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A produção do turismo mediada pela plataforma Airbnb: proposição de um instrumental/software para o levantamento de dados empíricos e teorizações introdutórias

The tourism production mediated by the Airbnb platform: proposal of a tool/software for the collection of empirical data and introductory theorizations

La producción del turismo mediada por la plataforma Airbnb: proposición de un instrumento/software para la recolección de datos empíricos y teorías introductorias

Resumo

O estudo contempla a corporação Airbnb – plataforma de locação de imóveis para curtas temporadas –, tanto em sua atuação na cidade colonial mineira de Ouro Preto, quanto em escala mundial. Tal abordagem faz parte de uma reflexão acerca de processos mais amplificados, os quais dizem respeito à lógica produtiva e reprodutiva no tempo- histórico da acumulação flexível (Harvey, 1992), levada a cabo, cada vez mais, por meios tecnocientíficos e informacionais. Dois foram os objetivos traçados: desenvolver um instrumental/software para o levantamento de dados empíricos (sendo este utilizado de forma experimental na referida localidade); e teorizar os processos de produção de mais- valor no contexto do “capitalismo de plataforma” (Srnicek, 2016), contemplando os novos formatos da subsunção do trabalho ao capital. As técnicas para a obtenção de dados e informações adotadas foram as pesquisas documental e bibliográfica, além do software para o levantamento do quantitativo real de imóveis cadastrados em Ouro Preto. A partir da averiguação foi possível expor algumas das mediações da plataforma no âmbito da produção e do consumo, bem como tecer considerações acerca de desdobramentos socioespaciais contraditórios por ela alavancados.

Palavras-chave
Airbnb; Capitalismo de plataforma; Trabalho produtivo; Turismo

Abstract

The study focuses on the Airbnb corporation - a platform for short-term property rentals - both in its activities in the colonial city of Ouro Preto, as well as on a global scale. This approach is part of a reflection on broader processes related to productive and reproductive logic in the historical time of flexible accumulation (Harvey, 1992), increasingly carried out through technoscientific and informational means. Two objectives were set: to develop a tool/software for the collection of empirical data (which was used experimentally in the aforementioned location); and to theorize the processes of added-value in the context of "platform capitalism" (Srnicek, 2016), considering new formats of labor subsumption to capital. The techniques for obtaining data and information adopted were documentary and bibliographical research, as well as the referred software for collecting the actual number of registered properties in Ouro Preto. Based on the investigation, it was possible to expose some of the platform's mediations in the context of production and consumption, as well as to make considerations about contradictory socio-spatial consequences promoted by it.

Keywords
Airbnb; Platform capitalism; Productive labor; Tourism

Resumen

El estudio incluye a la corporación Airbnb – una plataforma de alquiler de inmuebles por períodos cortos –, tanto en su actuación en la ciudad colonial de Ouro Preto, en Minas Gerais, como a escala global. Tal abordaje es parte de una reflexión sobre procesos más ampliados, que atañen a la lógica productiva y reproductiva en el tiempo histórico de la acumulación flexible (Harvey, 1992), realizados, cada vez más, por medios tecnocientíficos e informacionales. Se fijaron dos objetivos: desarrollar un instrumento/software para la recolección de datos empíricos (que se utiliza de manera experimental en la referida localidad); y teorizar los procesos de producción de plusvalía en el contexto del “capitalismo de plataforma” (Srnicek, 2016), contemplando los nuevos formatos de subsunción del trabajo al capital. Las técnicas de obtención de datos e información adoptadas fueron la investigación documental y bibliográfica, además del software para levantamiento del número real de propiedades registradas en Ouro Preto. A partir de la investigación fue posible exponer algunas de las mediaciones de la plataforma en el contexto de producción y consumo, así como hacer consideraciones sobre desarrollos socioespaciales contradictorios apalancados por ella.

Palabras clave
Airbnb; Capitalismo de plataforma; Trabajo productivo; Turismo

CONSIDERAÇÕES INICIAIS: A IDEOLOGIA E A PRÁTICA DA “ECONOMIA COMPARTILHADA”

O livro intitulado “Uberização, a nova onda do trabalho precarizado”, de Tom Slee (2017)Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante., possui o seguinte título em inglês: “What’s Yours Is Mine: Against The Sharing Economy” (“O que é seu é meu: contra a economia do compartilhamento”). Conforme nota do editor Tadeu Breda (2017), a opção por “Uberização”, na terra do Brasilino1 1 Em referência ao texto de Paulo Guilherme Martins. Recuperado de: https://anovademocracia.com.br/no-18/840-um-dia-na-vida-do-brasilino. Acesso em: 29 mar 21. , ocorreu diante do impulso promovido pela Uber (e de sua visibilidade) aos debates acerca da chamada “economia compartilhada”. Então, se a atuação dessa corporação colocou o tema do “compartilhamento” em destaque no Brasil, o que seria isso em termos teóricos e práticos? Slee (2017, p. 21)Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante. define a economia compartilhada como “uma onda de novos negócios que usam a internet para conectar consumidores com provedores de serviços para trocas no mundo físico, como aluguéis imobiliários de curta duração, viagens de carro ou tarefas domésticas” Convenientemente, seus defensores a descrevem como “nova atividade” e, também, como um “movimento social”.

Revestida de um caráter cooperativo que se manifesta na troca/oferta de serviços e ainda possibilita certo ganho monetário, a economia do compartilhamento se vale do poder de conexão que a internet tem para, supostamente, ajudar indivíduos a se tornarem “empreendedores”, promovendo “uma visão igualitária construída mais em relações de igual-para-igual do que em organizações hierárquicas” (Slee, 2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante., p. 22). Contudo, esse discurso precisa ser contextualizado e desmistificado.

Conforme o dicionário “Le Petit Robert” (2011, p. 1008)Le Petit Robert Dictionnaire. (2011) 4ª ed. Paris: X-Media., “partager” ou “compartilhar” tem, dentre outros significados, “ter parte em alguma coisa ao mesmo tempo que outras pessoas”. Do latim com (junto) e partícula (pequena parte), remete à ideia de harmonia entre partes que se associam e dividem um espaço ou mesmo tarefas. Seria, portanto, e em sentido lato, a agregação para um determinado empreendimento ou o uso de algo em comum. Assim, de forma amplificada, o termo alude à noção de comunismo: se compartilhar remete a associativismo para determinadas práticas em comum, o comunismo, também conforme definição do “Le Petit Robert” (2011, p. 272)Le Petit Robert Dictionnaire. (2011) 4ª ed. Paris: X-Media., nada mais é do que um “sistema social onde os meios de produção pertencem à comunidade”, ou, dito de outra forma, a propriedade dos instrumentos fundamentais para a produção pertenceriam à coletividade e, por extensão, os resultados/riquezas gerados.

Entusiastas do livre mercado, os quais menosprezam a teoria e a prática do valor- trabalho em prol das preferências individuais, assim como apontam os fatores de produção como substitutivos das classes sociais – em uma total naturalização das desigualdades socialmente produzidas pelas dinâmicas da forma de produção material e imaterial da vida social hegemônica –, estão se valendo estrategicamente de um termo que, por sua associação com a partilha, a divisão, o pertencimento e à comunidade, torna-se meramente peça de marketing para uma realidade prática que é totalmente diversa a todos os referenciais do associativismo, os quais se caracterizariam tanto pelo caráter social da produção quanto da distribuição. Fazem isso para alavancar a produtividade sem fixação de capital ao espaço em paralelo co]m a desobrigação de responsabilidades com os sujeitos- trabalhadores na atividade fim. Trata-se, então (e obviamente), de uma ideologia e de uma prática que nada têm a ver com o significado original do compartilhamento.

Sendo um elemento marcante no contexto da Quarta Revolução Industrial, a economia do compartilhamento opera como força motriz do capital absorvendo áreas da vida humana que antes não eram mediadas diretamente pelo mundo corporativo e financeiro, o que significa: 1) associar o maior número possível de meios de produção essenciais (ou instrumentais de trabalho) ao que chamamos de meios de produção reguladores (as plataformas); 2) aproveitar de uma massa sobrante de força de trabalh e/ou que necessita complementar ganhos e arregimentá-la informalmente, sob condições laborativas não raras vezes precárias; 3) promover o discurso do empreendedorismo, tanto como meio para a regressividade da consciência social, quanto como estratégia para encobrir as verdadeiras causas do colapso do emprego formal; 4) transformar trabalho improdutivo para o capital em trabalho produtivo (conforme detalharemos posteriormente); e 5) instituir formas de controle laborais embasadas em mecanismos diversos, tais como a possível delação de clientes e a instituição de selos conferidos mediante o atingimento de metas (de qualidade e de quantidade).

E tudo levado a cabo com base em meios tecnocientíficos e informacionais que operam na perspectiva sempre crescente da produção de valor e de mais-valor. Nesse sentido, o papel cada vez mais invasivo das plataformas na produção e na circulação contradiz o “espírito comunitário dos usuários” (Slee, 2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante.), presente nos discursos dos entusiastas dessas corporações.

Para dar guarida a esse compartilhamento às avessas, Slee (2017)Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante. cita a Peers, uma organização que opera no campo político desde 2013 com a finalidade de reunir empresas parceiras no sentido de fazer lobby junto a governos para impedir ou dificultar a instituição de leis trabalhistas, fundiárias e/ou imobiliárias que atrapalhem seus negócios – tal como o reconhecimento de vínculos trabalhistas para motoristas2 2 Verificar caso concreto no Reino Unido, onde a Uber perdeu causa judicial e deve garantir direitos trabalhistas a motoristas, como férias, descanso semanal e salário mínimo. e trabalhadores em geral de outras atividades econômicas; e a instauração de normas locais para formalizar e normalizar locações por temporadas que possam atrapalhar a lucratividade das plataformas.

A chamada economia do compartilhamento é dominada atualmente por três tipos de serviços: 43% das empresas atuam no setor de alojamento, enquanto 28% delas se concentram na área de transporte e, com 17%, a educação fica com uma fatia menor nessa divisão (Slee, 2017Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante., p. 43). Chamamos a atenção para o fato de que a “economia do compartilhamento” não é outra coisa senão uma das forças motrizes do capital, tanto no que se refere às suas dinâmicas produtivas e reprodutivas, quanto componente ideológico que atua como cortina de fumaça ao seu modus operandi. Para compreendermos alguns dos seus expedientes no setor de alojamento – ou dessa forma de produção e reprodução do capital no momento histórico do “capitalismo de plataforma” (Srnicek, 2016Srnicek, N. (2016). Platform Capitalism. Polity Press.) –, trabalhamos em duas frentes:

1) Em um primeiro momento, com o desenvolvimento e a utilização – em caráter experimental e, portanto, ainda não disponibilizado ao público – de um software/ferramenta para o levantamento de dados empíricos, o qual ficou em operação durante seis meses, de julho a dezembro de 2021. O foco foi realizar uma sondagem dos imóveis cadastrados no Airbnb (Air Bed and Breakfast), empresa criada em 2008 e que domina as locações por temporadas em escala mundial. O recorte geográfico para fins de análise e exemplificação, em uma perspectiva introdutória e de testes do software, foi a cidade colonial mineira de Ouro Preto, sendo que tal ferramenta nos possibilitou verificar a quantidade real de anúncios por tipos, localização, preços, comodidades e, além disso, estabelecer comparações com a central de reservas Booking (pertencente a Booking Holdings Inc.), dedicada, sobretudo, ao setor de alojamento tradicional. Importante esclarecer que, se diante do ordenamento jurídico brasileiro há diferenças entre locação por temporada (prevista na Seção II, Art. 48, da Lei 8.245/91) e hospedagem (citada na subseção II, Artigos 23 a 26, da Lei 11.771/08), o objeto e tipo de uso dos espaços podem ser análogos, de forma que a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2023). Tabela de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). https://concla.ibge.gov.br/busca-online-cnae.html?subclasse=5590699&tipo=cnae&view=subclasse
https://concla.ibge.gov.br/busca-online-...
, contempla em sua Seção I (Alojamento e alimentação), divisão 55 (alojamento), grupo 55.9 (Outros tipos de alojamento não especificados anteriormente) e subclasse 5590-6/99, a atividade de “aluguel de imóveis residenciais por curta temporada” (CONCLA/IBGE)3 3 Disponível em: https://concla.ibge.gov.br/busca-online-cnae.html?subclasse=5590699&tipo=cnae&view=subclasse. Acesso em: 08 nov. 2021. e, inclusive, de acordo com a legislação vigente, as atividades contempladas pela CNAE 5590-6/99 dão possibilidade ao enquadramento ocupacional como Micro Empreendedor Individual (MEI). Diante dessas questões, tanto no âmbito da produção quanto no do consumo, há significativas semelhanças entre hospedagem e locação por temporada, uma vez que o produto é a hospedagem e o público alvo são principalmente os turistas, embora haja certas especificidades gerais de um e de outro no que se refere à oferta ou não de serviços complementares.

Após os ajustes necessários para a utilização do software e o levantamento de informações, demos sequência à pesquisa documental e bibliográfica para a teorização dos dados. Ao considerarmos o “processo geral de circulação do capital [...]” (Harvey, 2018Harvey, D. (2018). A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. (A. Renzo, Trad.). Boitempo. (Trabalho original publicado em 2017)., p. 32). Situamos a atuação do Airbnb no âmbito ou momento da produção (capital produtivo) e não propriamente no momento da realização (capital comercial), uma vez que a corporação atua como controladora de instrumentos de trabalho (nesse caso, os imóveis) sem os quais a mercadoria hospedagem não poderia ser realizada. Tal questão deve ser enfatizada, posto que não se trata de uma mera intermediária: o serviço é produzido e ofertado pelo próprio agente da produção (diretamente ou contratado, como um escritório de gerenciamento) na plataforma, e não por um terceiro, como o trabalhador da esfera comercial que está para realizar um dado produto gerado em momento pretérito. Portanto, a atividade de trabalho na produção do serviço é basilar para a venda, o que envolve a atuação na preparação, limpeza, reparos, gerenciamento de reservas, contabilidade, entradas e saídas de hóspedes, responsabilidades fiscais e demais expedientes. A partir disso, não é possível afastar a teoria do valor-trabalho da ascensão e domínio das plataformas, posto que, caso a análise a desconsidere, teríamos o anfitrião – direto ou terceirizado – não como um trabalhador, mas como um empreendedor e patrão de si, ou, no jargão da Economia Neoclássica, um simples fator de produção.

A presente abordagem foi assim compartimentada: na primeira parte apresentamos um breve histórico do Airbnb, bem como sua posição no mercado atual. Na segunda expomos o software desenvolvido, contemplando elementos técnicos acerca de sua operacionalidade e as possibilidades de levantamento e interligação de dados das plataformas Airbnb e Booking. Na terceira, analisamos alguns dados obtidos da realidade recortada (Ouro Preto-MG) para fins de experimentação do software, com o propósito de demonstrar as novas e possíveis dinâmicas socioespaciais a partir da ampliação de locações de curtas temporadas ofertadas no Airbnb. Na quarta e última parte, teorizamos os dados tratando da lógica produtiva geral e no setor de alojamento (hospedagem e locação por temporada) na perspectiva de explicar os processos de absorção e transformação do “trabalho útil improdutivo” em “trabalho útil produtivo” (Marx, 2008Marx, K. (2008). O Capital: crítica da economia política: Livro I. (Sant’Anna, R., Trad.) Civilização Brasileira.; Braverman, 1980Braverman, H. (1980). Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no séculoXX. (Caixeiro, N., Trad.) (2ª ed.). Zahar.).

O intuito é, para além do desenvolvimento de uma ferramenta para a obtenção de dados de uma prática – as locações por temporadas – que já estava em expansão, mas foi ainda mais impulsionada com a Pandemia do vírus SARS-CoV-2, promover reflexões em relação às mediações do capitalismo de plataforma na produção do turismo e, mais especificamente, no setor de alojamento.

1 UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DA CORPORAÇÃO AIRBNB

A plataforma de hospedagem Airbnb foi estabelecida pouco antes que a Uber, em 2008. Para além de uma “comunidade baseada no compartilhamento”, tal como se autodenomina, é, atualmente, uma corporação do setor de alojamento que funciona a partir de imóveis inscritos como meios de hospedagem e/ou de experiências possíveis mediante trocas monetárias. Iniciada em São Francisco, EUA, pelos então estudantes Joe Gebbia, Nathan Blecharczyk e Brian Chesky, atingiu valor de mercado de US$ 1 bilhão três anos após sua fundação; de US$ 31 bilhões de dólares em 2017; de US$ 42 bilhões em 2019; e, em dezembro de 2020, quando que fez a oferta pública de ações (Initial Public Offering), ultrapassou os US$ 100 bilhões, valendo mais do que a Uber ou as redes Marriot e Hilton juntas4 4 Recuperado de: https://epocanegocios.globo.com/Mercado/noticia/2020/12/um-dia-apos-ipo-airbnb-ja-vale-mais-que-marriott-e-hilton-juntos.html . Comparativamente, em 2018 já atuava em cerca de 81.000 cidades e 191 países com aproximadamente 5 milhões de imóveis cadastrados5 5 Recuperado de: https://www.forbes.com/sites/greatspeculations/2018/05/11/as-a-rare-profitable-unicorn-airbnb-appears-to-be-worth-at-least-38-billion/ , segundo a Forbes. Em 2022, finalizou o ano com a marca de 6,6 milhões imóveis inscritos6 6 Recuperado de: https://olhardigital.com.br/2023/02/16/pro/airbnb-registra-lucro-anual-pela-primeira-vez/. Acesso em: 22 mar. 2023. . Apenas nove anos separam a experiência inicial de ofertar hospedagem em colchões de ar via internet – por ocasião de um evento de design na cidade – e a sua atuação (ou intermediação) em escala mundial. O Airbnb conta hoje com investidores diversos, como bancos, fundos de investimentos, joint ventures, private equity7 7 A listagem de investidores do Airbnb pode ser conhecida no sítio da Dealroom.co, um banco de dados sobre startups, investimentos de capital e tecnologia. Recuperado de: https://app.dealroom.co/companies/airbnb .

E a pandemia do novo Coronavírus contribuiu, e muito, com o impulsionamento dos negócios da empresa. Estrategicamente, um de seus executivos, Brian Cheski, informou em entrevista à CNBC8 8 Recuperado de: https://www.bbc.com/portuguese/geral-53192512 , em 26 de junho de 2020, que a pandemia fez com que perdessem “quase tudo em semanas” e, com isso, justificou a demissão de praticamente 25% dos seus trabalhadores, além do adiamento da estreia na bolsa Nasdaq. Contudo, na mesma declaração pública, Cheski afirmou que o Airbnb havia registrado reservas no período entre maio e junho de 2020 iguais às de 2019 nos EUA, e, também, que não houve baixas nos imóveis cadastrados, ao contrário, eles haviam aumentado.

Mas essas frentes de atuação, operadas pelos executivos da empresa para garantir a produção de mais-valor (conforme explicaremos adiante) e a manutenção dos interesses de agentes do mercado financeiro diante da tão esperada estreia na bolsa, não se resumiram a isso: o Airbnb adotou uma política de cancelamento por força maior válida para reservas efetuadas até 14 de março de 2020, em que abria mão de suas taxas desde que apresentadas as devidas justificativas atreladas à pandemia (e, após essa data, somente com exame positivo para a Covid-19, mas não mais considerando restrições locais, barreiras sanitárias, lockdowns etc.); pagamentos aos anfitriões de 25% do valor de reservas canceladas por motivos relacionados à Covid-19 para entradas entre 14 de março e 31 de maio daquele ano; e estabeleceu acordos com blogs/instas de viagens para que promovessem a marca – naquele momento com apelo aos imóveis inteiros, como forma de mudança de ambiente e manutenção do isolamento social – mediante comissões de aproximadamente 25% sobre o que era pago à plataforma quando as reservas fossem efetivas por meio do link do site/blog.

Por conta dessas estratégias e do aceno à possibilidade de hospedagens em imóveis com ambientes e utensílios para limpeza e preparação de refeições pelos próprios hóspedes e sem áreas comuns (como é usual em hotéis e pousadas) ou mesmo da ênfase (cada vez mais promovida pela empresa) de que o trabalho remoto poderia ser praticado em qualquer lugar do mundo, além do incremento às estadias mais longas com a possibilidade de ocorrerem em locais ou imóveis exóticos e/ou sofisticados, enquanto o setor de alojamento tradicional experimentou suas reservas e taxas de ocupação despencarem (ou mesmo serem interrompidas em alguns momentos da pandemia), o Airbnb foi no sentido contrário, com mais imóveis inscritos e ainda mais projeção da empresa.

Em dezembro de 2020, estreou no mercado financeiro com valor das ações acima do estimado; e, em março de 2021, a partir de uma decisão unilateral, anunciou o fim dos percentuais aos blogs/Instas de viagens divulgadores das hospedagens e da marca. Desde então, a corporação experimenta taxas de crescimento ainda mais expressivas. Ao considerarmos que o Airbnb contribuiu com a diversificação das opções de hospedagens aos turistas, em termos de preços, comodidades, localização; e, também, abriu novas

possibilidades de produção de serviços ligados à hospitalidade produtiva, quais as bases operacionais desse processo? E quais contradições podem ser registradas, haja vista que a tecnologia não é neutra? Um primeiro passo no sentido de delinear respostas foi o desenvolvimento de um instrumental/software para o levantamento de dados reais.

2 INSTRUMENTAL PARA O LEVANTAMENTO DE DADOS EMPÍRICOS

Ao propormos o desenvolvimento de um software para o levantamento de dados empíricos, é necessário salientar que os referenciais do materialismo empiricista não nos bastam, uma vez que temos como um dos eixos-norteadores de nossas análises as formidáveis diferenças entre forma e conteúdo ou entre aparência e essência, sendo que a elaboração teórica afinada com a prática concreta das dinâmicas socioespaciais é que nos possibilita ultrapassar as formas de manifestação dos objetos/fatos estudados, ou, dito de outra maneira, trasladar dos traços aparentes para as relações mais fundamentais. Mas os dados empíricos são os pontos de partida das averiguações, independentemente do procedimento epistemológico adotado. Destaca-se, então, o papel e a importância dos meios e técnicas utilizados para a observação e a verificação. Nesse sentido, foi criado um instrumental para o levantamento de imóveis cadastrados no Airbnb e, também, no Booking, visando, além das informações de um e de outro, estabelecer parâmetros comparativos entre locações de imóveis por curtas temporadas e o setor de alojamento tradicional, sobretudo pousadas e hotéis.

Conforme apontamos, o software está em fase de elaboração e foi utilizado de maneira experimental antes da teorização dos dados; e a partir de uma demarcação temporal e geográfica: funcionou por seis meses, de julho a dezembro de 2021, com foco apenas em dados de Ouro Preto-MG, sendo estes trabalhados a título de exemplificações do possível uso, em escalas mais amplas, desta ferramenta.

Para isso, foi implementado um web scraping 9 9 A coleta de dados web, ou raspagem web, do inglês Web Scraping, permite a extração de dados de sites da web para posterior análise. com vistas a extrair ofertas do Airbnb e do Booking. Para a extração foram realizadas consultas sucessivas e automatizadas nas duas plataformas em questão. Posteriormente, foram estudadas e empregadas técnicas de clusterização, isto é, aprendizado de máquina não supervisionado no sentido de agrupar anúncios similares em tipos, comodidades e preços (isso tanto para o Airbnb quanto para o Booking, permitindo comparar as ofertas das duas plataformas). A perspectiva com o aprimoramento da ferramenta é incluir, na clusterização, os dados dos anúncios relativos à base cadastral do anunciante, no sentido de saber se trata-se de produtores-diretos de serviços de hospedagem, com um até quatro anúncios, ou de gestores/escritórios de gerenciamento, com cinco ou mais imóveis em seu cadastro. Isso nos permitirá avaliar algumas das dimensões da dinâmica laborativa neste segmento do setor de alojamento, bem como examinar possíveis novos marcos de competitividade instaurados e suas repercussões na hotelaria tradicional.

1.1. Coleta de dados do airbnb e do booking

Basicamente, a coleta dos dados ocorreu das seguintes formas: para o Airbnb, o web scraping foi desenvolvido a partir do reuso do algoritmo previamente implementado por Tom Slee10 10 Algoritmo implementado em Python que realiza a extração automatizada dos dados presentes no site do Airbnb coletando uma série de dados acerca das acomodações anunciadas. O script, assim como mais informações, está disponível em https://github.com/tomslee/airbnb-data-collection . Esse algoritmo permite coletar dados do Airbnb valendo-se das seguintes estratégias: realização de múltiplas requisições a partir da cidade alvo e data de estadia em intervalos de tempos pré-definidos; utilização de vários proxies para disparar as requisições de interesse; realização de requisições utilizando coordenadas limitadoras da área alvo, chamadas de coordenadas da caixa limitadora; e, por fim, a combinação de todos os resultados obtidos a partir das requisições realizadas.

Destaca-se, também, nessa etapa, o uso de uma Application Programming Interface (API) própria do Airbnb, responsável por retornar os dados de uma página acessada via requisição Hypertext Transfer Protocol (HTTP), e, também, a API de geolocalização do Google, a qual permitiu captar as coordenadas de uma região especificada pelo nome ou, então, realizar o caminho contrário, identificando a região através das coordenadas oferecidas. Para algumas dessas ofertas, não foi possível obter a localização exata via Google, sendo, assim, considerada a localização aproximada nesses casos. Referente às adaptações do algoritmo de Tom Slee, foi efetivada a execução de uma busca que se inicia pela caixa delimitadora, ou seja, a região definida por uma latitude e uma longitude máxima e mínima primeiramente definida e, em seguida, se aprofunda sobre sub-regiões definidas a partir de endereços pertencentes à caixa inicial. Assim, para realizar a busca em Ouro Preto, foi possível focar bairros ou ruas específicas da cidade.

Já para o Booking os dados foram acessados por meio de simulações da atividade do navegador mediante o uso da plataforma Selenium, a qual é uma plataforma de código aberto usada para testar aplicações web via navegador de forma automatizada, permitindo definir links a serem clicados, valores a serem inseridos em campos de textos, dados a serem lidos das páginas web, dentre outras atividades automatizadas.

1.2 Modelagem da coleta de dados

A modelagem do banco de dados para a plataforma foi estabelecida a partir de uma premissa elementar: coletar, processar e armazenar dados de hospedagens do Airbnb e do Booking a partir de um destino e de um período de hospedagem de interesse. Assim, com uso da biblioteca Pandas, criada para a linguagem Python, foram desenvolvidos instrumentos específicos para preparação dos dados próprios do Airbnb e dos dados particulares do Booking. Cabe destacar que, uma vez especificados o destino e datas de chegada e de partidas, essas duas plataformas retornam dados distintos. Por exemplo, o Booking caracteriza a hospedagem como hostel, hotel ou pousada; já o Airbnb apresenta outras denominações, tais como, imóvel inteiro, quarto privativo ou compartilhado.

Em relação a essa etapa, é importante sublinhar a temporalidade dos dados coletados, isso porque os anúncios levantados são referentes às buscas no período de experimentação do software executadas com o auxílio do script de web scraping – de julho a dezembro de 2021. Nesse sentido, a reativação do software em momento ou período posterior não terá dados correspondentes em tempo real com as plataformas Airbnb e Booking, sendo necessário executar novas buscas para manter a atualidade e a relevância das informações extraídas.

1.3 Clusterização de informações

Posteriormente à coleta e ao armazenamento dos dados, foi necessário o agrupamento dos anúncios comparáveis do Booking e do Airbnb para facilitar a análise dos mesmos. Uma vez que essas plataformas retornam dados distintos uma vez especificados o destino e as datas de interesse, agrupou-se os dados em categorias com características em comum mediante uma técnica específica. Surgiu, então, o conceito de clusterização através do aprendizado de máquina não supervisionado: trata-se de um processo de agrupamento de dados com o intuito de gerar n grupos a partir da semelhanças ou dissimilaridades entre os elementos. Em outras palavras, é uma forma de encontrar padrões em grandes conjuntos de dados, pois, cada grupo (ou cluster) é formado por objetos que compartilham características comuns entre si, sendo que esses atributos podem ser determinados por meio de diversos tipos de elementos constituintes, tais como o preço, o tipo de propriedade ou a quantidade de comodidades de uma acomodação. Devido a semelhanças entre eles, em grupos, os elementos internos de um cluster são mais parecidos entre si do que com os elementos externos a ele, pertencentes a outros clusters.

A maioria expressiva dos algoritmos de aprendizado de dados não supervisionados analisa pontos de dados e, a partir da generalização das similaridades do conjunto, é capaz de identificar grupos distintos e naturais (os clusters) que classificam ou segmentam os dados e tornam possível obter insights até então não imaginados (Artasanchez & Joshi, 2020Artasanchez, A. & Joshi, P. (2020). Artificial Intelligence with Python: your complete guide to building intelligent apps using Python. Packt Publishing.).

Como resultado da clusterização, os anúncios do Airbnb e do Booking foram agrupados em termos de localização, comodidades, preços, número mínimo de diárias, classificação média pelos usuários, rotulação de anfitriões (somente para o Airbnb) e tipos de unidades habitacionais, o que permite uma comparação dos anúncios nas duas plataformas. Complementarmente, foi implementado o algoritmo K-Modes nesta etapa. A técnica do k-Modes utiliza modas para representar os centroides de cada cluster, e atualiza as modas de cada interação de acordo com os valores categóricos mais frequentes durante o processo de clusterização. Na figura 01 apresentamos o print deste componente do software com os filtros possíveis para a extração de dados, o que pode contemplar elementos diversos, tais como as comodidades anunciadas (por exemplo, ar-condicionado, piscina, banheira, estacionamento etc., no Airbnb e/ou no Booking), tipos de quartos, preços etc.

Figura 1
Um dos componentes do software: filtros para visualização dos dados

Com essas informações, podemos comparar, por exemplo, o quantitativo de anúncios em ambas as plataformas e a média de preços, inferindo o grau de competitividade no setor de alojamentos entre estabelecimentos que dependem de alvará de funcionamento e/ou são devidamente tributados, como hotéis e pousadas, e aqueles que, em muitas realidades, não são regulamentados e/ou taxados.

1.4 A plataforma para visualização de dados

Para a visualização dos dados coletados e segmentados, foi utilizada a biblioteca Bokeh para Python. Em sua página de apresentação (bokeh.org), a biblioteca se apresenta como uma forma de tornar simples a criação de gráficos, mas, também, lidar com casos de usos customizados ou especializados. Ali, suas ferramentas e widgets (campos de texto, botões etc.) também são descritos como capazes de permitir que o desenvolvedor e seu público se aprofundem sobre cenários “e se”, ou em detalhes de seus dados. A Figura 02 é um print de um dos gráficos gerados e demonstra informações selecionadas pelo usuário/pesquisador que podem expor relações distintas, como a quantidade ou preço per capita dos anúncios, ou mesmo o preço médio, todos agrupados por região ou por plataforma de origem. No exemplo da Figura 02, verifica-se o quantitativo de “quartos privativos com banheiros privativos e de quartos privativos com banheiros compartilhados”, em ambas as plataformas.

Figura 2
Gráfico gerado pelo software para a visualização de dados agrupados por parâmetros de interesses

Com o intuito de demonstrar a eficiência prática do instrumental desenvolvido, a seguir são apresentados insights obtidos acerca da atuação do Airbnb em Ouro Preto, bem como alguns dados comparativos com o Booking.

2 OBSERVAÇÕES PRELIMINARES NA CIDADE COLONIAL MINEIRA DE OURO PRETO E REFERENCIAIS PARA FUTURAS PESQUISAS

A primeira questão que nos chama a atenção, na própria plataforma do Airbnb, é que a busca apresentava “mais de 300 acomodações” ou anúncios em Ouro Preto entre julho e dezembro de 2021. Atualmente (janeiro de 2023), a busca apresenta “mais” de 440 acomodações. Trata-se da mesma característica que observamos em localidades no Brasil e no mundo, tais como Rio de Janeiro, São Paulo, Paris, Roma, Barcelona etc: o número de anúncios informado na tela inicial da plataforma não confere com a realidade, representando sempre uma quantidade média e significativamente menor em relação aos imóveis cadastrados. Trata-se de uma estratégia somente possível de ser verificada com o software de captura de dados reais e, tal como apontava Slee (2017)Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante., adotada para camuflar a dimensão das locações de curta temporada. Com isso, busca-se minimizar conflitos com a hotelaria tradicional e evitar ações por parte de administrações públicas locais ou mesmo de residentes, tais como o estabelecimento de mecanismos para dificultar o encarecimento exagerado de aluguéis – via instituição de tributos específicos e/ou ações de captura de mais-valia fundiária, no caso das negociações de compra e venda –; as possíveis regulamentações exclusivas para aluguéis de temporada; e até os movimentos de turismofobia.

Na plataforma Airbnb é possível filtrar o “tipo de lugar”, dentre eles “espaço inteiro”, “quarto inteiro”, “quarto compartilhado” e, também, “quarto de hotel”. No caso de Ouro Preto, as “mais” de 440 acomodações disponíveis informadas pela plataforma envolviam espaços inteiros (onde o imóvel é de uso somente dos locatários), quartos inteiros (onde o quarto é privativo e somente alguns espaços são compartilhados), quartos compartilhados (onde divide-se o mesmo ambiente) e quartos/apartamentos de hotéis. Em relação a esses últimos, consideramos tratar-se de mais uma estratégia no campo operacional – pois as outras ocorrem via lobby na esfera política – para evitar conflitos com o setor de alojamento tradicional, abrindo um espaço para que pousadas, hotéis e albergues anunciem na plataforma.

Com o software/instrumental concebido para o levantamento de dados reais, verificou-se, na etapa inicial da pesquisa, que o número real de imóveis superava significativamente o número aproximado da plataforma Airbnb: em Ouro Preto eram 616 cadastros em dezembro de 2021, sendo 231 imóveis inteiros; 315 quartos privativos ou inteiros; 67 quartos compartilhados; e 3 apartamentos de hotel. Já no Booking, havia 363 unidades habitacionais (quartos ou apartamentos) cadastradas, número expressivamente menor do que as ofertas do Airbnb11 11 Importante salientar que o software foi utilizado de forma experimental no período informado – entre julho e dezembro de 2021 –, sendo que as pesquisas para a teorização dos dados ocorreram entre março de 2022 e janeiro de 2023. Dados recentes não foram obtidos via instrumental desenvolvido pelos autores, posto que isso depende da atualização do software, a qual será realizada na segunda etapa da pesquisa. . E isso já é um indicativo para averiguações quanto ao acirramento da concorrência no setor de Alojamento e consequente busca por minimização de custos na hotelaria tradicional, sendo, em Ouro Preto, uma regulamentada e a outra não.

Por esse instrumento segmentado de busca, verificou-se que a maioria dos imóveis não são de uso compartilhado, corroborando nossos apontamentos acerca do engodo da chamada “economia compartilhada”, a qual se efetiva somente na dimensão do discurso e como peça de marketing, tal como detalharemos adiante. E não poderia ser diferente: se, em termos gerais, os imóveis ou espaços inteiros e quartos inteiros têm diárias mais elevadas, são esses que propiciam retornos mais expressivos à corporação Airbnb e é esse, portanto, o padrão de comportamento que se busca na maioria dos anfitriões.

Tais questões – número real de anúncios e engodo da economia do compartilhamento – podem ser verificados, também, no site Inside AirbnbInside Airbnb: adding data to the debate. (2023). http://insideairbnb.com/explore
http://insideairbnb.com/explore...
12 12 Recuperado de: http://insideairbnb.com/explore , uma organização independente e não comercial que fornece dados reais do Airbnb em cidades com ampla visibilidade e movimentação turísticas, em escala mundial. Por meio dessa ferramenta verifica-se que o número de imóveis cadastrados é expressivamente superior ao informado na plataforma Airbnb, a qual aponta, genericamente, que localidades como Paris, FR, e Porto, PT, possuem “mais de mil acomodações”.

A título de exemplo desse fato e, também, do crescimento dos imóveis ofertados na plataforma, em setembro de 2021 Paris contava com 59.881 anúncios, sendo 86,6% em imóveis inteiros, 12,4% em quartos privativos e 0,8% em quartos compartilhados; e Porto com 9.759 ofertas, sendo 78,1% em imóveis inteiros, 20,8 % em quartos privativos e 1,2% em quartos compartilhados. Já em janeiro de 2023, Paris apresentava 61.365 anúncios, sendo 84,3% em imóveis inteiros, 13,4% em quartos privativos e 0,6% em quartos compartilhados; e Porto contava com 11.804 imóveis, sendo 81,5% em imóveis inteiros, 16,5% em quartos privativos e 0,9% em quartos compartilhados.

Após a pesquisa no site/plataforma do Airbnb, já com os dados brutos acerca dos anúncios registrados em Ouro Preto obtidos por meio do software13 13 No Brasil, o Inside Airbnb possui dados somente do município do Rio de Janeiro. O software desenvolvido pelos autores pretende preencher esta lacuna, contemplando mais localidades com ampla circulação de turistas. , iniciamos a caracterização deles a partir de uma configuração espacial, no sentido de descrever quantos estão no centro histórico, no entorno e nos distritos. Com esse procedimento, foi possível obter um panorama geral da distribuição espacial dos anúncios na localidade como um todo, envolvendo os distritos e a sede, a qual, por sua vez, foi subdividida em “centro histórico” e “entorno”. Mas, antes de descrever a posição espacial dos anúncios, resumidamente delimitamos o que é o “centro histórico” e o que foi considerado como “bairros do entorno”.

O “centro histórico” consiste na área urbana constituída sobretudo até o século XIX e que foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em meados da década de 1930 do século passado, sendo essa porção do território formada pelos seguintes bairros: Centro, Pilar, Antônio Dias, Padre Faria, Santa Efigênia, Alto da Cruz, Lages, Água Limpa, Veloso, São Cristóvão, Cabeças e Barra. Já o entorno é composto por bairros como Lagoa, Bauxita, Saramenha, Vila dos Engenheiros, Vila Operária, Vila Aparecida. A distribuição espacial dos anúncios, levando-se em conta o centro histórico, os bairros do entorno e os distritos, ficou da seguinte forma: 441 no centro histórico, sendo 144 imóveis inteiros, 241 quartos privativos, 53 quartos compartilhados, e 3 quartos de hotel; 90 no entorno, sendo 27 imóveis inteiros, 49 quartos privativos, 14 quartos compartilhados e nenhum quarto de hotel; e 85 nos distritos, sendo 60 imóveis inteiros, 25 quartos privativos e nenhum quarto compartilhado ou quarto/apartamento em hotel. Observa-se, pelos dados de localização dos anúncios, que a maior parte deles corresponde ao “centro histórico”. Esse padrão de localização espacial também foi observado nos estudos de Slee (2017)Slee, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. (Peres, J., Trad.). Editora Elefante., ou seja, em cidades como Nova Iorque, Porto e Paris, a maior parte dos imóveis está na região central, geralmente em áreas de expressiva movimentação turística. Assim, de acordo com a Figura 03, nota-se que a proporção de localização se mantém praticamente a mesma para ambas as plataformas, com a predominância de anúncios na região central do núcleo urbano, seguido pelos distritos com mais atributos turísticos (como Lavras Novas) e, posteriormente, pelo entorno.

Figura 3
Quantidade de anúncios por região: centro, distrito e entorno. Elaboração: os autores.

Para além dessas observações, as regiões do centro e do entorno de Ouro Preto, onde há maior concentração de repúblicas estudantis devido à proximidade com o campus central da Universidade Federal de Ouro Preto, nota-se que já ocorre uma inserção significativa delas nas locações de curta temporada por meio do Airbnb, o que deve ser alvo de futuras pesquisas, pois há repúblicas que funcionam em imóveis pertencentes ao Estado (Fig. 04). Ainda em relação às repúblicas, verificou-se que a maior parte das ofertas é de “quartos privativos”, o que pode caracterizar concorrência direta com os hostels (Fig. 05).

Figura 4
Repúblicas cadastradas na Plataforma Airbnb localizadas geograficamente
Figura 5
Quantidade de repúblicas por tipo de quarto: imóvel inteiro; quarto privativo e quarto compartilhado

Em relação à concorrência entre ofertas com características concernentes a cada uma das plataformas, nota-se que os preços médios do Airbnb se mantiveram abaixo dos preços estipulados pelo Booking para as três regiões nomeadas em Ouro Preto. Esses dados estão representados na Figura 06 e, além de outros, precisam ser levados em consideração no encaminhamento de políticas públicas de turismo e, mais especificamente, para o setor de alojamento.

A partir das observações em escala local e das análises gerais acerca das mediações das locações de curtas temporadas efetivadas por meio de plataformas (principalmente o Airbnb) verificou-se que: 1) os centros históricos ou aqueles espaços que passaram por processos de gentrificação, ao contarem com muitas opções de locações por curtas temporadas somadas ao setor de hospedagem tradicional, recebem fluxos ainda maiores de turistas, fato que promove o encarecimento no comércio local; 2) essa nova possibilidade de utilização dos imóveis fez com que surgissem os escritórios de gerenciamento para fins de uso imobiliário em curtas temporadas, os quais atuam como intermediários entre proprietários e a plataforma Airbnb (ou outra qualquer) e/ou entre os donos e os hóspedes, sendo que tais empresas operam no sentido de incentivar as locações de curta temporada em detrimento dos contratos anuais e, assim, acabam promovendo o encarecimento da moradia (locação e venda) naqueles espaços mais procurados14 14 Alguns exemplos de empresas especializadas em administração de imóveis de curtas temporadas: GuestReady (https://www.guestready.com/pt/lisboa/gestao-airbnb/); Carpediem Homes (http://carpediemhomes.com.br); Anfitrião Prime (http://anfitriaoprime.com.br). .

Figura 6
Preço médio por região e plataforma.

Ainda que seja preciso a continuidade da pesquisa a fim de compreender como esses desdobramentos já marcam a realidade de Ouro Preto, os 616 imóveis cadastrados e coletados entre julho e dezembro de 2021 já nos permite inferir que temos um campo de produção de serviços de hospedagem que se ampliou expressivamente nos últimos anos via plataformas de locação para curtas temporadas, impondo não somente uma nova dinâmica de competitividade aos alojamentos tradicionais – tal como a necessidade de aumento da composição orgânica do capital ou minimização de custos com o trabalho –, mas, também, contradições, tais como como o fim da vigência de diversos contratos de locação anuais em prol dos “residentes temporários”. O fato que já pode ser colocado em evidência é que a operacionalização dos imóveis requerem atividade de trabalho sob certas diretrizes. E quais em detrimento dos contratos anuais e, assim, acabam promovendo o encarecimento da moradia (locação e venda) naqueles espaços mais procurados15 15 Alguns exemplos de empresas especializadas em administração de imóveis de curtas temporadas: GuestReady (https://www.guestready.com/pt/lisboa/gestao-airbnb/); Carpediem Homes (http://carpediemhomes.com.br); Anfitrião Prime (http://anfitriaoprime.com.br). .

Figura 6
Preço médio por região e plataforma

Ainda que seja preciso a continuidade da pesquisa a fim de compreender como esses desdobramentos já marcam a realidade de Ouro Preto, os 616 imóveis cadastrados e coletados entre julho e dezembro de 2021 já nos permite inferir que temos um campo de produção de serviços de hospedagem que se ampliou expressivamente nos últimos anos via plataformas de locação para curtas temporadas, impondo não somente uma nova dinâmica de competitividade aos alojamentos tradicionais – tal como a necessidade de aumento da composição orgânica do capital ou minimização de custos com o trabalho –, mas, também, contradições, tais como como o fim da vigência de diversos contratos de locação anuais em prol dos “residentes temporários”. O fato que já pode ser colocado em evidência é que a operacionalização dos imóveis requerem atividade de trabalho sob certas diretrizes. E quais seriam elas? Procuramos teorizar os dados levantados a seguir com a perspectiva de fornecer algumas respostas.

3 A TRANSFORMAÇÃO DE TRABALHO IMPRODUTIVO EM PRODUTIVO E A ATUAÇÃO DO AIRBNB COMO EXEMPLO EMBLEMÁTICO DE GERAÇÃO DE MAIS-VALOR NO CAPITALISMO DE PLATAFORMA

No século marcado pelo início da Quarta Revolução Industrial, a projeção cada vez mais acentuada do setor de serviços é algo marcante e, na conjuntura pandêmica efetivada a partir de 11 de março de 2020 no Brasil, a qual comprometeu a circulação de turistas e a produção do turismo, tem-se a retomada desses processos, já em meados de 2021, com o aumento da vacinação contra a Covid-19 (em ritmos consideravelmente desiguais ao considerarmos certas realidades centrais e periféricas).

No plano da produção, a pandemia promoveu adequações ainda mais céleres em termos gerais no sentido de 1) aumentar a composição orgânica do capital, o que significa a criação e o incremento de tecnologias substitutivas de trabalho vivo; 2) intensificar e estender o trabalho mediante expedientes de rompimento total ou parcial com legislações protetivas dos trabalhadores; 3) promover ainda mais uma ideologia que opera para substituir os referenciais do eu-coletivo pelos do eu-individual e os da cooperação pelos da competitividade; e 4) absorver trabalhadores com instrumentais próprios para produzir excedentes de forma direta (e informal) para terceiros mediante o aparato de meios tecnocientíficos-informacionais.

Nesse contexto, é necessário compreender os conceitos – mais do que atuais – de “trabalho improdutivo” e de “trabalho produtivo” e apontar a tendência de exacerbação e domínio desse último potencializada pelo “capitalismo de plataforma”. A conhecida colocação de Marx sobre a indiferença, para o capital, do trabalho em uma escola e em uma fábrica de salsichas, nos dá uma primeira noção acerca das diferenças entre um e outro:

Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista, servindo assim à auto expansão do capital [...]: um mestre-escola é um trabalhador produtivo quando trabalha não só para desenvolver a mente das crianças, mas também para enriquecer o dono da escola. Que este invista seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa de fazer salsicha, em nada modifica a situação. O conceito de trabalho produtivo não compreende apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também uma relação de produção especificamente social, de origem histórica, que faz do trabalhador o instrumento direto de criar mais-valor.

(Marx, 2001, p. 578).

Não se trata, portanto, do efeito útil do trabalho, mas da concretização de excedentes de produção (mais-valor) a serem apropriados por terceiros na forma de lucros. Por exemplo: aquele que trabalha como produtor direto de serviços de hospedagem, tendo como meio de produção o seu imóvel, o qual funciona somente com o seu trabalho individual (sem assalariamento), pode gerar o mesmo efeito útil do trabalho executado na filial de uma rede internacional de hotéis. Contudo, no primeiro caso, ainda que o trabalho gere valor (ou uma mercadoria imaterial), ele não está posto como atividade determinada por uma relação social direta e estabelecida com o propósito primário de constituição de mais-valor a um terceiro; ao passo que, no segundo, o que justifica e constitui o serviço de hospedagem é justamente o mais-valor.

Deve-se destacar que a concepção de Marx, o qual descobriu o mais-valor, é diversa do entendimento de autores da economia política clássica sobre o tema, sobretudo David Ricardo. Para esses, o excedente seria o “resultado da troca injusta do trabalho pelo salário entre trabalhadores e capitalistas: os trabalhadores seriam forçados a vender seu trabalho abaixo de seu valor; [e] o excedente surgiria [nessa] troca” (Bottomore, 2012Bottomore, T. (Ed.) (2012). Dicionário do pensamento marxista. (2ª ed.). Zahar., p. 336). Mas Marx avança na explicação e, cientificamente, comprova que o mais-valor não provém de retiradas dos salários, mas da variabilidade que somente o trabalho vivo pode concretizar: em uma organização societária classista, o excedente gerado não fica com a classe produtora, mas com a classe que detêm e controla os meios de produção, os quais, contraditoriamente, são socialmente produzidos. Marx (2008, p. 53) esclarece: “[...] o mais-valor não se constitui em excesso do preço de venda sobre o valor da mercadoria, mas em excesso desse valor sobre o preço de custo”.

O trabalho no seu atual momento histórico e independentemente do tipo de relação entre contratante e contratado (formal, informal, terceirizado, intermitente etc.), é mediado pela necessidade de produtividade cada vez mais crescente para o capital, sendo que essa configuração tende a subordinar e a controlar o chamado trabalho útil improdutivo no sentido de trazê-lo para a esfera produtiva ou da geração de mais-valor. Seguindo o exemplo dado anteriormente, o sujeito que hospeda alguém em seu imóvel (próprio ou alugado) prestando os serviços que estão ao seu alcance como produtor direto, é um trabalhador improdutivo para o capital, mas deixa esse posto quando inscreve o seu “meio de hospedagem” em uma plataforma, tal qual o Airbnb. Por isso,

As mais distintas modalidades de trabalho presentes no capitalismo informacional-digital-financeiro, ao contrário de tornarem inoperante a lei do valor, vêm ampliando suas formas de vigência, ainda que frequentemente sob a aparência de um não-valor [...]. Impossibilitado de se valorizar sem realizar alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto, o capital procura aumentar sua produtividade do trabalho, ampliando os mecanismos de extração do mais-valor mediante a expansão do trabalho morto corporificado no maquinário técnicocientífico- informacional e também pela intensificação e diversificação do trabalho vivo, recriando novas formas de exploração e mesmo de superexploração da força de trabalho

(Antunes, 2019Antunes, R. L. C. (Ed.). (2019). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida – o mosaico da exploração. Boitempo., p. 15).

Ou seja: o trabalho improdutivo é desarranjado pelo produtivo, não via controle do empregador ou dos gestores do capital em uma unidade produtiva de serviços de hospedagem tradicional, mas a partir de um meio que, na forma, é de domínio do “empreendedor individual” (sua casa, seu apartamento, seu domo etc.) mas, no conteúdo, é um instrumento mediado por uma corporação que nada tem de compromissos com o conjunto dos produtores diretos. Isso tem algumas implicações geográficas e sociais: 1) a fixação de capital ao espaço deixa de ser uma necessidade para a produção, sendo que o (diminuto) capital constante fica restrito à plataforma (seu desenvolvimento, adequações etc.); 2) o capital variável (salários) minimiza-se ao limite das estruturas produtoras e gerenciadoras da plataforma, enquanto amplia-se o exército de trabalhadores e trabalhadoras sem direitos na atividade-fim, processo esse que, inclusive, deve ser verificado na atividade-meio, como os escritórios de gerenciamento que atuam na intermediação entre plataforma e proprietários; 3) os ramos tradicionais passam a competir com uma gigante conformada por unidades produtivas espalhadas em escala mundial, adotando, por determinantes de competitividade, “práticas de gestão” e tecnologias a fim de minimizar o trabalho necessário e expandir o excedente, o que passa, necessariamente, pela intensificação e extensão laborativas.

Nesse sentido, é preciso considerar que “A mudança em toda forma social de trabalho, a partir do que é, do ponto de vista capitalista, improdutivo, para o que é produtivo,

significa a transformação [...] de simples produção de mercadorias em produção capitalista de mercadorias” (Braverman, 1980Braverman, H. (1980). Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no séculoXX. (Caixeiro, N., Trad.) (2ª ed.). Zahar., p. 349).

Haja vista que o trabalho que gera valor é aquele executado pelo produtor direto; e o trabalho que gera valor e mais-valor é aquele subordinado ao capital, conforme abordamos,

o Airbnb somente poderia transformar-se em uma corporação via amplos circuitos produtivos (controlados pela plataforma) e de circulação (os consumidores da chamada “economia compartilhada”). Importa destacar que, ao considerarmos a atuação do Airbnb, a forma dominante de produção do mais-valor continua intacta, mas há diferenças funcionais: o meio de produção divide-se em regulador, a plataforma, e o essencial, sendo que este não depende de investimentos da corporação para existir, posto que é de posse ou de propriedade do trabalhador terceirizado (o anfitrião).

Sua produção é gerida tanto pela plataforma quanto pela insegurança do amanhã (avaliação dos hóspedes, celeridade nas repostas às consultas, necessidades de aumento da demanda, obtenção e manutenção de selos de qualidade “superhost” etc.). Nesse sentido, desloca-se tanto o Meio de Produção (M.P.) como a Força de Trabalho (F.T.) para fora da unidade produtiva tradicionalmente alargadora de capital, propiciando mais fluidez aos seus processos reprodutivos ao driblar investimentos em estruturas e com força de trabalho. Para comparar as dinâmicas reprodutivas do capital, apontamos o seguinte esquema (Fig. 08), onde e possível observar as diferenças e semelhanças entre as unidades produtivas tradicionais; as que se valem da terceirização da força de trabalho; e as que operam via uma espécie de terceirização da força de trabalho e dos meios de produção.

O capital variável (F.T.) vinculado à corporação fica restrito aos escritórios de gerenciamento da plataforma para o controle das hospedagens em imóveis de terceiros (M.P.); o mais-valor efetiva-se com o trabalho “por peça” (Marx, 2008Marx, K. (2008). O Capital: crítica da economia política: Livro I. (Sant’Anna, R., Trad.) Civilização Brasileira.) ou por serviço de hospedagem concretizado pelos anfitriões (ou terceirizados) e aparece nos percentuais das diárias das acomodações para a plataforma – que podem chegar a 23% do montante total (bruto) entre taxas de hóspedes e de anfitriões, e de até 20% daqueles que oferecem as chamadas “experiências” (minicursos gastronômicos, passeios, dentre outros).

Figura 7
D significa dinheiro adiantado para a produção e, para isso, aquisição de Meios de Produção (M.P. ou capital constante, o qual não cria valor) e Força de Trabalho (F.T ou capital variável, o único que dá vida ou promove a variabilidade dos meios produtivos, gerando valor). M expressa mercadorias adiantadas para o processo produtivo e que, pela força de trabalho, são transformadas em algo novo (material e/ou imaterial), representado por M’. D’ é a diferença entre capital adiantado e capital produzido ou mais-valor (ou diferença entre valor produzido pelo trabalhador e capital variável)

Nessa relação, cabe ao trabalhador arcar não somente com o que antes era de responsabilidade compartilhada com o empregador e garantida pelo Estado (previdência, auxílio-doença, salário maternidade etc), mas, também, com investimentos e manutenção do meio de produção de hospedagem, além dos tributos. Em síntese: com o “capitalismo de plataforma”, a atividade do produtor direto – o trabalho improdutivo para o capital –, acaba convertido em trabalho produtivo, justamente para produzir D’ e, daí, exacerbar as diferenças entre D e D’, efetivando-se a subsunção do trabalho ao capital. Importante salientar que outras plataformas funcionam nos mesmo moldes (como a Holmy, também no setor de alojamentos) e que os imóveis de locação de curtas temporadas não cadastrados nessas interfaces podem não ter as mesmas vantagens em termos de competitividade daqueles que estão. Por isso, o Airbnb se vale de mecanismos para atrair cadastros que tanto facilitam – como um ambiente claro e fácil de gerenciamento – quanto (atestam) resguardar os anfitriões – como a cobertura de seguro AirCover.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os que não conhecem os mecanismos reprodutivos do capital, tal engenhoca de enaltecimento do “empreendedor individual” se expressa na ilusão do “patrão de si”, a qual coopera com a concretização da chamada “economia do compartilhamento”. Enfatizamos que, no plano ideológico, o trabalhador aparece como indivíduo autônomo, mas sua subordinação à plataforma, no plano prático, faz dele um trabalhador que opera pela e para a produção de mais-valor: o aplicativo, como propriedade privada, torna-se condição com forte apelo para que o trabalhador oferte algo útil e exerça sua atividade. Com isso, são gestadas amplas redes de submissão do trabalho ao capital, em mediações que não só anulam a distinção entre tempo livre e tempo de trabalho, mas, também, atropelam as formas jurídicas que garantem direitos trabalhistas. Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma prática e de uma ideologia que subverte, fragmenta e deturpa o compartilhamento, mas elas são estratégicas ao capital diante da necessidade de ampliação dos circuitos produtivos e de circulação, bem como da impossibilidade – cada vez mais amplificada – de geração de empregos formais e com garantias mínimas no atual momento histórico da forma de sociabilidade capitalista.

Na realidade, conforme abordamos, tais ideias alimentam empresas que concentram e centralizam capitais às custas de estruturas produtivas e de trabalho alheios, ao mesmo tempo em que promovem o “inchaço” de cidades e de bairros que contam com a maior parte das ofertas, no caso de plataformas como o Airbnb. O inflacionamento, não somente dos imóveis para residentes (aluguéis e vendas), mas, também, de serviços diversos, é uma tendência. Ademais, as plataformas fomentam a propensão ao estabelecimento de monopólios, atuando em amplas escalas via meios de controle, por algoritmos, dos instrumentais de trabalho dos sujeitos sociais.

O fato é que o cotidiano difícil, inseguro e alienante, mediado por tais ideologias e práticas, acaba por promover a substituição do “eu coletivo” pelo do “eu individual”, o que restringe as opções por alternativas reais no sentido de construção de uma realidade socioespacial menos opressiva e desigual: para além da promoção, no campo ideológico, do “empreendedorismo” e do “compartilhamento” como estratégias do capital para subsumir o trabalho aos seus anseios reprodutivos, busca-se barrar, fragilizar e/ou dissolver a consciência de classe e, com isso, possíveis enfrentamentos coletivos, haja vista que a ênfase é sempre no produtor individualizado, embora este seja, de fato, um sujeito que pertence à classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 2019Antunes, R. L. C. (Ed.). (2019). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida – o mosaico da exploração. Boitempo.). Não é por outro motivo que ouvimos de um motorista do Uber, em Brasília, DF: “Quer saber? Independentemente de a empresa Uber ganhar em média 25% do nosso trabalho, é isso que está me salvando. É isso que está salvando muita gente”. Dissolve-se ou fragmenta-se a luta social pela manutenção e ampliação das instituições e direitos sociais (trabalhistas, previdenciários etc.) via fortalecimento das organizações privadas que têm compromissos única e exclusivamente com o aumento dos seus patamares de acumulação. Tal processo é chamado por Chauí (2019)Chauí, M. de S. (2019). Neoliberalismo: a nova forma do totalitarismo. A Terra é redonda. https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo/
https://aterraeredonda.com.br/neoliberal...
de “totalitarismo de mercado”.

Antunes (2019, p. 19)Antunes, R. L. C. (2009). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. (2ª ed.). Boitempo. explica que trabalhadores e trabalhadoras ocupados(as) em “[...] call centers, telemarketing, indústria de software e tecnologias de informação e comunicação, hotelaria, shopping centers, hipermercados, fast-food, grande comércio [...], – as atividades que despontaram no setor de serviços nos últimos anos – podem ser compreendidos(as) como os “novos proletariados de serviços”. Trata-se de um segmento mais baixo da classe média e não simplesmente algo à parte dela, uma vez que, no campo da subjetividade, nem sempre compartilha, com a classe média, o pensamento predominante de negação da classe de pertencimento e afirmação da classe que se almeja pertencer. Essa característica advém, no campo objetivo, das difíceis condições impostas pelo trabalho produtivo: “O aumento da exploração do trabalho, que passou cada vez mais a se configurar como superexploração da força de trabalho, além de aumentar o desemprego, vem ampliando enormemente a informalidade, a terceirização e a precarização [...]” (Antunes, 2019Antunes, R. L. C. (Ed.). (2019). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida – o mosaico da exploração. Boitempo., p. 20).

Harvey (1992, p. 140)Harvey, D. (1992). A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. (A. U. Sobral & M. S. Gonçalves, Trad.). Loyola. aponta que isso caracteriza a chamada reestruturação produtiva – levada a termo sobretudo a partir da década de 1970 – e acontece pela necessidade sempre crescente de valorização do valor, a qual promove o que ele chama de “flexibilidade” e que passa a mediar cada vez as relações entre trabalho, capital e investimentos. São algumas de suas características: 1) o aniquilamento daquele trabalho que oferecia certas garantias, ou seja, “a erosão do trabalho contratado e regulamentado [que] era dominante no século XX, e sua substituição pelas diversas formas de trabalho atípico, precarizado e ‘voluntário’” (Antunes, 2013Antunes, R. L. C. (Ed.). (2013). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. Boitempo, p. 20); 2) a exacerbação do capital fictício, composto por ações, títulos públicos e crédito, com expressiva funcionalidade para o capital produtivo; 3) a tendência de troca do salário por tempo pelo salário por peça (Marx 2008Marx, K. (2008). O Capital: crítica da economia política: Livro III. (Sant’Anna, R., Trad.) Civilização Brasileira.), acompanhado da diminuição ou estagnação de postos de trabalho no setor industrial com o aumento expressivo no de serviços, uma vez que tal setor conforma uma diversidade de pequenos e médios empreendimentos que recorrem “a força de trabalho amplamente não sindicalizada [e criam] novos setores de baixa remuneração, [...]” (Braverman, 1980Braverman, H. (1980). Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no séculoXX. (Caixeiro, N., Trad.) (2ª ed.). Zahar., p. 240);

4) uma escalada sem precedentes das plataformas ou sua universalização, sendo que a riqueza gerada pelo trabalho social (em nível concorrencial secundário, com micro e pequenas empresas ou mesmo iniciativas informais de produtores diretos) é direcionada em parte considerável aos grupos que detêm o que se tornou o meio de produção regulador dos processos. Também por esses motivos, é preciso enfrentar as posições que, equivocadamente ou estrategicamente, deslocam a teoria do valor-trabalho de sua posição central, uma vez que, sem ela, o anfitrião do Airbnb seria somente um empreendedor e não efetivamente o que é: um trabalhador por peça e sem direitos laborativos.

Em relação ao campo da produção dos serviços de hospedagem, o setor de alojamento tradicional ao competir com plataformas especializadas em locações por curtas temporadas, acaba obrigado a promover adequações ao trabalho vivo a fim de minimizar custos, inclusive com o aumento da composição orgânica do capital, o que geralmente significa extensão a intensificação laborais. Em relação a localidade de Ouro Preto, com o levantamento de dados preliminares possíveis a partir do software, verificou-se que o número de ofertas de imóveis para curtas temporadas via Airbnb é expressivo, ultrapassando consideravelmente as unidades habitacionais (UHs) cadastradas no Booking, o que acaba por configurar e reconfigurar as relações entre capital versus trabalho e, também, o uso dos imóveis em função de outras ou novas possibilidades de geração de valor ou rendas. Nesse contexto e, embora essas repercussões precisem ser averiguadas com rigor científico, verificamos que não há mecanismos normativos da administração pública local para as locações de curta temporada, tal como em Portugal, onde a normatização foi implementada de forma descentralizada, nas administrações locais.

Por fim, apontamos que o instrumental desenvolvido – que, pretende-se, torne-se operacional e público em breve –, bem como a teorização dos dados levantados com o suporte analítico da crítica da economia política, são elementos essenciais para que coletividades possam compreender o comportamento do setor e suas contradições. O sentido prioritário é que questionem e enfrentem as práticas corporativas e, em paralelo, postulem das administrações locais a instituição de mecanismos de controle de uma prática que tem redimensionado o setor de alojamento e promovido diversas contradições e desdobramentos socioespaciais.

  • Como citar: Martoni, R. M. et al. (2023). A produção do turismo mediada pela plataforma Airbnb: proposição de um instrumental/software para o levantamento de dados empíricos e teorizações introdutórias. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 17, e-2792, 2023. https://doi.org/10.7784/rbtur.v17.2792

REFERÊNCIAS

Editado por

Editor: Glauber Eduardo de Oliveira Santos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2023
  • Aceito
    26 Jun 2023
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