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Privacidade compartilhada: paradoxos e tensões no cotidiano “hosteleiro”

Shared privacy: paradoxes and tensions in the daily life of hostels

Privacidad compartida: paradojas y tensiones en la vida cotidiana de los hostales

Resumo

Este artigo objetiva compreender de que maneira a privacidade se manifesta em hostels, verificando os paradoxos e tensões que emergem no cotidiano destes meios de hospedagem compartilhados. A metodologia, de natureza qualitativa, envolveu pesquisa de campo em três hostels, selecionados por critérios previamente estipulados, localizados na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Além da observação, foram realizadas entrevistas com 18 hóspedes e 6 anfitriões. Os dados coletados foram sistematizados e analisados por meio da análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), sendo esta técnica complementada com o auxílio do software NVivo. Os resultados da pesquisa evidenciaram que o quarto, mesmo compartilhado, representa o primeiro passo na caminhada para a privacidade dos sujeitos, sendo o mobiliário cama o principal local para sua concretização. Os hóspedes utilizam diferentes estratégias para resguardar a privacidade. Quanto aos paradoxos e tensões que a desafiam, os resultados da pesquisa de campo indicam que os principais são os ruídos, a desordem verificada nos quartos e na cozinha, dificuldades relacionadas ao uso coletivo do banheiro, a nudez, a intimidade sexual nos quartos compartilhados e o convívio com pessoas com hábitos e origens diversas. No entanto, neste meio de hospedagem complexo e ambíguo que é o hostel, foi constatado que o quarto pode ser, também, um espaço que possibilita um processo de trocas valorizado pelos hóspedes. Isso se deve, especialmente, às práticas de lazer e comensalidade experimentadas pelos sujeitos que ocupam temporariamente aquele território, e ao intercâmbio de experiências sobre os atrativos turísticos da capital mineira.

Palavras-chave
Hostel; Ambientes compartilhados; Privacidade; Hóspedes; Anfitriões

Abstract

This article aims to understand how privacy can be seen in hostels, verifying the paradoxes and tensions that emerge in the daily life of these shared accommodations. The methodology is qualitative and involved field research in three hostels, selected by previously stipulated criteria, located in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. In addition to observation, interviews were carried out with 18 guests and 6 hosts. The collected data were systematized and analyzed using the content analysis proposed by Bardin (2011), this technique being complemented with the NVivo software. The research results showed that the bedroom, even if shared, represents the first step in the journey towards the subjects' privacy and the bed is the main place for its realization. As for the paradoxes and tensions that challenge privacy, the results of the field research indicate that the main ones are the noise, the disorder in rooms and in the kitchen, difficulties related to the collective use of the bathroom, nudity and sexual intimacy in shared rooms and living with people with different habits and origins. However, in this complex and ambiguous means of accommodation, it was found that the room can also be a space that allows a process of shared moments valued by the guests. This occurs, especially, due to the leisure and commensality practices experienced by the subjects who temporarily occupy that territory, and due to the exchange of experiences about the tourist attractions of the capital of Minas Gerais.

Keywords
Hostel; Shared spaces; Privacy; Guests; Hosts

Resumen

El artículo tiene como objetivo comprender cómo se manifiesta la privacidad en los hostales, verificando las paradojas y tensiones que emergen en la vida cotidiana de este alojamiento compartido. La metodología, de carácter cualitativo, implicó una investigación de campo en tres hostales, seleccionados por criterios previamente estipulados, ubicados en la ciudad de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Además de la observación, se realizaron entrevistas con 18 huéspedes y 6 anfitriones. Los datos recolectados fueron sistematizados y analizados mediante el análisis de contenido propuesto por Bardin (2011), siendo esta técnica complementada por el software NVivo. Los resultados de la investigación mostraron que el dormitorio representa el primer paso en el viaje hacia la intimidad de los sujetos, siendo la cama el lugar principal para su realización. Los huéspedes utilizaron diferentes estrategias para garantizar un mínimo de privacidad. Los resultados de la investigación de campo indican que las principales paradojas y tensiones que desafían la privacidad son el ruido, el desorden verificado en las habitaciones y en la cocina, las dificultades relacionadas con el uso colectivo del baño, la desnudez, la intimidad sexual en las habitaciones compartidas y la convivencia con personas de costumbres y procedencias diferentes. Sin embargo, en ese medio de alojamiento complejo y ambiguo que es el hostal, la habitación también puede ser un espacio que permita un proceso de intercambio valorado por los huéspedes. Esto se debe especialmente a las prácticas de ocio y comensalidad vividas por los sujetos que ocupan temporalmente ese territorio, y al intercambio de experiencias sobre los atractivos turísticos de la capital de Minas Gerais.

Palabras clave
Hostal; Espacios compartidos; Privacidad; Huéspedes; Anfitrión

1 INTRODUÇÃO

De que maneira um espaço e a vida que nele habita aceitam dividir-se com estranhos.

(Camargo, 2006Camargo, L. O. L. (2006). Hospitalidade sem sacrifício? O caso do receptivo turístico. Revista Hospitalidade, São Paulo, 3(2), p. 11-28., p.2).

Este artigo abraçou o desafio de compreender a dinâmica social tecida em hostels, levando em conta a complexidade das relações humanas manifestadas neste espaço. Um hostel consiste em um meio de hospedagem caracterizado pela tônica do compartilhamento de ambientes com potencial para propiciar o convívio entre pessoas distintas, provenientes de diversas localidades e, como sugerido pela citação acima, “estranhas” umas às outras.

Conforme destacado por autores brasileiros e estrangeiros, geralmente o hostel é conhecido como um espaço propício para os sujeitos envolvidos criarem vínculos, formar amizades e estabelecer trocas culturais (Thomazi, 2019Thomazi, M. R. (2019). Hostel: território de hospedagem marcado pela trama turístico-comunicacional. Dissertação de Mestrado. Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.; Pereira, 2019Pereira, J. K. C. (2019). Hostels belorizontinos e lisboetas: um panorama acerca da oferta das práticas de lazer. In Anais Coletânea do I Colóquio Interdisciplinar de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, MG. https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021.32471
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; Bahls, 2018Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual. Itajaí: Univali.; Cró, 2018Cró, S. R. G. (2018). A influência da segurança no preço dos hostels: aplicação do modelo de preços hedónicos. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.09.225
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; Silva, 2018Silva. I. M. (2018). O mundo não é tão grande: uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração. Fortaleza: Imprensa Universitária.; Bahls & Pereira, 2017Bahls, A. A. D. S. M., & Pereira, Y. C. C. (2017). Hostel: o estado da arte e considerações para futuras pesquisas. Caderno Virtual de Turismo, 17(3), p. 50-65. http://dx.doi.org/10.18472/cvt.17n3.2017.1142
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; Mané, 2017Mané, A. N. M. (2017). Atributos motivacionais na escolha de hostels como meios de hospedagem. 2017. 92f. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2019.05.446
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; Simpson, 2015Simpson, D. M. (2015). Richard Schirrmann: the man who invented youth hostels. Derbyshire: Duncan M Simpson.; Saraiva, 2013Saraiva, A. V. N. (2013). Hostels independentes: o caso de Lisboa. 2013. Dissertação de Mestrado. Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Estoril, Portugal. https://doi.org/10.25145/j.pasos.2019.17.074
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; Volante, 2011Volante, P. J. T. (2011). O segmento low-cost da indústria hoteleira em Portugal: o caso dos hostels. Lisboa: ISCTE.; Hetch & Martin, 2006Hetch, J., & Martin, D. (2006). Backpacking and hostel-picking: an analysis from Canada. International Journal of Contemporary Hospitality Management, 18(1), p. 69-77. https://doi.org/10.1108/09596110610641993
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; Giaretta, 2003Giaretta, M. J. (2003). Turismo da juventude. São Paulo: Manole.; Mcculloch, 1992Mcculloch, J. (1992). The Youth Hostels Association: precursors and contemporary achievements. Journal of Tourism Studies, 3(1), p. 22-27.). Muitas publicações sobre o tema enfatizam essa carga valorativa do fenômeno, fazendo com que os hostels sejam considerados como espaços de sociabilização.

Uma análise de publicações sobre o objeto da presente pesquisa – hostel – evidencia lacunas na produção científica, notadamente no que diz respeito à complexidade que o convívio com o outro pode implicar neste meio de hospedagem. Além da formação de laços sociais, nestes ambientes coletivos podem emergir desafios e tensões, sobretudo em termos da privacidade dos hóspedes. É preciso, pois, analisar o contexto de hostels como uma forma de aprofundar conhecimentos acerca da dinâmica social ali tecida.

Em face desse cenário, faz-se necessário pesquisar os diferentes aspectos que perpassam o “ambiente hosteleiro”. Hostel ainda é um tema embrionário nas pesquisas acadêmicas na área do Turismo e, geralmente, estão circunscritas ao eixo Rio-São Paulo, que, no Brasil, concentra a maioria dos estudos sobre o assunto. Isso evidencia a relevância de aprofundar conhecimentos sobre este meio de hospedagem e ir além, considerando diferentes contextos, assim como os diferentes aspectos que o perpassam.

Isto posto, a presente pesquisa objetiva compreender de que maneira a privacidade se manifesta em hostels, verificando os paradoxos e tensões que emergem no cotidiano destes meios de hospedagem compartilhados. O principal desafio desta discussão consiste em trazer à tona o que emerge do processo de interagir com “estranhos” nessas acomodações coletivas.

Este artigo se subdivide em quatro partes. O tópico a seguir contextualiza o hostel e retoma os debates teórico-conceituais que, geralmente, fundamentam o tema. Na sequência, detalha-se a metodologia adotada na pesquisa. Subsequente a isso, são apresentados os resultados e discussões, e por último, são feitas algumas considerações finais.

2 REVISÃO TEÓRICA

Recorrentemente, o professor alemão Richard Schirrmann é destacado em publicações brasileiras e estrangeiras sobre hostel como o idealizador deste meio de hospedagem compartilhado (Pereira & Gomes, 2020Pereira, J. K. C., & Gomes, C. (2020). Panorama virtual dos hostels Belo-Horizontinos no contexto da pandemia de covid-19. Ateliê Do Turismo, 4(2), p. 72-94., 2021Pereira, J. K. C. & Gomes, C. L. (2021). Mapeamento do estado da arte sobre hostel no cenário luso-brasileiro (2015-2019). Revista Hospitalidade, 18(1), p. 47-66.; Thomazi, 2019Thomazi, M. R. (2019). Hostel: território de hospedagem marcado pela trama turístico-comunicacional. Dissertação de Mestrado. Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.; Silva, 2018Silva. I. M. (2018). O mundo não é tão grande: uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração. Fortaleza: Imprensa Universitária.; Bahls, 2015Bahls, A. A. D. S. M. (2015). Hostel: Proposta conceitual, análise socioespacial e panorama atual em Florianópolis (SC). Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil. https://doi.org/10.18226/21789061.v11i3p709
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, 2018Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual. Itajaí: Univali.; Simpson, 2015Simpson, D. M. (2015). Richard Schirrmann: the man who invented youth hostels. Derbyshire: Duncan M Simpson.; Volante, 2011Volante, P. J. T. (2011). O segmento low-cost da indústria hoteleira em Portugal: o caso dos hostels. Lisboa: ISCTE.; Satyro & Pinheiro, 2006Satyro, A. G., & Pinheiro, Z. (2006). Os albergues independentes como um novo meio de hospedagem e prestação de serviços. Estudo de caso: Red Hostel. UNOPAR Científica Ciências Jurídicas e Empresariais. Londrina, 7, p. 31-38. https://doi.org/10.17921/1517-9427.2015v16n2p174-179
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; Giaretta, 2003Giaretta, M. J. (2003). Turismo da juventude. São Paulo: Manole.; Mcculloch, 1992Mcculloch, J. (1992). The Youth Hostels Association: precursors and contemporary achievements. Journal of Tourism Studies, 3(1), p. 22-27.; Heath, 1962Heath, G. (1962). Richard Schirrmann: the first youth hosteller. Copenhagen: International Youth Hostel Federation. https://doi.org/10.1108/09596110610641993
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). Ativista social e professor de história natural, Schirrmann realizava trabalhos de campo e visitas técnicas com os seus alunos pelo interior da Alemanha. O objetivo dessas expedições era propiciar o contato dos discentes com o ambiente externo, especialmente com a natureza, pois Schirrmann “[...] queria que seus alunos realmente aprendessem, sentissem, entendessem e explorassem o mundo” (Simpson, 2015Simpson, D. M. (2015). Richard Schirrmann: the man who invented youth hostels. Derbyshire: Duncan M Simpson., p. 2).

De acordo com o autor supracitado, Schirrmann considerava que o aprendizado proporcionado pelos livros seria potencializado por meio da observação, da análise e da aprendizagem em grupo. O professor distinguia a viagem como um elemento crucial para compor o seu método de ensino. Seu planejamento pedagógico incluía um programa diversificado de viagens pelos territórios alemães, de modo que os alunos pudessem se hospedar em espaços compartilhados e que não requeriam grandes somas de dinheiro (Simpson, 2015Simpson, D. M. (2015). Richard Schirrmann: the man who invented youth hostels. Derbyshire: Duncan M Simpson.; Bahls, 2015Bahls, A. A. D. S. M. (2015). Hostel: Proposta conceitual, análise socioespacial e panorama atual em Florianópolis (SC). Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil. https://doi.org/10.18226/21789061.v11i3p709
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). Esses meios de hospedagem coletivos que acolhiam o professor e seus jovens alunos são, dessa forma, considerados os “precursores” dos hostels.

Vale salientar que, em 1932, Schirrmann foi o primeiro presidente eleito da Federação Internacional de Albergues da Juventude (International Youth Hostel Federation, IYHF), criada neste mesmo ano na ocasião de em um evento realizado em Amsterdã. Por valorizar os ideais de amizade mútua dos jovens estudantes de diferentes países e o respeito às diferenças de classe social e gênero, entre outras, o professor teve divergências com o regime nazista em ascensão na Alemanha e foi perseguido, o que culminou em sua renúncia ao cargo de presidente da IYHF cinco anos depois. Schirrmann inseriu-se novamente neste campo após a segunda Guerra mundial, sendo eleito presidente honorário da Associação Alemã de Albergues da Juventude em 1949. As iniciativas do professor Schirrmann foram fundamentais para a consolidação das acomodações coletivas encarregadas de acolher jovens estudantes, no decorrer de suas viagens (Heath, 1962Heath, G. (1962). Richard Schirrmann: the first youth hosteller. Copenhagen: International Youth Hostel Federation. https://doi.org/10.1108/09596110610641993
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).

Como se percebe, é comum atribuir raízes estudantis ao hostel. Isso se deve ao fato deste tipo de acomodação ser concebido para receber estudantes a um custo reduzido, ou até mesmo sem custo, quando participavam das excursões e trabalhos de campo desenvolvidos pelo professor Schirrmann. Além disso, a “filosofia deste meio de hospedagem ficou conhecida como uma forma de interação, de fazer novas amizades”, sendo o hostel difundido como um espaço de sociabilidade (Satyro & Pinheiro, 2006Satyro, A. G., & Pinheiro, Z. (2006). Os albergues independentes como um novo meio de hospedagem e prestação de serviços. Estudo de caso: Red Hostel. UNOPAR Científica Ciências Jurídicas e Empresariais. Londrina, 7, p. 31-38. https://doi.org/10.17921/1517-9427.2015v16n2p174-179
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, p. 33).

Ao analisar estudos e pesquisas publicados sobre hostel, averiguou-se certa incipiência teórico-conceitual acerca do fenômeno, em especial no contexto brasileiro. No entanto, cabe destacar que há uma tendência, nos debates bibliográficos, em abordar o hostel sob distintas perspectivas. Conforme será tratado a seguir, além do tema ser complexo e multifacetado, é passível de diferentes interpretações, visões e subjetivações que perpassam tempos, espaços e práticas.

Para alguns autores, o hostel é considerado um segmento do low-cost no setor de hospedagem, ou seja, de baixo custo. Dessa maneira, quando comparado a outros empreendimentos deste setor, o hostel é considerado um tipo de acomodação que cobra preços reduzidos pela hospedagem. Para Tavares e Brea (2017, p.3) por exemplo, “os hostels surgiram dentro do movimento modernista do segmento da indústria hoteleira low-cost”. Diante disso, muitas vezes, o hostel é tratado apenas como um tipo de alojamento de baixo custo, sendo constantemente associado a essa expressão. Tal particularidade abre espaço para o entendimento do hostel como um tipo de acomodação mais “barata”. Assim, é comum associar os hostels a termos como “econômicos”, “baratos” ou “acessíveis”.

De fato, a fragmentação do quarto possibilita uma redução nas tarifas dos hostels em comparação com outros meios de hospedagem. Embora afinidades com o low-cost possam ser observadas, diversos autores não seguem esta terminologia. Assim, o processo de transformação dos quartos em dormitórios coletivizados é que culmina em precificações mais baixas, e não o contrário.

Outro aspecto importante de ser mencionado refere-se às raízes mochileiras do hostel. Autores como Tavares e Brea (2017, p.3) consideram que os hostels estão “associados ao turismo de jovens mochileiros ou backpackers e a alguns turistas internacionais independentes, que viajam com um orçamento restrito e procuram um alojamento mais barato”. Seguindo essa linha, Volante (2011, p.15)Volante, P. J. T. (2011). O segmento low-cost da indústria hoteleira em Portugal: o caso dos hostels. Lisboa: ISCTE. afirma que a denominação backpacker é utilizada em nível mundial “para descrever os turistas que viajam de maneira independente, flexível e econômica”.

Para Nash et al. (2006), os hostels estimularam mochileiros a frequentarem tais espaços. Macedo (2018), por sua vez, acredita que esta acomodação está diretamente relacionada ao perfil de hóspede: “mochileiro”. Segundo a autora, este tipo de turista é conhecido por ser geralmente jovem e permanecer por um período maior no destino visitado. Além disso, carrega tendências como viajar para outras localidades na mesma destinação, utilizar transporte público e serviços locais – o que, via de regra, acaba favorecendo o turismo e a economia local.

No entanto, não apenas o denominado mochileiro busca se acomodar em hostels, pois, sujeitos de distintos perfis também se hospedam nestes locais. Geralmente, os diferentes hóspedes de hostels carregam a tônica da interação, buscando conhecer pessoas das mais diversas origens e culturas.

Assim entendido, o hostel é um meio de hospedagem regido pela coletividade e pelas interações humanas, carregando em si uma mescla de pessoas, culturas e histórias de vidas. Infinitas são as práticas que podem emergir desse emaranhado de noções que, juntas, formam um “caldeirão polissêmico” materializado no contexto do hostel. “São pessoas de línguas, idades, opções sexuais [sic] e ideologias diferentes, procurando conversar e estabelecer vínculos. Dividindo gostos, compartilhando culturas, mediando diferenças e semelhanças” (Falcão, 2015Falcão, D. (2015). Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”. Caderno Virtual de Turismo, 16(3), p. 76-90. http://dx.doi.org/10.18472/cvt.16n3.2016.1066
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, p.10).

Os sujeitos que optam por acomodações coletivas geralmente são mais abertos à tessitura de vínculos, mesmo que estes sejam fugazes e dotados de uma efemeridade latente. A motivação pelo encontro com outras pessoas neste contexto se ancora, geralmente, no anseio por conhecer o diferente, na experiência da alteridade, na circulação de ideias e sentimentos, assim como na possibilidade de propiciar aprendizagens (Falcão, 2015Falcão, D. (2015). Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”. Caderno Virtual de Turismo, 16(3), p. 76-90. http://dx.doi.org/10.18472/cvt.16n3.2016.1066
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).

Similarmente, a tendência para conhecer outros viajantes é, para Abrantes (2016)Abrantes, J. M. O. F. (2016). O contributo das companhias aéreas de baixo custo para o desenvolvimento dos hostels nas cidades de Lisboa e Porto. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.11.241
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, umas das características inerentes a este tipo de hospedagem. Para proporcionar a interação, muitos hostels contam com uma estrutura que facilita o compartilhamento. Nesse sentido, um hostel contempla quartos coletivos, salas e outros espaços de convivência para que os sujeitos possam interagir no decorrer da estadia. Apesar da diversidade ser uma das marcas distintivas das pessoas interessadas em se hospedar em hostels, singularidades e regularidades também podem ser percebidas nesses locais (Silva, 2015Silva. I. M. (2018). O mundo não é tão grande: uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração. Fortaleza: Imprensa Universitária.).

Normalmente, este empreendimento oferece “[...] mais e melhores oportunidades para os hóspedes socializarem e conhecerem pessoas de diferentes culturas, dada a existência de áreas comuns e dormitórios” (Cró, 2018Cró, S. R. G. (2018). A influência da segurança no preço dos hostels: aplicação do modelo de preços hedónicos. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.09.225
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, p. 42). Contudo, a maioria das facilidades disponibilizadas pelos hostels requer abertura para conviver com pessoas e para partilhar objetos e ambientes. Nesse sentido, em um hostel os “viajantes podem alugar uma cama (normalmente em beliche), num quarto com outros hóspedes. Além da cama, todas as outras facilidades são partilhadas entre os hóspedes, incluindo a casa de banho e a cozinha.” (Abrantes, 2016Abrantes, J. M. O. F. (2016). O contributo das companhias aéreas de baixo custo para o desenvolvimento dos hostels nas cidades de Lisboa e Porto. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.11.241
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, p.189).

Obviamente, desafios podem emergir deste convívio diário com pessoas “estranhas”, culminando em conflitos a serem enfrentados no cotidiano da hospedagem. Não é preciso apenas “seguir as normas para utilização e boa convivência do espaço, mas também procurar compreender as delimitações invisíveis dos espaços individuais de cada um” (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.35-36). Para a autora, ainda que cada indivíduo seja dotado de características próprias à sua personalidade e apresente condutas éticas e culturais distintas, a convivência de diferentes sujeitos é inevitável em um hostel.

Camargo (2015)Camargo, L. O. de L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, p. 42-69. discorre sobre o que se espera quando nos defrontamos com o estranho e propõe reflexões sobre os sentidos e os significados que resultam desse encontro na trama hospitaleira. Em suas palavras, “tudo se passa como se o sentido mais importante da noção seja perguntar-se se esse encontro resultou em estreitamento ou esgarçamento do vínculo social de início buscado” (p.3).

Em suma, desde sua gênese como um meio de acomodação coletiva encarregada de acolher jovens estudantes, o hostel pode ser concebido como um espaço social cuja dinâmica precisa ser investigada e aprofundada na área do Turismo, dada a incipiência de estudos e pesquisas sobre essa temática. O pluralismo de sujeitos se mostra inerente a este meio de hospedagem, que contempla diferenças geracionais, de gênero, socioeconômicas e culturais, entre outras, que coexistem no mesmo ambiente. Se por um lado essa teia relacional humana leva ao entrelaçamento de práticas e possibilita a constituição de vínculos sociais e amizades, por outro lado muitas tensões e atritos podem emergir do convívio entre pessoas distintas.

O presente artigo se debruça, justamente, sobre esses aspectos ainda pouco discutidos nas publicações sobre hostel, seguindo a metodologia que será apresentada a seguir.

3 METODOLOGIA

De natureza qualitativa, esta investigação dividiu o percurso metodológico em três momentos, a saber: pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo com observações e entrevistas e, por último, análise dos dados coletados. Para aprofundar o objeto investigado, primeiramente, realizou-se um levantamento na plataforma de hospedagem intitulada Booking, eleita por ser considerada uma referência internacional no que se refere a meios de hospedagens. Esta estratégia objetivou conhecer a realidade quantitativa dos estabelecimentos categorizados como hostel em Belo Horizonte, cidade eleita como lócus para a realização da pesquisa com o intuito de contribuir com a produção acadêmica sobre o tema, que, conforme ressaltado, geralmente focaliza o eixo Rio-São Paulo.

A seleção dos espaços investigados foi guiada pelos seguintes critérios: a) localização central, b) proximidade de atrativos turísticos e c) disponibilização de atividades de lazer. O primeiro critério foi definido pelo fato de ser considerado um dos fatores determinantes na escolha de meios de hospedagem por facilitar o deslocamento dos sujeitos nas localidades escolhidas para visitação. Estudos no campo do turismo, por exemplo, esclarecem que a localização é um dos principais requisitos para se qualificar um determinado tipo de alojamento (Souza, Batista & Gomes, 2020Souza, A. C., Batista K. R. M., & Gomes, S. C. (2020). Hospedagens para turistas a negócios: quais atributos importam? Revista Iberoamericana de Turismo-RITUR, Penedo, 10(1), p. 202-220.; Macedo, 2018; Joia & Caravassilakis, 2015Joia, P. R., & Caravassilakis, A. A. C. (2015). Espacialidade dos meios de hospedagem nas cidades de Aquidauana e Anastácio-MS. Espaço Plural, 11(32), p. 243-27.; Cirer Costa, 2013Cirer Costa, J. C. (2013). Price formation and market segmentation in seaside accommodations. International Journal of Hospitality Management, 33(1), p. 446-455. https://doi.org/10.1016/j.ijhm.2012.11.004
https://doi.org/10.1016/j.ijhm.2012.11.0...
; Lee & Jang, 2012Lee, S. K., & Jang, S. (2012). Premium or Discount in Hotel Room Rates? The Dual Effects of a Central Downtown Location. Cornell Hospitality Quarterly, 53(2), p. 165-173. https://doi.org/10.1177/1938965512441056
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; Chan e Wong, 2006Chan, E. S. W., & Wong, S. C. K. (2006). Hotel selection: when price is not the issue. Journal of Vacation Marketing, 12(2), p. 142-159. https://doi.org/10.1177/1356766706062154
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).

A localização é considerada, na plataforma Booking, como um atributo representativo para a escolha de hostels em Belo Horizonte. Um exemplo disso se refere à presença da “localização central” na categoria “área favorita dos hóspedes”, descrita na plataforma como o filtro mais utilizado pelos potenciais clientes.

A proximidade de atrativos turísticos é outro critério de relevância para esta pesquisa porque os hóspedes buscam praticidade e agilidade, elegendo locais que possam ser facilmente percorridos até os atrativos turísticos, restaurantes, supermercados e feiras, entre outros locais (Presser et al., 2016). A plataforma Booking evidencia que o filtro “passeios a pé” é um dos aspectos mais valorizados nas avaliações dos hóspedes que irão se hospedar em hostels.

“Disponibilização de atividades de lazer” foi eleita como um critério porque, de acordo com as publicações consultadas nesta pesquisa, muitos hostels oferecem práticas de lazer, sejam elas realizadas dentro ou fora deste meio de hospedagem (Pereira, 2019Pereira, E. T. (2019). A experiência de brincadeira. In Gomes, C. L., Debortoli, J. A. O., & Silva, L. P. (Org.). Lazer, práticas sociais e mediação cultural (Cap.3, pp.43-54). Campinas: Autores Associados.; Bahls, 2018Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual. Itajaí: Univali.; Canan, Ferreira, Casagranda, 2017; Silva, Kohler, 2015). Estudos apontam que a oferta programada e continuada de atividades de lazer e eventos é comum neste tipo de empreendimento e, quase sempre, isso é disponibilizado gratuitamente ou com um custo acessível (Pereira, 2019Pereira, J. K. C. (2019). Hostels belorizontinos e lisboetas: um panorama acerca da oferta das práticas de lazer. In Anais Coletânea do I Colóquio Interdisciplinar de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, MG. https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021.32471
https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021....
; Bahls, 2015Bahls, A. A. D. S. M. (2015). Hostel: Proposta conceitual, análise socioespacial e panorama atual em Florianópolis (SC). Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil. https://doi.org/10.18226/21789061.v11i3p709
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, 2018Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual. Itajaí: Univali.). Além de aproximarem os hóspedes da cultura local e da cidade visitada, os lazeres acabam facilitando a interação entre esses sujeitos.

Três hostels de Belo Horizonte atenderam todos os critérios preestabelecidos e concederam anuência institucional para a pesquisa. Os hostels selecionados foram denominados de HB1, HB2 e HB3. O trabalho de campo desenvolvido nesses três empreendimentos contou com observações in loco e entrevistas com hóspedes e funcionários.

Para efetuar as observações, a pesquisadora permaneceu no hostel como se fosse uma hóspede, mimetizando-se em cada espaço investigado. Assim, foi possível percorrer livremente os ambientes e interagir com as pessoas ali inseridas. Muitos hóspedes iniciavam conversas informais com a pesquisadora e essa aproximação foi fundamental para que, posteriormente, o real motivo de sua presença no hostel fosse revelado, seguido de um convite para participar da investigação.

De maneira geral, as observações seguiram a estratégia de “olhar de perto e de dentro”, buscando compreender os “atores sociais em seus múltiplos, diferentes e criativos arranjos coletivos” (Magnani, 2002Magnani, J. G. C. (2002). De Perto e de Dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, 17(49), p. 11-29. https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002
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, p.8). Isso permitiu observar procedimentos, comportamentos, atitudes não verbais e diferentes práticas dos sujeitos nos espaços investigados. As observações foram feitas nos dias de maior movimentação, ou seja, de quinta-feira a domingo, iniciando-se pela manhã e findando-se quando os hóspedes se ausentavam, seja para dormir ou para fazer alguma programação noturna fora do hostel. Observou-se a movimentação e o esvaziamento do local, o ir e vir de cada hóspede, os momentos de check-in e check-out, as demandas e demais situações cotidianas em cada hostel, seguindo as dinâmicas salientadas a seguir.

No HB1, a sala era conjugada com a cozinha e estava próxima à recepção. Dali foi possível observar o dia a dia de hóspedes e “anfitriões”, termo escolhido pelos próprios funcionários para designar sua função no hostel. A sala também permitia acompanhar o que ocorria na recepção, verificando como os anfitriões lidavam com as demandas recebidas, fossem elas presenciais ou por meio de chamadas telefônicas. Podia-se observar, ainda, as práticas e interações estabelecidas entre esses sujeitos.

As observações no HB2 foram realizadas principalmente na varanda. Este era o local mais movimentado do hostel, sendo constante a presença tanto de hóspedes como de anfitriões. Dali foi possível observar o que se passava não apenas na varanda, mas também na recepção e na sala devido à proximidade destes cômodos. Além de observar a dinâmica social tecida por anfitriões e hóspedes, foi possível escutar as conversações e acompanhar o processo de interação entre as pessoas nos espaços compartilhados deste hostel.

No HB3, por sua vez, a varanda era apartada dos demais cômodos. Desse modo, para realizar as observações, foi necessário transitar com mais frequência pelos diferentes espaços deste hostel. Quando um grupo se formava na varanda ou na sala, por exemplo, a prioridade era estar ali para observar a dinâmica social constituída por anfitriões e hóspedes, assim como as interações entre eles.

Cabe esclarecer que as observações também ocorreram nos quartos coletivos femininos ou mistos dos três hostels pesquisados. Quando permitido pelos proprietários, era possível permanecer em alguma cama desses dormitórios que não estivesse reservada a nenhum hóspede. Assim, podia-se observar os hóspedes e a relação que esses sujeitos estabeleciam com o quarto, com a própria cama e com os demais companheiros.

Além das observações, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 18 hóspedes e 06 profissionais, totalizando 24 entrevistas. Os temas contidos no roteiro das entrevistas foram: perfil do entrevistado, razões da escolha do hostel, sentidos e significados do local, dia a dia da hospedagem e o término da estadia no hostel. Mediante prévia autorização, utilizou-se o recurso da gravação das entrevistas, que duraram aproximadamente 30 a 60 minutos. 10 entrevistas foram realizadas presencialmente e, em função do contexto pandêmico da Covid-19, 14 entrevistas ocorreram virtualmente. Em ambas as situações, a data e o horário da entrevista foram estabelecidos pelos próprios entrevistados.

Ao final da coleta de informações, os dados foram transcritos na íntegra. Com vistas a respeitar o modo de falar dos sujeitos, a fidelidade dos relatos foi mantida. Além disso, as narrativas dos depoentes encontram-se em itálico como forma de diferenciar das citações de autores.

A identidade dos entrevistados foi mantida em sigilo. Sendo assim, criou-se um sistema de codificação. Para os profissionais, os codinomes dizem respeito a características dos mesmos, identificadas ou ressaltadas por eles no decorrer da pesquisa de campo. Já em relação aos hóspedes, utilizou-se a palavra Ipê, uma nomenclatura representativa e imagética de Belo Horizonte: anualmente, a cidade é acometida pelo florescimento da Tabebuia, popularmente conhecida como Ipê, esta espécie de tonalidades variadas. As flores do Ipê dão cor e vida para os lugares públicos ou privados da capital mineira, onde as árvores são cultivadas.

A sistematização das informações coletadas fundamentou-se em três etapas propostas do Bardin (2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70. para a análise de conteúdo: a) pré-análise, b) exploração do material e c) tratamento dos resultados e interpretações. Na primeira, foram feitas a seleção e a organização do material da pesquisa, por meio do agrupamento dos dados coletados. Para isso, foi utilizado o programa NVivo (versão 11), software que auxiliou na sistematização e análise por meio do recurso “frequência de palavras”, estratégia que viabilizou a elaboração das denominadas “nuvens de palavras”.

Tal recurso seguiu um padrão de escolha, cujo critério inicial foi a identificação de 30 palavras mais recorrentes nas entrevistas transcritas. Em relação à segunda fase, foi feita a exploração do material de estudo, ou seja, das entrevistas transcritas, etapa na qual a categoria de análise contemplada neste artigo – a privacidade compartilhada – foi discutida e articulada com a produção bibliográfica sobre o tema, visando o alcance do objetivo proposto. Por último, tal como sugerido por Bardin (2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70., os dados foram tratados e interpretados considerando as semelhanças, distanciamentos, ausências e presenças nas narrativas dos entrevistados.

Cabe esclarecer que o protocolo da investigação foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade responsável pelo estudo, que também aprovou as Cartas de Anuência dos três hostels selecionados e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos entrevistados. Os resultados deste processo investigativo serão discutidos a seguir.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

São variadas as funções das paredes internas de uma casa: sustentar a sua estrutura, isolar, vedar… e possibilitar privacidade. Ao levar isso em consideração, é preciso atentar para o fato do hostel ser considerado como uma casa sem paredes (Bahls, 2015Bahls, A. A. D. S. M. (2015). Hostel: Proposta conceitual, análise socioespacial e panorama atual em Florianópolis (SC). Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina, Brasil. https://doi.org/10.18226/21789061.v11i3p709
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). Isso se deve, especialmente, à existência de áreas comuns, dormitórios e cozinha compartilhados, facilitando a socialização dos sujeitos (Cró, 2018Cró, S. R. G. (2018). A influência da segurança no preço dos hostels: aplicação do modelo de preços hedónicos. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.09.225
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; Abrantes 2016Abrantes, J. M. O. F. (2016). O contributo das companhias aéreas de baixo custo para o desenvolvimento dos hostels nas cidades de Lisboa e Porto. Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal. https://doi.org/10.24873/j.rpemd.2018.11.241
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). A partilha de privacidade é, assim, uma das características deste meio de hospedagem. Como já mencionado, pessoas distintas e estranhas umas às outras coabitam os mesmos ambientes (Camargo, 2006Camargo, L. O. L. (2006). Hospitalidade sem sacrifício? O caso do receptivo turístico. Revista Hospitalidade, São Paulo, 3(2), p. 11-28.) quando se hospedam em um hostel. Junto a isso, desafios inerentes que o convívio com o estranho possa implicar, tensionam a individualidade coletivizada.

Na visão dos entrevistados, o quarto coletivo foi considerado como um dos ambientes mais desafiadores da hospedagem, sendo representado pelas palavras de maior incidência na pesquisa: cama, dormir, pessoas, atenção e respeitar (Figura 1).

Figura 1
Desafios “hosteleiros” na percepção de hóspedes e anfitriões

Com o auxílio do software NVivo, foi possível notar a proximidade do vocábulo “problema” aos termos dormir e pessoas e, ainda que em menor grau, aparecem com destaque diferentes termos associados ao quarto compartilhado: desafios, privacidade, complicado, bagunça, ronca e chulé. Nesta direção, observa-se que o fator central imbricado nesta diversidade de palavras é a questão da privacidade.

Alguns estudiosos do tema, como Dallen e Teye (2009)Dallen, T., & Teye, V. (2009). Tourism and the lodging sector. Oxford: Butterworth-Heinemann., afirmam que a ausência de privacidade é uma das maiores desvantagens dos hostels, em comparação com os meios de hospedagem tradicionais. Na pesquisa realizada foi possível constatar a manifestação de uma privacidade nestes espaços coletivos. Porém, como esta privacidade é partilhada constantemente no hostel, acaba, em algumas situações, gerando tensões durante o convívio entre hóspedes. Por essa razão, reforça a noção de alojamento desprovido de privacidade e, consequentemente, menos vantajoso. De toda maneira, no âmbito dessa coletividade subjetivada, grupos e indivíduos se aglutinam, impactando o cotidiano dos espaços estudados e ressignificando a privacidade.

Se for um [quarto] feminino com banheiro você se sente mais à vontade, mas quando é aquele compartilhado, homem e mulher, eu acho que privacidade tem que ser uma coisa que a pessoa que se hospeda em hostel não se preocupe.

(Ipê-rosa, goianiense, 30, HB2). (Grifo nosso).

[...] é tudo compartilhado, não tem como fugir disso, até a conversa, tudo, tudo. Você pode tá fazendo nada que você vai tá ali com alguém, porque você nunca tá sozinho de tudo. Só se você for pro banheiro e se trancar lá, talvez você fique sozinho. Você tem que estar disposto a compartilhar, você não pode ser apegado.

(Ipê-tabaco, carioca, 24, HB2). (Grifo nosso).

Os depoimentos citados anteriormente indicam que é paradoxal o hóspede pensar em privacidade quando concorda em acomodar-se em um meio de hospedagem coletivo. Porém, os sujeitos imersos neste contexto não a dispensam. Embora os quartos sejam compartilhados, figuram como o primeiro passo na caminhada pela e para a privacidade - esta se materializa, de fato, no mobiliário cama.

Na pesquisa, foi verificado que a cama é a protagonista da privacidade dos hóspedes em um hostel. Um exemplo emblemático em relação à busca por privacidade diz respeito às estratégias que os sujeitos encontram para concretizá-la por meio da cama:

Alguns hóspedes usam o próprio virol e amarram fazendo uma cabaninha na cama, então o hóspede fica ali com aquele quadrado da cama fechado só pra ele. Às vezes, por exemplo, um homem gosta de dormir de cueca, aí desse jeito já tem a liberdade de deitar e dormir assim, porque [...] ninguém vai ver. Ou quando uma pessoa entrar no quarto e acender a luz, não vai entrar aquela claridade toda dentro da cabana.

(Antenado, mineiro, 29, HB1).

Esta narrativa evidencia o ímpeto do ser humano em buscar a intimidade, de se “[...] recolher e de se esconder do assédio dos olhares estranhos” (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.51). Assim, os indivíduos buscam um espaço próprio onde seja possível se isolar e exercer a individualidade, mesmo que seja a própria cama. Nesse cenário, o quarto representa:

[...] um ambiente que pode ser cenário de diversas atividades íntimas, além do repouso, como os atos de despir-se e se vestir, é onde ficam guardados os itens mais pessoais de um indivíduo: roupas, objetos de valor sentimental e simbólico, assim como os de valor monetário.

(Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.51).

Na pesquisa de campo foi verificado que alguns objetos pessoais eram deixados em cima da cama, este território demarcado e reservado para cada hóspede. Intencionalmente ou não, os objetos sinalizavam que aquela cama pertencia a alguém, ainda que temporariamente, cabendo aos demais hóspedes respeitar aquele espaço. Isso revela a necessidade dos sujeitos imprimirem sua marca pessoal no ambiente, apropriando-se de uma parte dele, a exemplo da cama.

Sendo assim, observou-se a criação de estratégias para que a cama não significasse apenas um lugar para deitar e dormir, representando uma alternativa para suprir a necessidade de privacidade em um quarto compartilhado. Afinal, “muitas pessoas, quando compartilham espaços por tempo prolongado, começam a imprimir questões próprias e pessoais para adaptá-los às suas necessidades individuais e para demarcar de certa forma seu espaço íntimo e pessoal” (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.36).

Frente a isso, a cama figura como um dos objetos mais representativos da privacidade nos hostels pesquisados. Entre idas e vindas, estadas e convivências, notou-se que a cama adquire incontáveis representações e serventias: ela era usada tanto para suprir necessidades fisiológicas como descansar e dormir, como para acolher situações de intimidade, a exemplo da troca de roupa.

A cama tornou-se, por vezes, o epicentro da sociabilização dos hóspedes, reverberando nessa busca dos sujeitos motivados a conversar, criar vínculos e estabelecer trocas culturais com a diversidade de pessoas hospedadas nos hostels (Falcão, 2015Falcão, D. (2015). Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”. Caderno Virtual de Turismo, 16(3), p. 76-90. http://dx.doi.org/10.18472/cvt.16n3.2016.1066
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; Silva, 2015Silva. I. M. (2018). O mundo não é tão grande: uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração. Fortaleza: Imprensa Universitária.). Era nela que muitos hóspedes iniciavam diálogos e conversações, o que frequentemente facilitava a criação de vínculos e amizades. A cama era, ainda, o lugar onde as experiências de alteridade e o desejo de conhecer diferentes pessoas se faziam presentes (Falcão, 2015Falcão, D. (2015). Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”. Caderno Virtual de Turismo, 16(3), p. 76-90. http://dx.doi.org/10.18472/cvt.16n3.2016.1066
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). Além disso, “apinhados” nas camas uns dos outros, os sujeitos tomam decisões relacionadas a passeios, o que abria a possibilidade de encontrar companhias para as atividades de lazer e turismo no destino visitado.

Esta dinâmica revelou dois aspectos válidos de serem mencionados. O primeiro deles relaciona-se com a sociabilidade estabelecida nas camas para a programação de práticas de lazer. Os sujeitos conversavam, interagiam e realizavam atividades com os companheiros de quarto no sentido de buscar informações ou trocar experiências sobre os atrativos visitados e sobre as práticas de lazer que poderiam ser realizadas na cidade – o que, como mencionado anteriormente, favorece o turismo e a economia local (Macedo, 2018; Satyro & Pinheiro, 2006Satyro, A. G., & Pinheiro, Z. (2006). Os albergues independentes como um novo meio de hospedagem e prestação de serviços. Estudo de caso: Red Hostel. UNOPAR Científica Ciências Jurídicas e Empresariais. Londrina, 7, p. 31-38. https://doi.org/10.17921/1517-9427.2015v16n2p174-179
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). O segundo aspecto refere-se à estrutura encarregada de facilitar a convivência entre os sujeitos no dormitório coletivo. As interações ali estabelecidas, bem como as práticas que delas emergem, não seriam possíveis sem essa característica inerente a este meio de hospedagem: os quartos compartilhados (Silva, 2015Silva. I. M. (2018). O mundo não é tão grande: uma etnografia entre viajantes “independentes” de longa duração. Fortaleza: Imprensa Universitária.).

Além disso, constatou-se que a cama era muito usada pelos hóspedes para a vivência do lazer no quarto, seja para ouvir música, acessar redes sociais, assistir a seriados, ler, programar os passeios do dia seguinte. Especialmente no HB1, a cama também era usada para jogar cartas e para brincar de “Eu nunca”, um jogo descontraído que propicia que os participantes se aproximem e se conheçam um pouco mais.

Segundo Pereira (2019, p.47)Pereira, J. K. C. (2019). Hostels belorizontinos e lisboetas: um panorama acerca da oferta das práticas de lazer. In Anais Coletânea do I Colóquio Interdisciplinar de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, MG. https://doi.org/10.35699/2447-6218.2021.32471
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, o “[...] sentido da presença da brincadeira na vida das pessoas está relacionado à busca de experimentar a realidade por outro ponto de vista.” Por vezes, o nome ou o tipo do jogo acaba não sendo o que mais importa, e sim “[...] o que ele representa e a que ele nos remete é que vai ter sentido” (p.47). “Quebrar o gelo”, conhecer melhor outras pessoas e até mesmo estabelecer relações amorosas são alguns dos sentidos e significados que levaram os sujeitos a aderirem e se sentirem motivados para jogar “Eu nunca” nos hostels investigados.

A cama como extensão da mesa foi outro aspecto observado. Alguns sujeitos a utilizavam para comer, especialmente lanches rápidos por eles preparados na cozinha do hostel, e comidas delivery. Apesar destes hóspedes em sua maioria optarem por comer individualmente em suas camas, também foi possível perceber esta prática de forma coletiva, onde alguns hóspedes sentavam nas camas uns dos outros para partilharem comidas, bebidas e conversações.

Nesta senda, a cama contém um valor simbólico, assemelhando-se ao papel da mesa no processo da comensalidade. Isto porque: “[...] a mesa, antes que um móvel, remete a uma experiência existencial e a um rito. Ela representa o lugar privilegiado da família, da comunhão e da irmandade” (Yasoshima, 2012Yasoshima, J. R. (2012). Gastronomia na tela: as representações da comida no cinema. Rosa dos Ventos. Caxias do Sul, 4(3), p. 300-316., p. 306). O ato de comer na cama de um hostel, nesse sentido, acaba representando uma possibilidade de aproximação e abertura de um espaço íntimo para proporcionar o encontro com o outro, indo além de um ato biológico. A alimentação representa, assim, uma forma de tecer e de manter os vínculos sociais (Poulain, 2013Poulain, J. P. (2013). Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Ed. UFSC.).

É paradoxal pensar se a cama de um hostel, a princípio, seria o objeto primário para se manifestar a intimidade, nessa caminhada pela e para a privacidade. Até mesmo este espaço íntimo é acometido pelo compartilhamento, especialmente por algumas práticas de lazer dos sujeitos que acabam ocorrendo nos dormitórios. Dessa maneira, a relação sujeito/cama/quartos coletivos dos hostels, na pesquisa, revelaram algumas nuances da dinâmica comportamental humana.

Tratando-se do convívio em quartos compartilhados, identificou-se o imperativo de que os sujeitos respeitem, minimamente, as regras de convivência, tais como cordialidade e respeito ao espaço de cada um, evitando incômodos e inconvenientes na partilha do mesmo ambiente como se fosse um fair play, ou seja, respeitar para ser respeitado (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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).

Esse aspecto pode ser representado pelos termos: responsabilidade, aceitar, lidar e aprender, sinalizados pelos sujeitos, como sendo alguns atributos necessários para se conviver durante a estadia em quartos compartilhados. Cabe acrescentar que muitas vezes a educação, o bom senso e o jogo justo dão lugar ao bem-estar próprio, ainda que isso possa causar algum transtorno a outrem. Como as ações individuais reverberam no coletivo, impactam a hospitalidade, uma vez que esta “acontece nas frestas da inospitalidade dominante” (Camargo, 2015Camargo, L. O. de L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, p. 42-69., p.44). De acordo com este autor, “a relação interpessoal é o componente básico da cena hospitaleira” (p.7). Desse modo, a partilha da hospitalidade acaba por envolver os sentimentos das pessoas, as hostilidades humanas, a criação de laços simbólicos, a busca dos indivíduos pelo diferente, a sociabilidade humana e suas incontáveis possibilidades.

Sendo assim, o quarto coletivo de dormir contempla essa ambiguidade quando se trata de vivenciar a privacidade, podendo ocasionar desconfortos. As “pessoas podem roncar, não tomar banho, ser desorganizadas, desrespeitosas, ou fazer barulho enquanto alguém dorme, entre outras atitudes e comportamentos” (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.35-36).

Mesmo que algumas pessoas não sintam incômodos em relação a isso, há aquelas que manifestam sentimentos de aflição e constrangimento. Afinal, cada sujeito segue códigos socioculturais próprios, reagindo de determinada forma. “A experiência de se dividir espaços com tranquilidade e naturalidade está diretamente ligada à cultura de um indivíduo, pois ao se deparar com alguém [...] cujo senso alheio é falho, saberá reagir buscando seus direitos” (Toledo, 2017Toledo, P. M. S. (2017). O design de interiores em hostels: manifestações da individualidade em quartos compartilhados de hostel. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Brasil. https://doi.org/10.21115/jbes.v14.suppl2.p173-9
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, p.35-36). Para os sujeitos entrevistados a palavra respeitar, como visto na figura 1, mostra-se representativa, realçando, deste modo, a necessidade de cada hóspede em acatar as delimitações visíveis e invisíveis de cada sujeito envolvido no cotidiano de um hostel.

Em face disso, constata-se a preocupação por parte dos anfitriões na tentativa para manter a privacidade no hostel, ainda que partilhada, pois acreditam na importância disso para os hóspedes. Conforme foi relatado por uma anfitriã, “eles precisam ter aquela segurança de que quando eles precisam dormir, eles vão poder dormir sem barulho” (Ubuntu, mineira, 34, HB 2). Para garantir isso, os anfitriões tentam manter certo equilíbrio entre os direitos e deveres individuais e coletivizados com vistas a garantir aos indivíduos satisfação durante a estadia. Um dos caminhos para alcançar essa harmonia é a forma de lidar com os possíveis desafios que permeiam as interações dos anfitriões com os hóspedes, e destes entre si.

Você também não pode chegar querendo brigar com todo mundo: ah, tira seu sapato daqui, fala baixo. Não pode, é um espaço comum, então você tem que aprender isso, tem que aprender a tratar as pessoas, lidar com elas, entendeu? Falar de um jeito que realmente a pessoa consiga fazer aquilo que você tá pedindo, não chegar e impor.

(CABJ, argentina, 29, HB 2).

Flexibilidade, noção, senso, empatia, feeling, paciência, coletividade e cooperação são alguns dos atributos apontados pelos anfitriões para garantir uma estadia com menores atritos, facilitando o processo de compartilhamento. A anfitriã Ubuntu salienta: “Os grandes desafios são quando as pessoas não entendem o propósito de compartilhamento, o propósito de que um hostel não é seu, é nosso. É todo mundo junto utilizando o mesmo espaço, e tem que ser bom pra todo mundo” (Ubuntu, mineira, 34, HB 2).

Em decorrência dessa distorção do meu e nosso, é comum o anfitrião receber reclamações em relação a odores corporais, bem como sobre a postura de outros hóspedes no quarto compartilhado, como, por exemplo, no que diz respeito às desordens de objetos pessoais. Essa situação pode ser articulada ao que Camargo já mencionou em seus estudos: “O indivíduo vulgarmente chamado de espaçoso é o que viola os limites do espaço físico instituídos pelo anfitrião” (Camargo, 2021Camargo, L.O. L. (2021). As leis da hospitalidade. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 15(2), p. 1-16. https://doi.org/10.7784/rbtur.v15i2.2112
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, p.11).

Muitas vezes, os incômodos atingem tamanha proporção que alguns hóspedes solicitam mudança de quarto. Ao perceberem que há companheiros de quarto com o senso de coletividade falho, ou seja, que desrespeitam de alguma forma o uso do espaço e as normas que lhes são inerentes, os hóspedes irão em busca da garantia dos direitos coletivos, sendo necessária a intervenção por parte de anfitriões.

[Os hóspedes] chegam no quarto, quer conversar, vai acender luz, ligar ventilador, vai mexer em embalagem que faz barulho [...]. Aconteceu algo inusitado aqui, eu mudei de quarto, a moça do atendimento fez uma realocação, botou a gente que estava trabalhando tudo junto. E quem tava "a lazer" [ficou] em outro quarto.

(Ipê-amarelo, baiano, 53, HB 1). (Grifos nossos).

Teve uma pessoa que tava fazendo bagunça lá no quarto, falava alto demais, eu falei: nossa, o que que é isso. Aí chegou num ponto da colega [anfitriã] ir lá e dar uma bronca nele. Então você lida com essas coisas no dia a dia.

(Ipê-amarelo-do-brejo, mato-grossense, 33, HB 2). (Grifos nossos).

E agora há pouco tempo atrás, chegou uma pessoa muito religiosa, e ela acordava 4 horas da manhã e começava a ler a bíblia gritando dentro do quarto. Tive que falar: olha, você tem que respeitar as outras pessoas que estão dormindo aqui com você. [Os demais hóspedes] não reclamaram, mas a gente tirou eles do quarto, mandou pra outros quartos e aí ele ficou sozinho. Mas a gente conversou com ele e parece que ele entendeu que não podia fazer isso. [...] foi tenso!

(CABJ, argentina, 29, HB 2). (Grifos nossos).

Sob este lócus de discussão, um agrupamento foi feito considerando os principais desafios relacionados à privacidade, especialmente nos quartos compartilhados. Em relação a isso, foram constatados na pesquisa de campo os seguintes resultados relacionados a seguir.

1) Ruído: associado a sons de qualquer natureza, executados pelos companheiros do quarto coletivo, que de alguma maneira geram inconvenientes para os demais

Todo hostel tem quarto compartilhado, e é isso, [...] um quarto com um tanto de pessoas que você não conhece, não sabe quais são os hábitos da pessoa. [...] você não tá na sua casa que pode chegar, entrar no quarto e colocar uma musiquinha [...]. você tem que respeitar o sono dos outros, respeitar os horários, entendeu? Entrar sem fazer barulho à noite, essas coisas.

(CABJ, argentina, 29, HB 2). (Grifos nossos).

Teve um hóspede que ficou aqui 5 dias, e [...] na hora que eu falava bom dia pra ele, ele falava: bom dia, mas não dormi bem esta noite porque tinha alguém roncando. E aí só no último dia que ele foi comprar um protetor auricular.

(Antenado, mineiro, 29, HB 1). (Grifos nossos).

Eu lembro uma vez que eu passei raiva com uma pessoa lá, nossa, ele roncava tanto! Teve uma hora que acordei ele, e falei: oh moço, por favor. [...] E eu não [...] conseguia dormir de jeito nenhum. Teve uma hora que eu quase fui pra um hotel [...]. Só que ele pediu desculpas, era o jeito que ele tava dormindo, aí ele virou de lado e parou de roncar.

(Ipê-verde, mineiro, 30, HB 1). (Grifos nossos).

2) Odor: refere-se aos odores corporais exalados pelo corpo de companheiros do quarto coletivo que podem trazer incômodos aos outros.

O primeiro dia que eu cheguei em fiquei num quarto compartilhado com um cara [...] com um chulé imenso, e tava um cheiro muito ruim no quarto [...] e aí eu pedi pra trocar de quarto.

(Ipê-amarelo-da-casca-lisa, paulista, 28, HB2). (Grifos nossos).

Tem que ser uma pessoa limpa, porque senão seu fedor pode incomodar a pessoa que tá dormindo do lado, entendeu? Não é bom entrar no quarto com chulé.

(CABJ, argentina, 29, HB 2). (Grifos nossos).

[...] ele tinha um chulé muito forte, então eu imaginei que era da cultura dele, esse cheiro no corpo [...], deve ser um hábito, e aí né, bola pra frente, e a moça [anfitriã] foi tão sensível que colocou aquele bom ar no quarto.

(Ipê-amarelo, baiano, 53, HB 1). (Grifos nossos).

3) Desordem: concernente a todo tipo de desordem por parte dos hóspedes, que possa ocorrer no processo de compartilhamento de quarto e gera desconfortos a outrem, violando os limites do espaço físico.

Já aconteceu várias vezes de eu ir pro banheiro e eles [outros hóspedes] deixarem roupa jogada lá, carteira jogada lá, sabe. Pessoa saia e deixava jogado. Aí, eu ia lá, pegava e deixava em cima da cama de cada um.

(Ipê-verde, mineiro, 30, HB 1). (Grifos nossos).

[...] tinha coisa dele [outro hóspede] jogada pra todos os lados.

(Ipê-amarelo-da-casca-lisa, paulista, 28, HB2). (Grifos nossos).

Eu acho muito bacana essa questão de hostel não ter camareira, não ter faxineira. [...] Isso me incomoda muito porque se eu tô no quarto, eu não tenho que deixar o quarto uma bagunça porque tem outro pra arrumar, sabe? Eu posso até deixar uma bagunça, mas que eu arrume ela depois.

(Ipê-amarelo-do-cerrado, mineira, 40, HB 2). (Grifos nossos).

4) Instalação sanitária: diz respeito ao compartilhamento de banheiro de uso coletivo, por vezes, localizado dentro do quarto compartilhado.

O banheiro é a parte mais complicada. [...] Porque sempre tem uns pinguinhos de xixi no banheiro, sempre tem uns cabelinhos no ralo, então, tipo assim, essa é a parte que [...] não tem outro jeito. E aí é isso, então eu recomendo sempre tomar banho de chinelo, isso é o que eu faço.

(Ipê-tabaco, carioca, 24, HB 2). (Grifos nossos).

O banheiro do HB3 às vezes tava nada higiênico, pegava o banheiro tudo molhado..., mas isso não me irrita. (Ipê-felpudo, catarinense, 32, HB 3).

(Grifos nossos).

Se você estiver em um quarto coletivo você precisa tomar cuidado com o banheiro, poxa, deixa sempre cuidado, deixa sempre limpinho, vai vir outra pessoa e vai utilizar. [...] você tem que cuidar um do outro ali, porque senão vira bagunça, né. Eu acho que é muito isso a ideia do hostel. Pensar no coletivo, cuidar do espaço coletivo.

(Ipê-pardo, mineira, 33, HB 3). (Grifos nossos).

5) Nudez: referente a situações em que alguma forma de nudez possa ocorrer em quartos compartilhados e/ou demais ambientes dos hostels, o que constrange mulheres e homens ali hospedados.

[...] na hora que eu abri a porta [do quarto], um cara tava dormindo pelado. Ela virou na hora, ela olhou para mim: aquilo ali é um homem nu? Eu quero outro quarto!

(Antenado, mineiro, 29, HB 1). (Grifos nossos).

[...] tinha um senhorzinho no meu quarto que ficava de cueca dentro do quarto, deitado na cama de cueca, uma cuequinha branca. Ai, que desespero! Eu lembro que eu tive que ir lá na recepção reclamar: olha, vocês podiam ir lá dar um toque nesse senhor, porque tem um monte de gente no quarto, tem menina no quarto.

(Ipê-roxo-da-mata, mineira, 33, HB 3). (Grifos nossos).

[...] eu sentei um pouco na cama pra descansar. De repente o cara abre a porta, ele tava só de cueca e eu não esperava. Oi, tudo bem? Tudo... bem... eu fiquei bastante constrangida e pensei: nossa, que folga. [...] Então, pra evitar, eu dou meu jeito pra ficar em quarto feminino.

(Ipê-branco, paulista, 58, HB 1). (Grifos nossos).

Teve um estrangeiro, australiano, muito gente boa, mas o cara andava de cueca mesmo, [...] rodando pra lá e pra cá de cuecão no hostel. Vinha conversar com a gente de cuecão. Aí eu tive que virar e falar com ele pra não andar sem camisa, pediram pra eu falar “sem camisa”. A gente fala sem camisa, mas era pra ele entender que não era pra andar sem calça também.

(Antenado, mineiro, 29, HB 1). (Grifos nossos).

[...] eu entendo que num quarto misto, de vez em quando você vai ver alguém de cueca ou de sutiã. Não sei, as pessoas trocam de roupa achando que as outras estão dormindo, enfim. Mas, pôxa, ele tava andando de cueca [...] na cozinha do hostel e a [diarista que limpava lá] ficou escandalizada [...]. E aí eu fui falar com ele: olha, eu vou pedir você a gentileza, se você for transitar pela casa, não transitar de cueca, porque os outros hóspedes podem se sentir ofendidos.

(Ubuntu, mineira, 34, HB 2). (Grifos nossos).

6) Relação sexual: referente às tentativas de hóspedes de relacionar-se sexualmente em quartos compartilhados e, por vezes, chegar à consumação do ato neste espaço coletivo.

[...] teve uma situação de uma pessoa querendo entrar na cama da outra e deu aquela confusão toda. E você tem que chegar pra pessoa e falar: tem que ir embora, as suas atitudes não batem com a filosofia do hostel, entendeu? [...] Lógico que você vai buscar primeiro outros jeitos, se não deu certo nesse grupo de pessoas você vai mandar ele pra outro quarto, vai separar eles.

(CABJ, argentina, 29, HB 2). (Grifos nossos).

[...] já aconteceu de um casal tentar se relacionar em uma cama num quarto misto, cheio. Que pessoas abertas! E aí desce o outro, a pessoa escandalizada: eles estão fazendo sexo. E eu tenho que subir lá, bater na cama e falar: Gente, eu vou pedir pra vocês dormirem em quartos separados se isso continuar acontecendo. [...] eu até brinco: Gente, é um hostel, não um motel. Não pode! (Ubuntu, mineira, 34, HB 2). (Grifos da autora). (Grifos nossos).

7) Diversidade de pessoas: concernente aos desafios em relação aos distintos perfis de hóspedes.

Tem pessoas que são violentas, chega todo tipo de pessoa aqui,[...]. E aí cada pessoa tem sua experiência, tem sua bagagem diferente, e você tem que tá aberto pra receber ele e tentar fazer com que a experiência seja boa. Mesmo às vezes não dando certo, e você ter que expulsar a pessoa do hostel.

(CABJ, argentina, 29, HB 2). (Grifos nossos).

Porque a gente tá em um hostel e recebe tudo que é tipo de pessoas, então pessoa que normalmente já tem a hospedagem feita previamente por telefone ou alguma coisa, beleza, são pessoas que você já se comunicou, algumas já pagaram certo valor e tal. Aí qualquer problema que ocorre aqui cabe a nós resolver, tanto o pessoal que é dono quanto nós que somos anfitriões, tentar contornar da melhor forma possível. O problema é quando chega igual esse cara que chegou com amnésia.

(Antenado, mineiro, 29, HB 1). (Grifos nossos).

Os sete tópicos supracitados sintetizam os principais desafios e tensões relacionados à privacidade nos dormitórios compartilhados dos hostels investigados. Nesse sentido, a dinâmica social tecida nesses hostels vai além das paredes, ou seja, ela é feita pelos sujeitos que se apropriam do espaço e lhe conferem sentido por meio das práticas e relações estabelecidas, bem como das atitudes e comportamentos dos sujeitos ali presentes. Estes aspectos podem resultar em estreitamentos ou esgarçamentos dos vínculos sociais tecidos na trama “hosteleira”, colocando em cheque o princípio básico da noção de hospitalidade (Camargo, 2015Camargo, L. O. de L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, p. 42-69.). Como explica o autor, os domínios da hospitalidade acontecem nos interstícios de cotidianos marcados pela inospitalidade e até pela hostilidade. Daí a importância de aprofundar conhecimentos sobre as relações interpessoais entre os sujeitos envolvidos na trama hospitaleira.

Estejam alicerçados ou não em códigos e padrões culturais, ou na própria personalidade de cada sujeito, os desafios e tensões constatados na pesquisa são reveladores da complexidade humana. Da partilha de necessidades fisiológicas nos quartos coletivos emergiram incontáveis desconfortos, conforme observado nas narrativas, a exemplo dos ruídos e odores. Ressaltaram-se, ainda, situações em que as pessoas buscavam transgredir normas por meio de atos obscenos, como salientaram os entrevistados.

A imersão no locus da pesquisa demonstrou como é paradoxal e tênue a linha existente entre a liberdade e o desvio, a individualidade e a coletividade, seja no quarto ou em outros espaços do hostel. Como este meio de hospedagem constitui-se como um espaço em que todos são bem-vindos, pessoas dos mais variados tipos podem se misturar ali, convivendo livremente (Simpson, 2015Simpson, D. M. (2015). Richard Schirrmann: the man who invented youth hostels. Derbyshire: Duncan M Simpson.). Conforme visto, faz-se necessário que os hóspedes respeitem as normas e demais companheiros dos ambientes compartilhados, como forma de minimizar possíveis atritos.

Isso se torna mais notório nos quartos coletivos, uma vez que o convívio com pessoas que possuem hábitos e comportamentos distintos pode exacerbar as nuances da privacidade quando esta precisa ser compartilhada. Isto posto, finaliza-se este tópico com o depoimento de um dos anfitriões (Sonhador, mineiro, 29, HB3) sobre o hostel: “É um espaço que pode aceitar todos, mas também não se deve aceitar tudo. Não é porque eu tô num hostel que eu tenho que aceitar tudo.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tratar-se de um dos aspectos que viabilizam a experiência turística, o setor de hospedagem é essencial para a área do Turismo (Thomazi & Baptista, 2018Thomazi, M. R., & Baptista, M. L. C. (2018). Meios de hospedagem no Turismo: um resgate histórico. Revista Iberoamericana de Turismo- RITUR, Penedo, 8(2), p. 216-229.). Baseadas no IBGE, as autoras afirmam que a hospedagem é um serviço muito importante para o turismo porque é a base de permanência temporária do turista no destino visitado. Geralmente, este sujeito anseia por um local que possa funcionar como uma extensão da sua própria casa, sendo esta uma premissa fundamental dos três hostels estudados.

O presente artigo buscou compreender de que maneira a privacidade se manifesta em hostels, verificando os paradoxos e tensões que emergem no cotidiano destes meios de hospedagem compartilhados. Os resultados demonstraram que o quarto representa um primeiro passo na caminhada pela e para a privacidade dos sujeitos. A cama, no hostel, constitui o objeto mais significativo e simbólico para a manifestação da privacidade dos hóspedes. Esta constatação revela a necessidade de os indivíduos imprimirem sua marca pessoal no objeto “cama”, ainda que temporariamente. Nessa direção, foi possível constatar, inclusive, estratégias por parte dos hóspedes com vistas a garantir um mínimo de individualidade e de privacidade, em meio à coletividade de um quarto compartilhado.

Quanto aos paradoxos e tensões constatados no cotidiano dos hostels, os resultados da pesquisa indicam que isso se manifesta e é deflagrado por meio dos ruídos, da desordem verificada nos quartos e na cozinha, das dificuldades relacionadas ao uso coletivo do banheiro, da nudez, da intimidade sexual e dos diferentes hábitos e culturas dos hóspedes. Essas práticas tensionam a privacidade, sobretudo, nos quartos compartilhados, gerando desconfortos e constrangimentos.

Incontáveis possibilidades de lazer são realizadas na própria cama dos quartos coletivos. Essas práticas ganham sentidos variados que são aprofundados e ressignificados em cada cama, especialmente no que diz respeito a jogos e experiências de sociabilidade entre os hóspedes. Nesse sentido, descortinou-se um paradoxo em relação a esse local, pois se a cama, a princípio, figura como um objeto primário para concretizar a privacidade dos sujeitos, até mesmo este espaço íntimo é tensionado, voluntariamente, pelo processo de compartilhamento.

O processo investigativo descortinou, ainda, um aspecto contraditório: a ocorrência do aprofundamento de laços de amizade, paralelamente aos conflitos e paradoxos decorrentes da convivência e do compartilhamento de espaços coletivos com “estranhos”. Por tais razões, na trama hosteleira estudada, emergiram os mais diversos desafios em relação aos hóspedes que, por vezes, extrapolavam tanto as normas do hostel quanto o desrespeito às delimitações invisíveis que a convivência em ambientes compartilhados requer.

Tendo em vista a complexidade da hospitalidade, sabe-se que em seu cerne há regras a serem cumpridas por parte de anfitriões e hóspedes durante o encontro hospitaleiro. Defrontar-se com o estranho supõe entrar em contato com um sistema ritualístico que envolve direitos, deveres, virtudes e comportamento, havendo uma expectativa social de que esses elementos sejam acatados pelos sujeitos envolvidos. Além de ser demarcada pelo encontro entre hóspedes e destes com anfitriões, a trama da hospitalidade em hostel pode, igualmente, ser marcada por desencontros, quando ocorre a desobediência de “leis escritas e não escritas” (Camargo, 2015Camargo, L. O. de L. (2015). Os interstícios da hospitalidade. Revista Hospitalidade, p. 42-69.) por parte dos sujeitos, tal como constatado nesta investigação.

Concebido como um espaço essencialmente sociável que acolhe convivências, interações e partilhas, o hostel conta com uma dinâmica relacional humana que ganha diferentes sentidos, incluindo desafios e tensionamentos que são tecidos cotidianamente. Isto coloca em evidência aspectos recônditos em relação ao hostel, que, como visto neste artigo, se mostra paradoxal. Por um lado, o hostel é um local facilitador de interações intersubjetivas, especialmente pelo encontro de pessoas e culturas distintas que propicia, potencializando a formação de vínculos e amizades. Mas, por outro lado, a quebra de padrões se faz presente, seja por meio da transgressão de regras por parte de alguns hóspedes, ou mesmo pelos desafios que se desenham cotidianamente neste meio de hospedagem. Isso decorre do modo de ser e de agir de cada sujeito: pautado em códigos culturais e na própria personalidade de cada um. A partilha contínua da privacidade no hostel gera, assim, impactos no convívio diário entre as pessoas ali presentes.

À guisa de conclusão, reitera-se que aprofundar o debate sobre hostel é necessário e urgente devido à incipiência de estudos e pesquisas que realcem os paradoxos, tensões e ambiguidades existentes na dinâmica deste tipo de acomodação. Parafraseando Bahls (2018, p.7)Bahls, A. A. D. S. M. (2018). Hostel: Uma proposta conceitual. Itajaí: Univali., os hostels “clamam por pesquisas científicas sobre o tema”. Isso se deve tanto à sua invisibilização em publicações sobre meios de hospedagem, sobretudo no contexto nacional, como à sua ausência e apagamento em iniciativas governamentais brasileiras. Ainda que algumas sistematizações contribuam com os estudos sobre os hostels, ampliar as discussões e empreender novas frentes de diálogos se mostram necessários tanto para atualizar, quanto para aprofundar este importante tema.

Apesar de ser passível de algumas limitações, tais como aquelas decorrentes dos impactos da pandemia da Covid-19 na coleta de dados, uma investigação que propõe mergulhar na dinâmica social dos hostels, como esta, pode ser vista como um aporte para o aprofundamento de conhecimentos sobre o tema e para o desenvolvimento científico do Turismo. Que este artigo signifique, portanto, um convite para que outros estudiosos do turismo deem continuidade ao avanço dos debates sobre hostel, pois ainda há muito que ser investigado.

  • Como citar: Pereira, J. K. C., & Gomes, C. L. (2023). Privacidade compartilhada: paradoxos e tensões no cotidiano “hosteleiro”. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 17, e-2730, 2023. https://doi.org/10.7784/rbtur.v17.2730

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Editado por

Editor: Leandro B. Brusadin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2022
  • Aceito
    24 Fev 2023
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