trabalho biológico das pessoas trans em permanecer dentro das instituições cisgêneras e de se adaptarem a elas. Existe uma forma que está integrada e desenvolvida dentro daquelas pessoas para sobreviverem a estas realidades.
  • 46
    O conceito de hormonionormatividade, que é a regulamentação do gênero a partir de substâncias bioquímicas como ficções sexopolíticas, que têm a finalidade de ditar quais são os corpos que podem ou não integrar um determinado contexto; que estão (des)vinculados a organizações políticas dominantes (PRECIADO, 2018PRECIADO, Paul B. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoporgnográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 205). Existe uma necessidade da gestão legal e comercial das moléculas para a produção biopolítica de corpos, a partir de fenótipos que são culturalmente reconhecidos e nomeados como masculino e feminino (PRECIADO, 2018, p. 123)
  • 47
    Outras-potencialidades para os direitos sociais se articula com a proposição de epistemologias dissidentes (MÁXIMO PEREIRA, NICOLI, 2022MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza; NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Direito do trabalho e epistemologias dissidentes: demarcações teóricas para uma crítica-outra. Revista Direito & Práxis, 2022.) como o afrofuturismo (CORRAIDE, 2022CORRAIDE, Marco Túlio. Do afropessimismo ao afrofuturismo: a anti-humanidade do trabalhador preto e o pressuposto empregatício da pessoalidade. Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, 2022.), teorias decoloniais (MURADAS, MÁXIMO PEREIRA, 2018MURADAS, Daniela; MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza. Decolonialidade do saber e direito do trabalho brasileiro: sujeições interseccionais contemporâneas. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 20, n. 20, p. 1-26, 2018.; SILVA, 2022SILVA, Gabriela Bins Gomes. Decolonizando o emprego: por um outro olhar das margens. Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2022.), leituras queers (MELLO, 2023); feminismos (ALCOFF, 2020ALCOFF, Linda M. Decolonizando a teoria feminista: contribuições latinas para o debate. Libertas: Revista de Pesquisa em Direito, v. 6, n. 1, p. e-202001, 10 maio 2020.), epistemologias da greve (FARIA, 2023FARIA, Márcia Fernanda Corrêa. Do corpo que luta à luta com o corpo: decolonizando o direito de greve. Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, 2023.), revalorização do tempo improdutivo (COSTA, 2022COSTA, Frederico Cunha. O trabalho improdutivo das pessoas atingidas de Gesteira: uma visibilização necessária para reparação integral de direitos. 2022. 74 f. Dissertação do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, 2022), trabalho de cuidado (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stella. Cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. São Paulo, 2018. 236p. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.), teorias ecofeministas (ZBYSZEWSKA, 2023ZBYSZEWSKA, Ania. Environmental Racism at Work - Reflections from a Settler Colony of Canada. In: TEODORO, Maria Cecília Máximo (Org) (et al). Direito Material e Processual do Trabalho: Consumação da Vida no Capitalismo, Belo Horizonte, LTR, 2023.), dentre outras.
  • 48
    Para viabilizar a discussão deste trabalho optou-se por utilizar os escritos de mulheres e pessoas LGBTI+ dentro da sua escrita. Está ideia está vinculada com a publicação do artigo que também adotou uma forma similar de estruturar a produção: MÁXIMO PEREIRA, Flávia Souza; BERSANI, Humberto. Crítica à interseccionalidade como método de desobediência epistêmica no Direito do Trabalho brasileiro. Revista Direito e Práxis, v. 11, p. 2743-2772, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    20 Mar 2023
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