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Diálogo de pais e bebês em situação de risco ao desenvolvimento

Resumos

Objetivo

investigar as relações enunciativas estabelecidas entre pais e crianças com risco ao desenvolvimento infantil, sobretudo, os efeitos da presença do risco no processo de aquisição da linguagem.

Métodos

a amostra constituiu o estudo de três crianças que apresentaram risco ao desenvolvimento, acompanhadas de 0 a 18 meses a partir dos Indicadores de Risco ao Desenvolvimento Infantil, bem como, por filmagens da interação dos pais com as crianças. A análise dos dados considerou a perspectiva enunciativa proposta por Carmen Silva (2007, 2009) e a psicanalítica.

Resultados

nos três casos constatou-se dificuldade de separação da mãe com a criança o que refletiu no processo de semantização da língua, sobretudo, na ampliação dos possíveis interlocutores. Contudo, os sujeitos evidenciaram a possibilidade de domínio semiótico da língua tendo em vista que os três mecanismos enunciativos propostos por Silva (2007).

Conclusões

o estudo evidenciou que as dificuldades de separação mãe-bebê e a fragilidade da entrada da função paterna obstacularizaram a posição da criança na língua, uma vez que as crianças mostraram-se bastante dependentes da fala dos pais para suas produções.

Desenvolvimento Infantil; Linguagem; Relações Pai-Filho; Relações Mãe-Filho


Purpose

to investigate the enunciative relationships which are established between parents and children who have risk factors for infant developmental problems, especially the effects of the risks during the language acquisition process.

Methods

the sample consisted of study of three children who present risks for development, who were observed from 0 to 18 months through the Clinical Risk Indicators in Child Development, and through filmed samples with parents and children interaction. The data analysis considered the enunciative approach by Carmen Silva (2007, 2009) and the psychoanalytic approach.

Results

by analyzing the three cases, it was possible to evidence that all of them presented difficulties of mother-baby separation, what reflected in the language semantization process, when the number of interlocutors became higher. However, the subjects evidenced the possibility of language semiotic domain, observing the three enunciative mechanisms proposed by Silva (2007).

Conclusions

the study evidenced that the difficulties of mother-baby separation and the weak entrance of the paternal function have made the position of the children in the language more difficult, because the children are dependant of parents’ speech for their own productions.

Child Development; Language; Father-Child Relations; Mother-Child Relations


INTRODUÇÃO

O humano não está dado no organismo, está no campo da linguagem (do Outro transmissor dos significantes) tecido pelo simbólico. Por isso, o sujeito não se constitui sozinho e sim, de outros aparelhos psíquicos, ou seja, de outros “aparelhos de linguagem”. Dessa forma, a constituição psíquica da criança é dependente dos processos interativos iniciais1. Motta S. Psicopatologia e clínica no primeiro ano de vida. In: Org Oliveira EFL, Ferreira SS, Barreto TA. As interfaces da clínica com bebês. Recife: NINAR - Núcleo de Estudos Psicanalíticos, 2009. p. 27-49.. Dessa forma, o infans nasce em grande desamparo não sendo capaz de significar sua tensão endógena e, diante disso, lança um grito, o qual não é, inicialmente, um apelo porque é somente a expressão vocal de um sofrimento. É a resposta do Outro que tornará o grito um apelo, sendo o sujeito chamado a ser2. Vives J. A pulsão invocante e os destinos da voz. Psicanálise & Barroco em revista. 2009:7(1):186-202..

Há, nesse sentido, um “outro” - normalmente o agente da função materna -que desempenha o papel de mediador entre a criança e a língua, pois desde o nascimento, a criança está inserida num mundo no qual os seus interlocutores principais atribuem significados e intenções aos seus gestos, aos seus olhares e às suas emissões vocais como um parceiro conversacional pelo adulto3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009.. Dessa forma, o bebê é fisgado pela fala materna e, mesmo sem que ele emita nenhuma palavra, observando-se uma díade que está em sintonia pode-se ter a convicção de que estão dialogando. Assim, ambos estão inseridos na linguagem, nas leis da cultura, o que justamente diferencia o filhote humano dos demais da natureza4. Flores MR, Beltrami L, Ramos APS. O manhês e suas implicações para a constituição do sujeito na linguagem. Distúrbios da Comunicação. 2011;23(2):143-52..

O ato de instauração da criança na linguagem é evidenciado por meio de três operações enunciativas: o preenchimento de lugar enunciativo, no qual se verifica a passagem do preenchimento de lugar enunciativo a partir do “outro” para o reconhecimento que esse lugar provoca no “outro”; a referência que consiste na passagem de atualização de uma referência mostrada para uma referência constituída na língua-discurso; e a inscrição enunciativa da criança na língua-discurso havendo a passagem de um ato discursivo de instanciação subjetiva por meio das formas e funções para um uso discurso em que a enunciação constitui outra enunciação3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009..

Normalmente, as dificuldades no campo da constituição psíquica não recebem a devida atenção dos profissionais da puericultura inicial, o que pode trazer prejuízos para o desenvolvimento infantil. A fim de alertar os profissionais da saúde nesse sentido, um grupo de psicanalistas criou os Indicadores de Risco ao Desenvolvimento Infantil (IRDIs), instrumento capaz de detectar riscos ao desenvolvimento infantil por meio da observação do bebê com aquele que ocupa a posição de cuidador primordial. Espera-se que esse instrumento sirva de alerta a fim de que uma intervenção precoce seja realizada enquanto há uma maior permeabilidade significante e maior plasticidade neuronal5.

Considerando tais aspectos, o objetivo deste artigo é investigar os efeitos da presença de risco ao desenvolvimento no processo de aquisição da linguagem da criança a partir das relações enunciativas estabelecidas entre pais e crianças.

MÉTODOS

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética sob número de CAAE 0284.0.243.000-09, sendo que os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido permitindo a realização da pesquisa.

A amostra de três casos foi selecionada, por conveniência, do projeto “Funções Parentais e fatores de risco para aquisição da linguagem: intervenções fonoaudiológicas”, no qual as crianças foram acompanhadas dos 0 aos 18 meses. As crianças escolhidas foram as que apresentaram maior número de IRDIs ausentes na fase IV, dos 12 aos 18 meses, na qual é fundamental a função paterna operar. Priorizou-se o eixo função paterna, considerando-se os resultados finais da pesquisa IRDI que mostraram este eixo como o que teve maior poder preditivo5. Além disso, estudos do grupo de pesquisa, no qual se insere este trabalho indicam uma relação entre a dificuldade no estabelecimento dessa função e distúrbios de linguagem na criança6. Rechia IC, Ramos APS. Dialogia e função materna em casos de limitações práxicas verbais. Psicologia em Estudo. 2010;15(2):315-23.

. Crestani AH, Ramos APS, Beltrami L, Morais AB. Análise da associação entre tipos de aleitamento, presença de risco ao desenvolvimento infantil, variáveis obstétricas e socioeconômicas. J. Soc Bras Fonoaudiol. 2012. No prelo.
-8. Moro MP, Ramos APS. Três análises de linguagem no autismo. Rev CEFAC [Online]. 2011;13(5):944-55. Disponível em: ISSN 1982-0216. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462010005000073. Acesso em: 28 nov. 2011.. Considerando que tais estudos analisaram crianças com limites biológicos (dispraxia verbal e autismo), este estudo inclui crianças que não apresentem limites biológicos para a linguagem oral.

As avaliações foram realizadas em um Hospital Universitário da região central do RS e no Serviço de Atendimento Fonoaudiológico, ambos da Instituição de Ensino na qual a pesquisa foi realizada. As crianças foram analisadas, juntamente com seus cuidadores principais, a partir dos IRDIs9. Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. 2008. Disponível em: http://fmcsv.org.br/pdf/FMCSV_pesquisa_multicentrica_indicadores_cl%C3%ADnicos_DI.pdf. Acesso em: 16 out. 2011.
http://fmcsv.org.br/pdf/FMCSV_pesquisa_m...
. No período de avaliação as crianças e mães foram avaliadas quanto ao exercício da função materna por meio de entrevista sobre a experiência da maternidade, validação dos estados de humor materno pelo Inventário de Beck (depressão e ansiedade), IRDIs, filmagens das interações com os pais, protocolo de transição alimentar e observação da produção inicial de fala. Todavia, este estudo centra-se nas avaliações realizadas na fase IV dos IRDIs e na filmagem das interações pais-crianças. As filmagens tiveram duração de 20 min, as quais foram transcritas para posterior análise. Foi solicitado aos pais que as filmagens fossem feitas em separado com a criança, contudo, as crianças não puderam ser filmadas com os pais, sem as mães, pois não ficavam na ausência das mães. Os pais tinham a sua disposição brinquedos variados adequados para a faixa etária das crianças sendo apenas solicitado que interagissem, como de costume, com a criança. As mães e bebês com presença de riscos foram encaminhados para psicoterapia.

Para construir a apresentação dos casos, cenas enunciativas que ilustrassem o funcionamento linguístico-enunciativo entre pais e bebê foram selecionadas. As filmagens foram analisadas, primeiramente, por uma fonoaudióloga que não sabia do histórico de cada caso e, posteriormente, pela psicóloga responsável pelo estudo.

A pesquisa teve caráter qualitativo e a análise dos dados baseou-se nos pressupostos enunciativos propostos por Carmen Silva3.

RESULTADOS

Caso 1- S1, M1 e P1

S1 é uma menina de 19 meses que foi muito planejada pelos pais. A mãe (M1) é dona de casa de 30 anos e o pai (P1) de 35 anos trabalha como comerciante, tendo que se ausentar em viagens. A mãe relata que ela e a filha “são muito grudadas”, o que fica evidenciado no fato da criança dormir com os pais e ter demanda livre de seio refletindo-se na dificuldade de fazer a transição para a alimentação sólida e semi-sólida (IRDI 14), inclusive, na ausência dos IRDIs 15 (a mãe alterna momentos de dedicação à criança com outros interesses), o IRDI 16 (a criança suporta as breves ausências da mãe) e no IRDI 17, já que M1 se sente obrigada a satisfazer tudo que S1 deseja. Os pais referem que S1 tem crises de “brabeza”.

Na Figura 1 são expostas cenas entre M1 e S1.

Figura 1
Cenas de Interação e Diálogo entre M1 e S1

Considerando os mecanismos enunciativos descritos por Silva (2007) observa-se na cena 1 que M1 convoca S1 a preencher com gestos e vocalizações a rotina de “nanar o nenê” (linha 3) o que a menina reproduz (linha 8). Trata-se de um mecanismo conjuntivo em que S1 reconhece que sua ação tem efeito no outro. Tanto que ao pegar o “totó” reproduz o ato de nanar sem que a mãe solicite (linha 8). Na mesma cena quando a mãe pergunta pelo “totó” a criança repete a fala da mãe produzindo a estratégia de repetição do dizer do tu no dizer do eu (linha 6), parte do segundo mecanismo enunciativo de estabelecimento de co-referência.

Já na cena 2 vê-se a criança realizando uma nomeação dêitica diante do adesivo de bebê colado no espelho (linha 18), o que também é estratégia prevista no mecanismo que envolve o estabelecimento de co-referência. Ainda nas cenas 4, 5 e 6 ocorrem estratégias do segundo mecanismo de estabelecimento de co-referência, como a solicitação do eu ao tu pela referência verbal, ao solicitar “mama” (linha 22) e ao enunciar “boi” (linha 28) e pelo comentário relacionado ao sapato que necessita ser arrumado (linha 30). Ambos pertencentes à segunda estratégia prevista por Silva (op.cit) no estabelecimento de co-referência.

Na cena 3 aparece elemento do terceiro mecanismo pelo uso de terceira pessoa por meio de um substantivo comum na referência a si próprio, quando enuncia “o nenê” ao se olhar no espelho, apontando para si mesma (linha 21). Essa criança apresenta uma variedade de mecanismos e estratégias enunciativas. O diálogo flui e a mãe está em boa interação com ela. Está atenta e sabe o que a criança deseja, interpretando linguisticamente as manifestações da filha (verbais ou sonoras) de modo adequado à cena enunciativa.

Na Figura 2 são expostas cenas entre P1 e S1.

Figura 2
Cenas de Interação e Diálogo entre P1 e S1

Na cena 1, além da reprodução de rotinas já comentada após a figura 2, a menina começa a levar objetos para mostrar para a mãe. Demonstra não conseguir ficar sozinha com o pai, o que parece dificultar que o brincar flua entre ambos. S1 responde a pergunta do pai (linha 7) na mesma cena enunciando “auauau” (linha 8), percebendo-se novamente a habilidade de co-referir do segundo mecanismo se manifestando. Já cena 2 o brincar flui mais, pois o desejo de brincar com a bola faz com que S1 se engaje na proposta do pai.

Observa-se que, apesar dos riscos ao desenvolvimento, não há uma relação direta entre o mesmo e o risco para a aquisição da linguagem, se considerado o domínio semiótico da língua, uma vez que S1 circula pelos três mecanismos enunciativos e começa a estabelecer a capacidade de co-referir, passando de uma referência mostrada à verbalizada. Todavia, na maior parte do tempo, sua interlocução é com a mãe o que demonstra que há dificuldade de uma apropriação mais ampla diante dos distintos interlocutores (semantização da língua). Portanto, embora domine a relação forma-sentido S1 encontra-se limitada em seu funcionamento discursivo porque a partir da relação intersubjetiva com a mãe estabeleceu-se que esta é seu único interlocutor e que suas produções devem obedecer a rituais e demandas estabelecidos pela mãe.

Caso 2: S2, M2 e P2

S2 é uma menina de 18 meses muito desejada pelos pais, especialmente pela mãe (M2) de 25 anos, dona de casa, que sempre quis ter uma filha, já que tem um menino de 6 anos e posterior a isso teve um aborto demorando a engravidar novamente. A mãe relata que a menina é “muito pegajosa” e que não fica com mais ninguém, o que fez com que solicitasse atendimento por se sentir exausta. O pai (P2) de 33 anos reconhece as dificuldades da filha, mas ausenta-se bastante devido a sua profissão de viajante comercial. Essa dinâmica familiar faz com que M2 não consiga alternar de dedicação a S2 com outros afazeres (IRDI 15), visto que S2 não suporta breves ausências da mãe (IRDI 16). Ainda, a mãe se sente obrigada a satisfazer todos os desejos de S2 (IRDI 17).

Na Figura 3 são expostas cenas entre M2 e S2.

Figura 3
Cenas de Interação e Diálogo entre M2 e S2

Na cena 1 S2 brinca, mas controlando as ações da mãe. Já na cena 2, em termos enunciativos, ela comenta, na linha 8, que o boneco dormiu (“mimiu”), o que evidencia um comentário dêitico da situação evidenciado o segundo mecanismo enunciativo, ao que a mãe responde repetindo o enunciado da filha ( linha 9). Há sintonia entre M2 e S2, mas esta tem uma ansiedade exacerbada em relação a separar-se da mãe, o que não se marca de modo importante na linguagem. Por outro lado, na cena 3, a mãe interpreta que o pedido de S2 é mamar, quando poderia ser apenas “mãe” cedendo à solicitação da filha. Inicia, então um discurso, no qual a separação do seu corpo do da menina está confusa (linhas 10 a 15).

Ainda outros mecanismos enunciativos emergem nas cenas exemplificadas como a repetição de rotinas de S2 por solicitação da mãe (primeiro mecanismo, estratégia II), a referência de si própria como “nenê” ou como “Bibi mamãe” (linha 17), no qual há uma combinação de palavras (segundo mecanismo). Todavia, ao referir “Bibi mamãe” (linha 19) na cena 4, mostra-se uma marca discursiva de que S2 se vê como colada à mãe, resistindo ao processo de separação, embora seja também evidência do domínio do terceiro mecanismo enunciativo de instauração do sujeito no discurso pelo uso do próprio nome. Na Figura 4, fica evidente que tal colagem ao corpo materno dificulta as interações entre S2 e P2, pois a menina busca constantemente a interação com a mãe enquanto o pai tenta brincar com a filha.

Figura 4
Cenas de Interação e Diálogo entre P2 e S2

Na cena 1 ocorre a repetição do dizer do tu no discurso do eu quando a criança enuncia “aé” (jacaré) na linha 3, “beinha” (abelhinha) na linha 7, exemplos do mecanismo de co-referência verbal. Na cena 2 a criança mostra o pé (linha 11) e aponta o joelho para o pai (linha 13), assim, responde com gesto ao que lhe é solicitado como rotina, o que constitui uma resposta vocal ou gestual a solicitações de performar rotinas familiares, estratégia pertencente ao mecanismo de preenchimento de turno a partir do outro.

Na cena 3 vê-se que o pai pergunta (linha 16) e S2 responde: “vi” (linha 17) falando por si utilizando a primeira pessoa, o que constituiria uma forma de instanciação do eu (terceiro mecanismo enunciativo de instauração do sujeito na linguagem), pois há a marca pessoal do eu no verbo, importante dado de entrada de S2 no discurso. Surgem outras cenas em que se nega a fazer coisas sugeridas pelo pai, o que este aceita bem.

Caso 3: S3, M3, P3

S3 é uma menina de 17 meses, primeira filha do casal, sendo muito planejada. É filha de M3 (29 anos), dona de casa, e de P3 (33 anos) que trabalha com informática, o que permite que esteja presente junto à família. S3 nasceu com dois problemas congênitos de saúde, mas se recuperou bem com tratamentos e ainda não precisou realizar nenhuma cirurgia, mas até hoje, isso angustia muito os pais. Na avaliação dos IRDIs observou-se a ausência dos indicadores 14, 15, 16, e 17 a exemplo de S1.

Na Figura 5 são expostas cenas entre M3 e S3.

Figura 5
Cenas de Interação e Diálogo entre M3 e S3

Na cena 1, vê-se que a mãe propõe uma brincadeira e criança responde ocupando turno (linha 2) compreendo, assim, o primeiro mecanismo enunciativo de conjunção eu-tu e de disjunção eu/tu (estratégia II). A seguir, mesmo a mãe mudando o referente (da brincadeira proposta para o avião) a criança continua a responder à mãe (primeiro mecanismo, estratégia I) ocorrendo a repetição do dizer do tu no discurso do eu, no qual S3 enuncia “ão” (linha 4), estratégia que refere-se ao mecanismo de co-referência verbal. Na cena 2, de início, não há uma sintonia no diálogo entre M3 e S3 (linhas 5 a 7). Na sequência o eu (S3) faz solicitações ao tu (M3) (linha 8), na qual se encontra o primeiro mecanismo enunciativo (estratégia III). Destaca-se, que quando há uma sintonia na interação entre M3 e S3 (linhas 8 a 11), M3 muda o referente ao oferecer a “chupeta” à S3 (linha 12), mas S3 marca-se deiticamente no discurso ao recusar a oferta da mãe enunciando “no” (linha 13).

O que fica evidenciado na cena 3 é o primeiro mecanismo e estratégia II, no qual a televisão (linhas 14 a 18) apresenta-se como uma estrutura rotineira da família para o eu que preenche seu lugar enunciativo com gestos e verbalizações. S3 marca sua entrada simbólico da língua quando se utiliza de co-referências no discurso do tu, o que faz ao trazer o “Tud” (Tudus) (linha 17) referindo-se a um personagem do desenho do Mickey Mouse referido pela M3 (linha 14) (segundo mecanismo enunciativo, estratégia II), sendo que M3 compreende o que foi referido pela criança e repete de forma correta (linha 18).

Na cena 4, vê-se na linha 19, que S3 convoca o outro (primeiro mecanismo, estratégia III), contudo, M3 não compreende a solicitação (linha 20) (segundo mecanismo b). O diálogo volta a fluir, mas M3 muda novamente o referente e oferece a S3 a “motoca” (linha 24). Compreende-se que S3 está ainda em grande dependência do dizer do outro, o que é mais evidenciado no primeiro mecanismo enunciativo, inclusive, mesmo que M3 não mantenha um diálogo continuo com S3, ela tenta engajar-se no que é trazido pela mãe. Essas questões confirmam as dificuldades encontradas nesse caso em que M3 resiste separar-se da filha, espaço também não deixado no discurso para que a filha aproprie-se de um dizer.

Na Figura 6 são expostas cenas entre P3 e S3.

Figura 6
Cenas de Interação e Diálogo entre P3 e S3

Já na cena 1 percebe-se a dificuldade da interação entre P3 e S3, pois S3 busca a mãe constantemente na cena (linhas 4, 6 e 8). P3 na tentativa de convocar a criança à interação faz várias solicitações (linhas 7, 9, 10 e 12), contudo, S3 busca a mãe (linha 13) e não se engaja num diálogo com o pai. Na cena 2 P3 continua a tentar convocar S3 (linha 14) e ela volta a recusar sua demanda (linha 15) enunciando “nuuu” (linha 15), marcando-se deiticamente no discurso e buscando a mãe, talvez por considerar obter mais consolo nela. Por fim, S3 engaja-se na proposta do P3 (linha 18) ao aceitar sua brincadeira (linha 19) ocorrendo a repetição do dizer do tu no discurso do eu (segundo mecanismo, estratégia IV), todavia, S3 mostra-se pouco interessada em sua solicitação e continua a ver televisão.

Na cena 3, percebe-se maior sintonia entre P3 e S3, mesmo que muito ligada à televisão. Na linha 22, P3 mostra o desenho à filha e começa a cantar e, rapidamente, S3 engaja-se na solicitação do pai e começa a cantar (linha 23) (primeiro mecanismo, II estratégia), contudo, logo S3 volta-se a preocupar-se com a ausência da mãe e interrompe o diálogo com P3 (linha 27). Evidencia-se, também neste caso, uma dificuldade de ampliar o processo de apropriação linguística com vários interlocutores que não apenas a mãe. Novamente a semantização da língua, entendida enquanto um processo que deve ser ampliado aos distintos interlocutores que convivem com a criança, fica limitada, provavelmente, em função das dificuldades de separação mãe-criança que se mostrou a partir dos IRDIs.

DISCUSSÃO

Considerando os resultados da pesquisa percebe-se, em linhas gerais, que nos três casos há uma dificuldade de separação da mãe e que isso se reflete no processo de semantização da língua, de modo especial na ampliação dos possíveis interlocutores. As três crianças evidenciaram a possibilidade de domínio semiótico da língua, tendo em vista que os três mecanismos enunciativos3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009., os quais estão presentes durante as interações verbais e não verbais. Assim como, várias estratégias enunciativas comparecem na construção do diálogo entre os pais e as crianças. Em função da estrutura lógica prevista pela autora na emergência de tais mecanismos, é evidente a presença mais acentuada dos dois primeiros mecanismos nas cenas analisadas e que o terceiro ainda esteja se delineando. No entanto, cabe ressaltar que este terceiro mecanismo pode estar menos avançado tendo em vista a referida dificuldade de ampliação de interlocutores e limitação no processo de socialização maior dessas crianças, relacionadas à dificuldade de separação da mãe. Isso pôde ser visto, quando as três crianças não sustentaram por muito tempo o diálogo com os pais buscando, reiteradamente, a interação com a mãe.

A relação entre linguagem e psique é corroborada no campo da psicanálise, já que alguns indícios de aparecimento ou não da linguagem podem contribuir na detecção precoce de crianças com dificuldades no processo de constituição psíquica10. No entanto, neste artigo o que se busca demonstrar é que não se trata apenas da emergência ou não da linguagem, mas como ela se apresenta enquanto reflexo de uma constituição. As crianças desta pesquisa não demonstram qualquer limite biológico para a aquisição da linguagem, tendo em vista o domínio semiótico da língua apresentado por elas, porém, mostrou-se uma restrição no processo de semantização relacionado a quem pode ocupar o lugar de tu.

Além disso, marcar-se na língua ocupando turnos, ou seja, marcar-se enquanto sujeito, representa a capacidade de separar-se assumindo uma posição diferenciada, o que pressupõe um corte na satisfação implicada na relação simbiótica mãe-criança. Nesse sentido, a linguagem é uma maneira de suportar a ausência do Outro, de fazer durar a sua presença e substituir o objeto. Assim, a linguagem é aqui entendida como atividade que surge na intersubjetividade e nesse processo os dois parceiros se implicam e se confundem, mudam posições, transitivam, se reúnem e se separam, assim como, compartilham uma linguagem particular11.

Os mecanismos necessários à protoconversação estavam presentes nas interações pais-crianças, sendo que os pais supunham nelas sujeitos capazes de enunciar algo considerando, assim, seus enunciados como um dizer. A partir desse processo, espera-se que a criança possa convocar o outro por meio do reconhecimento de que provoca prazer neste outro ao enunciar.

Primeiramente, o lugar que a criança ocupa na enunciação é atribuído pelo outro, ou seja, é falada pelo outro; para que, em momento posterior, enuncie em nome próprio3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009.. Nos casos analisados a limitação parece estar na ampliação do lugar do outro. Ele está restrito à mãe e com isso estratégias do terceiro mecanismo podem estar reduzidas, pois a não separação ao corpo materno impede que a criança rompa com a dependência inicial de sua fala.

Diante disso, este estudo considerou as singularidades de cada caso e a situação enunciativa, porque, na perspectiva teórica adotada, não se acredita que é possível uma avaliação da linguagem sem que se considere a interação locutor-interlocutor e o contexto enunciativo. Eu-tu são papéis reversíveis na interação, uma vez que o modo como cada locutor apreende a língua e instaura o alocutário no momento eternamente “presente” parece ser definidor da apreensão em outro “presente” (o depois), assim como, na abordagem enunciativa, o objeto de estudo inclui o sujeito, por isso, o uso da língua é sempre único e irrepetível. Desse modo, é preciso considerar-se os dados de aquisição num quadro de singularidade, no qual esteja implicada a relação do sujeito com o “outro” e com a língua a cada ato enunciativo3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009..

Sabe-se que a fala de uma criança indica que ela entrou em um campo que excede o da fala: o campo da linguagem, campo que abarca manifestações expressivas, mas não se restringe a elas. No entanto, a entrada da criança no campo da linguagem não se mede somente pelo vocabulário, pelo domínio da sintaxe e da gramática ou pelo domínio de outras manifestações de linguagem, como a gestualidade. Sua entrada corresponde ao lugar do qual o sujeito se representa no sistema da língua, revelando sua possibilidade de se situar em relação às significações do mundo, sua possibilidade de sustentar as relações com os outros, de reconhecer na linguagem a demanda e o desejo dos outros e, dessa forma, produzir novas significações5. É quando um sujeito toma a fala como recurso, que ele pode usá-la para expressar suas vontades e seus desejos próprios1212 . Pereira AS, Keske-Soares M. Significação parental acerca do desvio fonológico. Psicologia em Estudo. 2009;14(4):787-95..

Nesse sentido, nos casos observados é exatamente nesse âmbito em que pode estar delineando-se uma restrição no desenvolvimento destas três crianças porque, embora haja a suposição de um sujeito, ele ainda não é suposto em separado da mãe. Claramente também há a suposição das crianças como locutores capazes de manter a enunciação, já que as mães e pais conseguem estabelecer suas demandas e desejos a partir de um preenchimento de turno ou respostas sintonizadas às manifestações de S1, S2 e S2. Entretanto, as cenas enunciativas revelam que o que está impedida é a entrada da função paterna, revelada na impossibilidade de um terceiro que não mãe-criança fazer parte do diálogo. Essa restrição só pode ser entendida quando as cenas enunciativas analisadas incluíram os interlocutores significativos em situação de diálogo, respeitando assim o princípio da intersubjetividade enquanto princípio de análise na avaliação do funcionamento de linguagem das crianças.

Da mesma forma, ao se analisar os níveis semiótico e semântico, observa-se que a relação forma-sentido está se processando, inclusive no domínio progressivo do sistema linguístico, adequado em termos de lógica de mecanismos enunciativos a partir da proposta de enunciativa3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009.. Há, no entanto, uma limitação no processo de interlocução, que um simples olhar sobre o domínio do sistema linguístico de modo tradicional não permitiria detectar, ou seja, na visão tradicionalmente utilizada na análise das produções de fala infantil enquanto domínio semântico, sintático, fonológico, morfológico e pragmático, não seria possível compreender que há uma limitação no funcionamento de linguagem dos três sujeitos e que, a mesma, pode ser limitante no domínio progressivo de mecanismos enunciativos mais complexos e no processo de apropriação discursiva pelos quais estas crianças deveriam crescentemente e criativamente se marcar discursivamente.

Compreende-se que as dificuldades de separação mãe-bebê e a fragilidade da entrada da função paterna tenham dificultado a posição da criança na língua, já que para falar, enquanto um sujeito que ocupa um lugar no discurso, é preciso que haja uma disjunção também entre a criança e o Outro da alteridade. O acompanhamento de 18 meses dessas crianças mostrou que houve uma suposição de sujeito no bebê, desde o início, na medida em que os pais falavam acerca de planejamento futuro para os filhos (referência simbólica), tomavam as ações e sons da criança como uma demanda e um chamado a eles, assim, dirigiam palavras (em tom de manhês1313 . Socha A. A função especular da voz materna e suas referências ao psiquismo e à constituição do si mesmo. Winnicott e-Prints. 2008;3(1/2):1-12.) aos seus bebês supondo que ali estava um sujeito (e não somente um organismo) que era capaz de compreender suas falas e de ter um dizer.

Além disso, nesse processo, as três crianças buscaram ocupar esse lugar proposto pelos pais ocupando seu lugar no diálogo e provocando prazer no outro a partir de suas produções, agora não mais reflexas, como eram os primeiros sons, choros e movimentos. Todavia, as dificuldades nos três casos começaram a surgir quando os pais (de forma não intencional) não puderam sustentar o corte da função paterna1414 . Bernardino LMF. A criança como mestre do gozo da família atual: desdobramentos da “pesquisa de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil”. Revista Mal-estar e subjetividade. 2008;8(3):661-80., o que implicaria uma perda de satisfação para os pais e para a criança, que envolve o estabelecimento de regras, limites, ritmos de alimentação e de sono, desmame e suportabilidade da ausência materna; questões que são imprescindíveis para o aparecimento de um sujeito, não mais colado ao Outro, mas capaz de enunciar em nome próprio e podendo expressar seus próprios desejos.

CONCLUSÃO

O estudo evidenciou que as relações enunciativas entre os pais e as crianças estudadas apresentaram particularidades que, possivelmente, estão relacionadas a não sustentação da função paterna, enquanto interditora da relação mãe-bebê. Observou-se, a partir das cenas interacionais, que os sujeitos apresentaram domínio semiótico da língua, assim como, estavam presentes várias estratégias enunciativas no diálogo, sendo mais restrito o terceiro mecanismo proposto por Carmen Silva3. Silva CLC. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009., pois as crianças mostraram-se ainda bastante dependentes da fala dos pais para suas produções. Percebeu-se que não há uma ampliação importante nos processos de disjunção direcionados a outros interlocutores, o que se acredita relacionar-se com a dificuldade de separação mãe-criança. Também foi possível observar a relevância dos princípios de intersubjetividade e relação forma-sentido na proposição de uma hipótese do funcionamento de linguagem das tríades analisadas.

REFERÊNCIAS

  • 1
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  • Fonte de auxílio: Bolsa Capes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    may-jun 2014

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2012
  • Aceito
    23 Jan 2013
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