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Formação e demanda do cirurgião pediátrico no Brasil

Needs and specialization for pediatric surgeons in Brazil

Resumos

OBJETIVO: Definir o perfil epidemiológico dos especialistas em cirurgia pediátrica no Brasil. Definir as relações mercado-oferta de trabalho em cirurgia pediátrica no Brasil. Comparar o perfil profissional do cirurgião pediátrico brasileiro ao perfil deste especialista em outros países. MÉTODOS: Utilizando informações estatísticas fornecidas pelo IBGE, Conselho Federal de Medicina e Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica, definir o perfil de trabalho dos médicos especializados em cirurgia pediátrica no Brasil. RESULTADOS: A demanda de cirurgiões pediátricos trabalhando no Brasil em horário integral é de 850 cirurgiões, caso se considere apenas o atendimento de lactentes e neonatos. Há uma centralização excessiva de cirurgiões pediátricos no sul e sudeste e falta de mão de obra nas regiões norte e nordeste. Os dados quanto ao número de cirurgiões pediátricos atuando no Brasil são conflitantes (dados de pesquisa epidemiológica da FIOCRUZ diferem de dados do CFM e da CIPE). A rotina de trabalho do cirurgião pediátrico no Brasil não é comparável com aquela dos profissionais norte-americanos e europeus, fontes da maior parte dos dados de referência em literatura. CONCLUSÃO: A demanda de cirurgiões pediátricos trabalhando no Brasil em horário integral apenas para atendimento de lactentes e neonatos é de 850 cirurgiões. Existe um desequilíbrio entre oferta e ocupação de postos de trabalho nas diversas regiões do país. O sudeste é um centro de formação de especialistas que exporta profissionais para as demais regiões do país. Os dados quanto ao número de cirurgiões pediátricos atuando no Brasil são conflitantes.

Cirurgia pediátrica; Demanda cirurgiões; Mercado trabalho


OBJECTIVE: To define the distribution of Pediatric Surgeons in Brazil and the distribution of job offered for specialists in the country. To compare the professional profile of Brazilian Pediatric Surgeons with other countries. MEHTODS: Statistical data derived from Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), Brazilian Medical Council (CFM) and Brazilian Society of Pediatric Surgery (CIPE) were used to define the professional profile of pediatric surgeons in Brazil. RESULTS: Eight-hundred-and-five pediatric surgeons are needed in Brazil only to treat neonates and toddlers. Professionals are excessively concentrated in South and Southeast and insufficient numbers are found in North and Northeast. Data about the number of pediatric surgeons working in Brazil are conflicting: data obtained from FIOCRUZ differ from those from CFM and CIPE. The working routine of Brazilian pediatric surgeons is different from that of North-American and European specialists, from where the major part of our references is extracted. CONLCUSION: Brazil needs a minimum of 805 pediatric surgeons working full time only to treat nenonates and toddlers. Specialists are not well distributed throughout the country. The southeast is a training center and exports specialists to the rest of the country. Epidemiological data concerning the distribution of professionals in Brazil are conflicting.

Pediatric surgery; Surgery workforce; Medical job market


ENSINO

Formação e demanda do cirurgião pediátrico no Brasil

Needs and specialization for pediatric surgeons in Brazil

Lisieux Eyer de Jesus, TCBC-RJI; Alexandre Santos AguiarII; Maria do Socorro Mendonça de CamposIII; José Roberto de Sousa BaratellaIV; João Carlos KetzerV; Roberto Antônio MastrotiVI; Antônio Carlos M. AmaranteVII

ICirurgiã Pediátrica do Hospital Universitário Antônio Pedro - Universidade Federal Fluminense - UFF - Niterói - RJ -BR

IICirurgião Pediátrico do Hospital Geral de Pirajussara - Universidade Federal de São Paulo, SP-BR

IIIPreceptora da Residência Médica de Cirurgia Pediátrica do Hospital da Criança/ Obras Assistenciais de Irmã Dulce - BA- BR

IVPresidente da Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica - SP-BR

VCirurgião Pediátrico do Hospital da Criança Conceição - RS-BR

VIProfessor de Cirurgia Pediátrica Faculdade de Ciências Médicas Sta Casa de São Paulo - SP-BR

VIICirurgião Pediátrico do Hospital Infantil Pequeno Príncipe - PR-BR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lisieux Eyer de Jesus E-mail: lisieux@uol.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Definir o perfil epidemiológico dos especialistas em cirurgia pediátrica no Brasil. Definir as relações mercado-oferta de trabalho em cirurgia pediátrica no Brasil. Comparar o perfil profissional do cirurgião pediátrico brasileiro ao perfil deste especialista em outros países.

MÉTODOS: Utilizando informações estatísticas fornecidas pelo IBGE, Conselho Federal de Medicina e Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica, definir o perfil de trabalho dos médicos especializados em cirurgia pediátrica no Brasil.

RESULTADOS: A demanda de cirurgiões pediátricos trabalhando no Brasil em horário integral é de 850 cirurgiões, caso se considere apenas o atendimento de lactentes e neonatos. Há uma centralização excessiva de cirurgiões pediátricos no sul e sudeste e falta de mão de obra nas regiões norte e nordeste. Os dados quanto ao número de cirurgiões pediátricos atuando no Brasil são conflitantes (dados de pesquisa epidemiológica da FIOCRUZ diferem de dados do CFM e da CIPE). A rotina de trabalho do cirurgião pediátrico no Brasil não é comparável com aquela dos profissionais norte-americanos e europeus, fontes da maior parte dos dados de referência em literatura.

CONCLUSÃO: A demanda de cirurgiões pediátricos trabalhando no Brasil em horário integral apenas para atendimento de lactentes e neonatos é de 850 cirurgiões. Existe um desequilíbrio entre oferta e ocupação de postos de trabalho nas diversas regiões do país. O sudeste é um centro de formação de especialistas que exporta profissionais para as demais regiões do país. Os dados quanto ao número de cirurgiões pediátricos atuando no Brasil são conflitantes.

Descritores: Cirurgia pediátrica. Demanda cirurgiões. Mercado trabalho.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To define the distribution of Pediatric Surgeons in Brazil and the distribution of job offered for specialists in the country. To compare the professional profile of Brazilian Pediatric Surgeons with other countries.

MEHTODS: Statistical data derived from Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), Brazilian Medical Council (CFM) and Brazilian Society of Pediatric Surgery (CIPE) were used to define the professional profile of pediatric surgeons in Brazil.

RESULTS: Eight-hundred-and-five pediatric surgeons are needed in Brazil only to treat neonates and toddlers. Professionals are excessively concentrated in South and Southeast and insufficient numbers are found in North and Northeast. Data about the number of pediatric surgeons working in Brazil are conflicting: data obtained from FIOCRUZ differ from those from CFM and CIPE. The working routine of Brazilian pediatric surgeons is different from that of North-American and European specialists, from where the major part of our references is extracted.

CONLCUSION: Brazil needs a minimum of 805 pediatric surgeons working full time only to treat nenonates and toddlers. Specialists are not well distributed throughout the country. The southeast is a training center and exports specialists to the rest of the country. Epidemiological data concerning the distribution of professionals in Brazil are conflicting.

Key words: Pediatric surgery. Surgery workforce. Medical job market.

INTRODUÇÃO

O planejamento da formação de médicos especialistas para atender corretamente à demanda populacional sem que haja excesso de profissionais tem sido sempre uma preocupação nos países avançados. Em geral as associações de especialistas geram estas diretrizes, em conjunto com os conselhos gestores, com atualizações permanentes a partir de revisões periódicas das demandas específicas.

A oferta de vagas para formação é regulada pelo equilíbrio entre demanda e disponibilidade de profissionais, por sua vez determinados por variáveis populacionais, pela demografia de profissionais e, eventualmente, pelo surgimento de novos nichos de atuação a partir de avanços tecnológicos. No caso da Cirurgia Pediátrica a demanda de profissionais depende diretamente do crescimento demográfico (número de crianças na população) e dos encargos específicos do especialista em cirurgia pediátrica em cada sociedade, por exemplo:

1. Se todo o atendimento a crianças será feito por especialistas ou se estes atuarão apenas em casos complexos, malformações incomuns e neonatos, enquanto profissionais generalistas assumem os casos de rotina em crianças mais velhas e o atendimento inicial em casos de trauma infantil (padrão habitual nos países de primeiro mundo).

2. Se o atendimento a doenças urológicas da criança (em torno de 60% da demanda de atendimento em cirurgia pediátrica) será feito por cirurgiões pediátricos (caso do Brasil e alguns países europeus) ou urologistas subespecializados (caso da América do Norte).

3. Se os limites de faixa etária para atendimento pelo cirurgião pediátrico incluirão pacientes pós-puberais até 18 (caso do Brasil, conforme determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) ou 21 anos (EUA).

4. Se os profissionais de cirurgia pediátrica precisarão ou não se envolver no atendimento geral da população, limitando sua disponibilidade para a população pediátrica (caso dos países mais pobres, em especial africanos e asiáticos) 1.

Seria esperado que os conselhos de medicina, Associação Médica Brasileira, Colégio Brasileiro de Cirurgiões e CIPE participassem do controle da formação de cirurgiões pediátricos no Brasil, considerando as diretrizes e projeções de atendimento do Ministério da Saúde (MS) e SUS. No entanto, a oferta de vagas para formação de cirurgiões pediátricos em nosso país e é coordenada direta e inteiramente pelo Ministério da Educação através da Comissão Nacional de Residência Médica desconsiderando, até o momento, ao menos no aspecto formal, as demandas das várias sociedades médicas.

Outro problema tem sido a falta de dados que permitam determinar o contingente profissional disponível versus o que é necessário e planejar de forma correta a distribuição de vagas para formação. As vagas para residência em cirurgia pediátrica têm sido oferecidas no território nacional sem obedecer a nenhum parâmetro técnico ou epidemiológico desde o reconhecimento da cirurgia pediátrica como especialidade no Brasil.

Este trabalho tem o objetivo de mapear as vagas e os níveis de ocupação das residências em cirurgia pediátrica no Brasil. Busca também projetar as necessidades reais de mão de obra especializada no país, a fim de possibilitar estratégias corretas de planejamento da formação.

MÉTODOS

1. Quantificação e mapeamento das vagas de residência médica em Cirurgia Pediátrica no Brasil e suas taxas de ocupação. Dados obtidos através da Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica (CIPE) e Ministério da Saúde, ano base 2007.

2. Quantificação da população pediátrica brasileira e projeção das necessidades de atendimento cirúrgico pediátrico, considerando o número de cirurgiões pediátricos disponíveis no mercado brasileiro e os profissionais egressos da especialização (por ano). Dados obtidos dos censos populacionais do IBGE, CFM e FIOCRUZ.

Para estimar a demanda de atendimento cirúrgico pediátrico buscamos quantificar as incidências das doenças cirúrgicas mais comuns na população infantil, utilizando índices de incidência colhidos em um tratado de Cirurgia Pediátrica amplamente conhecido e adotado2.

RESULTADOS

No ano de 2007 foram oferecidas pelo MS 168 vagas para formação de cirurgiões pediátricos no Brasil, 162 divididas nos anos obrigatórios de R1, R2 e R3 (formação potencial de 54 cirurgiões pediatras/ano). Apenas seis vagas são oferecidas para aperfeiçoamento (R4 e R5), essencialmente em serviços de transplante pediátrico (fonte: CIPE/MS, ano 2007). As vagas são distribuídas geograficamente de forma desproporcional com relação ao território (83% nos estados do Sul e Sudeste) e à população (83% das vagas distribuídas em estados da federação que detêm 68% da população), nenhuma vaga na Região Norte (Tabela 1).

Atualmente temos 70 médicos cursando residência médica em cirurgia pediátrica no Brasil, distribuidos em várias etapas de formação (a taxa de ocupação das vagas oferecidas é de 43%, aproximadamente 23 cirurgiões formados/ano, dependendo da proporção entre R1-2-3-4-5), traduzindo um desinteresse dos cirurgiões jovens na área de cirurgia pediátrica, mercado de trabalho insuficiente e/ou persistência de vagas na grade oficial do MS em serviços que deixaram de oferecer efetivamente formação na especialidade (fonte: CIPE, ano 2007). A grande maioria dos médicos em formação está nas regiões sudeste (35 residentes em São Paulo, quatro em Minas Gerais e oito no Rio de Janeiro) e região sul (dois residentes em Santa Catarina, sete no Paraná e seis no Rio Grande do Sul) (Tabela 1).

O número de profissionais associados à CIPE é de 851. Excluímos da análise 52 profissionais que são sócios remidos, considerando que por sua idade possivelmente estarão aposentados ou exercendo a especialidade em horário restrito. No CFM estão registrados 721 médicos em atividade como especialistas em cirurgia pediátrica. Nem todos estes profissionais se dedicam exclusivamente ao trabalho de especialista ou trabalham em tempo integral. A taxa de afastamento anual é desconhecida. Os grupos de especialistas vinculados à CIPE e ao CFM se superpõem apenas parcialmente, e há profissionais que se declaram cirurgiões pediátricos e não estão registrados no CFM ou na CIPE, embora seja excepcional que um profissional formalmente treinado na área e apto a atuar em cirurgia pediátrica complexa não esteja registrado ao menos em uma das duas instituições. A conclusão evidente é que a estimativa real dos cirurgiões exercendo a cirurgia pediátrica no Brasil pode ser, no máximo, aproximada.

A população brasileira é de 188298099 habitantes, com taxa de natalidade de 21/1000 habitantes/ano e mortalidade infantil de 28/1000 nascidos vivos3 nascem aproximadamente 4000000 crianças/ano em território nacional. Considerando a mortalidade infantil a população é acrescida de aproximadamente 38888000 crianças/ano.

1. Demanda de cirurgia pediátrica básica: aproximadamente 3,5 % da população pediátrica (Incidências consideradas na estimativa: hérnias inguinais 1%, criptorquias 1%, apendicites 0,3%, necessidade de acessos vasculares por intervenção cirúrgica 1%).

2. Demanda de cirurgia pediátrica urológica complexa: aproximadamente 0,5% da população pediátrica (Incidências consideradas na estimativa: hipospádias 0,3%, estenoses de junção ureteropiélica 0,2%).

3. Demanda de cirurgia pediátrica geral complexa: aproximadamente 5% da população pediátrica (Incidências consideradas na estimativa: megacólon agangliônico 0,02%, refluxo gastroesofágico complexo ou da população de encefalopatas 5%)

4. Demanda de cirurgia neonatal: aproximadamente 1,5 % da população pediátrica (Incidências consideradas na estimativa: estenose hipertrófica de piloro 0,02%, atresias intestinais 0,03%, enterocolites necrosantes 0,2% (considerando uma incidência de enterocolite de 10% numa população de 10% de prematuros a partir do total de neonatos e uma taxa de enterocolites cirúrgicas de 20% do total de casos), malformação ano-retal 0,02%, atresia de esôfago 0,03%, gastrosquise 0,02%).

Os números discriminados acima são conservadores, já que as crianças vitimadas pela alta taxa de mortalidade infantil também são atendidas por cirurgiões pediátricos, em especial casos de malformação complexa e pacientes atendidos em unidades de terapia intensiva neonatal. Mesmo sem incluir estes casos a taxa anual potencial de cirurgias neonatais no Brasil é de 58320 cirurgias/ ano.

A demanda anual de cirurgia pediátrica geral na população de 3888000 crianças/ano (taxa de nascimentos anuais sobrevivente às cifras de mortalidade infantil) também é fortemente discutível, já que consideramos aqui exclusivamente doenças típicas e de maior incidência na população pediátrica. Hérnias inguinais, criptorquias, hidronefroses congênitas, hipospádias, megacólon congênito, refluxos gastroesofágicos complexos e acessos vasculares em UTI são caracteristicamente atendidos no primeiro ano de vida. Do grupo de doenças utilizadas como padrão neste trabalho, apenas as apendicites se apresentariam predominantemente em outras faixas etárias. Desta forma, no mínimo 9% da população pediátrica = um ano idade necessita de assistência cirúrgica/ ano, acrescendo à demanda perinatal mais 349920 cirurgias.

Considerando como critério de atividade ideal em centro cirúrgico para um cirurgião pediátrico aproximadamente três cirurgias/dia, quatro dias/semana, 40 semanas/ano cada cirurgião pediátrico realizaria 480 cirurgias/ano. Apresentando-se uma demanda cirúrgica de 408240 cirurgias seriam necessários aproximadamente 850 cirurgiões pediátricos/ano no Brasil, considerando turnos integrais de trabalho, apenas para atender à demanda de cirurgias para pacientes durante o primeiro ano de vida, desconsiderado o tempo de atendimentos clínicos associados aos doentes cirúrgicos e o atendimento além do primeiro ano de vida.

DISCUSSÃO

A demanda de trabalho para o cirurgião pediátrico respeita especificidades nacionais. Os cirurgiões pediátricos brasileiros atendem crianças até os 18 anos de idade (determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei Federal do País) e atuam em todas as doenças cirúrgicas pediátricas, à exceção de doenças oftalmológicas, otorrinolaringológicas, ortopédicas, cardíacas e neurocirúrgicas. Doenças urológicas infantis em geral, cirurgia torácica na infância e várias cirurgias plásticas reconstrutoras para doenças congênitas são atendidas pelos profissionais de cirurgia pediátrica. Especialistas em outras áreas cirúrgicas freqüentemente usam a ajuda dos cirurgiões pediátricos para atender crianças e portadores de malformações congênitas. Esta amplitude de atuação é diferente da maioria dos países europeus e, certamente, da América do Norte, e impede que as demandas de trabalho brasileiras sejam comparadas com dados de literatura quanto à atuação do cirurgião pediatra em países europeus e norteamericanos.

O estoque calculado de atendimento cirúrgico pediátrico operatório na população pediátrica é de aproximadamente 10% da população de crianças. Para avaliar a demanda total de trabalho do cirurgião pediátrico deve ser acrescida a necessidade de atendimento para avaliação clínica, aconselhamento pré-natal, consultas para diagnóstico e seguimento e atendimento ao trauma pediátrico (aproximadamente 10% dos atendimentos em emergência pediátrica, atingindo 0,3% da população pediátrica/ano) 4 .

Esta última vertente é especialmente difícil de quantificar. O cirurgião pediátrico é o profissional com as melhores qualificações para a avaliação da criança traumatizada, como líder do time de atendimento multidisciplinar ao trauma pediátrico, mas o primeiro atendimento da criança traumatizada e a triagem dos níveis de gravidade freqüentemente são feitos por toda uma gama de profissionais médicos emergencistas e a grande maioria de casos de trauma pediátrico necessita principalmente de atendimento ortopédico ou neurocirúrgico.

Os países avançados têm restringido o atendimento do cirurgião pediátrico especialista a casos de doença complexa e neonatos e vêm debatendo a necessidade e a pertinência do atendimento dos casos mais simples de cirurgia em crianças por cirurgiões especializados, considerando os resultados das cirurgias feitas por não especialistas e a inexistência de especialistas em número suficiente para suprir a esta demanda em seus territórios. Vários artigos estão publicados com relação à qualidade de atendimento, custos e resultados de cirurgiões especializados versus cirurgiões gerais 5-6 especialmente em trauma, apendicite, refluxo vesicoureteral7 e estenose hipertrófica de piloro8 , com nítida vantagem para os atendimentos feitos por cirurgiões pediátricos. Alguns autores têm sugerido que na impossibilidade de obter atendimento cirúrgico especializado irrestrito para crianças uma solução intermediária seria prover um treinamento básico em cirurgia pediátrica a profissionais não especializados. Problemas na atuação de cirurgiões não especialistas em atendimento pediátrico devem surgir inexoravelmente nos próximos anos, com a aposentadoria dos profissionais com formação cirúrgica mais geral treinados até os anos 70-80 do século XX, que serão substituídos por médicos sem a mesma frequência de exposição a casos pediátricos, considerando as modificações na formação de base dos cirurgiões gerais 9-10. O grupo de autores deste trabalho acredita que se a qualidade de atendimento ao paciente é melhor se feita pelo profissional especializado, a solução ideal, obviamente, é aumentar a disponibilidade de profissionais para o atendimento, embora isto dependa da empregabilidade e disponibilidade de vagas para formação destes cirurgiões.

Os dados europeus e norteamericanos levam a questionar se os critérios fortemente limitadores da formação de especialistas nestes países estão corretos e destacam a concentração de cirurgiões pediátricos em grandes centros, cidades de maior porte e centros acadêmicos, obrigando a disponibilizar um sistema permanente e eficaz de contra-referência e transporte de crianças em nações de grande extensão territorial, e gerando absenteísmo de trabalho dos pais, dificuldades para o seguimento pós-operatório em doenças de alta complexidade e necessidade de atendimento a outros filhos no caso de remoção da criança doente para locais distantes da residência da família.

Os EUA dispõem de 33 centros de treinamento em cirurgia pediátrica. Apesar das projeções relativamente pessimistas de McNeill et al de que haveria um excesso de cirurgiões pediátricos no país a partir do século XX9 um trabalho recente cataloga cerca de 800 cirurgiões pediátricos em atividade naquele país, com uma deficiência atual de cerca de 200 profissionais e uma queda preocupante no contingente de profissionais jovens interessados na área10 . A crise de formação e disponibilidade de profissionais em cirurgia tem sido tão grave que em alguns países pacientes pediátricos têm sido delegados até a profissionais não médicos, em razão da disponibilidade limitada de especialistas para atendimento: na Inglaterra, por exemplo, postectomias pediátricas têm sido executadas por enfermeiras11 .

Os problemas sociais e familiares causados pela espera longa por procedimentos pediátricos são evidentes. Mais de 80% dos pais canadenses aguardando cirurgias não-urgentes para seus filhos julgam uma demora maior que 3 meses inaceitável e 94% referem grandes doses de estresse familiar nesta situação. Mais de 61% dos doentes envolvidos nesta pesquisa já esperavam por mais de 6 meses pela cirurgia12 .

No Brasil a centralização excessiva do atendimento e formação em cirurgia pediátrica é evidente. A maior parte da força de trabalho está no sudeste-sul do país, determinando limitações no atendimento da população das demais regiões, em especial se considerarmos as grandes distâncias envolvidas, os problemas sociais e trabalhistas das famílias mais pobres (trabalho na agricultura e trabalho informal mediante pagamento puntual), a precariedade dos sistemas de transporte em várias regiões, as restrições de assistência social e as dificuldades práticas na interação entre serviços.

Paradoxalmente, é comum no Brasil a não disponibilidade do profissional de alta especialização para atuação integral na sua área específica de formação. Este problema, típico de países pobres com pouca disponibilidade de médicos em geral ou de falhas de gerenciamento do trabalho médico, determina uma disponibilidade efetiva parcial dos profissionais especializados. Uma causa é a oferta proporcionalmente menor de trabalho para especialistas no serviço público de saúde (SUS), que atende a > 80% da população e é o maior empregador de médicos no país, mas emprega principalmente emergencistas e médicos atuando nas quatro especialidades básicas13. É bastante comum encontrar cirurgiões pediatras trabalhando como cirurgiões gerais, pediatras e/ou emergencistas mesmo em locais em há déficit de atendimento na área. Da mesma forma, é frequente que não esteja disponível a estrutura logística necessária ao trabalho do cirurgião pediátrico (UTI pediátrica, atendimento neonatal clínico, anestesia de alta complexidade).

Conforme a tabela 1 evidencia, a distribuição de cirurgiões pediatras é inadequada no território brasileiro com relação à população: pode-se presumir demanda reprimida em norte e nordeste e, na prática, na região centro-oeste, exceto as cidades de Brasília e Goiânia. Nos parece evidente que esta distribuição de profissionais é determinada pela disponibilidade de mercado, nível de remuneração, estruturação de serviços de apoio e qualidade de vida oferecidos aos profissionais. Em trabalho apresentado no XXIX Congresso Brasileiro de Cirurgia Pediátrica Aguiar et al demonstraram que a distribuição de cirurgiões pediátricos no país é paralela à presença de grupos de medicina privada financiadores da saúde na população14.

Visivelmente o sudeste é um centro formador, notadamente São Paulo. Uma proporção grande dos profissionais formados nesta região migra ou retorna a seus estados de origem para exercer a especialidade.

A crise mundial de formação de profissionais médicos, em especial na área de cirurgia geral e especializada, tem levado a uma escassez de cirurgiões, com projeções pessimistas para um futuro próximo15. A tendência é de estimular a formação, criar e prover uma nova logística no exercício da profissão, respeitando as demandas de qualidade de vida e disponibilidade para atendimento familiar. A profissão de médico tem uma participação progressivamente maior do sexo feminino e os profissionais jovens se inserem num momento social coerente com estas aspirações16. No Brasil metade dos estudantes de medicina é do sexo feminino e originária de famílias com renda familiar elevada17. Considera-se que é imperativo realimentar o interesse dos profissionais jovens nas áreas de cirurgia de alta complexidade, ainda que para isto seja necessário rever os dogmas da prática profissional. Propostas de emprego em carga horária parcial e estímulos salariais à especialização em áreas carentes são coerentes com estas tendências.

O número de candidatos à formação em cirurgia pediátrica diminuiu a cerca de metade nos últimos 5 anos da década de 90 nos EUA18 . No Brasil a crise na formação de cirurgiões de forma geral também é séria19, o que talvez também esteja sendo sinalizado neste trabalho, com praticamente metade das vagas para residência em cirurgia pediátrica ociosas.

Nos EUA o cálculo utilizado de um cirurgião pediátrico:100000 a 200000 crianças (< 21 anos) tem sido considerado ideal, embora seja discutível, já que a base de cálculo é a demanda apenas para cirurgias "especialista-específicas", não considerando qualquer tempo para atividade não operatória do cirurgião18,20. As taxas européias de distribuição de cirurgiões pediátricos/ população (n:100000 população total) em 1995 variavam entre 0,09 (Inglaterra) e 0,8 (Finlândia e Suíça), sugerindo que há uma distribuição deficitária dos profissionais em todo o mundo13. Segundo dados do IBGE a população brasileira até os 19 anos de idade é de aproximadamente 70 milhões, que exigiria aproximadamente 3000 e 6000 cirurgiões pediátricos atuantes, considerando os padrões estadunidenses. Este número atesta a natureza extremamente conservadora dos cálculos que utilizamos na seção material e métodos, propositalmente voltados à avaliação da demanda profissional para o grupo mais específico de lactentes e neonatos. A pesquisa "Perfil dos Médicos do Brasil" detectou (em 1995) 2419 médicos que se autodeclararam cirurgiões pediátricos atuantes, distribuídos entre as regiões norte, nordeste, sudeste, sul e centro oeste (respectivamente 64, 302, 1665, 282 e 106 profissionais). Este número seria acrescido de cerca de 350 profissionais em 2007, considerando as taxas atuais de formação, embora a determinação final do número de cirurgiões atuantes dependa do reconhecimento do quantitativo de profissionais afastados por aposentadoria ou remanejamento voluntário da carreira. Existe uma discordância entre os dados de profissionais registrados nesta pesquisa e o número de profissionais registrados como cirurgiões pediátricos no Conselho Federal de Medicina e na Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica, que talvez se deva à não obrigatoriedade legal de título de especialista ou vinculação com sociedades de especialidade para o exercício de especialidades no Brasil. Uma grande proporção dos profissionais que se auto-identificam como especialistas presumivelmente, não teve formação de especialidade completa em instituições oficialmente reconhecidas. Embora não tenhamos podido obter comprovação deste dado, dificilmente estes profissionais atuam em áreas de alta complexidade.

O Brasil forma atualmente 32 cirurgiões pediátricos por ano. Dados dos EUA sugerem que cerca de 30 novos cirurgiões ingressam por ano no mercado profissional americano10 .

Outro aspecto a ser discutido é a pequena oferta para aperfeiçoamento. É necessário discutir a demanda por mais vagas em território nacional, em especial nas áreas de urologia, traumatopediatria, transplantes, cirurgia minimamente invasiva e cirurgia oncológica pediátrica. A partir do ano de 2009 a CIPE passou a oferecer cursos de aperfeiçoamento em áreas específicas, nas áreas de cirurgia urológica, neonatal e atendimento a queimados, apenas para cirurgiões pediátricos e em centros quaternários de atendimento, além das vagas de formação em medicina de transplantes. A qualificação de profissionais é importante para fomentar núcleos de pesquisa e atualização permanente aptos a implementar e difundir os progressos da especialidade para os centros de menor sofisticação e entidades primariamente assistenciais (educação continuada). Alternativamente, programas de intercâmbio sistemático de profissionais entre centros nacionais ou com centros internacionais poderiam resolver o problema da não-uniformização da qualidade de atendimento.

Este trabalho apresenta algumas limitações sérias.

1. Não foi computada a carga de trabalho de um cirurgião pediatra usada em atendimento não operatório, que é extremamente difícil de medir, embora tenhamos tentado considerar esta variável calculando a atuação cirúrgica quatro dias por semana (considerando o 5º dia útil como reservado para consultas, pareceres, plantão presencial ou sobreaviso) e tenhamos utilizado a idéia de que o ato operatório é absolutamente exclusivo do cirurgião, enquanto que atendimentos clínicos para seguimento e pareceres podem ser auxiliados por outros profissionais médicos.

2. O exercício "ideal" de três cirurgias/dia/cirurgião depende de variáveis logísticas nos centros cirúrgicos e do nível de complexidade das cirurgias e atos anestésicos propostos, variando entre os centros de atendimento (alta, baixa e média complexidade).

3. Nossos cálculos estão limitados às incidências médias apenas de doenças de alta incidência e/ou específicas da população pediátrica, obtidos a partir de literatura internacional. Esta aproximação conservadora tende a subestimar a necessidade de cirurgiões pediátricos para atendimento da população infantil e pode apresentar erros caso a incidência diferencial de alguma das doenças seja substancialmente diferente na população brasileira.

4. Certamente há profissionais especializados trabalhando como cirurgiões pediátricos sem registro na CIPE ou no CFM, em virtude de não haver exigência legal a respeito: dependendo da proporção destes profissionais com relação aos registrados e, inegavelmente, da complexidade dos procedimentos que possam exercer, podemos ter superestimado a necessidade de profissionais, embora isto seja fortemente improvável, principalmente no que concerne às cirurgias neonatais ou de alta complexidade.

5. A metodologia proposta aqui para os cálculos é, até o momento, inédita em literatura, e a crítica metodológica é necessária.

Há flagrantes desequilíbrios na distribuição de cirurgiões pediátricos no Brasil. É necessário um esforço de integração entre a CIPE, a AMB, o CBC, o CFM e os Ministérios da Educação e da Saúde no sentido de equilibrar melhor demanda de trabalho, distribuição de postos de trabalho e vagas para formação de especialistas a partir de parâmetros epidemiológicos, naturalmente, provendo uma estrutura de trabalho suficiente para atrair e empregar um cirurgião pediátrico nas regiões onde exista uma demanda reprimida. Afinal, atender ao estabelecido no protocolo de Kyoto 21 é o objetivo principal e final do trabalho do cirurgião pediátrico: uma criança tem necessidades específicas, do ponto de vista psicológico, metabólico e anatômico, e toda criança doente tem o direito de ser tratada num ambiente apropriado por profissionais adequadamente treinados para obter os melhores resultados, com um mínimo de seqüelas físicas e mentais.

Agradecimentos

Agradecemos ao colega Edevard Araújo pela grande ajuda para a coleta de dados e como crítico e estimulador deste trabalho.

Recebido em 01/12/2008

Aceito para publicação em 05/01/2009

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhuma

Trabalho realizado na Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica - Comissão de Ensino e Título de Especialista.

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  • Endereço para correspondência:

    Lisieux Eyer de Jesus
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009

    Histórico

    • Recebido
      01 Dez 2008
    • Aceito
      05 Jan 2009
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