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Tribunais ativistas ou deferentes? O que revela a análise da jurisprudência

ACTIVISTS OR DEFERENT COURTS? WHAT THE ANALYSIS OF JURISPRUDENCE REVEALS

Resumo

O artigo compila, organiza e interpreta dados de pesquisa jurisprudencial realizada no âmbito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) no intuito de mapear o perfil do controle realizado pelo Poder Judiciário no reexame de atos produzidos pela Administração Pública. O problema que se busca responder consiste em saber se é possível deduzir, a partir da análise de determinado conjunto de julgados, padrão de comportamento mais/menos ativista/deferente do Judiciário em relação aos atos administrativos. A investigação apresenta, a título de referencial teórico, levantamento bibliográfico a propósito da abrangência e da extensão da tarefa de controle judicial da Administração Pública, com especial foco nas correntes designadas como ativistas e deferentes. Os precedentes judiciais do TJSC, colhidos como referência para a presente investigação, demonstram que (i) a existência de maior quantidade de decisões em segunda instância pela anulação ou alteração de atos administrativos, (ii) o recurso recorrente a categorias jurídicas indeterminadas para fundamentação de decisões de revisão de atos administrativos, (iii) a inconsistência entre as distintas câmaras temáticas do Tribunal sobre os fundamentos usados e o resultado dos julgados são, em conjunto, elementos que sugerem a ocorrência, efetiva, de um comportamento ativista do Tribunal no assunto em análise.

Controle da Administração Pública; ativismo judicial; deferência; doutrina Chevron; constitucionalização do Direito

Abstract

The article compiles, organizes and interprets data from jurisprudential research of Santa Catarina Court of Justice (Tribunal de Justiça de Santa Catarina [TJSC]), in order to map the profile of the judicial review of Public Administration. The problem to be answered is whether it is possible to deduce, from the analysis of a certain set of judicial decisions, behavior pattern more/less activist/deferential of the Judiciary towards the administrative acts. The study presents, as a theoretical reference, bibliographic research on the scope and extent of the judicial review of administrative acts, with special focus on the theories designated as activists and deferential. The judicial precedents of the TJSC, taken as a reference for the present study, demonstrate that (i) the existence of a greater number of decisions in second instance for the annulment or alteration of administrative acts, (ii) the recurring appeal to undetermined legal categories as argument to review administrative acts, (iii) the inconsistency between the different thematic chambers of the Court on the grounds used and the outcome of the judgments are, together, elements that suggest the effective occurrence of activist behavior the Court in the matter under analysis.

Judicial review of the Public Administration; judicial activism; deference; Chevron doctrine; constitutionalization of law

Introdução

O controle judicial da Administração Pública é um dos grandes assuntos em voga entre os administrativistas. Esse interesse se justifica diante de uma constatação fática: nas últimas décadas, observa-se uma mudança na percepção daquilo que se compreendia, tradicionalmente, como os limites desse controle. O controle, antes adstrito a aspectos de formalidade, atualmente avança sobre o mérito das escolhas administrativas e, com elevada frequência, redunda na responsabilização do agente administrativo. A doutrina preocupa-se, portanto, em se posicionar sobre essa mais ampla e intensa intervenção na Administração Pública, ora propondo categorias e fundamentação para sustentá-la, ora denunciando eventuais abusos e efeitos indesejados.

O presente estudo insere-se teoricamente no âmbito dessa discussão, sobre os limites do controle judicial da Administração Pública. O tema há muito suscita controvérsias sob a ótica da separação de poderes. Afinal, cabe ao Poder Executivo o papel de gerir a máquina pública e ao Poder Judiciário, nesse caso, o de assegurar que essa gerência seja realizada dentro dos marcos legais e constitucionais. Entretanto, os contornos dessa relação entre os Poderes não são exatamente bem definidos, por uma série de razões. De antemão, é possível apontar que hoje a Administração Pública é extremamente complexa, o que demanda a realização de uma série de atividades específicas que desbordam de um conceito ortodoxo de separação de poderes. A seu turno, também o Poder Judiciário não é mais uma instituição “boca da lei”, tendo assumido papel significativamente maior nas democracias constitucionais contemporâneas, principalmente pela adoção de mecanismos de interpretação legal que reposicionaram as cortes na paisagem institucional. Em particular, essa ascensão do Poder Judiciário parece de fato ter desequilibrado a balança em favor das instituições judiciais.

A presente investigação alinha-se à crítica desse movimento de proeminência e alargamento das competências do Poder Judiciário no exercício do controle da Administração Pública.1 1 Nos últimos anos, parte da doutrina voltou-se ao estudo da deferência e à crítica do ativismo judicial sobre as atividades da Administração Pública, além do uso desmedido de princípios constitucionais para fins de controle judicial. Os autores deste artigo compartilham dessa perspectiva crítica. Nesse sentido, conferir Jordão (2016), Maranhão (2016), Guerra (2005), Valle (2020) e Sundfeld (2014). Intui-se que esse fenômeno desenha um cenário de alta insegurança jurídica, tanto para particulares, diante da incerteza sobre a validade de decisões administrativas relevantes para a vida em comunidade, como para gestores públicos, os quais veem decisões anuladas pelos órgãos de controle quase sem ressalvas, quando não respondem administrativa, civil e criminalmente pelos seus atos. O medo de responsabilização de agentes públicos parece tender a resultar em uma paralisia administrativa e na insistência em velhas soluções, pois a expectativa de padecer de procedimento punitivo inibe, desincentiva, a busca por alternativas inovadoras.

O que se busca, neste artigo, é tentar confirmar uma premissa intrínseca a essa crítica. É, efetivamente, possível dizer que o Poder Judiciário não presta deferência aos atos da Administração Pública? A hipótese que se trabalha é positiva: o exame de decisões judiciais, em dado período e sobre determinado tema, confirmaria que o Judiciário anula ou altera decisões administrativas, inclusive no que toca ao mérito, sem prestar maior ou alguma deferência às escolhas do agente administrativo. As decisões revelariam que, diante de uma pluralidade de opções, o Judiciário costuma substituir sem maiores reflexões a solução adotada pelo agente administrativo simplesmente por discordar que seja o melhor encaminhamento para o caso.

Abre-se um parêntese para advertir que o escopo da presente pesquisa não é induzir, a partir do resultado dos dados colhidos, possíveis justificativas para o comportamento deferente ou ativista eventualmente constatado, mas fazer a constatação acerca desse próprio comportamento. Eventual explicação para uma posição ativista ou deferente depende de variáveis complexas e, eventualmente, intuídas. Os autores pretendem, depois, para esse propósito (isto é, investigar possíveis causas do comportamento ativista ou deferente em casos concretos), cotejar, com similar metodologia de pesquisa e no âmbito do mesmo tribunal, os resultados de controle judicial no âmbito de atividades complexas e especializadas (a pesquisa, futura, tratará de análise empírica de processos judiciais que pretendem a revisão de atos sancionadores aplicados no âmbito da administração ambiental). Uma hipótese do desdobramento dessa pesquisa futura é de que, efetivamente, a natureza da matéria a ser versada é fator indutor de comportamento deferente por parte do Judiciário. Fecha-se o parêntese.

Para confirmar ou refutar a hipótese, elegeu-se colher e compilar os dados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na última década, em matéria de revisão de atos administrativos praticados no exercício do poder sancionador pela Administração Pública no âmbito das relações de consumo. Entende-se que a eleição de um dos tribunais da federação (a rigor, qualquer um deles) pode sugerir um comportamento similar nos demais, dado que a função por eles desenvolvida é, essencialmente, a mesma. A escolha dos atos administrativos praticados no bojo da fiscalização das relações de consumo deu-se por versar sobre um daqueles assuntos regulados por legislação de caráter nacional (pelo que se infere que o comportamento dos demais tribunais estaduais seria similar, dado que voltado para idênticas premissas jurídicas) e em matéria na qual, por excelência, a legislação optou por outorgar à autoridade administrativa considerável carga de discricionariedade para definir, no caso concreto, a medida de sanção a ser aplicada ao particular fiscalizado. Em situação de normalidade institucional, era de se esperar que o mérito da solução construída pela autoridade administrativa fosse preferencialmente preservado. Por fim, a definição do marco temporal justifica-se pelo período da última década mostrar-se potencialmente representativo da jurisprudência sobre a matéria, com estabilidade suficiente para deduzir o comportamento do Tribunal nesse assunto.

O artigo é organizado, além desta introdução e das conclusões, em outras duas seções, a saber: “Marco teórico” e “O controle dos atos dos Procons na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina”. A investigação é realizada com base no método indutivo, por meio de pesquisa bibliográfica e análise empírica de decisões judiciais.

1. Marco teórico

1.1. Estágio atual do controle judicial da Administração Pública

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a doutrina promoveu uma virada de entendimento sobre os limites do controle judicial da Administração Pública, a partir da ideia de constitucionalização do direito administrativo e da consequente irradiação do conteúdo dos valores e princípios constitucionais sobre a legislação administrativa. Esse fenômeno é descrito de maneira duplamente facetada: tanto a Constituição alçou à dimensão constitucional matérias de direito administrativo,2 2 A bem da verdade, a constitucionalização do direito administrativo não é absolutamente nova; desde a Constituição de 1934 constam em textos constitucionais normas relativas aos servidores públicos, à responsabilidade civil do Estado, entre outras (DI PIETRO, 2012, p. 4). que antes poderiam ser encontradas na legislação ordinária, como a Constituição e seus princípios ora se projetam sobre a legislação ordinária, conformando a sua interpretação, o que resultou em transformações profundas no direito administrativo e nas formas de controle da Administração Pública.

Essa vertente doutrinária identificada e comprometida com a ideia de constitucionalização intensa do direito administrativo distancia-se significativamente da doutrina tradicional de controle, pré-1988, tida como insuficiente diante dos novos desafios impostos pela realidade complexa da Administração Pública e pelo baixo comprometimento ético de seus gestores, que, alega-se, usavam do “manto do mérito administrativo” para praticar abusos e desvios no gerenciamento da coisa pública (BINENBOJM, 2008BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 205). Os principais administrativistas da segunda metade do século passado, como Miguel Seabra Fagundes, José Cretella Jr., Victor Nunes Leal, Hely Lopes Meirelles, Themístocles Brandão Cavalcanti, entre outros, enunciam, com frequência, diretrizes de um controle judicial modesto, limitado ao controle formal de legalidade e respeitoso com o núcleo de mérito da decisão administrativa, em consideração à separação de poderes.3 3 Nesse sentido, conferir Fagundes (1951), Leal (2013), Cretella Jr. (1965, 1987), Cavalcanti (2013) e Meirelles (2016). Então, se antes a doutrina pré-1988 parecia orientada a um controle moderado do ato administrativo, hoje se nota uma evolução em sentido oposto, de abertura para novas hipóteses de intervenção judicial nas atividades da Administração Pública.

Pode-se qualificar esse movimento mais recente como uma espécie de “neoconstitucionalismo administrativista”, pois se caracteriza pela aplicação prática dos postulados neoconstitucionalistas sobre o direito administrativo, de reencontro entre direito e moral a partir da supervalorização de princípios constitucionais de fundo axiológico. Essa corrente – que não constitui um bloco coeso, mas é de certa forma hegemônica na primeira década dos anos 2000 – sustenta a ocorrência de uma transformação no seio do direito administrativo causada pela irradiação dos valores constitucionais sobre a ordem jurídica de tal maneira que há uma superação do princípio da legalidade – lei em sentido estrito, velha pedra de toque da Administração Pública – pelo princípio da juridicidade,4 4 Para fins operacionais, pode-se considerar juridicidade o princípio segundo o qual o administrador não está vinculado ao paradigma positivista da legalidade estrita, mas à Constituição e aos seus princípios, servindo esses últimos como parâmetro de validade de atuação da Administração Pública. Inclusive, essa parametrização pode se dar de forma direta, sem haver necessidade de mediação legislativa, porque a Constituição funciona como “fundamento primeiro” da atividade administrativa. Para um estudo mais aprofundado, cf. Otero (2003). consubstanciado não mais no simples respeito à lei, mas na observância ao direito e aos seus princípios, mormente aqueles localizados no texto constitucional. Há, de maneira generalizada, um questionamento sobre a própria legitimidade da lei, em virtude tanto de uma conduta antipositivista que caracteriza a vertente neoconstitucionalista5 5 Grosso modo, o neoconstitucionalismo caracteriza-se por ser vertente antagonista ao positivismo jurídico, tido pelos neoconstitucionalistas como responsável, no campo jurídico, pela permissividade do Direito diante das atrocidades dos regimes totalitários da primeira metade do século XX. Bem por isso que o neoconstitucionalismo vai se afirmar como teoria que defende o reencontro entre o direito e a moral, em oposição à ideia “pura” de direito característica do juspositivismo. Cf. Barroso (2005, p. 4). Em sentido crítico, Elival da Silva Ramos (2015, p. 296) afirma que “os neoconstitucionalistas brasileiros são antipositivistas (e não pós-positivistas), mas preferem dedicar um epitáfio ao positivismo jurídico do que se afirmar em combate”. como de uma invocada falta de representatividade dos interesses veiculados nos parlamentos. Assim, nesse ambiente de polarização entre lei e Constituição, o administrador não está mais vinculado à legalidade, mas à constitucionalidade, e pode, inclusive, deixar de aplicar uma regra se ela estiver em contrariedade aos valores constitucionais – atuação contra legem (BINENBOJM, 2008BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 142).

Os princípios possuem papel decisivo nessa nova teoria de controle, uma vez que, ao serem dotados de abertura semântica, projetam um fortalecimento dos instrumentos de controle do Poder Judiciário sobre a Administração Pública. A elasticidade dos princípios constitucionais permite ao seu intérprete final – o Poder Judiciário – uma margem de construção de padrões decisórios menos aderentes à letra da lei. O que pode parecer inseguro para o administrador, é, no entanto, celebrado pela doutrina. Segundo Binenbojm (2008BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 63-65), os princípios conferiram ao ordenamento a “ductilidade necessária para acomodação de novas demandas que surgem na sociedade em permanente mudança”. Assim, os princípios serviriam de ferramenta adequada para concretizar o programa constitucional de 1988, de forma a superar a simples legalidade e promover um enquadramento da Administração Pública e seus agentes dentro desses valores.

Disso resulta uma das principais consequências do processo de constitucionalização do direito administrativo: o contínuo estreitamento das competências discricionárias dos gestores públicos, das decisões de mérito. A adoção dos princípios como parâmetro central de orientação das atividades administrativas teve como “consequência inevitável [...] a redução do âmbito de discricionariedade da Administração Pública, seguida da ampliação do controle judicial” (DI PIETRO, 2012DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2012., p. 8).6 6 Importante ressaltar a posição intermediária e moderada da professora Di Pietro (2012), que não leva às últimas consequências a posição de crescente limitação da discricionariedade em prol do controle judicial. Nesse sentido, rejeita a tese de que o mérito administrativo deixou de existir, “o que evidentemente constitui exagero inaceitável”, sob pena de reconhecer a Administração Pública como mero robô de aplicação da lei (DI PIETRO, 2012, p. 8-11). Logo, ao promover uma decisão, o administrador não poderá invocar somente alguma sorte de competência discricionária, mas terá de justificar a sua decisão a partir da Constituição, de modo a excluir do seu leque as opções incompatíveis no caso concreto com os princípios e os direitos fundamentais, em respeito à vinculação administrativa à juridicidade. Assim entendido, o Poder Judiciário poderá controlar o mérito da decisão administrativa e invalidá-la à luz “das circunstâncias fáticas e da intensidade da violação aos princípios” (BINENBOJM, 2008BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 233), podendo proferir decisão que fixe a única solução possível condizente com os fins públicos elencados na Constituição Federal.

Representativo dessas teses, o chamado “direito fundamental à boa administração pública”7 7 Segundo o professor Juarez Freitas (2009a, p. 22), “[t]rata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem”. ilustra a ideia de que o gestor está vinculado aos valores promovidos pela Constituição Federal de modo, inclusive, a controlá-los em sua atividade administrativa de eleição de prioridades orçamentárias, uma vez que a esse “direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem” (FREITAS, 2009a, p. 22). Por via de consequência, o controle deve “retirar as prioridades constitucionais das nuvens em que se encontram, em vez de deixar o agente público entregue a si mesmo e a seus caprichos” (FREITAS, 2009b, p. 337). Em termos práticos, significa que um agente público não pode invocar discricionariedade administrativa na alocação de recursos orçamentários para determinado projeto se a Constituição Federal impõe um direito fundamental, por exemplo, à saúde, que obrigaria o município a executar ações de saúde pública como a construção de postos nos bairros da cidade. Em sede de controle, o Poder Judiciário pode, consequentemente, determinar o cumprimento de prestações positivas por parte do município para consagrar esse direito fundamental eleito como prioridade pela Constituição, ao revés da alocação orçamentária pretendida inicialmente pela Administração Pública (FREITAS, 2009b, p. 337).

Outra nota marcante desse conjunto doutrinário é uma boa dose de idealização das instituições judiciais acompanhada da desconfiança em relação aos Poderes democraticamente constituídos. Como dito, a própria legitimidade da lei é posta em questionamento diante da ausência de representatividade dos parlamentos. No mesmíssimo sentido, identifica-se um grau considerável de repúdio aos “caprichos partidários” da Administração Pública, entendidos como características ilegítimas que devem ser neutralizadas para a consecução do interesse público. É nesse contexto que o controle abrangente da Administração Pública é entendido como “o único capaz de desconstruir as falácias que presidem as decisões desastrosas, intensificadas de iniquidade e perpetuadoras de oligarquias plutocratas” (FREITAS, 2009b, p. 330). Pela mesma doutrina, de maneira geral, o Poder Judiciário é alçado a um papel de distinção porquanto “o processo político majoritário se move por interesses, ao passo que a lógica democrática se inspira em valores. E, muitas vezes, só restará o Judiciário para preservá-los” (BARROSO, 2008BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 1-48., p. 45).8 8 Foi Jeremy Waldron (2003, p. 5) quem sintetizou esse fenômeno da melhor maneira ao dizer que “construímos […] um retrato idealizado do julgar e o emolduramos junto com o retrato de má fama do legislar”.

Um dos sinais emblemáticos desse antagonismo e desconfiança com o sistema político é a própria explicação que a doutrina oferece sobre os efeitos do tão alardeado processo de constitucionalização do direito. Apesar de alegar que a constitucionalização atinge os três Poderes do Estado, a forma com que esse fenômeno pretensamente se materializa é assimétrica. Em geral, o discurso propagado é no sentido de que a discricionariedade do Legislativo e do Executivo passa a ser reduzida diante dos princípios e direitos fundamentais, ao passo que o Judiciário se fortalece a partir da ampliação dos instrumentos de controle sobre os demais Poderes. Em síntese, “os princípios e valores limitam a função legislativa e a administrativa e ampliam a possibilidade de controle judicial sobre as leis e os atos administrativos” (DI PIETRO, 2012DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2012., p. 5-7).9 9 No mesmíssimo sentido, cf. Barroso (2005, p. 13). É dizer: a constitucionalização restringe a discricionariedade dos Poderes dotados de legitimidade político-democrática e amplia a capacidade de intervenção do único Poder não eleito, contramajoritário, o que no mínimo levanta dúvidas acima do razoável sobre o caráter ideológico dessas afirmações.

Uma série de consequências pode ser atrelada a esse novo controle judicial da Administração Pública. Veja-se a questão da elasticidade dos princípios. É bem verdade que a constitucionalização do direito administrativo é um fato, mas dele não se extraem necessariamente as consequências alegadas pelos neoconstitucionalistas, principalmente em matéria de controle de atos administrativos a partir de princípios. Afinal, não existe constituição neoconstitucionalista, senão doutrinadores dispostos a aplicar seus postulados (POZZOLO, 2006POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo: um modelo constitucional ou uma concepção da Constituição? Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, v. 1, n. 7, p. 231-253, jan./jun. 2006., p. 238). Da forma como tem sido defendida, a constitucionalização do direito administrativo fomentou – ou, no mínimo, criou as condições para fomentar – um processo de transferência das prerrogativas decisórias do Poder Executivo para o Poder Judiciário, algo que pode ser entendido como judicialização da política10 10 Para Tobjorn Vallinder (2012, p. 15), judicialização da política é a “expansão da seara dos tribunais ou dos juízes à custa de políticos e/ou administradores”. A seu turno, Ran Hirschl (2012, p. 36) a conceitua como “o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judiciais para o enfrentamento de importantes dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas”. ou ativismo judicial, a depender do grau de proatividade dos magistrados, uma vez que juízes passaram a reivindicar para si a competência para decidir sobre matérias de gestão pública conjurando valores constitucionais difusos, a pretexto de concretizá-los diante da inércia da Administração Pública.

Em especial, pode-se conceber ativismo judicial em dois sentidos, um interpretativo e outro institucional, conceitos operacionais que não se excluem, apenas tratam de ângulos diferentes de enxergar o mesmo objeto. De acordo com o primeiro, a conduta ativista pode ser relacionada ao uso de métodos interpretativos pouco controláveis e de conceitos dotados de abertura semântica para promover decisões que vão muito além da letra da lei e do texto constitucional e podem ser caracterizadas como decisões, no mínimo, excessivamente criativas que aumentam o escopo da jurisdição e empoderam magistrados para decidir sobre temas dos mais variados, em especial aqueles politicamente controvertidos. Do ponto de vista institucional, entende-se por ativismo a invasão do Poder Judiciário no núcleo de funcionamento típico e regular do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, sem que haja autorização constitucional para tanto. Essa ideia não se confunde com a noção de freios e contrapesos, que pressupõe competências sobrepostas e poderes de veto compartilhados entre os Poderes. Muito além disso, ativismo faz referência a casos em que haja uma incursão na atividade de outro Poder sem previsão constitucional explícita, por mera voluntariedade das instituições judiciais.11 11 Nesse sentido, o ativismo pode ser considerado a “utilização de formas de interpretação e de ação processual que aumentam os poderes dos magistrados” (LUNARDI e DIMOULIS, 2016, p. 168) e a invasão voluntária do Poder Judiciário sobre “o núcleo essencial da função constitucionalmente atribuída a outros Poderes” (RAMOS, 2015, p. 119, grifo do autor).

A prática de ativismo judicial contribui para dois problemas atuais enfrentados pela Administração Pública. O primeiro, a insegurança jurídica, pois, nesse contexto de controle exacerbado, agentes públicos respondem com frequência a procedimentos punitivos diante da mera divergência com a interpretação do órgão controlador ou mesmo por errar na aplicação de dispositivos legais, dentro do emaranhado burocrático e confuso que compõe a legislação administrativa. Isso gerou a chamada Administração pública do medo, em que gestores preferem não decidir como maneira de evitar punições (NIEBUHR e NIEBUHR, 2017NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR, Pedro de Menezes. Administração pública do medo. Jota, 9 nov. 2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/administracao-publica-do-medo-09112017. Acesso em: 5 jun. 2020.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/...
; GUIMARÃES, 2016GUIMARÃES, Fernando Vernalha. O direito administrativo do medo: a crise da ineficiência pelo controle. Direito do Estado, 31 jan. 2016. Disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 5 jun. 2020.
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). Imbuídos de uma visão idealizada sobre o mito da única resposta correta fornecida pelo ordenamento, muitas vezes identificada a partir da interpretação de princípios abertos, órgãos controladores punem gestores públicos severamente sem levar em consideração fatores limitadores, como a indeterminação do direito aplicável ou mesmo as dificuldades materiais enfrentadas por setores administrativos em termos de recursos humanos e orçamentários (JORDÃO, 2018JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei n. 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018., p. 66-67). Por via de consequência, perfis qualificados afastam-se dos quadros da Administração Pública (NIEBUHR e NIEBUHR, 2017NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR, Pedro de Menezes. Administração pública do medo. Jota, 9 nov. 2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/administracao-publica-do-medo-09112017. Acesso em: 5 jun. 2020.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/...
), ao mesmo passo que há “a atração para estes postos principalmente de indivíduos propensos a riscos” (JORDÃO, 2018JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei n. 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018., p. 69). Isso sem contar a própria insegurança jurídica para particulares, que passam a enxergar as decisões administrativas como padrões inseguros, facilmente passíveis de superação pela via judicial, o que tende a diminuir a credibilidade do gestor público e até afastar investidores do mundo dos negócios local.

O segundo problema, de natureza institucional, é a desnaturação das decisões de gestão pública, pois a intervenção de um órgão não dotado de expertise técnica e legitimidade democrática (Poder Judiciário) sobre matérias de política pública desorganiza a própria noção de separação de poderes, que atribui uma especialização funcional12 12 Mais do que uma “máquina para impedir usurpações”, a separação de Poderes pode ser entendida como um modelo de garantia de especialização funcional para cada ramo do Estado, de modo que cada um deles admite membros de acordo com o perfil e a missão específica da instituição (HOLMES, 1999, p. 57). ao Poder Executivo para administrar recursos orçamentários finitos de acordo com um programa eleitoral vitorioso nas urnas – além de contar com um corpo técnico multidisciplinar capaz de, ao menos em tese, prover melhores soluções para problemas socioeconômicos complexos, comparativamente ao Poder Judiciário. Sobre a questão das “capacidades institucionais”, convém maior aprofundamento.

1.2. Deferência judicial à Administração Pública

Na contramão de uma conduta ativista, o princípio13 13 Por princípio, entende-se uma espécie de conceito guarda-chuva que abriga determinadas regras por ele justificadas. Essas regras dão vida ao princípio, que, por sua vez, não tem aplicação autônoma. Por exemplo, o chamado princípio da não surpresa por si não tem aplicação autônoma; é um enunciado que faz referência ao bloco normativo constituído do art. 10 do Código de Processo Civil, que orienta o juiz a não decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, e, em última análise, do próprio inciso LV do art. 5o da Constituição Federal, que assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa. Essas regras constituem o princípio da não surpresa. Sobre esse conceito de princípio, conferir Sunstein (1996, p. 30). da deferência à Administração Pública consiste em uma recomendação para que magistrados adotem uma postura de autocontenção ao revisar atos administrativos expedidos em termos admissíveis, ainda que possam eventualmente discordar da interpretação levada a cabo pelo gestor público. Significa que o Poder Judiciário se abstém de impor a sua opinião sobre qual é a resposta correta fornecida pelo ordenamento jurídico, desde que haja duas ou mais opções válidas e a solução encontrada pela Administração Pública seja aderente ao texto da lei e expedida em termos razoáveis (MEDEIROS, 2020MEDEIROS, Isaac Kofi. Ativismo judicial e princípio da deferência à administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020., p. 227).

Conforme mencionado, a presente investigação alinha-se à crítica do ativismo judicial sobre as atividades da Administração Pública e filia-se a uma perspectiva já explorada por uma parte considerável da doutrina contemporânea a partir do estudo do tema da deferência, a exemplo de Jordão (2016)JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros Editores, 2016., Maranhão (2016)MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. A revisão judicial de decisões de agências regulatórias: jurisdição exclusiva? In: PRADO, Mariana Mota (org.). O Judiciário e o estado regulador brasileiro. São Paulo: FGV DIREITO SP, 2016. p. 26-46., Guerra (2005)GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005., Valle (2020)VALLE, Vanice Regina Lírio do. Deferência judicial para com as escolhas administrativas: resgatando a objetividade como atributo do controle do poder. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 110-132, jan./abr. 2020. e Sundfeld (2014)SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Direito GV; Malheiros Editores, 2014.. Na literatura estrangeira, a ideia de deferência tem grande destaque nos Estados Unidos a partir da doutrina Chevron, instituída pela jurisprudência da Suprema Corte no caso Chevron U.S.A., Inc. versus NRDC (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1984ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Chevron U.S.A., Inc. versus NRDC, 467 U.S. 837, 1984.). Em linhas gerais, o caso Chevron dispôs que o Judiciário deveria prestar deferência às decisões das agências governamentais14 14 Nos Estados Unidos, o termo “agência” abrange-as, mas não se limita às agências reguladoras, e engloba também as chamadas agências executivas, ramos da Administração Pública vinculados diretamente à chefia do Poder Executivo. Para um conceito de Poder Executivo e de agência nos Estados Unidos, conferir Posner e Vermeule (2010, p. 5-6). caso a interpretação da lei aplicada pelas últimas decisões passasse por um teste bifásico de legalidade e razoabilidade.15 15 O caso Chevron versou sobre a interpretação da Agência de Proteção Ambiental (EPA – Environmental Protection Agency) acerca do termo “fontes fixas” contido na Lei do Ar Limpo (Clen Air Act), legislação instituinte de um programa de conformidade ambiental que exigia a obtenção de uma nova licença administrativa toda vez que determinada empresa construísse uma nova “fonte fixa” (stationary source) ou modificasse uma existente. A interpretação vigente até então era de que todo aparelho industrial capaz de emitir algum nível de poluição deveria ser regulado, de modo que, por exemplo, a aquisição ou modificação de uma nova caldeira exigiria licenciamento. Em 1984, na administração liberal de Ronald Reagan, a EPA ampliou o termo e passou a entender que o conceito “fonte fixa” contemplava uma planta industrial inteira. Por via de consequência, empresas poderiam construir novas fontes de poluição dentro da planta industrial existente sem a necessidade de licenciamento, contanto que elas não excedessem o limite poluente instituído pela Lei do Ar Limpo. A nova interpretação foi judicializada, derrubada no Tribunal de Apelação do Distrito de Columbia, até que chegou à Suprema Corte por força da empresa petrolífera Chevron, uma das interessadas no caso. A Suprema Corte validou a interpretação da EPA por entender que ambas as interpretações em jogo eram plausíveis à luz do termo “fontes fixas” e a escolha entre uma delas exigiria um juízo de política pública típico do Poder Executivo, de modo que o Poder Judiciário deveria deferir à solução encontrada pela agência (SUNSTEIN, 1990). No primeiro teste, o juiz avalia se a lei que fundamentou o ato do gestor público admite mais de uma interpretação. Se a resposta for negativa, isto é, se há somente uma interpretação possível e o gestor distanciou-se dela, o Poder Judiciário deve anulá-la. No entanto, se há duas ou mais interpretações plausíveis de acordo com o texto da lei, isto é, se o dispositivo for ambíguo, passa-se ao segundo teste, em que o magistrado se pergunta se a interpretação conferida pelo gestor é admissível, razoável, ou seja, se é compatível com a pluralidade de sentidos que pode ser extraída do texto. Se a resposta for negativa, a interpretação deve ser anulada. Se a resposta for positiva, o Poder Judiciário deve manter o ato do gestor, por mais que os magistrados possam entender que essa não é a melhor interpretação possível do texto.16 16 Nesse sentido, Cass Sunstein (2006) destaca que a doutrina Chevron é muito mais do que uma orientação para que o Poder Judiciário não revise atos administrativos a não ser que sejam contrários à lei. De maneira mais arrojada, significa que tribunais devem validar esses atos ainda que discordem da interpretação dada pelo gestor. Para Sunstein (2006, p. 2588), os tribunais devem estar preparados para dizer que, “[s]e estivéssemos interpretando a lei independentemente, nós diríamos X ao invés de Y; mas porque há ambiguidade, o Executivo está permitido a preferir Y”. No original: “If we were interpreting the statute independently, we would read it to say X rather than Y; but because it is ambiguous, the executive is permitted to prefer Y”.

A doutrina Chevron – ou o princípio da deferência, de modo geral – pode ser explicada a partir de duas perspectivas, uma institucional e outra normativa. O ponto de vista institucional é justificado a partir daquilo que Cass Sunstein e Adrian Vermeule (2002) chamam de “capacidades institucionais”, características que instituições possuem que as tornam mais qualificadas para realizar a interpretação adequada sobre determinada normativa. A exemplo disso, agências reguladoras têm mais expertise técnica para fixar o sentido de termos ambíguos em normas pertinentes ao seu exercício de autoridade, desde que essa análise exija um conhecimento técnico especializado que juízes não detêm. No mesmo sentido, a chefia do Poder Executivo tem legitimidade democrática para acomodar interesses políticos dentro dos limites permitidos pela textualidade da lei. Se a amplitude do texto normativo permitir mais de uma interpretação sobre políticas públicas, melhor que a autoridade que a interprete seja legitimada pelo voto e controlada em termos político-eleitorais.17 17 A afirmação institucionalista proposta por Sunstein e Vermeule (2002) representa uma virada na interpretação jurídica nos Estados Unidos, uma vez que a doutrina – como ocorre no Brasil – usualmente invoca a pergunta “como um texto deve ser interpretado?”, que pressupõe uma visão idealizada de juízes, capazes de sempre realizarem a melhor interpretação possível e encontrarem a única resposta correta fornecida pelo ordenamento jurídico. Sunstein e Vermeule (2002, p. 2) trocam os sinais da interpretação jurídica e propõem o seguinte questionamento: “como algumas instituições, dotadas de habilidades e limitações distintas, interpretam textos?”.

A exemplo disso, no caso Chevron a Suprema Corte levou em consideração um argumento puramente institucional para validar a interpretação administrativa que tinha por objeto um termo ambíguo previsto em lei ambiental. A agência à época conferiu ao termo uma interpretação ampla, mais maleável, e uma organização não governamental (Natural Resources Defense Council – NRDC) judicializou o ato para assegurar uma interpretação restritiva. A Suprema Corte entendeu que ambas as interpretações eram plausíveis e que a escolha entre uma das duas envolveria um juízo sobre políticas públicas, de modo que deveria prevalecer a interpretação do Poder Executivo, por se tratar da instituição dotada de capacidade institucional – legitimidade democrática e expertise técnica – para esse juízo de valor.18 18 Extrai-se do voto: “Juízes não são experts nesse campo, e não fazem parte de nenhum dos ramos políticos do Governo. Tribunais devem, em alguns casos, reconciliar interesses políticos conflitantes, mas não de acordo com as preferências políticas pessoais dos juízes. Em contraste, uma agência para a qual o Congresso delegou competência para elaboração de políticas públicas pode, dentro dos limites dessa delegação, adequadamente confiar nas visões da administração em exercício sobre políticas inteligentes para informar seu julgamento. Enquanto agências não são diretamente responsáveis (accountable) perante a população, o Chefe do Poder Executivo é, e é inteiramente apropriado que esse ramo político do Governo faça tais escolhas sobre políticas públicas – resolvendo interesses conflitantes que o Congresso ou inadvertidamente não resolveu, ou intencionalmente deixou para ser resolvido pela agência encarregada da interpretação da lei à luz da realidade do dia a dia”. No original: “Judges are not experts in the field, and are not part of either political branch of the Government. Courts must, in some cases, reconcile competing political interests, but not on the basis of the judges’ personal policy preferences. In contrast, an agency to which Congress has delegated policy-making responsibilities may, within the limits of that delegation, properly rely upon the incumbent administration’s views of wise policy to inform its judgments. While agencies are not directly accountable to the people, the Chief Executive is, and it is entirely appropriate for this political branch of the Government to make such policy choices – resolving the competing interests which Congress itself either inadvertently did not resolve, or intentionally left to be resolved by the agency charged with the administration of the statute in light of everyday realities” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1984). -19 19 Nesse sentido, conforme Sunstein (2006), “o que é mais impressionante sobre a análise de Chevron é a sugestão que a resolução de uma ambiguidade estatutária requer um juízo sobre resolver ‘interesses conflitantes’”, sendo um reconhecimento explícito do Tribunal de que exames políticos podem integrar o processo interpretativo. No original: “What is most striking about the Court’s analysis in Chevron is the suggestion that resolution of statutory ambiguities requires a judgment about resolving ‘competing interests’. This is a candid recognition that assessments of policy are sometimes indispensable to statutory interpretation” (SUNSTEIN, 2006, p. 2587).

Do ponto de vista normativo, é possível sustentar a existência de um princípio da deferência à Administração Pública no ordenamento jurídico brasileiro sem a necessidade de mimetizar a doutrina estadunidense e realizar um implante acrítico de teoria que desconsiderasse as particularidades do contexto político-jurídico norte-americano. Propõe-se uma deferência orientada por parâmetros jurídicos brasileiros, ainda que inspirada nos enunciados da doutrina Chevron, nomeadamente aqueles promovidos pela recente alteração na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

O caput e o § 1o do art. 22 da LINDB (BRASIL, 1942BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro, 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
) assim dispõem:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

§ 1o Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

O art. 22, e a nova alteração da LINDB de maneira geral, é uma espécie de “dever de empatia” para com a Administração Pública e seus agentes. Em particular, o dispositivo determina que o controlador se coloque no lugar do gestor ao decidir sobre a regularidade de decisão administrativa e leve em consideração dificuldades reais por ele enfrentadas, que podem ser entendidas como dificuldades jurídicas (indeterminação do direito, ambiguidade) e materiais (déficit de recursos humanos e financeiros). Nesse sentido, o controlador deve examinar se, nesse contexto de dificuldades que deve ser considerado, a decisão do gestor foi razoável. Em outras palavras, o controlador deve prestar deferência ao gestor público. Assim interpretado, o art. 22 funciona como fundamento jurídico para a “recomendação”20 20 Vale enfatizar que, para assegurar a independência do Poder Judiciário, o princípio da deferência deve ser entendido como uma recomendação interpretativa e não como uma obrigação para que o magistrado acate toda e qualquer decisão administrativa. Esse, aliás, é o sentido do uso da expressão “serão considerados” no art. 22, o que revela a intenção do legislador em recomendar ao magistrado uma conduta deferente, sem imposição obrigatória. de uma conduta deferente do controle da Administração Pública. Eduardo Jordão (2018JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei n. 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018., p. 66-67) correlaciona o art. 22 aos dois enunciados da doutrina Chevron:

O caput do art. 22 é o fundamento explícito para a adoção de uma teoria semelhante no direito brasileiro. A doutrina americana faz referência aos “dois passos” da formulação mais básica de Chevron: no primeiro, o controlador verifica se há indeterminação ou ambiguidade legislativa a propósito de uma questão específica; no segundo, havendo esta indeterminação, o controlador se limita a verificar a razoabilidade ou “permissibilidade” da interpretação adotada pela administração pública. É exatamente o procedimento sugerido acima, em interpretação ao art. 22. Num primeiro passo, o controlador verifica se a “dificuldade jurídica” é real. No segundo passo, sendo real esta dificuldade jurídica, o controlador se limita a verificar a razoabilidade da escolha interpretativa realizada pela administração pública.

A seu turno, o art. 13 do Decreto Federal n. 9.830/2019, que regulamentou as mudanças mais recentes da LINDB, corrobora o sentido deferente promovido pelo art. 22 por trazer disposição expressa sobre os limites do controle judicial de regularidade da decisão administrativa: “Art. 13. A análise da regularidade da decisão não poderá substituir a atribuição do agente público, dos órgãos ou das entidades da administração pública no exercício de suas atribuições e competências, inclusive quanto à definição de políticas públicas” (BRASIL, 2019BRASIL. Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019. Regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro. Brasília: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9830.htm. Acesso em: 14 jul. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

O Decreto Federal n. 9.830/2019 parece captar a essência da teoria das capacidades institucionais, uma vez que enfatiza o papel do gestor no direcionamento de políticas públicas e pretende, simultaneamente, limitar na medida do possível a ocorrência de juízo valorativo sobre assuntos dessa natureza por parte do Poder Judiciário, quando exercido a pretexto de estar controlando a legalidade dos atos da Administração Pública. Assim entendido, o Decreto tem o mérito de realçar a prerrogativa do gestor sobre políticas públicas, diante da sua expertise técnica e legitimidade democrática, sem ter a pretensão de enfraquecer o controle judicial de legalidade. Em outras palavras, a deferência veiculada no arco normativo composto do art. 22 da LINDB e do art. 13 do Decreto Federal n. 9.830/2019 “separa o que é controle do que é gestão pública” (MEDEIROS, 2020MEDEIROS, Isaac Kofi. Ativismo judicial e princípio da deferência à administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020., p. 216).

Pode-se, também, argumentar que a própria separação constitucional de Poderes (art. 2o) serve de fundamento geral para a aplicação do princípio da deferência, ainda que dela por si só não se extraia uma consequência jurídica específica de autocontenção judicial diante da realidade do gestor público – que é o caso do caput e do § 1o do art. 22 da LINDB e do art. 13 do Decreto Federal n. 9.830/2019.

Caso se entenda a separação de poderes como uma medida garantidora de especialização funcional, como já referido, ver-se-á no princípio da deferência uma ferramenta capaz de assegurar que o Poder Executivo tenha segurança e prevalência na tomada de decisões para as quais ele foi estruturado, condizentes com a sua especialização funcional e suas características, que o diferenciam dos demais Poderes (expertise técnica e legitimidade democrática). Nesse mesmo sentido, se deferência equivale a autocontenção judicial, significa que o Poder Judiciário deixará de emitir, na medida do possível, juízos de valor sobre matérias estranhas ao seu conhecimento técnico-jurídico. Em um cenário ideal, ao Poder Judiciário caberá exercer a sua expertise própria no controle judicial de atos administrativos por meio do exame de legalidade/razoabilidade da decisão, e abster-se de, invocando termos abertos, controlar o acerto ou o desacerto do gestor público em termos de eleição de prioridades políticas.

Em outro sentido, a própria ideia de discricionariedade decorre da separação de poderes e, por isso, corrobora a aplicação da deferência à Administração Pública. Em tese, um Poder está proibido de invadir a discricionariedade do outro (STRECK e OLIVEIRA, 2013STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Fábio de. Comentário ao art. 2o. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. p. 140-146., p. 145). Por essa lógica, quando o Poder Legislativo não exaure por completo a sua zona de discricionariedade e edita uma lei que a desloca para o Poder Executivo, constituindo legítima competência discricionária administrativa, o gestor público pode exercê-la de acordo com critérios de conveniência e oportunidade.21 21 A explicação fornecida por Miguel Seabra Fagundes em 1951 joga uma luz sobre o papel da discricionariedade na separação dos Poderes: “Sendo a discrição do legislador a mais ampla em conteúdo e a primeira a manifestar-se, cronologicamente, no processus da expressão da vontade do Estado, a discrição reservada ao administrador e ao juiz pode dizer-se, em certo sentido, residual. Exerce-se no que não tenha sido regulado pela lei. [...] O que acontece, porém, nos casos de competência vinculada – faz-se oportunidade repetir – é que a lei (fase primária do processus de realização do direito) exaure a margem de opção própria do exercício da atividade jurídica do Estado, deixando circunscrito o ato administrativo (fase secundária daquele processus) a estritos limites, sem ensejo para cogitações sobre o útil, o justo, o certo, etc. O aspecto de conveniência, de oportunidade, de eficácia, em suma, para usar da terminologia do ilustre autor, foi exaurido pelo legislador. Nada se deixou ao administrador quanto a ele. Não assim se discricionário o ato administrativo, pois aqui se confia à Administração, pela liberdade outorgada aos seus movimentos, aferir da utilidade ou eficácia, maior ou menor, do procedimento estatal em sua fase derradeira” (FAGUNDES, 1951, p. 11, grifo do autor). A rigor, se o Poder Judiciário invadir essa zona, estará desrespeitando o comando do Poder Legislativo, que delegou discricionariedade ao gestor público, e o Poder Executivo, titular da competência discricionária. Nesse sentido, de acordo com as lições mais clássicas, existe discricionariedade quando a lei admite mais de uma solução administrativa válida, e cabe ao Poder Judiciário apenas avaliar a razoabilidade da decisão discricionária (BANDEIRA DE MELLO, 2015BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2015., p. 993),22 22 De similar concepção, Meirelles (2016, p. 847). preceito que, se levado a sério, se aproxima muito dos dois passos de Chevron.

2. O controle dos atos dos Procons na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Vê-se um número cada vez mais frequente de investigações empíricas que propõem analisar o fenômeno da deferência judicial à Administração Pública. Por exemplo, os estudos promovidos sobre o controle judicial dos atos da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (JORDÃO e CABRAL JR., 2018), sobre atos das agências reguladoras em geral na jurisprudência brasileira (WANG, PALMA e COLOMBO, 2010), no Supremo Tribunal Federal (JORDÃO, REIS e CABRAL JR., 2020) e mesmo no Tribunal de Contas da União (MARQUES NETO et al., 2019). No entanto, na presente investigação, propõe-se pesquisar o controle sobre uma modalidade de atuação usual da Administração Pública, em que a complexidade e a tecnicidade do assunto tratado não justificariam, em tese, uma postura deferencial por parte dos tribunais, como intuitivamente o faria a atividade técnica de regulação. A análise do comportamento do Judiciário diante de um assunto corriqueiro, relativamente simples, pode melhor revelar uma autêntica conduta ativista ou contida.

No Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, as administrações públicas federais, estaduais e municipais possuem atribuição para fiscalizar e controlar o mercado de consumo (§ 1o do art. 55 da Lei n. 8.078/1990). Com base nessa previsão, estados e municípios costumam criar estruturas administrativas próprias (usualmente chamadas de Programa de Proteção e Defesa do Consumidor – Procon) encarregadas do exercício do poder de polícia e dotadas de capacidade sancionatória diante da prática de ilícitos administrativos nessa matéria.23 23 Os arts. 55, 56, 57 e 105 do Código de Defesa do Consumidor, assim como os incisos III e IV do art. 4o, art. 5o e inciso I, § 2o, do art. 18 do Decreto Federal n. 2.181/1997, autorizam o Procon em níveis estadual e municipal a julgar irregularidades e a aplicar sanções administrativas diante de violações de direitos do consumidor. A tipificação das condutas vedadas é, em muitos casos, aberta, e a legislação confere alto grau de discricionariedade ao agente administrativo para gradação das sanções.

O ato dos Procons que decide pela aplicação de sanção administrativa é conflituoso por sua própria natureza. Por provocar uma situação desfavorável ao fiscalizado, é normalmente recebido com resistência, o que dá azo, recorrentemente, à provocação do Judiciário para reexame do ato administrativo.

A presente análise envolve, portanto, decisões judiciais que revisam os atos praticados pelos Procons municipais e estadual no exercício de sua potestade sancionatória, submetidas à jurisdição do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina. Trata-se, usualmente, da pretensão judicial de anulação ou alteração de ato de aplicação de sanção administrativa (multa) editado pelos Procons.

No “Portal da Jurisprudência” do sítio eletrônico do TJSC foi realizada busca para os termos “multa”, “Procon” e “ato administrativo”. O período selecionado para avaliação foram os acórdãos prolatados entre setembro de 2009 e setembro de 2019, de todas as cinco Câmaras de Direito Público que compõem o Tribunal. O resultado dos filtros indicou 190 ocorrências. Destas, foram excluídos da análise os acórdãos que, por razões processuais (tempestividade, deserção, etc.), não enfrentaram o mérito da causa. Os acórdãos de agravos de instrumento e mandados de segurança também foram desconsiderados em razão de sua precariedade e das limitações processuais a eles inerentes. Isso porque os writs julgados não iam a fundo no mérito dos casos e eram marcados por discussões essencialmente processuais, de modo que a sua consideração na coleta de dados poderia distorcer o resultado final. Para a presente pesquisa, então, foram analisados os 165 acórdãos restantes.

Os resultados foram categorizados em função das seguintes variáveis principais: (i) resultado final (anulação, minoração ou manutenção da decisão administrativa); (ii) argumentos indicados como fundamentação dos acórdãos (os argumentos preponderantes e centrais para a argumentação da decisão judicial, eventualmente concatenados com fundamentos secundários); (iii) câmara julgadora.

Recorda-se que um dos escopos da presente pesquisa, como mencionado, é identificar se há padrão objetivamente deduzível da jurisprudência do TJSC acerca dos limites e do perfil do controle judicial dos atos administrativos. A cogitação inicial era de que o Tribunal decide de forma distinta diante de casos semelhantes, de maneira ora ativista, ora mais deferente à Administração Pública, sem que haja um padrão de comportamento previsível. A análise dos dados confirma, em alguma medida, a hipótese inicial.

2.1. Atos anulados, minorados e mantidos

Dos 165 julgados analisados, 46,95% das multas foram anuladas, 42,07% mantidas e 10,98% minoradas. Se forem somadas as multas anuladas e minoradas, deduz-se que 57,93% dos casos representaram algum tipo de intervenção do Poder Judiciário na decisão administrativa (Gráfico 1). Em números absolutos, há prevalência da revisão judicial dos atos dos Procons em relação à sua manutenção.

gráfico 1
Multas anuladas, minoradas e mantidas

Esses números não indicam, necessariamente, uma conduta mais ativista ou deferente do TJSC, uma vez que as decisões administrativas revistas poderiam, efetivamente, ter incorrido em alguma sorte de ilegalidade ou irrazoabilidade que justificasse ou legitimasse, mesmo sob a perspectiva da ideia de deferência da doutrina Chevron, o controle judicial. Nesse particular, cabe lembrar que uma postura judicial deferente não abdica do controle de legalidade e razoabilidade do ato administrativo, que compõe, respectivamente, o primeiro e o segundo passos da doutrina Chevron.

Inversamente, tivesse o TJSC decidido majoritariamente pela manutenção das decisões administrativas, a conclusão possivelmente seria no sentido do reconhecimento de um perfil deferente do Tribunal à Administração Pública nessa seara, independentemente dos fundamentos utilizados nos acórdãos.

Daí a primeira conclusão que se pode extrair: o fato de que quase dois terços dos casos julgados resultaram em alteração da decisão administrativa revela, pelo menos, a tendência a um perfil mais ativista do Judiciário e menos deferente à Administração Pública.

Em qualquer caso, os números sugerem que o litigante – seja o Procon na condição de réu, sejam os particulares na condição de autores – não tem como antever, com alguma sorte de precisão razoável, o resultado de eventual litígio judicial, pelo menos sob a perspectiva dos limites do controle judicial nessa seara.

2.2. Disparidades internas entre as Câmaras de Direito Público

A análise dos acórdãos indica acentuada oscilação daquilo que se chama, no presente artigo, de “taxa de manutenção das decisões administrativas” em cada câmara. Há, por assim dizer, certa disparidade intercâmaras no perfil de intervenção judicial na Administração Pública (Tabela 1).

tabela 1
Resultados por câmara julgadora do TJSC em relação a multas mantidas

Na Quarta Câmara de Direito Público, apenas 20,83% das multas judicializadas foram mantidas. Esse percentual é reputado neste estudo como de “alta intervenção”. A Primeira e a Segunda Câmaras de Direito Público mantiveram, respectivamente, 37,50% e 31,58% das multas aplicadas pelos Procons, o que denota um padrão “médio de intervenção”. A Terceira e a Quinta Câmaras de Direito Público, respectivamente, mantiveram 70,97% e 68,75% das multas, o que revela um perfil de “baixa intervenção”.

Para deduzir alguma consistência ou coerência entre as câmaras nesse cenário diante desses números, seria necessário, por um lado, supor que a Quarta Câmara de Direito Público houvesse recebido um número maior de processos em que os atos administrativos impugnados contivessem, efetivamente, vícios de legalidade ou decisões irrazoáveis. Por outro lado, seria necessário também supor que a Terceira e a Quinta Câmaras de Direito Público tivessem recebido processos que impugnavam atos administrativos com menos vícios de legalidade e com decisões mais razoáveis. A disparidade é tamanha (na Quarta Câmara só um quinto dos atos administrativos foram mantidos; na Terceira Câmara, mais de três quintos foram mantidos) que essa possibilidade se mostra praticamente inverossímil.

A discrepância de desempenho entre as cinco Câmaras de Direito Público do Tribunal sugere, portanto, relevante aleatoriedade na jurisprudência do TJSC em matéria de controle da Administração Pública. Na melhor das hipóteses, os números indicam que o Tribunal de Justiça pode estar falhando, nesse aspecto, na sua função de estabilização da jurisprudência.

Em qualquer caso, a ausência de um padrão claro, previsível, de comportamento da função de controle judicial da Administração Pública impede que o jurisdicionado conte integralmente com os precedentes judiciais como elemento de segurança jurídica para pautar sua conduta, pelo menos sem que sejam consultados, um a um, os fundamentos jurídicos dos acórdãos.

2.3. A fundamentação jurídica dos acórdãos

Em linhas gerais, os argumentos mais recorrentes utilizados como fundamentação nos acórdãos foram os seguintes:

  1. Razoabilidade e proporcionalidade: argumento utilizado preponderantemente para redução ou anulação de multas administrativas.

  2. Abuso do poder de polícia: usualmente diante do desvio de finalidade do ato administrativo de aplicação de multa ou em virtude do reconhecimento da falta de competência legal da autoridade que aplicou a sanção.

  3. Violação ao devido processo legal: inobservância de regras formais de direito de defesa dos particulares, o que acarreta nulidade do ato sancionatório.

  4. Separação de poderes: usurpação de prerrogativa do Poder Judiciário por parte dos Procons ao aplicar multa em litígio individual, inter partes, e não coletivo, o que caracteriza exercício de jurisdição. Segundo esse entendimento, que por considerável tempo vigorou no TJSC, a resolução de litígios individuais seria prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, de modo que os Procons não deteriam competência para aplicar multas (mesmo que administrativas) em casos que não se tratassem de demandas coletivas, sob pena de violação à separação de poderes.24 24 A título de exemplo, colhe-se o seguinte excerto: “[...] o Procon agiu fora dos limites que a lei lhe impôs, invadindo a seara do Poder Estatal atribuída ao Poder Judiciário, a quem compete decidir se a prestação dos serviços inter partes foi legal ou ilegal, lembrando-se que a solução da lide mediante a imposição de uma decisão coativa é prerrogativa exclusiva da jurisdição” (BRASIL, 2016a). Posteriormente, esse entendimento foi em parte superado, a partir de 2017, com a adoção da orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido de reconhecer a legitimidade dos Procons para aplicar multas administrativas em reclamações individuais.

  5. Deficiência na fundamentação: vício de motivação causado por ausência de indicação de dispositivos que pudessem fundamentar a aplicação de multa e por identificação de incoerências na fundamentação do ato sancionatório.

A análise detida da fundamentação aportada nos acórdãos revela que, para cada uma das câmaras julgadoras, há uma distinta prevalência de argumentos jurídicos para motivar a decisão de anulação das multas dos Procons (Gráfico 2). Essa constatação chamar-se-á de “oscilação jurisprudencial intercâmaras”.

gráfico 2
Percentual de fundamentação utilizada em caso de multas anuladas por câmara julgadora do TJSC

Na Primeira Câmara de Direito Público, prevalece o recurso ao argumento da razoabilidade/proporcionalidade (26,67%), mas em uma proporção idêntica ao da deficiência na fundamentação (26,67%) e similar ao abuso do poder de polícia (23,28%). Já a separação de poderes é quase inexpressiva nessa Câmara, representa 6,69% dos julgados. Os distintos fundamentos, na Primeira Câmara de Direito Público, são mais ou menos equilibrados.

Na Segunda Câmara de Direito Público, a disparidade chama a atenção na medida em que a metade dos principais argumentos utilizados nos acórdãos é a separação de poderes (50%), seguido da razoabilidade/proporcionalidade (35%).

Na Terceira Câmara de Direito Público, o recurso à razoabilidade/proporcionalidade para anular multas salta para 66,70%, ao passo que o princípio da separação de poderes não foi identificado nem sequer uma única vez (0,00%). Nesse particular, a Terceira Câmara de Direito Público parece mais rigorosa em termos de controle da motivação do ato administrativo, representativo de 33,30% dos julgados.

A Quarta Câmara de Direito Público segue um padrão de notável proeminência da razoabilidade/proporcionalidade (47,05%), seguida da separação de poderes (17,58%) e, em uma proporção idêntica, dos argumentos da deficiência na fundamentação, abuso do poder de polícia e devido processo legal somados (11,79% cada).

Na Quinta Câmara de Direito Público, vê-se um padrão decisório totalmente diferente dos demais. Ali, 66,70% dos julgados que anularam multas assim o fizeram por terem alegado controle do devido processo legal. Em seguida, aparece o uso da separação de poderes, com 33,30%. O argumento da razoabilidade/proporcionalidade, tão proeminente nas demais câmaras, não foi identificado (0,00%), tampouco os da deficiência na fundamentação e do abuso do poder de polícia.

Nesse caso, a ausência de padrão decisório somada a uma diferença tão desproporcional de uso de argumentos distintos para anular atos administrativos sugere, novamente, que o jurisdicionado está sujeito à aleatoriedade do Tribunal em termos de posicionamento sobre o controle judicial da Administração Pública. Essencialmente, as chances de êxito de alguma das partes dependem, de forma preponderante, da câmara julgadora a que o recurso será distribuído.

2.3.1. Análise particularizada sobre os argumentos da razoabilidade e separação de poderes

Em termos de argumentação, de modo geral o TJSC recorre, preponderantemente, aos princípios da razoabilidade/proporcionalidade para minorar multas administrativas.

A mesma homogeneidade não é identificada nos casos de anulação das sanções (Gráfico 3). Os argumentos para tanto variam entre razoabilidade/proporcionalidade (34,67%), separação de poderes (21,33%), abuso do poder de polícia (12,00%), deficiência na fundamentação (18,67%) e violação ao devido processo legal (13,33%).

gráfico 3
Percentual de fundamentação utilizada em casos de multas anuladas

Mesmo nesses casos de anulação é possível confirmar a proeminência do recurso aos princípios da razoabilidade/proporcionalidade, que representa um terço de todos os julgados. No entanto, também chama atenção o uso da ideia de separação de poderes, segundo argumento mais utilizado. Somados, razoabilidade/proporcionalidade e separação de poderes, doravante chamados de “conceitos indeterminados”, são representativos de mais da metade dos julgados.

Dessa categorização é possível inferir importantes considerações. Por um lado, os argumentos minoritários – deficiência na fundamentação, abuso do poder de polícia e violação ao devido processo legal – são todos atinentes a aspectos de legalidade do ato administrativo (doravante chamados de “legalidade estrita”). Exigem normalmente uma avaliação detida do arcabouço probatório para serem aplicados ao caso concreto.

Por outro lado, os argumentos de conceitos indeterminados são, por sua própria natureza, enunciados abertos que permitem ao julgador maior elasticidade quando for fundamentar a decisão judicial. A facilidade com que esses standards podem ser invocados genericamente é muito maior se comparada aos argumentos de legalidade estrita.

O uso de conceitos indeterminados para fundamentar as decisões em sede de controle é, inequivocamente, caminho mais fácil para motivar as aludidas decisões, porque dispensa a análise minuciosa do conjunto probatório e permite que o controlador simplesmente substitua o juízo do agente administrativo pelo seu próprio, ao argumento de esse último estar supostamente alinhado às aludidas categorias indeterminadas. O ponto principal é que esse recurso traz consigo potenciais problemas, porque eles podem, em tese, fundamentar decisões para quaisquer dos lados.

O caso do princípio da razoabilidade é emblemático. Ao mesmo tempo em que a doutrina Chevron de deferência contempla um controle de razoabilidade, previsto no segundo passo, também é verdade que esse parâmetro pode ser utilizado para a elaboração de uma decisão ativista contra a Administração Pública, diante da sua abertura semântica. Não é de hoje que a doutrina critica o uso da razoabilidade como um cânone que tudo justifica. Perceba-se, contudo, que na doutrina Chevron não se advoga o recurso à razoabilidade para substituir a decisão administrativa pela opção do Judiciário, mas justamente o inverso, para preservar a decisão administrativa ainda que a opção do juiz fosse diferente.

A ideia da separação de poderes também pode justificar uma decisão tanto deferente quanto não deferente. Como dito, a separação de poderes pode ser entendida como um fundamento geral da deferência, a partir da noção de que cada Poder é constituído de maneira a executar uma atividade especializada, de modo que os demais devem evitar ao máximo invadir essas esferas específicas de competência, que compõem um exercício legítimo de discricionariedade. Por outro lado, o TJSC usou justamente da separação de poderes para afirmar o contrário, que a Administração Pública não teria poderes para resolver litígios individuais na esfera administrativa, por ser essa uma competência do Poder Judiciário.

Abre-se um parêntese para registrar que esse uso da separação de poderes colide com uma das principais ideias subjacentes à doutrina de deferência e capacidades institucionais, que é o fundamento segundo o qual o Poder Executivo pode, em alguns casos, dizer como a lei se aplica – ainda que submetido, insista-se, ao controle judicial. Em casos nos quais a decisão dependa de análises políticas ou técnicas, que fogem à expertise do Poder Judiciário, é desejável que haja deferência. No caso dos Procons, os órgãos são pretensamente especializados, estruturados tecnicamente para receber, tratar e resolver casos de natureza consumerista. Chama atenção, portanto, que um fundamento que poderia ter conduzido a um comportamento judicial deferente tenha resultado justamente na negação da capacidade institucional dos Procons. Fecha-se o parêntese.

O ponto, como dito, é que o uso de conceitos indeterminados – razoabilidade/proporcionalidade e separação de poderes – é tão amplo que pode justificar decisões tanto deferentes como não deferentes. A presente pesquisa não analisou caso a caso os processos e as particularidades dentro das quais os princípios foram utilizados. No entanto, pela frequência que ocorreram, é possível inferir a propensão do TJSC de preferir o uso de princípios, de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, para anular as multas aplicadas pelo Procon. Isso denota haver um padrão decisório do uso de mecanismos típicos de um perfil ativista pelo Tribunal. Recorda-se que, na esteira dos fundamentos teóricos expostos na seção 1.1, em linhas gerais o ativismo judicial pode ser entendido como o uso de ferramentas interpretativas fluidas para legitimar a intervenção sobre a atividade típica de outro Poder.

Nada obstante, a ampla prevalência do argumento da razoabilidade/proporcionalidade sobre os demais sugere que, apesar de poder indicar um padrão ativista, a jurisprudência do TJSC nesse particular é relativamente estável. Enfatiza-se o “relativamente” pois, como visto, esse parâmetro muda para cada câmara julgadora. De todo modo, o ponto é que, em geral, esse é o fundamento dominante (34,67%), o “argumento vencedor” na Primeira, na Terceira e na Quarta Câmaras de Direito Público, o segundo mais utilizado na Segunda Câmara, além de ser maioria absoluta nos casos de multas minoradas.

2.3.2. O exemplo de situação paradoxal provocada pela fundamentação escorada em conceitos jurídicos indeterminados

O recurso a conceitos jurídicos indeterminados para fundamentar decisões de controle dos atos administrativos pode ser fator causador de elevada insegurança jurídica. Um exemplo pode ser didático para mostrar como o princípio da razoabilidade é utilizado para produzir decisões distintas em casos semelhantes, dentro da mesma câmara julgadora, na mesma sessão de julgamento.25 25 Adverte-se que a seleção de dois entre 165 julgados pode acarretar uma falsa impressão da realidade, o chamado cherry picking. O exemplo é trazido apenas para ilustrar o potencial problema advindo do uso de conceitos jurídicos indeterminados para fundamentar o controle judicial sobre a Administração Pública.

Na Apelação Cível n. 0311991-60.2015.8.24.0023, julgada pela Terceira Câmara de Direito Público em 13 de setembro de 2016, discutia-se a aplicação de multa contra empresa que vendeu um celular eivado de vício. O aparelho, que custou ao consumidor R$ 1.774,00, foi submetido à assistência técnica da empresa em mais de uma ocasião, sem sucesso. Diante disso, o Procon entendeu que a empresa teria se omitido no dever de solucionar a irregularidade em favor do consumidor. Ao final do processo administrativo, foi aplicada contra a empresa uma multa de R$ 30.000,00. A Terceira Câmara de Direito Público considerou que o valor da multa era razoável e manteve o ato administrativo (BRASIL, 2016b).

Na Apelação Cível n. 0500114-42.2011.8.24.0036 (BRASIL, 2016c), também julgada pela Terceira Câmara de Direito Público na mesma sessão de 13 de setembro de 2016, discutia-se uma multa aplicada contra empresa que vendeu um palm eivado de vício. O aparelho foi submetido à assistência técnica da empresa, porém sem sucesso. Diante disso, o Procon entendeu que a empresa teria se omitido no dever de solucionar a irregularidade em favor do consumidor. Ao final do processo administrativo, foi aplicada uma multa de R$ 33.847,33. No entanto, nesse caso, a Terceira Câmara de Direito Público considerou que o valor não era razoável, tomando como referência o preço do palm (R$ 1.000,00). Diante disso, aplicando o princípio da razoabilidade, o montante foi reduzido para R$ 5.000,00.

Os dois casos são praticamente idênticos, assim como os valores envolvidos, em relação tanto ao custo dos produtos adquiridos pelos consumidores quanto ao montante fixado a título de multa administrativa. No entanto, ao passo que no primeiro caso a decisão foi de que o valor da sanção pecuniária era condizente com o princípio da razoabilidade, no segundo, entendeu-se que a fixação de multa naquele mesmo patamar violava o mesmo princípio, o que fundamentou a redução do valor da multa em 85,2%.

O exemplo confirma que o recurso meramente retórico, pelo TJSC, à ideia de proporcionalidade/razoabilidade para minorar ou anular multas administrativas distancia-se, de forma significativa, do segundo passo da doutrina Chevron, em que o exame de razoabilidade serviria justamente para embasar comportamento contrário, de manutenção da decisão administrativa mesmo que a autoridade judicial discordasse de seu mérito.

Conclusão

Do total de decisões administrativas dos Procons impugnadas no período que foram avaliadas pelo TJSC em sede de recurso, aproximadamente dois terços foram revistos (anulados ou minorados) pelo Judiciário. O número absoluto não revela, necessariamente, um perfil ativista do Tribunal, haja vista que a ideia de deferência ainda admite controle sob a ótica da legalidade e razoabilidade. Na percepção dos autores deste estudo, os números revelam, pelo menos, uma tendência a um perfil mais ativista do Judiciário e menos deferente à Administração Pública (tendência essa que seria inexistente se o número total de decisões administrativas anuladas ou minoradas fosse menor que o número total de decisões mantidas).

A grande oscilação entre as Câmaras de Direito Público do TJSC acerca dos fundamentos recorrentemente utilizados para fundamentar a decisão de controle sugere expressiva aleatoriedade. O Tribunal pode decidir de forma distinta casos semelhantes, de maneira ora ativista, ora mais deferente à Administração Pública, sem que haja um padrão de comportamento previsível. É praticamente inviável predizer, antes da distribuição dos recursos, as chances do jurisdicionado a respeito do perfil do Tribunal sobre os limites e a extensão do controle judicial de atos administrativos nessa seara. Os dados indicam que o Tribunal de Justiça pode estar falhando, por isso, na sua função de estabilização da jurisprudência.

O recurso recorrente a conceitos jurídicos indeterminados para fundamentar decisões de controle judicial sobre atos administrativos revela um padrão decisório que faz uso de técnicas típicas de um perfil ativista. A elevada carga de indeterminação de algumas dessas categorias seria apta a justificar decisões para ambos os lados (pela manutenção ou revisão da decisão administrativa impugnada), o que também pode ser fator de insegurança jurídica.

O número elevado de decisões administrativas revistas pelo Tribunal, as acentuadas oscilações entre as Câmaras de Direito Público acerca do número de decisões administrativas mantidas e revistas, a expressiva ausência de uniformidade entre as mesmas câmaras no que toca aos fundamentos utilizados para a revisão judicial do ato administrativo e o recurso, majoritário, a conceitos jurídicos indeterminados como fundamentação para justificar a intervenção judicial induzem à conclusão de que o Tribunal de Justiça adota uma postura não deferente à Administração Pública nessa seara. Os dados revelam, ainda, a ausência de um padrão previsível sobre o comportamento do Tribunal no que toca aos limites e à extensão da atividade de controle judicial da Administração Pública.

Intui-se que essas características – postura não deferente do Judiciário e ausência de previsibilidade nas decisões – possam ocorrer no controle judicial de atos administrativos de outra natureza, erigidos sobre pressupostos similares.

agradecimentos

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por propiciar uma bolsa de iniciação científica para o projeto de pesquisa que gerou este artigo.

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  • 1
    Nos últimos anos, parte da doutrina voltou-se ao estudo da deferência e à crítica do ativismo judicial sobre as atividades da Administração Pública, além do uso desmedido de princípios constitucionais para fins de controle judicial. Os autores deste artigo compartilham dessa perspectiva crítica. Nesse sentido, conferir Jordão (2016)JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros Editores, 2016., Maranhão (2016)MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. A revisão judicial de decisões de agências regulatórias: jurisdição exclusiva? In: PRADO, Mariana Mota (org.). O Judiciário e o estado regulador brasileiro. São Paulo: FGV DIREITO SP, 2016. p. 26-46., Guerra (2005)GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005., Valle (2020)VALLE, Vanice Regina Lírio do. Deferência judicial para com as escolhas administrativas: resgatando a objetividade como atributo do controle do poder. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 110-132, jan./abr. 2020. e Sundfeld (2014)SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Direito GV; Malheiros Editores, 2014..
  • 2
    A bem da verdade, a constitucionalização do direito administrativo não é absolutamente nova; desde a Constituição de 1934 constam em textos constitucionais normas relativas aos servidores públicos, à responsabilidade civil do Estado, entre outras (DI PIETRO, 2012DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2012., p. 4).
  • 3
    Nesse sentido, conferir Fagundes (1951)FAGUNDES, Miguel Seabra. Conceito de mérito no direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 23, p. 1-16, mar. 1951., Leal (2013), Cretella Jr. (1965, 1987), Cavalcanti (2013)CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O princípio da legalidade e o desvio de poder. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Comemorativa 2014, p. 149-155, dez. 2013. e Meirelles (2016)MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2016..
  • 4
    Para fins operacionais, pode-se considerar juridicidade o princípio segundo o qual o administrador não está vinculado ao paradigma positivista da legalidade estrita, mas à Constituição e aos seus princípios, servindo esses últimos como parâmetro de validade de atuação da Administração Pública. Inclusive, essa parametrização pode se dar de forma direta, sem haver necessidade de mediação legislativa, porque a Constituição funciona como “fundamento primeiro” da atividade administrativa. Para um estudo mais aprofundado, cf. Otero (2003)OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003..
  • 5
    Grosso modo, o neoconstitucionalismo caracteriza-se por ser vertente antagonista ao positivismo jurídico, tido pelos neoconstitucionalistas como responsável, no campo jurídico, pela permissividade do Direito diante das atrocidades dos regimes totalitários da primeira metade do século XX. Bem por isso que o neoconstitucionalismo vai se afirmar como teoria que defende o reencontro entre o direito e a moral, em oposição à ideia “pura” de direito característica do juspositivismo. Cf. Barroso (2005BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, abr. 2005., p. 4). Em sentido crítico, Elival da Silva Ramos (2015RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 296) afirma que “os neoconstitucionalistas brasileiros são antipositivistas (e não pós-positivistas), mas preferem dedicar um epitáfio ao positivismo jurídico do que se afirmar em combate”.
  • 6
    Importante ressaltar a posição intermediária e moderada da professora Di Pietro (2012)DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2012., que não leva às últimas consequências a posição de crescente limitação da discricionariedade em prol do controle judicial. Nesse sentido, rejeita a tese de que o mérito administrativo deixou de existir, “o que evidentemente constitui exagero inaceitável”, sob pena de reconhecer a Administração Pública como mero robô de aplicação da lei (DI PIETRO, 2012DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da constitucionalização do direito administrativo: reflexos sobre o princípio da legalidade e a discricionariedade administrativa. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2012., p. 8-11).
  • 7
    Segundo o professor Juarez Freitas (2009a, p. 22), “[t]rata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem”.
  • 8
    Foi Jeremy Waldron (2003WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 5) quem sintetizou esse fenômeno da melhor maneira ao dizer que “construímos […] um retrato idealizado do julgar e o emolduramos junto com o retrato de má fama do legislar”.
  • 9
    No mesmíssimo sentido, cf. Barroso (2005BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, abr. 2005., p. 13).
  • 10
    Para Tobjorn Vallinder (2012VALLINDER, Tobjorn. A judicialização da política: um fenômeno mundial. In: MOREIRA, Luiz. Judicialização da política. São Paulo: 22 Editorial, 2012., p. 15), judicialização da política é a “expansão da seara dos tribunais ou dos juízes à custa de políticos e/ou administradores”. A seu turno, Ran Hirschl (2012HIRSCHL, Ran. A judicialização da megapolítica e o surgimento dos tribunais políticos. In: MOREIRA, Luiz (org.). Judicialização da política. São Paulo: 22 Editorial, 2012. p. 27-62., p. 36) a conceitua como “o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judiciais para o enfrentamento de importantes dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas”.
  • 11
    Nesse sentido, o ativismo pode ser considerado a “utilização de formas de interpretação e de ação processual que aumentam os poderes dos magistrados” (LUNARDI e DIMOULIS, 2016LUNARDI, Soraya Gasparetto; DIMOULIS, Dimitri. Democraticidade ou juridicidade? Reflexões sobre o passivismo do STF e o futuro do controle judicial de constitucionalidade. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 10, n. 35, p. 161-180, maio/ago. 2016., p. 168) e a invasão voluntária do Poder Judiciário sobre “o núcleo essencial da função constitucionalmente atribuída a outros Poderes” (RAMOS, 2015RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 119, grifo do autor).
  • 12
    Mais do que uma “máquina para impedir usurpações”, a separação de Poderes pode ser entendida como um modelo de garantia de especialização funcional para cada ramo do Estado, de modo que cada um deles admite membros de acordo com o perfil e a missão específica da instituição (HOLMES, 1999HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (orgs.). Constitucionalismo y democracia. Tradução Mônica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica, 1999. p. 217-262., p. 57).
  • 13
    Por princípio, entende-se uma espécie de conceito guarda-chuva que abriga determinadas regras por ele justificadas. Essas regras dão vida ao princípio, que, por sua vez, não tem aplicação autônoma. Por exemplo, o chamado princípio da não surpresa por si não tem aplicação autônoma; é um enunciado que faz referência ao bloco normativo constituído do art. 10 do Código de Processo Civil, que orienta o juiz a não decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, e, em última análise, do próprio inciso LV do art. 5o da Constituição Federal, que assegura o direito ao contraditório e à ampla defesa. Essas regras constituem o princípio da não surpresa. Sobre esse conceito de princípio, conferir Sunstein (1996SUNSTEIN, Cass. Legal Reasoning and Political Conflict. Nova York: Oxford University Press, 1996., p. 30).
  • 14
    Nos Estados Unidos, o termo “agência” abrange-as, mas não se limita às agências reguladoras, e engloba também as chamadas agências executivas, ramos da Administração Pública vinculados diretamente à chefia do Poder Executivo. Para um conceito de Poder Executivo e de agência nos Estados Unidos, conferir Posner e Vermeule (2010POSNER, Eric Andrew; VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: After the Madisonian Republic. Nova York: Oxford University Press, 2010., p. 5-6).
  • 15
    O caso Chevron versou sobre a interpretação da Agência de Proteção Ambiental (EPA – Environmental Protection Agency) acerca do termo “fontes fixas” contido na Lei do Ar Limpo (Clen Air Act), legislação instituinte de um programa de conformidade ambiental que exigia a obtenção de uma nova licença administrativa toda vez que determinada empresa construísse uma nova “fonte fixa” (stationary source) ou modificasse uma existente. A interpretação vigente até então era de que todo aparelho industrial capaz de emitir algum nível de poluição deveria ser regulado, de modo que, por exemplo, a aquisição ou modificação de uma nova caldeira exigiria licenciamento. Em 1984, na administração liberal de Ronald Reagan, a EPA ampliou o termo e passou a entender que o conceito “fonte fixa” contemplava uma planta industrial inteira. Por via de consequência, empresas poderiam construir novas fontes de poluição dentro da planta industrial existente sem a necessidade de licenciamento, contanto que elas não excedessem o limite poluente instituído pela Lei do Ar Limpo. A nova interpretação foi judicializada, derrubada no Tribunal de Apelação do Distrito de Columbia, até que chegou à Suprema Corte por força da empresa petrolífera Chevron, uma das interessadas no caso. A Suprema Corte validou a interpretação da EPA por entender que ambas as interpretações em jogo eram plausíveis à luz do termo “fontes fixas” e a escolha entre uma delas exigiria um juízo de política pública típico do Poder Executivo, de modo que o Poder Judiciário deveria deferir à solução encontrada pela agência (SUNSTEIN, 1990SUNSTEIN, Cass. Law and Administration after Chevron. Columbia Law Review, Nova York, v. 90, n. 8, p. 2071-2120, dez. 1990.).
  • 16
    Nesse sentido, Cass Sunstein (2006)SUNSTEIN, Cass. Beyond Marbury: The Executive’s Power to Say What the Law Is. Yale Law Journal, New Haven, v. 115, p. 2580-2610, 2006. destaca que a doutrina Chevron é muito mais do que uma orientação para que o Poder Judiciário não revise atos administrativos a não ser que sejam contrários à lei. De maneira mais arrojada, significa que tribunais devem validar esses atos ainda que discordem da interpretação dada pelo gestor. Para Sunstein (2006SUNSTEIN, Cass. Beyond Marbury: The Executive’s Power to Say What the Law Is. Yale Law Journal, New Haven, v. 115, p. 2580-2610, 2006., p. 2588), os tribunais devem estar preparados para dizer que, “[s]e estivéssemos interpretando a lei independentemente, nós diríamos X ao invés de Y; mas porque há ambiguidade, o Executivo está permitido a preferir Y”. No original: “If we were interpreting the statute independently, we would read it to say X rather than Y; but because it is ambiguous, the executive is permitted to prefer Y”.
  • 17
    A afirmação institucionalista proposta por Sunstein e Vermeule (2002)SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law Research Paper, Chicago, n. 156, p. 1-55, jul. 2002. representa uma virada na interpretação jurídica nos Estados Unidos, uma vez que a doutrina – como ocorre no Brasil – usualmente invoca a pergunta “como um texto deve ser interpretado?”, que pressupõe uma visão idealizada de juízes, capazes de sempre realizarem a melhor interpretação possível e encontrarem a única resposta correta fornecida pelo ordenamento jurídico. Sunstein e Vermeule (2002SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Chicago Public Law Research Paper, Chicago, n. 156, p. 1-55, jul. 2002., p. 2) trocam os sinais da interpretação jurídica e propõem o seguinte questionamento: “como algumas instituições, dotadas de habilidades e limitações distintas, interpretam textos?”.
  • 18
    Extrai-se do voto: “Juízes não são experts nesse campo, e não fazem parte de nenhum dos ramos políticos do Governo. Tribunais devem, em alguns casos, reconciliar interesses políticos conflitantes, mas não de acordo com as preferências políticas pessoais dos juízes. Em contraste, uma agência para a qual o Congresso delegou competência para elaboração de políticas públicas pode, dentro dos limites dessa delegação, adequadamente confiar nas visões da administração em exercício sobre políticas inteligentes para informar seu julgamento. Enquanto agências não são diretamente responsáveis (accountable) perante a população, o Chefe do Poder Executivo é, e é inteiramente apropriado que esse ramo político do Governo faça tais escolhas sobre políticas públicas – resolvendo interesses conflitantes que o Congresso ou inadvertidamente não resolveu, ou intencionalmente deixou para ser resolvido pela agência encarregada da interpretação da lei à luz da realidade do dia a dia”. No original: “Judges are not experts in the field, and are not part of either political branch of the Government. Courts must, in some cases, reconcile competing political interests, but not on the basis of the judges’ personal policy preferences. In contrast, an agency to which Congress has delegated policy-making responsibilities may, within the limits of that delegation, properly rely upon the incumbent administration’s views of wise policy to inform its judgments. While agencies are not directly accountable to the people, the Chief Executive is, and it is entirely appropriate for this political branch of the Government to make such policy choices – resolving the competing interests which Congress itself either inadvertently did not resolve, or intentionally left to be resolved by the agency charged with the administration of the statute in light of everyday realities” (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1984ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte. Chevron U.S.A., Inc. versus NRDC, 467 U.S. 837, 1984.).
  • 19
    Nesse sentido, conforme Sunstein (2006)SUNSTEIN, Cass. Beyond Marbury: The Executive’s Power to Say What the Law Is. Yale Law Journal, New Haven, v. 115, p. 2580-2610, 2006., “o que é mais impressionante sobre a análise de Chevron é a sugestão que a resolução de uma ambiguidade estatutária requer um juízo sobre resolver ‘interesses conflitantes’”, sendo um reconhecimento explícito do Tribunal de que exames políticos podem integrar o processo interpretativo. No original: “What is most striking about the Court’s analysis in Chevron is the suggestion that resolution of statutory ambiguities requires a judgment about resolving ‘competing interests’. This is a candid recognition that assessments of policy are sometimes indispensable to statutory interpretation” (SUNSTEIN, 2006SUNSTEIN, Cass. Beyond Marbury: The Executive’s Power to Say What the Law Is. Yale Law Journal, New Haven, v. 115, p. 2580-2610, 2006., p. 2587).
  • 20
    Vale enfatizar que, para assegurar a independência do Poder Judiciário, o princípio da deferência deve ser entendido como uma recomendação interpretativa e não como uma obrigação para que o magistrado acate toda e qualquer decisão administrativa. Esse, aliás, é o sentido do uso da expressão “serão considerados” no art. 22, o que revela a intenção do legislador em recomendar ao magistrado uma conduta deferente, sem imposição obrigatória.
  • 21
    A explicação fornecida por Miguel Seabra Fagundes em 1951FAGUNDES, Miguel Seabra. Conceito de mérito no direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 23, p. 1-16, mar. 1951. joga uma luz sobre o papel da discricionariedade na separação dos Poderes: “Sendo a discrição do legislador a mais ampla em conteúdo e a primeira a manifestar-se, cronologicamente, no processus da expressão da vontade do Estado, a discrição reservada ao administrador e ao juiz pode dizer-se, em certo sentido, residual. Exerce-se no que não tenha sido regulado pela lei. [...] O que acontece, porém, nos casos de competência vinculada – faz-se oportunidade repetir – é que a lei (fase primária do processus de realização do direito) exaure a margem de opção própria do exercício da atividade jurídica do Estado, deixando circunscrito o ato administrativo (fase secundária daquele processus) a estritos limites, sem ensejo para cogitações sobre o útil, o justo, o certo, etc. O aspecto de conveniência, de oportunidade, de eficácia, em suma, para usar da terminologia do ilustre autor, foi exaurido pelo legislador. Nada se deixou ao administrador quanto a ele. Não assim se discricionário o ato administrativo, pois aqui se confia à Administração, pela liberdade outorgada aos seus movimentos, aferir da utilidade ou eficácia, maior ou menor, do procedimento estatal em sua fase derradeira” (FAGUNDES, 1951FAGUNDES, Miguel Seabra. Conceito de mérito no direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 23, p. 1-16, mar. 1951., p. 11, grifo do autor).
  • 22
    De similar concepção, Meirelles (2016MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2016., p. 847).
  • 23
    Os arts. 55, 56, 57 e 105 do Código de Defesa do Consumidor, assim como os incisos III e IV do art. 4o, art. 5o e inciso I, § 2o, do art. 18 do Decreto Federal n. 2.181/1997, autorizam o Procon em níveis estadual e municipal a julgar irregularidades e a aplicar sanções administrativas diante de violações de direitos do consumidor.
  • 24
    A título de exemplo, colhe-se o seguinte excerto: “[...] o Procon agiu fora dos limites que a lei lhe impôs, invadindo a seara do Poder Estatal atribuída ao Poder Judiciário, a quem compete decidir se a prestação dos serviços inter partes foi legal ou ilegal, lembrando-se que a solução da lide mediante a imposição de uma decisão coativa é prerrogativa exclusiva da jurisdição” (BRASIL, 2016a).
  • 25
    Adverte-se que a seleção de dois entre 165 julgados pode acarretar uma falsa impressão da realidade, o chamado cherry picking. O exemplo é trazido apenas para ilustrar o potencial problema advindo do uso de conceitos jurídicos indeterminados para fundamentar o controle judicial sobre a Administração Pública.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2020
  • Aceito
    30 Maio 2022
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