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Argumentos e fatos no Supremo Tribunal Federal: exame de acórdãos penais condenatórios

Arguments and facts at the Brazilian Supreme Court: examination of condemnatory criminal judgments.

Resumo

O artigo analisa a atuação argumentativa do Supremo Tribunal Federal no julgamento de ações penais originárias a partir o exame de acórdãos penais condenatórios proferidos no período de 05/06/2014 a 05/06/2016. São discutidas questões relevantes encontradas no conjunto de acórdãos examinados, entre elas o problema da exposição e da valoração dos fatos probatórios e o rompimento do princípio da imediação.

Palavras-chave:
Argumentação jurídica; Argumentação em matéria de fatos; Processo penal

Abstract

This paper analyzes the argumentative performance of the Brazilian Supreme Court in the judgment of criminal charges from the examination of condemnatory penal decisions handed down from 6/June/2014 to 6/June/2016. Some issues related to the set of decisions in exam are discussed, including the problem of exposure and assessment of the evidential facts and the breaking of the principle of immediacy

Keywords:
Legal argumentation; Argumentation on facts; Criminal procedure

1. Introdução

No âmbito das teorias da argumentação jurídicas produzidas nas duas últimas décadas, o tema da argumentação em matéria de fatos adquiriu crescente importância. De um modo geral, os estudos dedicados a esta temática destacam, de um lado, que a exigência de justificação das decisões judiciais, presente no contexto constitucional contemporâneo, estende-se a todo exercício do poder jurisdicional, inclusive em seus aspectos fático-probatórios (SANTOS; ROESLER, 2019SANTOS, Paulo Alves; ROESLER, Cláudia. Argumentação, fatos e verdade no processo penal em estados constitucionais. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 20, p. 407-441, 2019.). De outro lado, estes estudos se esforçam para oferecer diretrizes capazes de subsidiar a construção de argumentos em matéria de fatos e de fornecer instrumentos teóricos para a avaliação da qualidade dos argumentos em matéria de fatos produzidos na prática jurídica (GONZÁLEZ LAGIER, 2003GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y argumentos: racionalidad epistemológica y prueba de los hechos en el proceso penal - II. Jueces para la democracia, n. 47, p. 35-50, 2003.).

Este artigo pretende promover um encontro entre os aspectos teóricos já presentes nos trabalhos que tratam da argumentação jurídica no contexto probatório e a sua aplicação prática em um conjunto de decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro no julgamento de ações penais originárias. Esta proposta vai ao encontro da aspiração geral contida nos estudos que derivam do enfoque do direito como argumentação e que dão ênfase ao caráter prático da teoria do direito (ATIENZA, 2014ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. Lisboa: Escolar, 2014., p. 72), com a expectativa de que esta seja capaz de compreender os problemas reais dos juristas contemporâneos e oferecer perspectivas para a abordagem de suas dificuldades.

Nos limites deste trabalho, optou-se pelo exame da argumentação em matéria de fatos no Supremo Tribunal Federal. Com efeito, o objetivo deste estudo não é a busca de padrões decisórios acerca de como os juízes em geral argumentam em matéria de fatos, o que demandaria uma amostra de observação muito mais ampla e diversificada. Em verdade, o que se pretende é uma abordagem crítica das estratégias argumentativas concretamente adotadas pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, que idealmente deveria espelhar as melhores prática nacionais em termos de atuação jurisdicional e respeito às garantias constitucionais, servindo de modelo para os juízes e tribunais inferiores.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de estudos que vão desde a metodologia de deliberação colegiada (VALE, 2015VALE, André Rufino. Argumentação constitucional: um estudo sobre a deliberação nos tribunais constitucionais. Tese (Doutorado em Direito, Estado e Constituição) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito, UnB, Brasília, 2015.) até a influência das emoções em suas decisões (SANTOS, 2015SANTOS, Marcelo Fernandes Pires dos. Retórica, teoria da argumentação e pathos: o problema das emoções no discurso jurídico. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito, UnB, Brasília, 2015.). Todavia, ainda não há estudo similar quanto à argumentação em matéria de fatos desenvolvida neste órgão jurisdicional, de modo que o estudo aqui empreendido colabora para oferecer uma visão mais completa da sua atuação institucional.

2. Delimitação temática e temporal da pesquisa

A atividade de julgamento de ações penais originárias no Supremo Tribunal Federal é uma excepcionalidade tanto do ponto de vista normativo, uma vez que o rol de agentes que possuem prerrogativa de foro na Corte Suprema é restritivamente elencado na Constituição Federal, como do ponto de vista prático, pois o número de ações penais que são distribuídas no Tribunal é ínfimo se comparado ao número total de processos que lá tramitam.

Conforme consta no Relatório Supremo em Ação dos anos de 2017 e 20181 1 Disponíveis em: <http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/supremo-em-acao>>. Acesso em: nov. 2019. , a média do número de ações penais distribuídas entre os anos de 2009 a 2017 esteve um pouco acima das 50 ações penais por ano (CNJ, 2017CNJ. Relatório Supremo em Ação - 2017. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2017/06/f8bcd6f3390e723534ace4f7b81b9a2a.pdf>. Acesso em dez. 2019.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
, p. 43). No Gráfico 1 é possível ver o número de ações penais distribuídas por ano no STF, no período de 2009 a 2017, em comparação com o número total de processos distribuídos naquela Corte.

Gráfico 1
Ações penais no STF em comparação com o número total de processos distribuídos por ano

Como se observa deste recorte, o ano de 2013 apresentou um crescimento significativo em relação ao número de ações penais distribuídas. O quantitativo de novas ações deste tipo em 2013 mais do que quadruplicou em relação ao ano anterior. Tendo em vista este aceno de crescimento, bem como o tempo e a organização demandadas pela Corte para o julgamento da Ação Penal nº 4702 2 O julgamento da AP 470 foi o mais longo da história do Supremo Tribunal Federal. Foram necessárias 53 sessões plenárias para julgar o processo contra 38 réus. Quando começou a ser julgada, a ação contava com 234 volumes e 495 apensos, que perfaziam um total de 50.199 páginas. Dos 38 réus, 25 foram condenados e 12 foram absolvidos. Informações disponíveis no sítio eletrônico no STF: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=236494>>. Acesso em: nov. 2019. , o Regimento Interno do STF foi alterado pela Emenda Regimental nº 49/2014, a qual deslocou a competência para o julgamento das ações penais originárias do plenário do Tribunal para as duas turmas que o compõem.

De um modo geral, este é o fato institucional-procedimental mais relevante no campo das ações penais originárias do STF nos últimos anos, pois provocou uma alteração substancial no quórum de julgamento destas ações, razão pela qual a entrada em vigor da Emenda Regimental nº 49 do STF foi tomada como marco inicial desta pesquisa.

Ainda de acordo com o Relatório Supremo em Ação - 2018, o tempo médio de tramitação de processos da competência penal originária no STF em 2017 foi de 1 ano e 6 meses entre os processos já baixados e de 2 anos e 4 meses entre os processos pendentes.3 3 Nesta estatística, inserem-se na competência penal originária do STF as ações penais públicas e privadas, execuções penais, inquéritos policiais, revisões criminais e extradições. Para os processos baixados, o tempo de tramitação corresponde ao intervalo entre a data da autuação do processo e a data da baixa. Para os processos pendentes, o tempo de tramitação corresponde ao intervalo entre a data da autuação do processo e a data de 31 de dezembro de 2017. Com base nesta estatística, o interregno temporal da pesquisa foi fixado em 2 anos, contados a partir da promulgação da Emenda Regimental nº 49/2014. Assim, considerando-se que a referida emenda regimental entrou em vigor na data de sua publicação, em 05/06/2014, o objeto da pesquisa foi temporalmente restrito aos julgamentos de mérito proferidos em ações penais originárias no Supremo Tribunal Federal no período de 05/06/2014 a 05/06/2016.

Definidos estes parâmetros, os julgados que se encaixam neste recorte temporal foram reunidos com o auxílio da ferramenta de consulta ao acervo de julgamentos que se encontra disponível online no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.4 4 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>>. Acesso em dez. 2019. Entre as diversas utilidades que a ferramenta oferece, é possível delimitar a pesquisa por data, por órgão julgador e por classe processual. Desse modo, os filtros de pesquisa foram ajustados para o período de relevância proposto anteriormente, para a classe processual de ações penais (comando AP.SCLA.) e, sucessivamente, para os julgados da Primeira e da Segunda Turmas do STF.

Na Primeira Turma da Corte Suprema foram encontrados 18 acórdãos proferidos segundo os parâmetros acima descritos. Deste total, 14 acórdãos foram absolutórios, 2 acórdãos foram condenatórios e 2 acórdãos declararam a prescrição em abstrato, sem ingressar efetivamente na discussão em matéria fática. Na Segunda Turma, a pesquisa retornou 12 acórdãos, dos quais 8 foram absolutórios e 4 foram condenatórios.

A cronologia dos julgamentos encontrados e seus respectivos resultados, em ordem decrescente e por órgão julgador, estão discriminados na Tabela 1:

Tabela 1
Ações penais originárias julgadas no período pesquisado

Com uma pequena exceção pontual, os tipos de crime julgados pelo Supremo Tribunal Federal, no período em análise, se referem, em regra, a delitos cometidos sem o emprego de violência ou grave ameaça contra a pessoa e que possuem como vítima, direta ou indireta, o Estado. Há, ainda, uma prevalência de crimes funcionais, nos quais a condição de funcionário público8 8 Para fins penais, é funcionário público toda pessoa que “embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” bem como quem “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (Art. 327 do Código Penal). é necessária para a prática do delito, como é o caso dos crimes cometidos por prefeitos no exercício da função e por gestores públicos em processos licitatórios, bem como dos crimes contra a Administração Pública propriamente ditos cometidos por agentes estatais.

O Gráfico 2 compara o número de imputações das ações penais encontradas na pesquisa e coloca em evidência as tipologias mais comuns:9 9 Em uma mesma ação penal pode haver a imputação de crimes de tipologia diversas. Desse modo, o total de incidências penais supera o número total de ações penais.

Gráfico 2
Tipologia dos Crimes

De outra parte, constata-se que o número de absolvições foi bastante superior ao número de condenações no período da pesquisa. Na Primeira Turma, o percentual de condenações foi de 11%, ao passo que o de absolvições foi de 77%. Na Segunda Turma, houve 33% de condenações contra 66% de absolvições. No total, as absolvições alcançaram 73%, contra 20% de condenações e 7% de casos prescritos em abstrato.

Traçado este panorama geral da atuação do Supremo Tribunal Federal no julgamento de ações penais originárias, é aplicar o último filtro de seleção da amostra de pesquisa escolhida: a abordagem dos acórdãos penais com resultado condenatório.

Esta escolha se justifica porque, ao contrário das decisões absolutórias, que com frequência se apoiam na aplicação do princípio da presunção de não culpabilidade, acórdãos condenatórios não podem se encerrar com resultados inconclusivos quanto à matéria fática. As decisões condenatórias precisam, necessariamente, concluir pela ocorrência de um fato, comissivo ou omissivo, sem o qual a responsabilização penal não seria possível. Ou seja, uma conclusão razoavelmente precisa sobre os fatos é indispensável nos acórdãos condenatórios, o que não ocorre nos acórdãos absolutórios, aos quais basta a constatação de que não se comprovou nenhuma hipótese fática.

Além disso, a carga argumentativa que se emprega na prolação de uma condenação penal é ainda superior à carga argumentativa necessária em boa parte das decisões judiciais proferidas em outros campos do direito, pois o princípio da presunção de não culpabilidade levanta uma exigência probatória epistemológica bastante rigorosa em favor da defesa. Assim, a imposição de uma condenação penal, com todas as consequências na esfera jurídico-político do cidadão, exige do julgador um exercício argumentativo mais intenso, na tentativa de demonstrar que a sua reconstrução dos fatos é a mais aceitável e que a conclusão pela condenação, com base nos elementos disponíveis, é inafastável.

Portanto, é razoável esperar que a “melhor forma” da argumentação dos Ministros do STF no campo fático-probatório estará nos acórdãos penais condenatórios, nos quais a Corte teve que, necessariamente, apresentar uma argumentação conclusiva e completa acerca da ocorrência de um fato criminoso e vencer a carga argumentativa exigida pelo princípio da presunção de não culpabilidade. Desse modo, após analisar individualmente cada julgamento, passamos a expor algumas das características encontradas.

3. Discussão - problemas e perspectivas

O exame dos acórdãos condenatórios proferidos pelo Supremo Tribunal Federal suscita uma série de questões vinculadas à argumentação jurídica em matéria de fatos. Nos próximos tópicos, propõe-se uma discussão acadêmica sobre alguns destes pontos, identificando os problemas encontrados na aproximação empírica realizada e as perspectivas que despontam a partir destes problemas.

3.1. Exposição e valoração dos fatos probatórios e das máximas de experiência

A fundamentação das decisões judiciais penais sobre os fatos é uma garantia contra a arbitrariedade, de modo que a atividade justificativa do juiz neste campo é mais do que uma simples manifestação de poder. Por isso, interessa saber não somente a decisão proferida sobre os fatos pelo juiz e quais provas lhe pareceram pertinentes, mas os argumentos pelos quais ele justifica a correção de suas escolhas.

De um modo geral, os acórdãos que compõem o conjunto de decisões do STF avaliadas neste estudo ainda tratam a fundamentação judicial sobre os fatos como uma simples exposição da decisão e das provas, e não como uma justificação argumentativa dos elementos probatórios, inferências e critérios que conduziram à decisão. Algumas condutas que motivam essa percepção geral são: a) a desconsideração imotivada de fatos probatórios;10 10 Fatos probatórios são as premissas utilizadas na argumentação em matéria de fatos, consistindo em testemunhos, documentos, exames técnicos e outros elementos a partir dos quais se pode inferir, com variados graus de certeza, uma hipótese fática (GONZÁLEZ LAGIER, 2003, p. 35). b) a ausência de valoração expressa dos fatos probatórios considerados; e c) a utilização implícita e/ou ausência de justificação das máximas de experiência.

Antes de abordar especificamente estes problemas, é preciso assinalar que, em alguma medida, os pontos acima destacados possuem gênese comum na utilização, pela Corte Suprema, de estratégias argumentativas que se assemelham à técnica de decisão conhecida como valoração conjunta da prova ou valoração holística da prova. Neste estilo de decisão, a fundamentação é apresentada como uma narrativa geral dos fatos pelo juiz ou um relato global de suas conclusões. Não há uma individualização e valoração precisa dos fatos probatórios singulares, pois estes, se apresentados, estão em função da narrativa geral dos fatos que se expõem (TARUFFO, 2008TARUFFO, Michele. La prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008., p. 142).

Há traços deste estilo decisório, por exemplo, no acórdão da AP 916 (peculato e assunção de dívida no último ano do mandato), em que o Min. Relator anuncia, no início de cada tópico de seu voto, os pontos da narrativa que assume e, em seguida, descreve os elementos de prova que sustentam a sua conclusão. É também o que se percebe no acórdão da AP 556 (desvio de dinheiro municipal), em que o Min. Relator constrói o voto utilizando a cronologia dos valores desviados para guiar sua narrativa.

Todavia, este modelo de argumentação, centrado no resultado global da valoração probatória e pouco preciso quanto aos fatos probatórios singulares, se empregado de forma isolada, traz sérias desvantagens no desenvolvimento de uma justificação efetiva dos fatos. Ao transformar a fundamentação das decisões em um grande relato, abre-se a possibilidade de que esta se converta em uma sequência de declarações apodíticas de fatos provados, aos moldes do estilo de phrase unique francês, sem que realmente se apresente uma real e justificada valoração probatória (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones, 2010., p. 200).

Veja-se, como ilustração desta ausência de valoração justificada, o seguinte excerto retirado da AP 916 que, por veicular conclusões sem elementos de valoração expressos, pode ser reescrito como uma phrase unique declaratória e apodítica:

TRECHO DA AP 916

A consciência e vontade do acusado na prática da conduta delituosa é induvidosa, na medida em que fora o réu o tempo todo dela informado, como se pode observar do depoimento de E.L.:

QUE as decisões de priorizar determinados pagamentos e no caso presente de deixar de efetuar o repasse para o Banco Itaú, são tomadas pela declarante e que posteriormente comunica ao Prefeito Municipal (p. 11).

PHRASE UNIQUE

Considerando que E.L. declarou haver informado ao réu, o tempo todo, que estava deixando de realizar o repasse das verbas ao Banco Itaú, é induvidosa a consciência e a vontade do acusado na prática da conduta delituosa.

Ao declarar simplesmente que tal conclusão decorre “naturalmente” de tal elemento de prova, esconde-se, por trás de uma falsa dedução, que o julgador atribuiu ao fato probatório considerado (testemunho) um elevado valor probante sem dizer o porquê, que podem haver outros fatos probatórios omitidos e que há diversas inferências implícitas nesta conclusão. No trecho acima, a “justificação” apresentada mais oculta do que justifica. Afinal, por que devemos dar crédito às palavras de E.L.? Há alguma razão que pudesse aumentar ou diminuir a fiabilidade deste depoimento? Como se vê, a fundamentação em forma de relato global torna público e passível de controle apenas uma pequena parte do raciocínio que efetivamente conduziu à conclusão sobre os fatos.

Por essa razão, no atual estado da arte, tem-se destacado a necessidade de que haja nas decisões, previamente à construção de uma valoração conjunta, a valoração analítica das provas. Esta etapa analítica contempla a exposição e valoração, individualizada e ordenada, de todos os elementos probatórios presentes nos autos. Em verdade, uma postura comprometida com o exercício legítimo do poder decisório pela justificação adequada dos fatos exige a valoração analítica, pois somente através dela será possível controlar efetivamente o ingresso, na sentença, de conteúdos inaceitáveis ou insuficientemente justificados, bem como conhecer e avaliar todas as inferências que compõem a cadeia de justificação dos fatos (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones, 2010., p. 201).

Para que esta valoração analítica alcance os fins a que se propõe e possa, posteriormente, sustentar uma valoração conjunta, é imprescindível que ela seja individualizada o suficiente para permitir que se saiba qual o rendimento atribuído à cada elemento probatório na reconstrução dos fatos e o porquê de se concluir assim, isto é, se “se dá valor probatório ao testemunho de A pela coerência interna de suas declarações no curso da causa” ou se “a testemunha B não é crível porque afirma que foi agredida e sua atuação foi meramente defensiva, porém o suposto agressor apresentou várias contusões e ele não teve um arranhão” (ANDRÉS IBÁÑEZ, 2000ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Sentencia penal: formación de los hechos, análisis de un caso e indicaciones prácticas de redacción. Revista del Poder Judicial, n. 57, p. 155-186, 2000., p. 182).

De outra parte, a valoração analítica deve abranger todos os fatos probatórios, não apenas aquelas que o juiz estime que conduzirão à sua conclusão, mas também - e sobretudo - aqueles que, caso fossem valorados de forma distinta, conduziriam à conclusão diversa. Com efeito, de nada adiantaria a exigência de um exame detalhado sobre as provas se fosse permitido ao juiz, ao seu arbítrio e sem justificação, excluir da valoração probatória aqueles elementos que contrastam com a versão dos fatos que se pretende adotar. Desse modo, a justificação dos fatos somente será completa se houver a fundamentação do porquê de não serem críveis aquelas provas que não endossam a reconstrução dos fatos acolhida na decisão (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones, 2010., p. 203).

De fato, uma prévia valoração analítica das provas, individualizada e total, afastaria ou, no mínimo, tornaria menos provável a ocorrência dos problemas identificados nos acórdãos analisados quanto à exposição e valoração de elementos probatórios e das máximas de experiência, cujos contornos se passa a expor.

Constatou-se, em diversos acórdãos, o descarte implícito e imotivado de fatos probatórios. Na AP 916 (peculato), não foram examinados os documentos apresentados pela defesa que tentavam comprovar a situação de dificuldade financeira do município, bem como não se examinaram as declarações das seis testemunhas de defesa mencionados no relatório do acórdão. Na AP 929 (calúnia eleitoral), não se mencionou o conteúdo de nenhum dos testemunhos produzidos pela defesa nem a narrativa apresentada pelo acusado em seu interrogatório. Na AP 572 (corrupção e falsificação de documento eleitoral), não há referência aos testemunhos defensivos, ao relato dos familiares do acusado envolvidos nos fatos (exceto seu irmão), além da repetição excessiva de um único elemento acusatório, que é o testemunho de uma servidora pública do cartório eleitoral.

Do ponto de vista epistemológico, o descarte de qualquer elemento probatório produzido sempre gera uma perda na solidez da argumentação em matéria de fatos. Isto porque, caso fossem elementos probatórios que convergissem para a conclusão adotada pelo juiz, deveriam ser mencionados para tornar mais segura a reconstrução fática. De outra parte, caso fossem elementos probatórios que contrastassem a versão dos fatos reconstruída na sentença, deveriam ser expressamente repelidos, identificando-se sua incoerência, ausência de fiabilidade, incapacidade explicativa ou qualquer outra falha epistemológica, sendo certo que esta refutação dos elementos contrários conduziria a uma corroboração da hipótese acolhida. Desse modo, na valoração das provas presentes no processo, deve vigorar uma orientação tendente ao máximo aproveitamento dos elementos probatórios disponíveis.11 11 A esse respeito, Ferrer Beltrán (2007, p. 68) destaca: “Éste parece ser un principio epistemológico indiscutible: cuanta más información relevante está a disposición de quien debe decidir, mayor probabilidad de acierto en la decisión”.

Há, todavia, a possibilidade de que determinados elementos probatórios sejam impertinentes, nada acrescentando na elucidação do fato principal ou de algum fato secundário importante. A desconsideração destes elementos irrelevantes não encontra nenhum impeditivo epistêmico, todavia, a irrelevância do elemento probatório não pode ser presumida, sendo necessária a observância das regras de direito probatório.

Com efeito, a atividade de aquisição de provas no processo não é um empreendimento aleatório, mas um procedimento regulado por lei e dirigido pelo juiz, a quem compete indeferir, em decisão fundamentada, as provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias (art. 400, §1º, do CPP). Se, no momento processual da produção em audiência ou da juntada aos autos, o fato probatório não foi excluído pelo juízo por sua impertinência, presume-se que se trata de uma prova relevante e, por essa razão, deve ser adequadamente valorada no momento da decisão.

Essa presunção de relevância da prova cuja produção foi permitida no curso da instrução é sustentada igualmente porque, ou se trata de uma prova ordenada pelo juízo, que somente tem interesse em produzir provas relevantes, ou se trata de uma prova requerida pelas partes, cuja participação na atividade probatória deve ser levada a sério. Por essa razão, a desconsideração de fatos probatórios no momento da valoração decisória exigiria, no mínimo, uma manifestação fundamentada, tal qual seria exigível no curso da instrução, acerca das razões pelas quais constatou-se a sua irrelevância.

A mesma censura que se formula contra a desconsideração imotivada de fatos probatórios é aplicável à utilização de fatos probatórios na decisão sem que se formule uma valoração expressa e fundamentada acerca deles.

Por certo, valorar os fatos probatórios é mais de que afirmar a sua veracidade. Trata-se de justificar argumentativamente porque determinados elementos de prova são críveis e outros não, porque algumas provas deverão ter maior peso na decisão, porque este relato testemunhal é preferível àquele e muitos outros porquês. Em síntese, valorar é estabelecer critérios para responder porquês, construindo uma efetiva justificação da decisão e não apenas uma explicação do resultado.

Todavia, ao longo do exame dos acórdãos selecionados para este estudo, constatou-se a omissão destes porquês inferenciais. Confira-se, por exemplo, o seguinte excerto da AP 572 (falsificação de documento eleitoral):

Interrogado, o réu negou ter contribuído para os fatos (fls. 567-574). Essa alegação, no entanto, não se sustenta.

A servidora do Cartório da 1ª Zona Eleitoral M. DA C. B. DE O., inquirida em Juízo (fls. 855-75), confirmou ter entregue os títulos ao réu, em troca do pagamento de R$ 3.000,00, depositados em sua conta-corrente. Na investigação, mencionou também a promessa de emprego para seu filho A. O. D. (fl. 259). Os títulos não estariam assinados pelo eleitor, apenas preenchidos, prontos para entrega. A servidora afirmou não ter tido contato com o irmão do réu na época.

Por sua vez, o irmão do réu, F. C. S., em depoimento policial (fls. 5-7), confirmou ter recebido os títulos do réu na véspera da eleição. Relatou que trabalhava como carpinteiro para Dé Móveis e, no dia da eleição, pessoas ligadas à campanha passaram a vir ao estabelecimento retirar títulos. Cerca de dez pessoas fariam a tarefa de votar em lugar dos eleitores.

Ou seja, está provado que o réu recebeu os títulos de eleitor, sendo que estes foram falsificados por pessoas a ele ligadas e, posteriormente, encontrados em poder de outras pessoas também a ele ligadas (p. 15-16, sem grifos no original).

No trecho acima, há duas versões fáticas contrapostas, a negativa de autoria do réu e a afirmação de autoria pela testemunha. Pelo resultado, é perceptível que o julgador optou pela segunda narrativa, mas não foram explicitadas as razões desta escolha. Os três primeiros parágrafos narram um fato probatório cada um e o último parágrafo expressa a conclusão sobre os fatos. Passa-se, assim, de um discurso completamente descritivo para a conclusão de que determinando fato está provado sem qualquer justificação expressa.

Surgem, assim, diversas dúvidas: Por que o relato da testemunha é mais crível do que o do réu? Aparentemente a testemunha alterou em parte a sua versão dos fatos (quanto à promessa de emprego ao seu filho), por que esta circunstância não foi considerada? Por que se utiliza o relato do irmão do réu da fase policial e não da fase judicial? Os relatos perante a polícia e em juízo foram recebidos com o mesmo valor probatório?

Em verdade, a decisão condenatória, como ato do poder público destinado não apenas às partes no processo, mas à toda cidadania, deve ser autoexplicativa. Ela deve ser capaz de possibilitar que qualquer pessoa que a leia, ainda que seja uma pessoa estranha à causa, conheça todas as razões da decisão e seja capaz de formular um juízo a respeito delas (ANDRÉS IBÁÑEZ, 1998ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. “Carpintería” de la sentencia penal (en materia de “hechos”). Revista del poder judicial, n. 49, p. 393-428, 1998., p. 396). Porém, esta compreensão é obstada pela ausência de justificação do valor atribuído aos fatos probatórios e do porquê desta valoração.

Outro óbice que se impõe contra a correta compreensão das decisões penais condenatórias examinadas é a ausência de explicitação das máximas de experiência utilizadas pelo julgador para passar dos fatos probatórios à hipótese fática admitida.

O papel desempenhado pelas máximas de experiência no raciocínio probatório é crucial, pois estes enunciados são imprescindíveis para as inferências empíricas que sustentam a maior parte da reconstrução dos fatos nos juízos penais. Esta proeminência já seria suficiente para recomendar o maior empenho possível do julgador em explicitar e bem fundamentar as máximas de experiência utilizadas (GONZÁLEZ LAGIER, 2003GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y argumentos: racionalidad epistemológica y prueba de los hechos en el proceso penal - II. Jueces para la democracia, n. 47, p. 35-50, 2003., p. 36).

Para além disso, é no momento de escolha e aplicação das máximas de experiência que o juiz se encontra mais vulnerável a incorrer em algum viés cognitivo, a favorecer estereótipos pessoais ou a empregar preconceitos infundados em seu raciocínio. Por essa razão, a explicitação das máximas de experiências, como ferramenta de autocontrole pelo julgador e de controle intersubjetivo, é uma exigência indispensável.

Nos julgados analisados neste estudo, entretanto, essa questão não foi tratada com a merecida atenção. A esse respeito, observe-se o seguinte trecho da AP 916:

Todos os depoimentos colhidos na fase judicial apontam que o Município de Macapá/AP estava passando por dificuldades em razão da crise mundial e que o referido município foi prejudicado no repasse proveniente do Fundo de Participação dos Municípios. Assim, o acusado não teria outra solução que não a de reter as verbas destinadas ao pagamento do empréstimo consignado, para com elas realizar o pagamento de seus servidores, que possui natureza alimentar. No entanto, colhe-se dos autos: (i) ter havido aumento da folha de pagamento do Município, com a contratação de pessoal; e (ii) ter havido repasses voluntários de verbas para instituições não governamentais.

[...]

Assim, se se constata do exame dos autos ter havido efetiva contratação de pessoal e repasse voluntário a organizações não governamentais, inviável se apresenta o reconhecimento de hipótese de inexigibilidade de conduta diversa a afastar o juízo de reprovação penal (p. 12-13, sem grifos no original).

Neste excerto, está subentendida uma máxima de experiência segundo a qual municípios com dificuldades financeiras não contratam pessoal e não realizam repasses voluntários. Além de se tratar de uma máxima de experiência não explicitada, é duvidoso se esta garantia é suficientemente capaz de, por si só, assegurar a inexistência de crise financeira no município. Não é difícil imaginar hipóteses em que o gestor público esteja obrigado a aumentar despesas mesmo com diminuição da arrecadação. O aumento da demanda de serviços locais em atividades essenciais, como saúde e educação, poderia justificar, de maneira razoável, tanto a contratação de pessoal na municipalidade como os repasses voluntários a instituições não governamentais que atuam nestas áreas.

Assim, com base no que está expressamente contido no voto, a máxima de experiência empregada tem uma fundamentação pouco criteriosa, pois é, em verdade, uma opinião do julgador sobre como ele acredita que deveriam agir os gestores públicos, e não uma conclusão acerca de como eles geralmente agem diante de crises financeiras. Ela igualmente apresenta um grau não muito elevado de probabilidade causal, pois entre a contratação de pessoal/repasses voluntários e a conclusão de que não havia crise financeira podem existir diversas variáveis. Contudo, com base nesta garantia, a Corte se sentiu confortável para não desconsiderar o restante da documentação fiscal do município apresentada pela Defesa.

Outro exemplo de máxima de experiência que suscita questionamentos pode ser extraído do seguinte trecho da AP 929:

Foi o periódico responsável pela matéria que encaminhou as gravações. Pressupõe-se que a transcrição entre aspas em matéria jornalista corresponda verbatim ao dito pelo entrevistado. A própria credibilidade da empresa jornalística está em xeque se a transcrição não corresponde à declaração - sem falar em eventuais responsabilizações (p. 6-7, sem grifos no original).

A assertiva que o Min. Relator inicia com a expressão “pressupõe-se” é, em verdade, uma máxima de experiência por ele apresentada acerca da credibilidade das aspas jornalísticas. Por esta máxima de experiência, seria possível passar da constatação de que “o jornal X publicou que Y disse B” para “Y efetivamente disse B”, pois as aspas jornalísticas normalmente garantiriam a veracidade das declarações.

Novamente, trata-se de uma máxima de experiência que veicula uma opinião do julgador acerca de como ele acredita que deveriam se comportar os jornalistas, e não de uma assertiva acerca de como eles realmente se comportam. Aliás, a rigor, esta seria uma máxima de experiência contrafática, pois já houve inúmeras situações em que, intencionalmente ou não, o jornalista entendeu e publicou mais do que o efetivamente dito pelo entrevistado. Estes casos são tão comuns que os meios de comunicação que incorrem nesta prática possuem adjetivação própria: sensacionalistas.

Esta debilidade da máxima de experiência adotada pelo Min. Relator foi ressaltada no voto divergente constante no acórdão da AP 929, em que se consignou que “conferir ao que foi publicado uma espécie de fé pública, com a consequente presunção de total veracidade da matéria, é ir muito longe para os efeitos de uma condenação criminal” (p. 16). Todavia, esta percepção não foi a acolhida pelo colegiado.

De todo o exposto, depreende-se que a exposição e valoração dos elementos probatórios e das máximas de experiência nos acórdãos examinados possui fragilidades, o que impõem que sejam repensadas as metodologias de construção das decisões condenatórias. Esta revisão deve ser orientada, especialmente, por estratégias que aproximem a fundamentação da decisão de uma justificação concreta dos elementos que compõem as inferências probatórias, afastando-se de uma simples exposição de conclusões fáticas e da indicação dos fatos probatórios escolhidos para sustentá-las.

Para este objetivo, é útil o desenvolvimento de uma valoração analítica nas decisões, em que sejam individualmente avaliados, com a precisão necessária, todos os fatos probatórios. Além disso, é preciso evitar a desconsideração de fatos probatórios sem motivação explícita, bem como a simples enunciação dos fatos probatórios no texto da decisão sem que se apresentem os critérios de valoração e o peso a eles atribuídos no raciocínio probatório. Por fim, deve ser empregado o maior esforço possível para tornar explícitas as máximas de experiência utilizadas na argumentação, com uma avaliação criteriosa acerca de sua fundamentação e do seu grau de probabilidade causal.12 12 Acerca da fundamentação e do grau de probabilidade causal das máximas de experiência, ver: GONZÁLEZ LAGIER, 2003, p. 42-43.

3.2. Imediação, juiz instrutor e provas orais extraprocessuais

Em todas as ações penais examinadas neste estudo, foram empregados, para a construção dos argumentos em matéria de fatos, elementos probatórios orais produzidos sem a presença física dos membros Corte ou do Min. Relator. Estes fatos probatórios consistiram ora em oitivas colhidas por autoridades policiais e membros do Ministério Púbico no curso de procedimentos investigativos prévios, ora em atos presididos por um juiz instrutor designado pelo Min. Relator já no curso da ação penal.

Especialmente nas APs nº 929 e 563, em que a diplomação do agente para o cargo que lhe assegurava a prerrogativa de foro na Corte Suprema ocorreu após a prolação de sentença pelo juízo de origem, remetendo-se os autos do processo ao STF no estado em que se encontravam, a Corte Suprema revisou integralmente os aspectos fáticos da decisão, porém todos os fatos probatórios já haviam sido produzidas perante o juízo inicial.

Nesse cenário, a ausência de imediação, ou seja, a ausência de participação direta e presencial dos julgadores na produção do fato probatório utilizado na argumentação, necessariamente prejudica a fundamentação da decisão em matéria de fatos no STF?

O problema da imediação parece ser uma questão restrita à prova oral. Quando tratamos de provas técnicas, de escutas telefônicas, de documentação bancária, etc., discutir a imediação não possui sentido, pois não há nenhuma expectativa de que o juiz esteja fisicamente presente no momento em que estes fatos probatórios são produzidos. Somente no tocante à prova oral, que por si só já constitui uma mediação entre os fatos e os ouvintes por intermédio da percepção de quem os está narrando, surge a possibilidade de que o juiz esteja fisicamente presente no ato.

A legislação penal brasileira é deferente à ideia da imediação, pois o art. 399, § 2º, do Código de Processo Penal determina que o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Contudo, a referida regra comporta inúmeras exceções e, na prática, caso o juiz que estava presente na instrução não possa proferir a sentença por quaisquer razões minimamente razoáveis, como férias ou licenças, outro magistrado a proferirá sem maiores prejuízos. Portanto, a positivação desta regra na legislação brasileira está mais vinculada ao princípio do juiz natural, evitando alterações arbitrárias na presidência da ação penal, do que propriamente à ideia de que a participação do juiz nos atos de produção probatória lhe confere algum conhecimento indispensável para julgar os fatos. Caso assim o fosse, a legislação determinaria a renovação de todos os atos de instrução perante todo novo juiz que recebesse o processo em qualquer instância, o que não ocorre.

Contudo, para além do reconhecimento de que a imediação possui algum grau de reconhecimento institucional, é corrente a opinião de que ela se trataria de uma verdadeira exigência epistemológica do processo. Os defensores desta perspectiva enxergam na imediação um verdadeiro princípio supralegal decorrente do devido processo legal, pois somente no contato direto com o acusado e com as testemunhas o juiz poderia formular uma convicção acertada e independente sobre os fatos em julgamento (ROMERO, 2015ROMERO, Eneas. O Supremo Tribunal Federal enquanto tribunal penal? O caso “Mensalão”, o devido processo, o direito ao fair trial e o direito a ser ouvido. Zeitschrift fur Internationale Strafrechtsdogmatik, v. 07/08, p. 394-409, 2015., p. 394). Entre os argumentos citados pelos que sustentam o princípio da imediação como garantia epistemológica do processo, é comum a referência à necessidade de que o juiz faça perguntas próprias na produção da prova oral e possa observar detalhes não verbais nos depoentes.

Todavia, observa-se uma confusão entre a ideia de imediação e os poderes instrutórios do juiz. Ao se argumentar que o juiz poderá fazer perguntas às testemunhas ou ao acusado, há uma defesa da possibilidade de o juiz sentenciante intervir na produção probatória, o que, porém, não é afastado caso ele não esteja fisicamente presente. Se, ao analisar o conjunto probatório posteriormente, o juiz que julgará os fatos considerar que há pontos omissos ou questões a serem esclarecidas, nada o impede, uma vez admitido que ele possui poderes instrutórios, de converter o julgamento em diligência para sanar as omissões. Evidentemente, sua presença física no ato torna mais célere este procedimento, mas a opção pela celeridade tem caráter institucional e não epistemológico.13 13 A busca pela celeridade é, inclusive, uma postura normalmente contraepistemológica, pois desloca a ênfase processual da investigação da verdade para outros objetivos jurídicos relevantes, como a pacificação social e a efetividade da jurisdição.

Nesse ponto, é importante destacar a proliferação do chamado “mito da oralidade” (ATIENZA, 2013ATIENZA, Manuel. Curso de argumentación jurídica. Madrid: Trotta, 2013., p. 681), pelo qual se tende a ignorar, em razão da celeridade que a oralidade propicia, as desvantagens presentes neste tipo de procedimento. De fato, o raciocínio puramente oral costuma ser mais suscetível ao engano e menos reflexivo do que o raciocínio escrito. Portanto, dizer que o juiz que examinará o mérito estará presente fisicamente na produção do fato probatório e poderá formular perguntas oralmente não significa dizer que ele estará em melhores condições para fazer perguntas relevantes. Ao contrário, é mais provável que a compreensão das narrativas orais e a detecção de suas eventuais falhas seja favorecida por um ambiente mais reflexivo do que o das audiências, diversas vezes exprimidas em um curto espaço de tempo, nas quais a prova oral é produzida. De toda forma, admitidos os poderes instrutórios do juiz, este sempre poderá, independentemente de sua presença física no ato, influir na produção probatória.

Em outro vértice, a defesa da imediação comete um exagero quanto à possível capacidade do juiz em analisar aspectos psicológicos e comportamentais das pessoas que prestam seus relatos em audiência. Existe uma tendência, bastante difundida no senso comum, em se acreditar que, através da análise de comportamentos voluntários e involuntários dos sujeitos, como gestos, respiração, suor e outros, seria possível identificar a veracidade de suas palavras e outros aspectos de sua intimidade psicológica. Esta compreensão, todavia, não está solidamente comprovada e, ainda que se tratasse de um consenso cientificamente estabelecido, certamente o juiz não possuiria o conhecimento técnico necessário para utilizá-lo com a precisão requerida.

Mesmo entre os que admitem que sinais corporais podem ajudar a aferir a credibilidade de um depoente, há o reconhecimento de que esta tarefa exigiria não só o elevado domínio de metodologias específicas, mas também um razoável conhecimento acerca da própria pessoa que está depondo, duas premissas que dificilmente os juízes conseguiriam satisfazer. Em experimentos que reproduzem situações similares a uma audiência judicial, na qual uma pessoa sem nenhum preparo específico avalia a performance narrativa de uma outra pessoa com a qual não possui nenhum vínculo anterior, o percentual de acertos na identificação da veracidade dos relatos com base nas posturas exteriores dos depoentes não ultrapassa 45% (MAZZONI, 2010MAZZONI, Giuliana. ¿Se puede creer a un testigo?.Trad. José Manuel Revuelta. Madrid: Editorial Trotta, 2010., p. 136). Isto sugere que é mais crível que haja êxito na análise da veracidade de um relato caso se tente adivinhá-lo ao acaso do que com a aplicação da imediação para que o juiz avalie o comportamento dos depoentes em audiência.

Além de todo o exposto, a ideia da imediação do juiz está fortemente ligada a uma forma equivocada de se pensar a formação da convicção judicial no processo. A concepção epistemológica que subjaz à imediação admite que determinadas impressões subjetivas do julgador sobre os elementos de prova, as quais decorrem de convicções internas e que geralmente não podem sequer ser comunicadas, constituem um elemento importante em sua atividade de reconstrução dos fatos. A produção do fato probatório oral seria, nesse contexto, um “momento íntimo ou místico” entre o juiz e o depoente, capaz de se sobrepor ao próprio conteúdo da prova e, pela elevada carga de subjetivismo que envolve, insuscetível de controle externo (GASCÓN ABELLÁN, 2018GASCÓN ABELLÁN, Marina. La prueba judicial: valoración racional y motivación. Disponível em: <http://cmapspublic2.ihmc.us/rid=1MYBL04CF-7G0W1S-47L8/Prueba%20Gascon.pdf>. Acesso em dez. 2019.
http://cmapspublic2.ihmc.us/rid=1MYBL04C...
, p. 48).

Contudo, nos processos penais em estados constitucionais, estas impressões subjetivas do julgador não possuem nenhuma capacidade justificativa e não constituem argumentos aptos a fundamentar a decisão judicial. Ao revés, a exigência de justificação do raciocínio probatório pelos juízes pretende justamente eliminar da formação da convicção judicial elementos subjetivistas que, embora pudessem desempenhar algum papel no contexto da descoberta, não podem ser transpostos para o contexto da justificação. Com efeito, seria absurdo considerar como fundamentada uma decisão judicial em que o juiz afirmasse “valoro mais o testemunho de X, porque ela olhou firmemente em meus olhos enquanto testemunhava” ou “a versão dos fatos apresentada pelo réu não é confiável, pois ele balançava demais as pernas em seu interrogatório”. Desse modo, as eventuais impressões que a imediação pudesse assegurar ao juiz sobre os depoentes, além de não contribuírem em nada para a qualidade epistemológica do processo, não possuem qualquer utilidade na justificação de uma decisão judicial.14 14 Estas impressões subjetivas podem, inclusive, contaminar o adequado exame do material probatório pelo juiz que realizou a instrução. No campo das ciências, em geral, é bastante estabelecido que a aceitação dos resultados de um procedimento destinado à produção do conhecimento deve ser submetido ao exame de outros membros da comunidade acadêmica que não participaram diretamente deste procedimento, como ocorre com os sistemas de double-blind peer review.

Por outro lado, a equivocada aceitação da imediação como exigência epistêmica colabora para sustentar a ideia de que a fundamentação dos aspectos fáticos da decisão judicial não pode ser revista se não por aquele que participou da produção probatória. Em verdade, se levarmos a sério a ideia de imediação como um elemento capaz de aumentar em grau considerável a qualidade epistemológica da decisão, disso decorreria que, ou a decisão do juiz se tornaria incensurável, pois só ele teve acesso a este momento ímpar de produção da prova, ou qualquer revisão legítima de sua decisão exigiria a repetição de todos os fatos probatórios orais perante o órgão revisor, a fim de que este pudesse confirmar se suas impressões coincidem com as impressões do juiz anterior.

Esta conclusão é manifestamente insustentável, seja porque a fundamentação das conclusões fáticas de uma decisão judicial em estados democráticos deve ser completa e suficiente para permitir o exame de sua correção, seja porque a repetição idêntica de fatos probatórios é impossível, pois cada nova oitiva de uma mesma testemunha implica um novo contexto e, portanto, novas impressões.

Ademais, os próprios sistemas jurídicos têm repelido conclusões deste tipo e, reflexamente, a ideia de imediação como condição necessária para a correta valoração probatória. Isto se percebe quando, sem a necessidade de repetição da prova oral em novas instâncias: a) assegura-se duplo grau de jurisdição em matéria de fatos; b) as Cortes Superiores nacionais passam a admitir, ainda que timidamente, a revisão da fundamentação fática das decisões que examinam15 15 Como exemplo, há decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro no RESP nº 1674198/MG, no qual a Corte constrói um raciocínio em matéria de fatos para concluir que, no caso, o testemunho indireto (testemunha de ouvir dizer) que não identificou suas fontes com precisão não possui fiabilidade suficiente para autorizar a pronúncia do acusado perante o Tribunal de Júri. ; e c) as Cortes Internacionais de Direitos Humanos, para assegurar o direito ao devido processo legal, passam a analisar a fundamentação fática de decisões judiciais nacionais e a declarar violações aos direitos humanos em casos de má fundamentação neste aspecto.16 16 A esse respeito, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, ao julgar o caso Mohamed Abubakari vs Tanzânia, declarou a sua competência para examinar se a análise das evidências pelos juízes nacionais do Estado-parte foi realizada em conformidade com o direito a um julgamento justo (fair trial) garantido pelo art. 7º da Carta Africana. Assim, após examinar o caso, a Corte reconheceu a existência de violações ao direito a um julgamento justo em razão de o peticionante haver sido condenado “based on the testimony of a single individual and riddled with inconsistences” e sem a existência de “detailed investigation of the alibi allegation made by the Applicant” (Disponível em: <http://www.african-court.org/en/index.php/55-finalised-cases-details/860-app-no-007-2013-mohamed-abubakari-v-united-republic-of-tanzania-details>>. Acesso em: dez. 2018. Todas estas situações demonstram que a melhor ou menor qualidade da decisão não depende da imediação, mas sim de uma adequada fundamentação no exame do material probatório.

Portanto, deve ser afastada a ideia da imediação como exigência epistemológica no processo penal, pois a presença física do juiz que irá julgar os fatos no ato de produção da prova oral não assegura, por si só, nenhuma vantagem relevante para uma adequada reconstrução dos fatos e a aceitação desta ideia conduziria a conclusões insustentáveis. Todavia, há uma questão diversa que exige um enfoque específico.

O entendimento de que a presença do juiz sentenciante na produção da prova oral não implica isoladamente nenhum benefício epistemológico para o processo não significa que toda a narrativa colhida em sua ausência possua a mesma fiabilidade. Este novo problema não diz respeito à imediação entre o julgador e o fato probatório, mas à existência de procedimentos e garantias institucionais destinados a salvaguardar a produção do fato probatório. É por essa perspectiva que deve ser analisada a diferença qualitativa entre os elementos probatórios orais produzidos perante juízes (sejam aqueles que julgarão o mérito ou apenas juízes instrutores) e os elementos probatórios orais produzidos por autoridades policiais e membros do Ministério Público.

No processo penal brasileiro, embora os órgãos de investigação e acusação possuam certa independência para examinar elementos de prova e formar a opinio delicti, não é possível afastar o seu papel de parte na relação processual. Isto significa que, não obstante haja a pretensão de que os elementos probatórios produzidos por agentes policiais e promotores sejam capazes de reconstruir os fatos de uma forma verdadeira, esta pretensão epistemológica de sua atividade caminha ao lado de outra pretensão, que é a de reunir elementos para sustentar eventual acusação. Há, portanto, um comprometimento da finalidade buscada no ato de produção probatória e, por consequência, na fiabilidade do resultado destes fatos probatórios.

Esse comprometimento é acentuado pelo caráter menos institucionalizado dos procedimentos extraprocessuais de produção de fatos probatórios orais. Em geral, neles não há a presença de contraditório técnico, os atos não são públicos, não há uma delimitação precisa do fato que está sendo apurado, o ambiente da oitiva é mais intimidador, os depoimentos são reduzidos a escrito pelos próprios policiais, etc. Todas estas circunstâncias podem ter impacto na qualidade do fato probatório, o que não pode ser ignorado pelo juiz no momento da valoração das provas.

De outra parte, o ambiente da oitiva judicial é normalmente público, há contraditório técnico, há uma hipótese acusatória delimitada na denúncia e o juiz, que deve ser legitimamente independente e imparcial, não se orienta por nenhuma outra pretensão que não seja a concretização da ordem jurídica, procurando realizar a reconstrução mais precisa possível dos fatos para aplicar adequadamente o direito. Além disso, compete ao juiz zelar não só pela legalidade da produção da prova, mas também pela fidelidade no registro do ato (visual ou escrito) e pela repressão de possíveis abusos das partes (perguntas dúbias, induções, ameaças, etc.). Por essa razão, independentemente de quem seja ao juiz que preside o ato, desde que seja um juiz legitimamente independente e imparcial, os fatos probatórios produzidos em juízo possuem, em princípio, maior fiabilidade para a valoração probatória.

Em resumo ao que foi exposto, não há razão para se defender a ideia de que a imediação, compreendida como a participação direta do juiz que julga os fatos na produção do fato probatório oral, assegura algum ganho epistemológico ao processo. Contudo, a presença da autoridade judicial, independentemente de se tratar do juiz que irá julgar o mérito ou de um juiz de instrução, desde que se trate de um juiz legitimamente independente e imparcial, assegura melhores condições epistêmicas para a produção da prova. Por isso, a prova produzida judicialmente possui, em princípio, maior fiabilidade do que relatos colhidos por órgãos policiais e de acusação no ambiente extraprocessual.

Desse modo, a prática adotada no STF, com a designação de juízes instrutores para presidirem a produção das provas orais ou com o rejulgamento de fatos em ações penais que tramitaram inicialmente em juízo diverso, não implica, necessariamente, em uma menor qualidade epistêmica das decisões da Corte. A existência de decisões em que a fundamentação das conclusões fáticas apresente menor solidez não pode ser creditada à ausência de imediação, sendo mais provável que estas decorram de uma má valoração probatória, o que inclui a aplicação de critérios equivocados ou a inexistência de critérios claros para a valoração dos fatos probatórios, das garantias utilizadas e das hipóteses formuladas, além de omissões na adequada justificação discursiva desta valoração.

Todavia, pode contribuir para diminuir a solidez da argumentação em matéria de fatos empreendida pelo STF a utilização excessiva de provas orais colhidas no ambiente extraprocessual pelos órgãos policiais ou de acusação, especialmente quando o uso destes fatos probatórios não é acompanhado de uma necessária reflexão acerca de sua fiabilidade e de uma contraposição com os fatos probatórios produzidos em juízo.

3.3. Fatos psicológicos

Os fatos psicológicos ou internos são uma constante no direito penal. Em razão de a responsabilidade penal da pessoa física ser condicionada à existência de dolo ou culpa, esta dimensão subjetiva deverá sempre ser constatada como um fato provado para a configuração do tipo delitivo (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones, 2010., p. 70). Há, ainda, crimes que exigem, além do dolo ou da culpa, que o agente atue com uma intenção bastante específica, como a finalidade de fazer propaganda no crime de calúnia eleitoral. Além disso, mesmo quando a existência de uma intenção específica não for necessária para a configuração do tipo penal, investigar as motivações do agente pode ser imprescindível para dar coerência à hipótese fática.

Em geral, os fatos psicológicos relevantes para o direito penal derivam de uma combinação entre interpretação de normas e de fatos. Quanto à interpretação normativa, é necessário definir qual a postura subjetiva pressuposta em cada tipo penal. Uma discussão desse tipo foi evidenciada na análise da AP 916, na qual um dos votos divergentes propôs que o delito de peculato-desvio exigiria a presença de uma vontade subjetiva do agente em desviar definitivamente os valores que estavam sob sua posse administrativa. Esta interpretação não foi acolhida pela maioria do colegiado, que reputou configurado o peculato-desvio naquele caso, a despeito de o banco-vítima possuir mecanismos institucionais para reaver os valores não repassados em tempo certo pela municipalidade e, portanto, se tratar de um desvio em caráter provisório a ser posteriormente corrigido.

Contudo, neste tópico, o foco será a discussão de como é possível, após se definir interpretativamente a postura subjetiva exigida pelas normas penais, argumentar a respeito da existência ou não destes fatos psicológicos na justificação do provimento jurisdicional.

A dificuldade desta atividade reside em que os pensamentos, sentimentos e desejos não são diretamente observáveis ou empiricamente palpáveis. Esta impossibilidade de observação direta não significa que estes fenômenos internos não possam ser objeto de discussão probatória, mas apenas que sua comprovação demanda uma argumentação específica, pois será imprescindível inferi-los a partir dos fatos externos que os circundam. Assim, de uma assinatura sobre o contrato é possível inferir o desejo de contratar, das apunhaladas contra o coração de alguém é possível inferir o desejo de matar e assim por diante (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho. Madrid: Marcial Pons Ediciones, 2010., p. 71).

A utilização do raciocínio inferencial, todavia, não introduz nada de especialmente diferente entre a constatação dos fatos externos e dos fatos internos. De um conjunto de fatos probatórios externos (testemunhos, vídeos, vestígios, etc), através de máximas de experiência e presunções, são inferidos outros fatos externos, como a conclusão de que efetivamente A atirou em B. Esse mesmo tipo de raciocínio é utilizado para se inferir, a partir de um conjunto de fatos probatórios externos, a ocorrência de um fato psicológico como o dolo.

Com efeito, ao fundamentar os fatos psicológicos no provimento jurisdicional, o emprego do maior número possível de fatos externos provados, sejam eles contemporâneos, antecedentes ou posteriores à prática da conduta principal, contribui para esclarecer com mais precisão o aspecto subjetivo do agente. Por essa razão, o julgador deve emprenhar-se em reunir e especificar o máximo de elementos possíveis acerca destas circunstâncias externas, ainda que não diretamente vinculadas à configuração objetiva do tipo penal.

Esta conclusão implica uma crítica quanto à construção de inferências sobre fatos psicológicos fundamentadas em um único elemento probatório ou em elementos probatórios imprecisos, como ocorreu na AP 929, no qual se assentou que a imputação da conduta criminosa falsa a alguém seria suficiente para se inferir, pelo “contexto”, o dolo de caluniar com fins de propaganda eleitoral. É bem verdade que, naquele caso, havia outras circunstâncias externas que foram implicitamente consideradas, como: a) a presença do período eleitoral; b) a imputação falsa ter sido proferida contra adversário político direto; e c) a imputação falsa ter sido veiculada na imprensa. Um exame mais atento destes fatos externos na fundamentação da decisão poderia ter explicitado melhor o dolo de caluniar com fins de propaganda eleitoral. Todavia, o voto condutor da tese vencedora limitou-se a apontar genericamente um “contexto” que seria capaz de demonstrar o animus caluniandi eleitoral, sem especificar de forma clara quais fatos externos especificamente compunham este quadro externo capaz de evidenciar o fato psicológico.

Em suma, as discussões sobre fatos psicológicos permeiam todo o campo das decisões penais. No conjunto de acórdãos analisados neste estudo, é possível verificar que o STF enfrentou este tipo de questões, embora nem sempre as estratégias argumentativas utilizadas na fundamentação deste ponto das decisões condenatórias tenham sido suficientemente claras e precisas.

3.4. Prova pericial e suas implicações

A prova pericial17 17 Taruffo (2008) diferencia entre a prova pericial simples, consistente em constatações triviais feitas por um perito sem nenhum conhecimento científico específico (medição simples de espaços, descrições de objetos que não demandem conceituação teórica, etc.) e a prova pericial científica, na qual há o emprego de conhecimento científico em sentido estrito. , compreendida como o conjunto de conclusões subscritas por um especialista em determinada área do conhecimento sobre fatos relevantes para a resolução do processo, é normalmente recebida pelos juízes como um fato probatório de extrema fiabilidade. Por essa razão, a invocação destas conclusões técnicas e científicas em juízo faz emergir, por si só, uma máxima de experiência de que as alegações dos experts são normalmente verdadeiras18 18 Em se tratando de provas técnicas subscritas por peritos oficiais (agentes públicos), a máxima de experiência se converte em verdadeira presunção legal/jurisprudencial. , admitindo-se, de forma imediata, a veracidade das hipóteses apresentadas em seus resultados.

A fiabilidade extremada que se atribui à prova pericial faz com que o raciocínio realizado acerca dela seja geralmente entimemático, mas sua estrutura completa se amoldaria ao leiaute representado no Diagrama 1:

Diagrama 1
Inferência probatória a partir da prova pericial

Este tipo de estrutura ficou bem evidenciada no exame da AP 572, na qual o Min. Relator, após transcrever os trechos finais do laudo documentoscópico no qual se concluiu que as assinaturas apostas nos títulos de eleitor desviados foram grafadas por pessoas ligadas ao acusado, imediatamente ratificou a veracidade destas informações e concluiu no mesmo sentido das afirmações do parecerista.

A construção do argumento em torno da prova pericial neste formato simples e pouco crítico não suscitou maiores controvérsias na AP 572, especialmente em razão da aparente ausência de questionamento pelas partes. Contudo, trata-se de uma formulação potencialmente problemática quando se pensa na pretensão epistemológica do processo, pois ela mascara tendências perniciosas acerca do raciocínio probatório.

A primeira tendência perigosa que existe em um argumento formulado nos termos acima expostos é a de ignorar o caráter probalístico inerente a qualquer elemento probatório, inclusive às conclusões periciais. Há um passo inferencial entre a afirmação de que o perito concluiu algo e a conclusão de que o perito está correto em sua conclusão. Esse passo inferencial está sujeito a um maior ou menor grau de probabilidade de certeza a depender de diversos fatores, o que não pode ser ignorado na valoração probatória.

Um primeiro fator que tem impacto direto nesta inferência diz respeito à qualidade do conhecimento científico utilizado pelo perito na produção de suas conclusões. O conhecimento científico, como qualquer tipo de conhecimento, está sujeito a construções melhores ou piores, acertadas ou equivocadas. Assim como há bastante boa ciência sendo produzida de maneira sólida e criteriosa, há também ciência lixo (junk science), que sob uma aparência de cientificidade são exercícios de adivinhação e criação de conexões arbitrárias, as quais sequer podem ser considerados ciência (HUBER, 1992HUBER, Peter. Junk science in the courtroom. Valparaiso Law Review, n. 26, p. 723-755, 1992.).19 19 Um interessante exemplo de junk science apontado por Huber (1992) foram as inúmeras teorias “científicas” surgidas no período inicial de proliferação da AIDS que serviram como base para a proliferação de preconceitos infundados contra as vítimas desta doença.

Diferenciar entre o que é ciência ou não é uma tarefa que tem se tornado cotidianamente mais árdua, seja pela explosão de novos conhecimentos que reivindicam um status de cientificidade, seja pelo desenvolvimento de novas técnicas que questionam parâmetros de cientificidade que se consideravam estabelecidos. Uma das tentativas mais marcantes de se estabelecer um critério de cientificidade para fins probatórios no direito foi o julgamento do caso Daubert vs. Merrell Dow Pharmaceuticals pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no qual foram fixados, em síntese, quatro parâmetros básicos para que uma prova de caráter científico pudesse ser admitida em juízo: a) que a teoria ou técnica científica em que se funda a prova possa ser controlada e falseada; b) que esteja definido o seu percentual de erro efetivo ou potencial; c) que a teoria ou técnica científica que fundamenta a prova tenha sido publicada em periódico sujeito ao controle por outros especialistas; d) que haja um consenso na comunidade científica interessada acerca desta teoria ou técnica (TARUFFO, 2008TARUFFO, Michele. La prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008., p. 283).

As críticas aos parâmetros fixados no caso Daubert são contundentes e variadas, indo desde sua insuficiência para a avaliação das ciências humanas e sociais (TARUFFO, 2008TARUFFO, Michele. La prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008., p. 285s) até considerações acerca da inadequação da teoria popperiana adotada em sua formulação (HAACK, 2014HAACK, Susan. Evidence matters: science, proof and truth in the law. Cambridge University Press: New York, 2014., p. 162s). Estas controvérsias não poderiam ser examinadas detidamente neste espaço, cujo objetivo é apenas acentuar que os conhecimentos empregados pelos peritos não podem ser absolutizados na análise probatória.

Se retomarmos o caso da AP 572, mesmo com os limitados critérios definidos no julgamento Daubert, seria possível qualificar a grafoscopia como prova científica admissível? A premissa fundamental da grafoscopia, que é a de que cada pessoa tem um grafismo único, inconfundível e determinado de forma subconsciente (DOMINGUES; TELLES, 2017DOMINGUES, Ana Carolina Alves; TELLES, Virgínia Lúcia Camargo Nardy. A importância da grafoscopia para a identificação de fraudes em documentos. Revista Acadêmica Oswaldo Cruz (eletrônica), ano 4, n. 14, 2017. Disponível em: <http://revista.oswaldocruz.br/Edicao_14/Artigos>. Acesso em dez. 2019.
http://revista.oswaldocruz.br/Edicao_14/...
), foi cientificamente estabelecida de maneira sólida? Seria possível falseá-la? Qual o percentual de erro de um exame grafoscópico? Embora as perícias grafoscópicas sejam rotineiras no contexto judicial brasileiro, muito provavelmente poucos juízes e advogados saberiam responder a questões deste tipo, o que denota a necessidade de melhor compreensão de aspectos fundamentais da epistemologia jurídica na prática processual penal.20 20 Em 2009, o Comitê para a Identificação das Necessidades da Comunidade Científica Forense publicou um relatório no qual se concluiu que “the scientific basis for handwriting comparisons needs to be strengthened” e que “there has been only limited research to quantify the reliability and replicability of the practices used by trained document examiners”. (CINFSC, 2009, p. 166-167).

Outro aspecto que tem grande influência no grau de probabilidade de certeza das conclusões periciais é o adequado manejo da teoria ou técnica escolhida. Até mesmo boa ciência pode produzir resultados errôneos quando aplicada equivocadamente. A observância dos métodos para a identificação, produção, guarda, abordagem e interpretação do objeto periciado são variáveis de grande importância e que podem reduzir substancialmente a qualidade das conclusões do perito. Um exemplo deste tipo de variável ficou evidente no caso Brandon Mayfield, no qual a utilização de uma imagem de impressão digital com qualidade abaixo da necessária resultou na incorreta identificação de um advogado norte-americano como sendo o autor de um atentado terrorista em Madrid. O erro foi cometido pelo Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos (FBI) e resultou em uma nota pública de desculpas no qual esta instituição se comprometeu a rever seus procedimentos para o recebimento de imagens de impressões digitais submetidas à sua análise.21 21 A integra da nota de desculpas emitida pelo FBI pode ser consultada em: <https://archives.fbi.gov/archives/news/pressrel/press-releases/statement-on-brandon-mayfield-case>>. Acesso em: dez. 2018.

Além do exposto acima, é preciso considerar que boa ciência, ainda que bem empregada, igualmente não é capaz de alcançar sempre os resultados a que se propõe. Um exame de DNA pode ser mais ou menos fiável a depender do material genético disponível e a análise de um perito físico em um acidente de trânsito está sujeito a uma maior ou menor qualidade a depender dos indícios materiais conservados após o acontecimento. A própria perícia grafoscópica tende a apresentar melhores resultados ao confrontar assinaturas feitas sem o intuito direto de fraude, pois quando o agente que produz a grafia tem a intenção direta de falsificar, como costuma ocorrer em contextos criminais, é possível que se introduzam disfarces na grafia que podem facilmente impedir a correta identificação da pessoa que os produziu (GORZIZA, 2017GORZIZA, Roberta Petry. Estudo das características gráficas mais frequentemente alteradas em disfarces de assinaturas. Revista Brasileira de Criminalística, v. 6, n. 1, p. 52-61, 2017.).

De outra parte, além de acobertar as inúmeras variáveis acerca da certeza que se pode obter a partir do laudo pericial, o uso entimemático das conclusões dos peritos também tende a transformar este argumento fático em um argumento de autoridade. Isso porque a fiabilidade e a valoração da prova pericial passam a não depender da sua qualidade técnico-científica, mas do fato de ser a afirmação do perito. O perito se converte, portanto, em uma espécie de ser iluminado que vem ao processo para revelar a verdade, ignorando-se que ele é uma pessoa limitada, utilizando técnicas igualmente limitadas, na tentativa de obter uma maior aproximação à verdade dentro do possível.

Não se pretende, com estas observações, colocar em dúvida a capacidade dos peritos em contribuírem para a elucidação dos fatos ou a autoridade da boa ciência para a correta compreensão do mundo empírico. O que se pretende é destacar que a recepção das conclusões periciais por juízes e advogados não pode prescindir de algumas indagações críticas, as quais exigem dos juristas conhecimentos epistemológicos mínimos, entre os quais estão perguntas acerca da qualidade da metodologia científica empregada e acerca da própria qualificação do perito como um expert no objeto da perícia, sendo plenamente admissível, neste contexto, argumentos ad hominem bem fundados (ATIENZA, 2013ATIENZA, Manuel. Curso de argumentación jurídica. Madrid: Trotta, 2013., p. 422).22 22 Atienza (2013, p. 422), a partir de Walton (1989), apresenta seis perguntas críticas às quais devem ser submetidas as conclusões periciais: “1) ¿cae el juicio del experto dentro de su campo de especialidad?; 2) ¿se trata realmente de um experto? ; 3) ¿como de experto és?; 4) ¿hay desacuerdos com otras autoridades em la matéria?; 5) ¿avalan las pruebas objetivas existentes al respecto de la opinión del experto?; 6) ¿se há interpretado bien lo dicho por el experto?”.

4. Conclusões

Esta pesquisa propôs uma aproximação empírica à prática decisória do Supremo Tribunal Federal no julgamento de ações penais originárias. De um modo geral, constatou-se, nos acórdãos examinados, uma tendência a não exposição completa dos fatos probatórios presentes no processo, limitando-se a Corte a tecer considerações acerca daqueles elementos considerados relevantes para sustentar a hipótese fática admitida. De outra parte, não se verifica nos acórdãos uma efetiva valoração da prova, mas uma simples enunciação dos elementos probatórios e das conclusões que dele decorreriam naturalmente, como em uma dedução lógica. Não há, assim, uma justificação efetiva do porquê de determinadas provas serem consideradas em detrimento de outras ou das razões pelas quais deve-se admitir que determinado fato probatório é fiável. Do mesmo modo, ao empregar máximas de experiência na reconstrução dos fatos, não há uma efetiva justificação destas máximas nos acórdãos, as quais muitas vezes sequer são explicitamente apresentadas.

Constatou-se, também, que a produção dos fatos probatórios orais (testemunhos e interrogatórios) é feita sem imediação, ou seja, sem que haja a presença física da Corte ou do Min. Relator no momento da produção da prova. Esta ausência de imediação, por si só, não importa em nenhum prejuízo relevante para a tarefa de posterior avaliação do material probatório e de formulação dos argumentos em matéria de fatos necessários para a decisão judicial. Todavia, é necessária atenção quanto à utilização excessiva de provas orais produzidas nas fases extraprocessuais, nas quais não há um ambiente institucional de imparcialidade capaz de conferir maior fiabilidade à prova produzida.

Em menor dimensão, também se observou nos acórdãos analisados uma forma de utilização acrítica das conclusões periciais. Normalmente tratada como entimema, a passagem direta da conclusão do perito à admissão de que esta conclusão é verdadeira ignora o caráter probalístico também presente nas provas periciais, converte a prova pericial em um argumento de autoridade quase inquestionável e diminui a responsabilidade do juiz na adequada valoração do acervo probatório. É necessário, assim, que juízes e demais atores processuais desenvolvam uma visão mais crítica da prova pericial, uma empreitada na qual a epistemologia jurídica tem papel essencial.

Com o exame de condenações proferida pela Suprema Corte brasileira, na qual se espera que estejam as melhores práticas decisórias, percebe-se que há um caminho longo a ser percorrido na tentativa de tornar efetivo o direito fundamental à fundamentação das decisões judiciais em seus aspectos fáticos. Este caminho passa, necessariamente, pela assimilação da argumentação em matéria de fatos como uma ferramenta indispensável aos práticos do direito, à compreensão das complexidades inerentes ao raciocínio fático-probatório e ao desenvolvimento da epistemologia jurídica como disciplina capaz de auxiliar os juristas na busca pela verdade fática no contexto judicial.

  • 1
    Disponíveis em: <http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/supremo-em-acao>>. Acesso em: nov. 2019.
  • 2
    O julgamento da AP 470 foi o mais longo da história do Supremo Tribunal Federal. Foram necessárias 53 sessões plenárias para julgar o processo contra 38 réus. Quando começou a ser julgada, a ação contava com 234 volumes e 495 apensos, que perfaziam um total de 50.199 páginas. Dos 38 réus, 25 foram condenados e 12 foram absolvidos. Informações disponíveis no sítio eletrônico no STF: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=236494>>. Acesso em: nov. 2019.
  • 3
    Nesta estatística, inserem-se na competência penal originária do STF as ações penais públicas e privadas, execuções penais, inquéritos policiais, revisões criminais e extradições. Para os processos baixados, o tempo de tramitação corresponde ao intervalo entre a data da autuação do processo e a data da baixa. Para os processos pendentes, o tempo de tramitação corresponde ao intervalo entre a data da autuação do processo e a data de 31 de dezembro de 2017.
  • 4
  • 5
    Declarada a prescrição dapretensão punitiva pela pena concretamente aplicada.
  • 6
    Neste caso, a diplomaçãodo acusado no cargo que lhe assegurava a prerrogativa de foro no STF ocorreuapós a condenação em primeira instância. Assim, o caso foi julgado na CorteSuprema como uma apelação contra a condenação. Contudo, a própria Cortereconhece que a apelação defensiva devolve toda a matéria de fato e de direitoao Tribunal e, portanto, o julgamento da apelação nestes casos possui a mesmaamplitude e as mesmas exigências do julgamento de uma ação penal, razão pelaqual as apelações nestes casos também são autuadas na classe de ações penaisoriginárias (AP).
  • 7
    Trata-se de apelação penalem situação processual idêntica à AP 929 (ver nota nº 6).
  • 8
    Para fins penais, é funcionário público toda pessoa que “embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” bem como quem “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (Art. 327 do Código Penal).
  • 9
    Em uma mesma ação penal pode haver a imputação de crimes de tipologia diversas. Desse modo, o total de incidências penais supera o número total de ações penais.
  • 10
    Fatos probatórios são as premissas utilizadas na argumentação em matéria de fatos, consistindo em testemunhos, documentos, exames técnicos e outros elementos a partir dos quais se pode inferir, com variados graus de certeza, uma hipótese fática (GONZÁLEZ LAGIER, 2003GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y argumentos: racionalidad epistemológica y prueba de los hechos en el proceso penal - II. Jueces para la democracia, n. 47, p. 35-50, 2003., p. 35).
  • 11
    A esse respeito, Ferrer Beltrán (2007FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007., p. 68) destaca: “Éste parece ser un principio epistemológico indiscutible: cuanta más información relevante está a disposición de quien debe decidir, mayor probabilidad de acierto en la decisión”.
  • 12
    Acerca da fundamentação e do grau de probabilidade causal das máximas de experiência, ver: GONZÁLEZ LAGIER, 2003GONZÁLEZ LAGIER, Daniel. Hechos y argumentos: racionalidad epistemológica y prueba de los hechos en el proceso penal - II. Jueces para la democracia, n. 47, p. 35-50, 2003., p. 42-43.
  • 13
    A busca pela celeridade é, inclusive, uma postura normalmente contraepistemológica, pois desloca a ênfase processual da investigação da verdade para outros objetivos jurídicos relevantes, como a pacificação social e a efetividade da jurisdição.
  • 14
    Estas impressões subjetivas podem, inclusive, contaminar o adequado exame do material probatório pelo juiz que realizou a instrução. No campo das ciências, em geral, é bastante estabelecido que a aceitação dos resultados de um procedimento destinado à produção do conhecimento deve ser submetido ao exame de outros membros da comunidade acadêmica que não participaram diretamente deste procedimento, como ocorre com os sistemas de double-blind peer review.
  • 15
    Como exemplo, há decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro no RESP nº 1674198/MG, no qual a Corte constrói um raciocínio em matéria de fatos para concluir que, no caso, o testemunho indireto (testemunha de ouvir dizer) que não identificou suas fontes com precisão não possui fiabilidade suficiente para autorizar a pronúncia do acusado perante o Tribunal de Júri.
  • 16
    A esse respeito, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, ao julgar o caso Mohamed Abubakari vs Tanzânia, declarou a sua competência para examinar se a análise das evidências pelos juízes nacionais do Estado-parte foi realizada em conformidade com o direito a um julgamento justo (fair trial) garantido pelo art. 7º da Carta Africana. Assim, após examinar o caso, a Corte reconheceu a existência de violações ao direito a um julgamento justo em razão de o peticionante haver sido condenado “based on the testimony of a single individual and riddled with inconsistences” e sem a existência de “detailed investigation of the alibi allegation made by the Applicant” (Disponível em: <http://www.african-court.org/en/index.php/55-finalised-cases-details/860-app-no-007-2013-mohamed-abubakari-v-united-republic-of-tanzania-details>>. Acesso em: dez. 2018.
  • 17
    Taruffo (2008)TARUFFO, Michele. La prueba. Trad. Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008. diferencia entre a prova pericial simples, consistente em constatações triviais feitas por um perito sem nenhum conhecimento científico específico (medição simples de espaços, descrições de objetos que não demandem conceituação teórica, etc.) e a prova pericial científica, na qual há o emprego de conhecimento científico em sentido estrito.
  • 18
    Em se tratando de provas técnicas subscritas por peritos oficiais (agentes públicos), a máxima de experiência se converte em verdadeira presunção legal/jurisprudencial.
  • 19
    Um interessante exemplo de junk science apontado por Huber (1992)HUBER, Peter. Junk science in the courtroom. Valparaiso Law Review, n. 26, p. 723-755, 1992. foram as inúmeras teorias “científicas” surgidas no período inicial de proliferação da AIDS que serviram como base para a proliferação de preconceitos infundados contra as vítimas desta doença.
  • 20
    Em 2009, o Comitê para a Identificação das Necessidades da Comunidade Científica Forense publicou um relatório no qual se concluiu que “the scientific basis for handwriting comparisons needs to be strengthened” e que “there has been only limited research to quantify the reliability and replicability of the practices used by trained document examiners”. (CINFSC, 2009COMMITTEE ON IDENTIFYING THE NEEDS OF THE FORENSIC SCIENCES COMMUNITY (CINFSC). Strengthening forensic science in the United States: a path forward. 2009. Disponível em: <https://www.ncjrs.gov/pdffiles1/nij/grants/228091.pdf>. Acesso em dez. 2019.
    https://www.ncjrs.gov/pdffiles1/nij/gran...
    , p. 166-167).
  • 21
    A integra da nota de desculpas emitida pelo FBI pode ser consultada em: <https://archives.fbi.gov/archives/news/pressrel/press-releases/statement-on-brandon-mayfield-case>>. Acesso em: dez. 2018.
  • 22
    Atienza (2013ATIENZA, Manuel. Curso de argumentación jurídica. Madrid: Trotta, 2013., p. 422), a partir de Walton (1989), apresenta seis perguntas críticas às quais devem ser submetidas as conclusões periciais: “1) ¿cae el juicio del experto dentro de su campo de especialidad?; 2) ¿se trata realmente de um experto? ; 3) ¿como de experto és?; 4) ¿hay desacuerdos com otras autoridades em la matéria?; 5) ¿avalan las pruebas objetivas existentes al respecto de la opinión del experto?; 6) ¿se há interpretado bien lo dicho por el experto?”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    22 Dez 2020
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