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Transfeminicídio: genealogia e potencialidades de um conceito

Transfeminicide: genealogy and potentialities of a concept

Resumo

Este artigo destina-se a analisar o desenvolvimento e as funções do conceito de transfeminicídio como uma categoria jurídico-sociológica. Surgido a partir do movimento transfeminista, a aplicação do conceito de feminicídio para explicar os crimes violentos letais intencionais contra travestis e mulheres transexuais é hoje um relevante instrumento de análise desse fenômeno, útil para localizar as demandas do movimento transgênero.

Palavras-chave:
Feminicídio; Transfeminicídio; Transfeminismo

Abstract

This paper aims at analyzing the development and the functions of the concept of transfeminicide as a legal and sociological category. Having appeared within the transfeminist movement, the adoption of the concept of transfeminicide, in order to explain violent lethal crimes against transvestites and trans women, is currently a relevant analytical instrument for reflecting upon this phenomenon, especially useful to locate the demands of the transgender movement.

Keywords:
Feminicide; Transfeminicide; Transfeminism

1. Introdução

Transfeminicídio é um conceito criado para descrever o assassinato de travestis e mulheres transexuais por razão de gênero, cuja motivação é especificamente o desprezo ao trânsito que essas pessoas realizam desde o que socialmente é entendido como masculino (gênero que lhes foi atribuído ao nascer) em direção ao que socialmente é entendido como feminino. Esse conceito foi articulado por Berenice Bento (2014BENTO, Berenice. Brasil: país do transfeminicídio. Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos, 4 jun. 2014. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf. Acessado em 10 ago. 2018.
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; 2017BENTO, Berenice. Transviad@s: Gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador: EDUFBA, 2017.) como uma derivação da ideia de feminicídio, outro importante conceito nos estudos de gênero.

Delimitar quem pode ser vítima de feminicídio (as pessoas assassinadas por essa motivação) não era um grande problema quando a categoria destinava-se unicamente às mulheres cisgêneras, mas passa a ser a partir do momento que as travestis e mulheres transexuais reclamam espaço junto ao movimento feminista. Quando, na década de 1990 (CAPUTI; RUSSELL, 1992CAPUTI, Jane; RUSSELL, Diana. Femicide: sexist terrorism against women. In: RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana. Femicide: The politics of woman killing. Nova York: Twayne, 1992, p. 13-21.), o femicídio surge como categoria de análise e é reformulado, na década de 2000 (LAGARDE, 2006ALAGARDE, Marcela. Del femicidio al feminicIdio. Desde el jardín de Freud, n. 6, p. 216-255, 2006A. Disponível em: http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/jardin/article/view/8343/8987. Acesso em 15 dez. 2018.
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, 2006BLAGARDE, Marcela. Introducción. Por la vida y la libertad de las mujeres, fin al feminicídio. In: HARMES, Roberta; RUSSELL, Diana. Feminicidio: una perspectiva global. México: Universidad Autónoma de México, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades, Comisión Especial para Conocer y dar Seguimiento a las Investigaciones Relacionadas con los Feminicídios en la República Mexicana y a la Procuración de Justicia Vinculada, 2006B, p. 15-42.), sob a terminologia de feminicídio, estas eram categorias que designavam apenas os homicídios praticados por homens contra mulheres cisgêneras, por motivação misógina. Neste caso, o feminino era compreendido como um ente biológico, algo inscrito na ordem da natureza.

Com as conquistas do movimento feminista, do movimento transgênero1 1 “Transgênero” é um termo guarda-chuva cunhado nos anos 1990 pela ativista Leslie Feinberg (ENKE, 2012, p. 4) e que procurava dar unidade a uma variedade de sujeitos que não se identificavam com a normatividade cisgênera, que envolve drag queens, drag kings, cross-dressers, lésbicas masculinas, andróginos, homens trans, mulheres trans etc. e, especificamente, do movimento feminista transgênero, que impingiram mudanças radicais nas concepções hegemônicas de gênero e sexualidade, a norma social que define o que é uma mulher sofre desestabilizações e amplia-se, na medida em que a mulher universal é questionada pelos diversos feminismos interseccionais. As fronteiras de gênero, hoje, apresentam contornos que não são mais tão claros, de modo que as definições do feminino e do masculino já não são tão óbvias quanto antes. Também com o avanço dos estudos de gênero no final da década de 1990, em especial pela incorporação de novas teorias do poder e da linguagem nesse campo teórico, o gênero desprende-se de seus aspectos biologizantes e passa a ser entendido como uma performance que se materializa no corpo, produzida por uma confluência de forças sociais.

Nesse cenário, é particularmente relevante observar o surgimento, no âmbito dos movimentos sociais, dos conceitos utilizados para explicar e combater a violência que atinge os grupos vulnerabilizados pela sua identidade de gênero ou sexualidade. Os conceitos são utilizados não apenas como categorias de análise, mas, também, como armas de combate que objetivam a transformação da linguagem e da forma como os sujeitos se referem às relações sociais. Assim, possuem tanto uma função epistemológica quanto política.

É sob essas bases que, neste escrito, explico como surge o conceito de transfeminicídio e a importância política de sua mobilização para explicar os assassinatos de travestis e mulheres sexuais. O conteúdo desse conceito articula uma noção sofisticada de justiça por reconhecimento e interpretações perspicazes sobre as assimetrias de poder que produzem as diferenças de gênero. Para isso, na primeira parte do texto, explicarei o que é feminicídio, como surge a categoria e a estratégia política do feminismo por trás desse conceito. Na segunda parte, explico como o movimento feminista transgênero utiliza o feminicídio como categoria de análise também para explicar os assassinatos de travestis e mulheres transexuais.

2. Entendendo o conceito base: genealogia e potencialidades do conceito de feminicídio

Este artigo destina-se a apresentar os homicídios de travestis e mulheres transexuais por razão de gênero como uma forma específica de feminicídio, que ocorre tanto em razão do trânsito de gênero da vítima quanto da incorporação de um gênero apreendido como vulnerável (o feminino). Para melhor esclarecer essa proposição, todavia, precisa-se antes expor o que se entende por feminicídio, uma vez que essa é uma categoria jurídico-sociológica complexa e não autoexplicativa.

Inobstante haja menções anteriores, o termo foi empregado apenas há pouco tempo no sentido que possui hoje, tendo sido utilizado pela primeira vez por Diana Russell em 1976, com a grafia femicídio, em seu discurso no Tribunal Internacional de Crimes contra as Mulheres, em Bruxelas. Nessa oportunidade, a autora utiliza o termo para descrever “o assassinato de ódio contra mulheres perpetrado por homens” (RUSSELL, 2011RUSSELL, Diana. The origin and importance of the term femicide, dez. 2011. Disponível em: https://www.dianarussell.com/origin_of_femicide.html. Acessado em 10 jul. 2019.
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, tradução minha).

O conceito só passa a ganhar densidade teórica, todavia, nos anos 1990. O pontapé inicial foi dado em 1992 com a publicação de uma antologia intitulada Femicide: The politics of woman killing, organizada por Jill Radford e pela própria Diana Russell. São mais de quarenta textos que refletem sobre a condição feminina e a experiência da violência, sobretudo analisando o assassinato de mulheres nos EUA e na Inglaterra. Essa obra é considerada um marco na produção acadêmica sobre o assassinato de mulheres e registra o início da efetiva utilização da categoria femicide (femicídio), só posteriormente traduzida para o espanhol como feminicidio (feminicídio).

No livro, Jill Radford (1992, p. 3, tradução minha) conceitua femicídio como “o assassinato misógino de mulheres por homens” e Diana Russell já não entende mais a categoria como qualquer assassinato de mulher por um homem, mas sim como “o assassinato de mulheres por homens porque elas são mulheres” (RUSSELL, 2011RUSSELL, Diana. The origin and importance of the term femicide, dez. 2011. Disponível em: https://www.dianarussell.com/origin_of_femicide.html. Acessado em 10 jul. 2019.
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, grifo da autora, tradução minha), representando um avanço teórico no sentido de diferenciar melhor o femicídio das demais motivações do homicídio. Uma vez que o termo surge para nomear a singularidade das mortes violentas de mulheres.

Nessa perspectiva, a criação do conceito de femicídio (e feminicídio) para nomear uma forma específica do crime de homicídio insere-se no mesmo âmbito da guerra pela nomeação. Denominar como femicídio os assassinatos de mulheres é importante, do ponto de vista epistemológico, para apontar suas singularidades. Além disso, no aspecto político, atribuir um nome ao fenômeno permite elaborar melhor um arsenal que facilite o combate às assimetrias de poder que produzem os assassinatos de mulheres por razões de gênero. Lógica que pode ser extraída das palavras da própria Diana Russell: “Você não pode se mobilizar contra algo que não tem nome” (BOIRA et al., 2016BOIRA, Santiago et al.. Theories of femicide and their significance for social research. Current Sociology, v. 64, n. 7, p. 975-995, 2016., p. 976).

A elaboração de uma categoria teórica para descrever os assassinatos de mulheres põe em novos termos a forma de tratar esse fenômeno, uma vez que a recente denominação carrega consigo implicações político-epistemológicas relevantes, que se distinguem da maneira como o assunto é tratado pelo senso comum. O uso do termo femicídio é importante porque atribui ao gênero a razão determinante da violência a que a mulher sofre, passando a designar (nos moldes originais) os assassinatos praticados por homens contra mulheres, em virtude do desprezo pelo gênero feminino (CAPUTI; RUSSELL, 1992CAPUTI, Jane; RUSSELL, Diana. Femicide: sexist terrorism against women. In: RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana. Femicide: The politics of woman killing. Nova York: Twayne, 1992, p. 13-21.). Essa é uma forma muito específica de morte violenta, que só se verifica em razão do lugar que o feminino possui nas sociedades em que o masculino é um locus privilegiado de poder.

É por isso que, a partir de um ponto de um vista feminista, “Chamar de femicídio os assassinatos misóginos remove a veia obscura dos termos não-generificados como homicídio ou assassinato” (CAPUTI; RUSSELL, 1992CAPUTI, Jane; RUSSELL, Diana. Femicide: sexist terrorism against women. In: RADFORD, Jill; RUSSELL, Diana. Femicide: The politics of woman killing. Nova York: Twayne, 1992, p. 13-21., p. 15, tradução minha). E a principal função do conceito de femicídio acaba sendo exatamente essa: mostrar que o gênero é um fator decisivo nas mortes das mulheres, ainda que o número de homens mortos seja expressivamente maior ao redor do mundo. A elaboração do termo femicídio destaca a singularidade dos homicídios de mulheres, pondo no próprio radical o motivo desses atos: a vulnerabilidade da condição feminina. Nesse sentido, ser mulher permite a violação de seu corpo pela violência, normalmente justificada por razões como ciúmes, traição, honra etc. Utilizar o termo femicídio é dar visibilidade a esse fenômeno recorrente e, ao mesmo tempo, atribuir a ele uma carga valorativa a partir de uma perspectiva feminista, a qual sustenta que o assassinato de mulheres não é uma questão moral ou passional, nem mesmo acidental. Antes, é um produto das assimetrias de poder que atravessam o gênero enquanto elemento relevante na constituição das relações sociais, em que ao masculino é dado o domínio do corpo feminino.

No campo da motivação, as teóricas feministas creditam a violência contra a mulher por razões de gênero à estrutura de poder que, em momentos específicos, dá o acesso do corpo feminino ao outro (seja homem, seja outra mulher). Trata-se de uma violência que surge pelo exercício de um poder específico, em uma relação de assimetria entre os sujeitos provocada pelo gênero (enquanto elemento das formações sociais). Com efeito, a questão do poder perpassa toda a produção teórica sobre o assassinato de mulheres e encontra aí um campo fértil de análise, de modo que diversas autoras chegam a entender esses assassinatos como “crimes de poder” (SEGATO, 2006SEGATO, Rita. Que és un feminicidio: notas para un debate emergente. Brasília: Universidade de Brasília, 2006., p. 4). Mais precisamente, trata-se de “crimes cuja dupla função é, neste modelo, simultaneamente, a retenção ou manutenção e a reprodução do poder” (SEGATO, 2006SEGATO, Rita. Que és un feminicidio: notas para un debate emergente. Brasília: Universidade de Brasília, 2006., p. 4, tradução minha). O homicídio de mulheres por razão de gênero é a forma de exercício de poder que tem no corpo feminino o seu objeto de incidência; que encontra no aniquilamento da mulher a sua realização.

Malgrado o aspecto político do assassinato de mulheres fosse conhecido desde antes do desenvolvimento da categoria femicídio2 2 Como na obra de Jane Caputi (1989). , é com a propulsão dessa categoria que esse aspecto da violência ganha mais evidência. Inicialmente, entre as feministas inglesas e estadunidenses; logo depois, pelas feministas latino-americanas, que o traduziram na forma de feminicídio. Tendo encontrado na América Latina um fértil campo de desenvolvimento em virtude do alto índice de assassinatos de mulheres na região, de modo que muitos países já criminalizaram a conduta na forma de tipo penal.

O termo feminicídio foi cunhado pela tradução que a deputada e feminista mexicana Marcela Lagarde realizou para o espanhol da obra organizada por Diana Russell (o Femicide: the politics of women killing), tendo sido autorizada pela própria autora a nova grafia (RUSSELL, 2011RUSSELL, Diana. The origin and importance of the term femicide, dez. 2011. Disponível em: https://www.dianarussell.com/origin_of_femicide.html. Acessado em 10 jul. 2019.
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), a fim de adequá-lo às especificidades da língua3 3 A partir de uma visão etimológica, Júlia Fragoso (2009, p. 34-35, tradução minha) afirma que: “Para definir o termo feminicídio, parte-se de suas raízes etimológicas. As duas raízes latinas da palavra que nos ocupa são fémina - mulher - e caedo, caesum - matar. A palavra em latim para mulher não é femena, e sim fémina, com ‘i’. Ao unir-se duas paralavras para formar outra, respeitam-se as raízes das duas e não só se grudam, podendo-se colocar vogais de união conforme o caso em que se encontrem as palavras. Por isso diz-se biologia e não bioslogia, e também homicídio e não homocídio. O “i” é a letra de união das duas palavras, que vem da terceira declinação do latim feminis, que quer dizer “da mulher”; então, a morte da mulher seria feminiscidum, e daí passamos à palavra feminicídio (...)”. . Posteriormente, ao analisar a onda de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez (estado de Chihuahua, México), Marcela Lagarde passa a utilizar o termo em um sentindo diferente daquele elaborado originalmente por Diana Russell (LAGARDE, 2006ALAGARDE, Marcela. Del femicidio al feminicIdio. Desde el jardín de Freud, n. 6, p. 216-255, 2006A. Disponível em: http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/jardin/article/view/8343/8987. Acesso em 15 dez. 2018.
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, p. 221). A ideia de Lagarde era diferenciar os termos femicídio e feminicídio, uma vez que femicídio é uma homologia da palavra homicídio e acaba por transmitir a ideia de que se trata de todo e qualquer assassinato de mulher; ou ainda que a morte de uma mulher equivale (em condições) à morte de um homem.

A tentativa de encontrar um termo próprio que abarcasse as especificidades do assassinato de mulheres fez a autora cunhar a palavra feminicídio, fazendo enxergar melhor o caráter sistemático desses crimes no interior de um regime de gênero, que os diferencia dos assassinatos de homens. Além disso, a autora acrescenta uma característica essencial para que a morte violenta de mulheres seja caracterizada como feminicídio, qual seja: que o delito tenha sido estimulado pela impunidade do Estado. Para entender melhor o posicionamento de Lagarde, é necessário olhar para o contexto de análise em que a categoria é empregada.

Ciudad Juárez é uma grande cidade que fica ao norte de México e faz fronteira com os EUA, estando separada destes apenas por um rio. Essa posição geográfica torna o local um centro urbano de muitas peculiaridades: dos mais de 1 milhão de habitantes de Ciudad Juárez, cerca de 43% são migrantes (AMNESTY, 2003AMNESTY International. Developments as of september 2003. Londres: Amnesty International, 2003. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr410262003en.pdf. Acessado em 20 ago. 2019.
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, p. 27), os quais foram para a cidade em busca de cruzar ilegalmente a fronteira até o país vizinho ou em virtude da grande onda de empregos que ela passou a ofertar a partir de meados da década de 1970, com o Programa de Industrialização da Fronteira Norte. Este programa criou as condições para a formação de um grande grupo de indústrias maquiladoras4 4 Tipo de indústria que recebe insumos unicamente para produção de mercadorias que serão exportadas. Nesse caso, exportadas para os EUA. , as quais exportavam seus produtos para os EUA explorando mão-de-obra barata; e que foram sobretudo expandidas a partir de 1994, com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) (PANTALEO, 2010PANTALEO, Katherine. Gendered violence: na analysis of the maquiladora murders. International Criminal Justice Review, v. 20, n. 4, p. 349-365, 2010.). Boa parte do grande fluxo migratório para Ciudad Juárez em busca de emprego foi de mulheres jovens advindas de áreas rurais e de pequenas cidades ao longo do México, implicando em uma significativa inversão dos papeis tradicionais de gênero na localidade.

Além desses fatos, o lugar ainda é bastante conhecido por ser comandado por organizações criminosas, sobretudo envolvidas com narcotráfico e contrabando, devido à fronteira com os EUA. Um cenário que colabora para que Ciudad Juárez seja uma região extremamente violenta e que, não à toa, foi considerada a cidade mais perigosa do mundo entre 2009 e 2010 devido o número de homicídios que eram registrados (ORTEGA, 2010ORTEGA, José. Cd. Juárez, por segundo año consecutivo, la ciudad más violenta del mundo. Seguridad, Justicia y Paz, 11 jan. 2010. Disponível em: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/sala-de-prensa/58-cd-juarez-por-segundo-ano-consecutivo-la-ciudad-mas-violenta-del-mundolink. Acessado em 10 dez. 2020.
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). Um grande risco também para as migrantes de origem pobre recém-chegadas na cidade, especialmente porque trabalhavam até tarde da noite na indústria e, ao voltar para casa, precisavam caminhar pelas ruas escuras, uma vez que não havia mais transporte no horário (DURAN, 2009DURAN, Cinthya. Estado mexicano juzgado por feminicidio. Disponível em: https://web.archive.org/web/20090524195713/http://www.articuloz.com/politica-articulos/estado-mexicano-juzgado-por-feminicidio-897808.html Acessado em 10 dez. 2019.
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).

É nesse contexto que ocorrem os feminicídios de Ciudad Juárez, que ganharam fama mundial e cujas vítimas foram majoritariamente mulheres jovens, migrantes e proletárias, atraídas pelas ofertas de emprego das maquiladoras. Esses crimes diferenciaram-se da forma mais recorrente de violência contra a mulher em virtude do padrão ritualístico que possuíam e da maneira cruel como se davam as mortes.

Primeiro, a vítima era sequestrada - normalmente, a caminho do trabalho ou da escola. Depois, era submetida a sessões de torturas que envolviam a própria violência sexual, que muitas vezes era praticada por vários homens. Além do estupro, as vítimas também passavam por sessões de espancamento em que, somente ao final, eram estranguladas. Em mais de 70% dos casos as vítimas morreram por asfixia (AMNESTY, 2003AMNESTY International. Developments as of september 2003. Londres: Amnesty International, 2003. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr410262003en.pdf. Acessado em 20 ago. 2019.
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, p. 31). Muitas vezes, ainda eram mutiladas antes de serem efetivamente mortas. Vítimas foram encontradas com pedaços do seios arrancados a mordidas ou mesmo com os seios arrancados por materiais cortantes.

Por mais de dez anos, esse ritual repetiu-se com frequência em Ciudad Juárez, onde mais da metade das vítimas era adolescentes ou jovens entre 13 e 22 anos (MERRY, 2009, p. 120-121), tendo seus corpos abandonados em terrenos. Para além da tragédia que os assassinatos representaram, é interessante notar que o alto número de feminicídios teve um efeito imediato na composição da força de trabalho das maquiladoras. Se por muito tempo a grande maioria das pessoas que trabalhavam nessas fábricas era mulher, passados dez anos do início do caso Juárez o percentual de mulheres trabalhando aí já era inferior a 50% (AMNESTY, 2003AMNESTY International. Developments as of september 2003. Londres: Amnesty International, 2003. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr410262003en.pdf. Acessado em 20 ago. 2019.
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, p. 26). Esse fato é particularmente interessante porque demonstra que os feminicídios possuem efeitos socialmente compartilhados e que os assassinatos de mulheres por motivo de gênero fizeram retroceder avanços rumo à diminuição da desigualdade de gênero. Nesse sentido, Rita Segato (2005)SEGATO, Rita. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juárez. Revista de Estudos Feministas, v. 13, nº 2, Florianópolis, p. 265-285, mai.-ago. 2005. tem razão ao entender os crimes como mensagens a serem levadas a toda a comunidade, uma espécie de linguagem capaz de ser reconhecida no contexto local.

A taxa de feminicídio em Ciudad Juárez era tão alta que quatro em cada dez pessoas assassinadas eram mulheres, enquanto que no restante do México esse número era de uma em cada dez (RODRÍGUEZ, 2003RODRÍGUEZ, Sergio. Trezentos crimes perfeitos. Le Monde Diplomatique, 1º ago. 2003. Disponível em: https://diplomatique.org.br/trezentos-crimes-perfeitos/. Acessado em 12 dez. 2019.
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). Além disso, não obstante a taxa geral de homicídios ter aumentado na região a partir de 1993, especialmente pelo avanço do crime organizado, o número de assassinatos de homens aumentou em três vezes, enquanto o de mulheres aumentou quatro vezes (AMNESTY, 2003AMNESTY International. Developments as of september 2003. Londres: Amnesty International, 2003. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr410262003en.pdf. Acessado em 20 ago. 2019.
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, p. 28). Apesar de tais números, a maior parte dos casos de feminicídio restou sem solução e quando os casos estavam efetivamente para serem julgados, ocorriam ameaças contra juízes, jornalistas, promotores, etc. Isso porque os envolvidos nos delitos frequentemente eram empresários de grande influência no governo do país.

Sergio Rodríguez (2003)RODRÍGUEZ, Sergio. Trezentos crimes perfeitos. Le Monde Diplomatique, 1º ago. 2003. Disponível em: https://diplomatique.org.br/trezentos-crimes-perfeitos/. Acessado em 12 dez. 2019.
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descreve o cenário desses crimes e as causas da impunidade:

De acordo com fontes federais, seis grandes empresário de El Paso, no Estado do Texas, de Ciudad Juárez y de Tijuana financiaram matadores de aluguel encarregados de raptar mulheres e trazê-las até eles para violenta-las, mutilá-las e matá-las. (...) As autoridades mexicanas estariam a par dessas atividades há muito tempo e se recusariam a intervir. Esses ricos empresários seriam amigos de certos amigos do presidente Vicente Fox. E teriam contribuído para o financiamento oculto da campanha eleitoral que permitiu a Fox ser eleito à Presidência, e a Francisco Barrio Terrazas, ex-governador de Chihuahua, tornar-se ministro.

Nesse cenário, a maior parte dos crimes permanece até hoje sem um completo esclarecimento ou, mesmo quando alguém era condenado, pairavam dúvidas sobre a autoria, havendo suspeitas de que o sistema de justiça local havia implantado um bode expiatório. A impunidade, assim, era parte do próprio cenário criminoso de Ciudad Juárez, expressada no apadrinhamento dos culpados, na ameaça e no assassinato daqueles que tentavam elucidar os casos e na inexistência de custódia das provas periciais - não havia sequer luvas para que a polícia pudesse coletar materiais sem contaminação das provas (AMNESTY, 2003AMNESTY International. Developments as of september 2003. Londres: Amnesty International, 2003. Disponível em: https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr410262003en.pdf. Acessado em 20 ago. 2019.
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). É por isso que Marcela Lagarde aponta o feminicídio como um crime de Estado, em que a impunidade é decisiva para a perpetuação das condutas. Ela afirma:

(...) preferi a palavra feminicídio para denominar assim o conjunto de delitos de lesa-humanidade que contém os crimes, os sequestros e as desaparições de meninas e mulheres em um quadro de colapso institucional. Se trata de uma fratura do Estado de direito que favorece a impunidade. O feminicídio é um crime de Estado. (LAGARDE, 2006BLAGARDE, Marcela. Introducción. Por la vida y la libertad de las mujeres, fin al feminicídio. In: HARMES, Roberta; RUSSELL, Diana. Feminicidio: una perspectiva global. México: Universidad Autónoma de México, Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades, Comisión Especial para Conocer y dar Seguimiento a las Investigaciones Relacionadas con los Feminicídios en la República Mexicana y a la Procuración de Justicia Vinculada, 2006B, p. 15-42., p. 20, grifo da autora, tradução minha)

A partir de Lagarde e da dimensão que ganhou o caso Ciudad Juárez, o termo feminicídio espalhou-se com rapidez pela América Latina, chegando apenas tardiamente ao Brasil (GOMES, 2018GOMES, Izabel. Feminicídios: um longo debate. Revista de Estudos Feministas, v. 26, n. 2, Florianópolis, p. 1-16, 2018., p. 4). Ao mesmo passo, apenas em 2010 a palavra feminicídio é traduzida em língua inglesa na forma de feminicide (PINELO, 2018PINELO, Aleida. A theoretical approach to the concept of femi(ni)cide. The Pshilosophical Journal of Conflict and Violence, v. 3, n. 1, p. 41-63, 2018., p. 44), quando da organização da obra Terrorizing women: feminicide in the Americas (BEJANARO; FREGOSO, 2010BEJANARO, Cynthia; FREGOSO, Rosa-Linda (ed.). Terrorizing women: feminicide in the Américas. Duke University Press, 2010.), prefaciada pela própria Marcela Lagarde. Hoje, o termo é frequentemente utilizado para análise dos assassinatos de mulheres em países de língua espanhola, inglesa e portuguesa.

Os episódios de feminicídio de Ciudad Juárez tornaram-se paradigmáticos quando o tema é assassinato de mulheres por razão de gênero, posto que fazem cair por terra toda a argumentação moral em torno desses homicídios - que quase sempre são justificados como crimes passionais. Como observa Julia Fragoso (2002FRAGOSO, Julia. Feminicidio sexual serial em Ciudad Juárez: 1993-2001. Debate Feminista, v. 25, p. 279-305, abr. 2002., p. 281-282) sobre Ciudad Juárez:

Aqui, morrem-se homens e mulheres em circunstâncias violentas. Todavia, a morte de mulheres expressa uma opressão de gênero, a desigualdade de relações entre o masculino e o feminino, entre uma manifestação de domínio, terror, extermínio social, hegemonia patriarcal, classe social e impunidade.

Desataco aqui essa passagem porque acredito que ela responde satisfatoriamente a uma pergunta desafiadora à ideia de feminicídio como uma chave de análise. Afinal, se na maior parte das vezes (inclusive em Ciudad Juárez) a taxa de assassinatos de homens é maior do que a de mulheres, o que há de especial nestas mortes que reivindicam uma categoria própria de análise que a diferencie dos demais homicídios? E ainda: se a violência contra o homem mata mais do que a violência contra a mulher, isso não indicaria que há uma vulnerabilidade maior do gênero masculino e uma proteção maior do gênero feminino?

Para responder a essas perguntas é preciso esclarecer que o gênero é um efeito e uma relação de poder pautados na desigualdade. A assimetria é um efeito imediato produzido junto à noção gênero, de modo que as diferenças no interior dessas relações só fazem sentido em contextos em que se expressam na forma de desigualdade. Por essa razão, as teorias sobre o feminicídio são sempre teorias sobre o poder, uma vez que justificam a violência como um resultado da desigualdade que compõe a própria noção de gênero, que acaba por tornar o corpo feminino como um objeto suscetível à violência. Se homens e mulheres morrem cotidianamente, esse é um dado que só consegue ser melhor analisado quando se observa as razões e as condições da violência que os abate.

Muitos são os contextos em que a violência é invocada: conflito entre organizações criminosas, dívida de droga, briga no trânsito, crimes patrimoniais etc. Porém, o gênero só é mais frequentemente tomado como a condição decisiva para a manifestação da violência quando a vítima é mulher. É por isso que são tão distintas as maneiras que homens e mulheres são executados. E é por esse fato social que o conceito de feminicídio ganha destaque como um esforço teórico na compreensão dos assassinat os de mulheres por razão de gênero.

Nessa perspectiva, é bastante esclarecedor o relato de Rita Segato (2005SEGATO, Rita. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juárez. Revista de Estudos Feministas, v. 13, nº 2, Florianópolis, p. 265-285, mai.-ago. 2005., p. 279):

O que é, então, um feminicídio, no sentido que Ciudad Juárez lhe confere a essa palavra? É o assassinato de uma mulher genérica, de um tipo de mulher, só por ser mulher e pertencer a esse tipo, da mesma forma que o genocídio é uma agressão genérica e letal a todos aqueles que pertencem ao mesmo grupo étnico, racial, lingüístico, religioso ou ideológico. Ambos os crimes dirigem-se a uma categoria, não a um sujeito específico. Precisamente, esse sujeito é despersonalizado como sujeito porque se faz predominar nele a categoria à qual pertence sobre suas características individuais biográficas ou de personalidade.

Em vez de entender o feminicídio como uma anomalia social ou uma doença do criminoso, é preciso observá-lo como o resultado de uma configuração social em que os envolvidos nos delitos encontravam no sequestro, na tortura, na violação e no aniquilamento do corpo feminino uma forma de expressão de poder e manutenção do poder masculino. Ainda nas palavras de Julia Fragoso (2002FRAGOSO, Julia. Feminicidio sexual serial em Ciudad Juárez: 1993-2001. Debate Feminista, v. 25, p. 279-305, abr. 2002., p. 294, tradução minha): “Para as classes dominantes, a violência é um valor necessário que contribui para manter a ordem existente, é o direito dos que têm o poder”.

3. Genealogia e potencialidades do conceito de transfeminicídio

O conceito de transfeminicídio é a nova tática político-teórica do feminismo transgênero, estando diretamente ligada à justiça por reconhecimento e possui tanto uma dimensão sociológica quanto jurídica. É um conceito útil porque, do ponto de vista analítico, localiza entre o feminicídio e a transfobia a violência por razão de gênero contra travestis e mulheres transexuais (COELHO, 2019COELHO, Caia. Transfeminicídio. Transfeminismo, 6 de janeiro de 2019. Disponível em: https://transfeminismo.com/transfeminicidio/. Acessado em 17 mar. 2019.
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), pontuando que há aí fatores que, quando se encontram, tornam matáveis o corpo dessas pessoas. Trata-se de uma chave teórico-política que possui dupla finalidade: 1) localizar as travestis e mulheres transexuais no campo do feminino; e 2) sugerir que a transição do gênero socialmente lido como masculino para o feminino implica em tornar as travestis e transexuais mais suscetíveis a formas de violência que possuem a mesma natureza da violência contra as mulheres cisgêneras. O princípio que une tanto a primeira quanto a segunda proposição é o de que o gênero é uma performance, portanto mulheres cis e trans estão suscetíveis a formas de violências de mesma origem.

O transfeminicídio como forma de violência específica possui dupla motivação: tanto a transição de gênero da vítima quanto o fato de que essa transição direciona-se à incorporação do feminino. Assim, os homicídios de travestis e transexuais ocorrem quando esses corpos perdem sua inteligibilidade, rebelando-se contra os aparatos de produção e estabilização do gênero. Esses homicídios, portanto, tem por motivo a reação à subversão desses corpos contra a cisnormatividade e a vulnerabilidade que adquirem ao incorporar o feminino. Deveras, a violência contra travestis e transexuais possui duas faces: a transfobia e a misoginia, expressando tanto uma resposta à violação da cisnormatividade quanto um desprezo pelo feminino - ao que se denomina transmisoginia.

Essas são terminologias que foram cunhada no âmbito dos estudos transgêneros, sobretudo a partir de uma corrente teórico-política que se conhece como feminismo transgênero ou transfeminismo. Esse campo teórico objetiva compreender os efeitos da transição de gênero sobre os sujeitos que vivenciam esse trânsito. Um desses efeitos é exatamente a experiência comum da violência.

O primeiro registro escrito da palavra “transfeminismo” data de 1997, quando foi empregada por Patrick Califia (KAAS, 2012AKASS, Hailey. Introdução ao transfeminismo. Transfeminismo, 1º out. 2012A. Disponível em: https://transfeminismo.com/introducao-ao-transfeminismo/. Acessado em 12 fev. 2015.
https://transfeminismo.com/introducao-ao...
). Posteriormente, o termo foi popularizado nos anos 2000 na América Anglo-Saxônica por autoras trans como Emi Koyama (2003) e Julia Serano (2007SERANO, Julia. Whipping girl: a transexual woman on sexism and the scapegoating of femininity. Berkeley: Seal Press, 2007.; 2013), tendo alcançado o Brasil na década de 2010 através de intelectuais ativistas como Jaqueline de Jesus (2012JESUS, Jaqueline de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termo. Brasília: [s.n.], 2012. Disponível em: http://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989. Acessado em 1º nov. 2014.
http://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA...
; 2014) e Hailey Kaas5 5 Em outros textos, assina como Hailey Alves (ALVES; JESUS, 2012). (2012AKASS, Hailey. Introdução ao transfeminismo. Transfeminismo, 1º out. 2012A. Disponível em: https://transfeminismo.com/introducao-ao-transfeminismo/. Acessado em 12 fev. 2015.
https://transfeminismo.com/introducao-ao...
; 2012BKASS, Hailey. O que é cissexismo. Transfeminismo, 2012B. Disponível em: https://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/. Acessado em: 20 ago. 2015.
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; 2013KASS, Hailey. O feminicídio de mulheres trans, 1º de fev. de 2013A. Disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/02/o-feminicidio-de-mulheres-trans/. Acessado em 1º nov. 2014.
http://blogueirasfeministas.com/2013/02/...
).

Para essas autoras, o transfeminismo é uma espécie de feminismo interseccional que denuncia a falsa universalidade da sujeita política do feminismo, contrapondo-se ao mainstream desenvolvido pelos feminismos de primeira e segunda onda (CARNEIRO et al., 2015CARNEIRO, Nuno et al.. Transexualidades: Olhares críticos sobre corpos em crise. In: JESUS, Jaqueline et al.. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015, p. 151-170.; KOYAMA, 2003). Nesse ponto, o transfeminismo aproxima-se de outras correntes já consolidadas do feminismo interseccional (a exemplo dos feminismos lésbico e negro) que questionam sobre quais mulheres têm sido defendidas pelo movimento feminista hegemônico. Uma vez que as travestis e transexuais podem reconhecer-se e serem reconhecidas como mulheres e que a experiência trans tem particularidades não abarcadas pelo feminismo cisgênero, é preciso repensar o movimento feminista no século XXI para incluir e legitimar as identidades cisdissidentes. É por isso que Emi Koyama (2003, p. 245, tradução minha), em seu famoso Manifesto transfeminista, afirma que: “O transfeminismo é primeiramente um movimento por e para mulheres trans que veem sua liberação estar intrinsecamente ligada à liberação de todas as mulheres (e além)”.

Com efeito, o movimento transfeminista provoca uma ampliação da categoria mulher enquanto uma sujeita ontopolítica, estendendo a ontologia feminina para fora do tradicional enquadramento cisgênero, uma vez que a definição de quem é mulher (efetivamente) é um ato político de definição da própria norma de gênero. O objetivo do feminismo trans é redesenhar o sentido do ser mulher, estabelecendo “quais seriam os parâmetros e dimensões ontopolíticas dos corpos femininos” (OLIVEIRA; PARODE; ZAPATA, 2019OLIVEIRA, Nythamar de; PARODE, Fabio Pezzi; ZAPATA, Maximiliano Oscar. Do feminismo ao transfeminismo: questões ontopolíticas. In: JERÔNIMO, Francisco Rafael Mesquita; PARODE, Fabio Pezzi; ZAPATA, Maximiliano Oscar (orgs.). Semiótica da diversidade: devires minoritários e linhas de fuga. Porto Alegre: Editora Fi, 2019, p. 49-66., p. 49) e mostrando que os contornos do ser são, em última medida, estabelecidos pelo poder. Essa é uma tática política perspicaz para legitimar as identidades cisdissidentes e fazer enxergar a proximidade das opressões de gênero que sofrem tanto as mulheres cis quanto as mulheres trans. Como bem expressa Julia Serano (2013SERANO, Julia. Excluded: making feminism and queer movements more inclusive. Berkeley: Seal Press, 2013., p. 44, tradução minha): “O transfeminismo é calcado na ideia de que há múltiplas formas de sexismo que se cruzam constantemente com outras formas de opressão”.

Sob essa perspectiva, o movimento transfeminista possui as mesmas raízes político-teóricas que o movimento feminista negro (JESUS, 2014JESUS, Jaqueline de. Gênero sem essencialismo: Feminismo e subversão da identidade. Universitas Humanística, n.78, jul-dez, 2014, p. 241-258. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/791/79131632011.pdf. Acessado em 12 fev. 2019.
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), que foi responsável pela criação do conceito de interseccionalidade das formas de opressão. Essa proximidade entre os movimentos não é à toa, posto que os marcadores sociais que as afetam as distanciam da luta política do feminismo hegemônico. É por isso que o famoso discurso de Sojourner Truth proferido na Convenção de Direitos das Mulheres em Ohio (EUA) ainda em 18516 6 Considerado muitas vezes como o manifesto fundador do movimento feminista negro. parece tocar tanto as mulheres trans. O que se pode ver no trecho abaixo:

Aquele homem lá diz que as mulheres precisam de ajuda para entrar em carruagens e atravessar valas, e sempre ter os melhores lugares não importa onde. Nunca ninguém me ajudou a entrar em carruagens ou a passar pelas poças, nem nunca me deram o melhor lugar. E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem o meu braço! Eu arei a terra, plantei e juntei toda a colheita nos celeiros; não havia homem páreo para mim! E eu não sou uma mulher? Eu trabalhava e comia tanto quanto qualquer homem - quando tinha o que comer -, e ainda aguentava o chicote! E eu não sou uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria delas sendo vendida como escrava, e quando gritei a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E eu não sou uma mulher? (TRUTH, 2018TRUTH, Sojourner. E eu não sou uma mulher? Revista Philos, 2018. Disponível em: https://revistaphilos.com/2018/11/29/e-eu-nao-sou-uma-mulher-por-sojourner-truth/. Acessado em 10 dez. 2019.
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)

O clássico discurso de Sojourner Truth é ainda hoje relembrado como uma denúncia contra a noção de mulher universal que há por trás do feminismo hegemônico, que nasceu ligado à reivindicação de acesso ao espaço público pelas mulheres brancas do norte hemisférico. É dessa denúncia que brota a ideia de interseccionalidade, visando trazer à tona o local específico de existência de mulheres negras, indígenas, muçulmanas, lésbicas etc.

Seguindo essa mesma orientação, o transfeminismo ganha força nos anos 2000 para apontar o lugar social específico de travestis e mulheres transexuais. Aqui, entretanto, há um desafio maior do que nas demais identidades mobilizadas pelos feminismos interseccionais. É que as mulheres negras, indígenas etc., lutavam pelo reconhecimento de direitos específicos não abarcados pelo feminismo hegemônico, mas não possuíam seu lugar de mulher negado. O discurso de Sojourner Truth tinha por função questionar porque os privilégios experimentados pelas mulheres brancas não alcançavam as mulheres negras, apontando para a negritude como um marcador que intensifica sua vulnerabilidade. Porém, todos a enxergavam como mulher.

Nessa perspectiva, a interseccionalidade que propõe o feminismo transgênero é a mais provocadora dentre os feminismos de terceira onda porque desafia a um rompimento com as noções tradicionais do que é ser mulher, procurando destruir as bases do essencialismo biológico. É bastante elucidativa a explicação dada por Jaqueline de Jesus (2014JESUS, Jaqueline de. Gênero sem essencialismo: Feminismo e subversão da identidade. Universitas Humanística, n.78, jul-dez, 2014, p. 241-258. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/791/79131632011.pdf. Acessado em 12 fev. 2019.
https://www.redalyc.org/pdf/791/79131632...
, p. 243):

Mais raramente conhecido como feminismo transgênero, o transfeminismo pode ser definido como uma linha de pensamento e de prática feminista que, em síntese, rediscute a subordinação morfológica do gênero (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos, criticando-a como uma prática social que tem servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma binária homem/pênis e mulher/vagina, incluindo-se aí: homens e mulheres transgênero; mulheres cisgênero histerectomizadas e/ou mastectomizadas; homens cisgênero orquiectomizados e/ou emasculados; e casais heterossexuais com práticas e papeis afetivossexuais divergentes dos tradicionalmente atribuídos, entre outras pessoas.

Na trajetória histórica do feminismo interseccional, as travestis e transexuais são as últimas a serem consideradas mulheres porque desestabilizam as bases que ligam todas elas, que é o essencialismo biológico. Contrapondo-se ao dispositivo biologizante que funda o gênero no órgão sexual, as transfeministas apontam para a completa artificialidade do gênero, que agora é entendido como performance.

Enquanto movimento político-teórico, contudo, o transfeminismo parece ainda estar delineando seus contornos, representando um campo instável para as diversas categorizações. Definir seus/suas sujeitos/as políticos/as também é uma tarefa difícil. Muitas questões restam indefinidas. Afinal, o transfeminismo abarca somente mulheres trans ou também homens trans? Se os homens trans são excluídos dessa espécie de feminismo, pode-se garantir de que não há misoginia nos casos de estupros corretivos de homens trans do mesmo modo que os estupros corretivos de mulheres lésbicas? Homens trans com baixa passabilidade não estão também sujeitos a ataques de cunho misógino? E, mais ainda, o transfeminismo consegue representar as travestis que não se enxergam como mulheres, mas simplesmente como travestis? Esses são desafios teóricos que o campo apresenta hoje.

As identidades são construções sociais e articulam-se politicamente em torno de demandas específicas, dialogando sempre com seu tempo histórico. Nessa perspectiva, o surgimento de movimentos mais ou menos articulados no enfrentamento à cisheteronormatividade tem feito aparecer uma miríade de novas identidades sociais, cuja melhor representação é a própria sigla que sintetiza esses movimentos de gênero e sexualidade: LGBTQIA+7 7 Significando: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexuais, Assexuais e Outras/os. . As fronteiras dessas identidades são politicamente determinadas através de critérios de inclusão e exclusão, os quais indicam quem pode e quem não pode ter acesso a bens e/ou direitos reivindicados por cada parcela desses movimentos.

Mesmo o cissexismo8 8 Cissexismo é a: “Ideologia, resultante do binarismo ou dimorfismo sexual, que se fundamenta na crença estereotipada de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais relacionadas a gênero. O cissexismo, ao nível institucional, redunda em prejuízos ao direito à auto-expressão de gênero das pessoas, criando mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Para as pessoas trans em particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais.” (JESUS, 2012, p. 28). (expressa através da transfobia) sendo a forma de opressão comum às pessoas transgêneras, isso não impede que essas mesmas pessoas estejam suscetíveis a outras formas de opressão, que se unem para criar lugares específicos de existência e fragilizar ainda mais as redes de amparo social. Esse fenômeno é observável no caso de travestis e transexuais femininas, sobre quem recai um segundo encargo: a misoginia. Daí provém a especificidade da opressão das mulheres trans quando comparadas aos homens trans ou às mulheres cisgêneras. Ocorre que para aquelas há uma forma de opressão específica, mais intensa, por estarem interseccionados o sexismo e o cissexismo.

É por essa razão que Julia Serano (2016SERANO, Julia. Outspoken: A decade of transgender activism and trans feminism. Oakland: Switch Hitter Press, 2016., p. 87-88, tradução minha) elabora o termo “transmisoginia”. Em seu ponto de vista:

(...) a presunção generalizada de que a feminilidade é inferior ou menos legítima que a masculinidade cria suposições, estereótipos e obstáculos para pessoas trans femininas que geralmente não são experimentadas por pessoas no espectro trans masculino (a não ser, é claro, que, após a transição, elas sejam lidas pelos outros como um homem que quer ou está tentando ser mulher e/ou feminino).

A observação de Julia Serano expressa uma análise teórica precisa quando o assunto é violência contra pessoas trans. Por essa razão, o número de homens trans assassinados é significativamente menor do que o número de mulhers trans (travestis e transexuais) mortas, um fator que evidencia que a transição para o feminino tem como resultado uma maior exposição à violência. Esse fato por si só aponta para a possibilidade de tratar os assassinatos de travestis e transexuais como formas de feminicídio, uma vez que o feminino encarnado nesses corpos é um elemento de precarização da vida.

O emprego do termo “transfeminicídio” para descrever tais episódios é recentíssimo e foi utilizado pela primeira vez por Berenice Bento em um curto texto datado de 2014, a fim de descrever o alto número de assassinatos de mulheres trans no Brasil. Desde então, tem sido popularizado na América Latina pelo movimento transgênero. Segundo a autora: “O transfeminicídio se caracteriza como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo” (BENTO, 2014BENTO, Berenice. Brasil: país do transfeminicídio. Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos, 4 jun. 2014. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf. Acessado em 10 ago. 2018.
http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/T...
, p. 1).

Nessa perspectiva, acredito que a emergência do termo transfeminicídio para descrever os assassinatos por motivação transmisógina representa um passo à frente na análise dessas mortes em relação ao que usualmente se denomina (inclusive em língua inglesa) como crimes de ódio (hate crimes). Mesmo que o campo dos estudos transgêneros tenha se desenvolvido eminentemente na América Anglo-Saxônica, foi pela força que a categoria feminicídio adquiriu na América Latina que esse novo termo passou a ser utilizado para descrever os assassinatos sistemáticos de mulheres trans. O que se deve à herança teórica deixada pela análise do caso Ciudad Juárez para os estudos sobre gênero e violência.

Esse ponto de vista é muito importante porque se afasta por completo da ideia de que delitos dessa natureza são causados por momentos de destempero e descontrole emocional de seus autores, ou mesmo de que derivam de alguma patologia psíquica. Uma vez que o feminicídio não é apenas uma forma de violência puramente instrumental (que objetiva apenas a destruição do objeto da violência), mas possui também uma forte carga semântica, é preciso compreender os sentidos do que se pretende expressar com esse ato. A violência expressiva é aquela que, tanto quanto a destruição do corpo violentado, pretende comunicar algo às pessoas que comungam de uma mesma configuração social.

Entender a violência como uma conformidade social e um ato de enunciação, consequentemente, desloca a análise da violência de um olhar puramente individual sobre o autor para que se observe o contexto em que o ato é articulado. É nessa perspectiva que caracterizar os transfeminicídios como meros crimes de ódio é insuficiente para compreender esses atos. Uma crítica dessa mesma natureza é realizada por Rita Segato (2003, p. 255-256, tradução minha) quando se entende os feminicídios de mulheres cisgêneras como crimes de ódio:

Feministas mexicanas e brasileiras têm começado a chamar esses assassinatos [de Ciudad Juárez] de crimes de ódio, tomando emprestado do inglês a expressão hate crimes, que se aplica aos crimes contra homossexuais, turcos ou outras minorias. Deste modo, interpreta-se que o motivo é o ódio contra essas categorias sociais. O termo não me parece adequado a este tipo de crime contra a mulher, pois não representa o que creio ser o motivo principal e o sentido deste tipo de ato. A razão pela qual discordo dessa denominação reside em que se entendemos o ato violento como um enunciado com intenção comunicativa, não creio que a vítima seja seu interlocutor principal, senão os coautores, sócios na enunciação.

É bem verdade que os feminicídios de Ciudad Juárez falam diretamente a respeito do reforço dos papeis tradicionais de gênero. Entretanto, como já foi aqui tratado, os assassinatos aparecem também nesse contexto porque funcionam como expressão do poder. Essa é uma das razões das mulheres mortas apresentarem sempre fartos resquícios de crueldade. Não só a morte, mas a devastação do corpo é um elemento do poder. O corpo da mulher torna-se o espaço em que o poder das organizações criminosas é demonstrado e espetacularizado (SEGATO, 2014SEGATO, Rita. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Puebla: Paz em el árbol, 2014., 2016SEGATO, Rita. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficante de Sueños, 2016.). A morte é uma forma de aniquilar um corpo, mas é também uma afirmação política, uma expressão de poder.

Os transfeminicídios expressam o cruzamento do sexismo com o cissexismo. Isso porque as travestis e transexuais relacionam-se duplamente com o regime de gênero hegemônico, através da violação e da inscrição. Elas tanto violam a norma que fixa no gênero a expressão do sexo (ou vice-versa), quanto estão inscritas em uma norma que dá ao homem o acesso ao corpo feminino (tornando-o um objeto violável). O transfeminicídio, assim, configura-se como uma sanção sobre o corpo das travestis em virtude do enfrentamento à cisnorma e da “escolha” pela performatividade feminina.

É nesse aspecto que a expressão “crime de ódio” é insuficiente para descrever a semântica dos transfeminicídios, posto que oculta a instância social desse tipo de violência e sua dimensão comunicativa. Os homicídios não têm sentido se eles não puderem ser conhecidos pelos sujeitos que participam de determinada configuração social, formando uma rede de compartilhamento dos enunciados. A violência expressada nesses crimes possui um intenso efeito normativo para os demais sujeitos que integram essa cadeia de comunicação, aterrorizando as pessoas cisdissidentes e empoderando os homens cisgêneros.

4. Considerações finais

Por que os conceitos são criados? Em certa medida, porque os conceitos são armas de combate em uma disputa a qual o que se pretende conquistar é o poder de falar sobre o real. Os conceitos trazem consigo a intenção de estabelecer a verdade sobre um fenômeno específico. Como em um truque de ilusionismo, um conceito é mais convincente ao passo que consegue com mais habilidade ocultar o seu caráter político, fazendo parecer que sua intenção é meramente descrever a realidade. O ilusionista e o cientista possuem artes em comum. Do mesmo modo que a arte do ilusionista está na capacidade de realizar performances onde algo impossível parece real, através da ocultação dos mecanismos que permitem que sua performance ocorra, a arte do cientista está em ocultar a função política de seus conceitos e evidenciar apenas seu caráter epistemológico. Assim, a práxis científica é também um ato de ilusão do público, em que os conceitos apresentam-se como simples descrições ou representações da realidade.

A história da ciência é a história da criação dos conceitos. E novos conceitos sempre surgem não apenas porque algo no real está sempre em mudança, mas também porque as disputas políticas são dinâmicas e atualizam-se constantemente, uma vez que nenhum poder governa em absoluto. As tentativas de governar, administrar, reprimir, criar, estimular, desestimular etc., encontram sempre resistências em sentido oposto. É por ter sua história que é possível realizar a genealogia de um conceito. É por estar instaurado em um campo político que um conceito tem sua potência.

Por essa razão, os movimentos de luta por reconhecimento frequentemente utilizam-se da estratégia política de criação de novas epistemologias para pôr em outros termos o debate público sobre as desigualdades sociais9 9 Especificamente sobre os usos dos conceitos pelo movimento feminista transgênero (ou transfeminista), ver o artigo “Epistemologia transfeminista: uma nova política dos conceitos para os estudos de gênero” (RAMOS, 2020). . O sentido da criação dos conceitos de feminicídio e de transfeminicídio, assim, encontram origem em uma articulação entre o saber, o poder e a justiça, na tentativa de transformar as relações sociais tais como estão postas.

Tratar de crimes praticados por motivação transmisógina significa dar visibilidade a episódios oriundos de uma forma específica de poder, que tem por objetivo gerir as mortes dos corpos cisdissidentes. Problema que se torna mais perceptível quando são utilizadas categorias teóricas que foram elaboradas com o intuito de desvelar as assimetrias de poder no contexto social em que essas pessoas estão inseridas.

  • 1
    “Transgênero” é um termo guarda-chuva cunhado nos anos 1990 pela ativista Leslie Feinberg (ENKE, 2012ENKE, Anne. Introduction: transfeminist perspectives. In: ENKE, Anne (ed.). Transfeminist: perspectives in and beyond transgender and gender studies. Philadelphia: Temple Unisiversity Press, 2012, p. 1-15., p. 4) e que procurava dar unidade a uma variedade de sujeitos que não se identificavam com a normatividade cisgênera, que envolve drag queens, drag kings, cross-dressers, lésbicas masculinas, andróginos, homens trans, mulheres trans etc.
  • 2
    Como na obra de Jane Caputi (1989).
  • 3
    A partir de uma visão etimológica, Júlia Fragoso (2009FRAGOSO, Júlia. Trama de una injusticia: Feminicidio sexual sistémico en Ciudad Juárez. Tijuana: El Colégio de la Frontera Norte; México, D. F.: Miguél Ángel Porrúa, 2009., p. 34-35, tradução minha) afirma que: “Para definir o termo feminicídio, parte-se de suas raízes etimológicas. As duas raízes latinas da palavra que nos ocupa são fémina - mulher - e caedo, caesum - matar. A palavra em latim para mulher não é femena, e sim fémina, com ‘i’. Ao unir-se duas paralavras para formar outra, respeitam-se as raízes das duas e não só se grudam, podendo-se colocar vogais de união conforme o caso em que se encontrem as palavras. Por isso diz-se biologia e não bioslogia, e também homicídio e não homocídio. O “i” é a letra de união das duas palavras, que vem da terceira declinação do latim feminis, que quer dizer “da mulher”; então, a morte da mulher seria feminiscidum, e daí passamos à palavra feminicídio (...)”.
  • 4
    Tipo de indústria que recebe insumos unicamente para produção de mercadorias que serão exportadas. Nesse caso, exportadas para os EUA.
  • 5
    Em outros textos, assina como Hailey Alves (ALVES; JESUS, 2012ALVES, Hailey; JESUS, Jaqueline de. Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. Revista Cronos, v. 11, n. 2, 28 nov. 2012, p. 7-19.).
  • 6
    Considerado muitas vezes como o manifesto fundador do movimento feminista negro.
  • 7
    Significando: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexuais, Assexuais e Outras/os.
  • 8
    Cissexismo é a: “Ideologia, resultante do binarismo ou dimorfismo sexual, que se fundamenta na crença estereotipada de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais relacionadas a gênero. O cissexismo, ao nível institucional, redunda em prejuízos ao direito à auto-expressão de gênero das pessoas, criando mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Para as pessoas trans em particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais.” (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termo. Brasília: [s.n.], 2012. Disponível em: http://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS.pdf?1334065989. Acessado em 1º nov. 2014.
    http://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA...
    , p. 28).
  • 9
    Especificamente sobre os usos dos conceitos pelo movimento feminista transgênero (ou transfeminista), ver o artigo “Epistemologia transfeminista: uma nova política dos conceitos para os estudos de gênero” (RAMOS, 2020RAMOS, Emerson. Epistemologia transfeminista: uma nova política dos conceitos para os estudos de gênero. In: LEÓN, RAMOS, Emerson; Francisco Jomário Pereira; Adriano Azevedo Gomes de León. (Org.). Gênero e Sexualidade em Perspectiva Social. João Pessoa: Editora UFPB, 2020, p. 225-241.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2022
  • Aceito
    02 Maio 2022
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