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A contribuição da Ergonomia para a segurança no trabalho

Resumo

Introdução:

processos de alto risco com elevadas taxas de acidentes desafiam a segurança. Por outro lado, sistemas ultrasseguros conquistaram ótimos indicadores. Em ambos, a prevenção parece ter chegado a um limite - em um deles, porque parece impotente para gerar prevenção; no outro, porque foi tão bem-sucedida que parece impossível avançar.

Objetivo:

evidenciar a contribuição da Ergonomia em prol da segurança, nas situações descritas, suas possibilidades ainda por explorar, entre elas a Ergonomia de concepção na integração homem-máquina (sistemas informatizados).

Método:

análise comparativa dos achados oriundos de estudos ergonômicos em sistemas de produção com altas taxas de acidentes e sistemas ultrasseguros.

Discussão:

a análise da atividade dos motofretistas mostrou que existem alternativas de ação ainda não exploradas entre as relações de trabalho desfavoráveis e a percepção de inevitabilidade dos acidentes. Nos sistemas ultrasseguros, o aparente limite pode ser superado com os avanços recentes na análise da ação e cognição situadas e na construção de espaços de debate que permitam o retorno da experiência de campo. Em sistemas informatizados, as práticas de projeto colaborativo, que se valem da experiência dos trabalhadores para alimentar as dinâmicas de aprendizagem e a confiabilidade técnica, são possibilidades ainda pouco praticadas na Engenharia de Segurança.

Palavras-chave:
ergonomia; motociclistas; saúde do trabalhador; projeto colaborativo; organizações de alta confiabilidade

Abstract

Introduction:

while high-risk processes with high accident rates challenge safety, High Reliability Organization (HRO) achieve excellent indicators. In both cases, prevention seems to have reached a limit. In the former, because it seems powerless to generate prevention; in the latter, because it has been so successful that it seems impossible to reach greater levels.

Objective:

to highlight the contribution of Ergonomics to safety in these situations, pointing out unexplored possibilities such as design Ergonomics in man-machine integration (computerized systems).

Method:

comparative analysis of findings from ergonomic studies on production systems with high accident rates and HRO.

Discussion:

analysis of the motorcycle freight drivers’ activity revealed alternatives yet to be explored between unfavorable work relations and the perceived inevitability of accidents. The apparent limit of HRO can be overcome with recent advances in the analysis of situated action and cognition and by building debate spaces based on field experience. Collaborative design practices, which draw on worker experience to feed learning dynamics and technical reliability, remains a poorly explored possibility in Safety Engineering when it comes to computerized systems.

Keywords:
ergonomics; motorcyclists; occupational health; collaborative project; high reliability organizations

Introdução

Existe uma demanda social e real pela segurança dos processos produtivos. A gestão da segurança do trabalho das empresas tem atuado de forma preponderantemente corretiva, sem conseguir aprender com os acidentes para antecipá-los. A Ergonomia tem importante contribuição para a segurança do trabalho, o que motiva a produção deste artigo, o qual procura evidenciar o que já foi feito, assim como o que ela ainda pode fazer, para tornar os sistemas produtivos mais seguros e melhorar a concepção na integração homem-máquina.

Ergonomia e Segurança constituem campos de conhecimento e ação próprios na promoção de melhoria das condições de trabalho. Apesar disso, ao compartilhar um mesmo objeto - o trabalho -, acabam atuando em um mesmo espaço, tanto prático quanto teórico. Nessa zona de superposição, a Ergonomia, com seus conhecimentos e métodos específicos, contribui para a segurança de diferentes maneiras, mas só quando a atividade humana está presente como parte integrante de um sistema sociotécnico. Assim, no campo da Segurança, a Ergonomia sempre tem algo a dizer quando o comportamento humano está presente ou atua como elemento mediador na operação dos sistemas de produção.

Neste artigo, não nos propomos a refazer um inventário de todos os temas e problemas de segurança que contam ou podem contar com a contribuição da Ergonomia. Essa visão ampla, do tipo enciclopédica, pode ser verificada em capítulos ou seções dos manuais de segurança dedicados à Ergonomia11. Lima FPA, Rabello L, Castro M, organizadores. Conectando saberes: dispositivos sociais de prevenção de acidentes e doenças no trabalho. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015., ou, inversamente, nos capítulos/seções dos manuais de Ergonomia dedicados à segurança22. Bratz D, Rocha R, Gemma S. Engenharia do trabalho, saúde, segurança, ergonomia e projeto. Santana de Parnaíba: Ex Libris Comunicação; 2021.), (33. Falzon P, editor. Ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2012.. Adotamos, aqui, outra abordagem: discutir a contribuição da Análise Ergonômica do Trabalho (AET) para a prevenção de acidentes em dois casos extremos, ambos de alto risco: de um lado, sistemas de produção com altas taxas de acidentes (em que se incluem o trabalho dos motofretistas, discutido neste artigo, sistemas de produção da construção civil4 e frigoríficos55. Coutarel F, Daniellou F, Dugué, B. Interroger l'organisation du travail au regard des marges de manoeuvre en conception et en fonctionnement : la rotation est-elle une solution aux TMS? PISTES. 2003;5(5-2):1-27.), (66. Messias IA, Nascimento A, Rocha R. Job rotation as a legal requirement: analysis of the participatory approach in acceptance and workers' perception at a meatpacking plant. Gest Prod. 2022;29:e10522.), nos quais a prevenção é ainda um desafio; de outro, sistemas ultrasseguros, nos quais, apesar dos perigos evidentes, os riscos foram controlados de forma a reduzir os acidentes a taxas inferiores a 10-6. Nos sistemas ultrasseguros, como na indústria nuclear e aviação, as práticas de prevenção e a cultura de segurança prevalecentes, para as quais a Ergonomia contribui desde o pós-segunda guerra, foram e são tão bem-sucedidas que parecem ter atingido um limite77. Amalberti R. Gestão da segurança. Presidente Prudente: Gráfica CS Eireli; 2016..

Nos dois sistemas, a prevenção se depara com um impasse. No primeiro, as medidas implementadas não surtem efeito preventivo; no outro, a prevenção foi tão bem-sucedida que parece impossível galgar outros patamares. Em ambos, por razões diferentes, restaria apenas aceitar e conviver com os acidentes, como se nada mais fosse possível fazer, para todos os efeitos, “naturalizando-os”.

Ao analisar situações polares como essas, nas quais a segurança é uma necessidade manifestada, a contribuição da Ergonomia pode ser mais bem evidenciada e, ao mesmo tempo, colocada à prova. Diante delas, como em um espelho, tanto a Segurança quanto a Ergonomia são confrontadas com suas próprias limitações, o que destaca a necessidade de ampliar suas ações de prevenção.

Para apresentar a contribuição da Ergonomia com a segurança nos sistemas ultrasseguros, discutimos como a análise da atividade permite antecipar acidentes (ou aprender com o trabalho normal, nos termos da Engenharia de Resiliência88. Hollnagel E, Woods DD, Leveson NG. Resilience engineering: concepts and precepts. Aldershot: Ashgate; 2006.). Sistemas de produção com baixa taxa de acidentes perderam a capacidade de prevenção porque aprendemos apenas quando os acidentes acontecem. Esse paradoxo - esperar que acidentes aconteçam para planejar a prevenção - só pode ser resolvido ao se dar um passo para trás, analisando incidentes menores e sinais fracos, que se manifestam em situações normais de trabalho. O interesse atual em tais circunstâncias recai em algumas correntes mais avançadas da Segurança (Safety II, Resiliência, HRO etc.) (88. Hollnagel E, Woods DD, Leveson NG. Resilience engineering: concepts and precepts. Aldershot: Ashgate; 2006.)- (1010. Roberts KH. New challenges in organizational research: high reliability organizations. O&E. 1989;3(2):111-25., que buscam conhecer e aprender com o trabalho normal, campo em que a Ergonomia da atividade tradicionalmente tem atuado.

Pode parecer estranho que em um texto que trata da contribuição da Ergonomia sejam discutidas suas limitações. No entanto, ao admiti-las, abre-se a possibilidade de interseção entre os campos disciplinares por meio de abordagens inovadoras. Essas novas possibilidades serão discutidas na seção “Contribuição da Ergonomia ao projeto dos artefatos para integração homem-máquina (sistemas informatizados)”, após mostrarmos como, na abordagem atual, a Ergonomia pode contribuir para fazer a segurança avançar nesses dois casos limites: os motofretistas (seção “A contribuição da análise da atividade para a prevenção de acidentes com motofretistas”) e os sistemas ultrasseguros (seção “Análise da atividade, sinais fracos e sistemas ultrasseguros”). Na seção seguinte, discutiremos com mais detalhes os espaços comuns da Ergonomia e da Segurança do Trabalho.

Ergonomia, segurança e análise da atividade

A abordagem ergonômica tem como campo de atuação principal o trabalhador em situação de trabalho ou, mais precisamente, a atividade de trabalho que esse trabalhador desenvolve. A postura ontológica de aproximação do trabalho vivo permite identificar as causas mediatas dos comportamentos, dos acidentes e incidentes, das doenças e da sobrecarga de trabalho1111. Lima FPA. A formação em ergonomia: reflexões sobre algumas experiências de ensino da metodologia de Análise Ergonômica do Trabalho. In: Kiefer C, Fagá I, Sampaio MR. Trabalho - educação - saúde: um mosaico em múltiplos tons. São Paulo: Fundacentro; 2001. p. 133-48.. Constitui também campo de interesse e de possibilidades de a Ergonomia produzir um corpo de conhecimento necessário à ação, para transformar as situações de trabalho, incluindo sistemas organizacionais e artefatos técnicos1212. Falzon P. Natureza, objetivos e conhecimentos da ergonomia: elementos de uma análise cognitiva da prática. In: Falzon P, editor. Ergonomia. São Paulo: Edgard Blucher; 2012. p. 3-19.. Nesse escopo geral de atuação, surgem diversas demandas e problemas de segurança. As contribuições da Ergonomia para a segurança podem, assim, dar-se em três grandes campos:

  1. direcionada diretamente ao assim chamado “fator humano” (1313. Reason J. The human contribution: unsafe acts, accidents and heroic recoveries. London: CRC Press; 2008., procurando entender como o “erro humano” se produz, mas também mostrando como os operadores humanos são fonte de confiabilidade dos sistemas técnicos;

  2. na concepção das condições materiais de trabalho (ambiente, instrumentos de trabalho e equipamentos) e, hoje, com a automação e o avanço da inteligência artificial, promovendo a integração entre atividade de trabalho e sistemas informatizados; e

  3. na esfera da organização e da gestão: compreensão de como processos e estruturas organizacionais afetam a atividade dos trabalhadores (inclusive engenheiros e gerentes que ocupam os diversos níveis hierárquicos); na concepção de dispositivos organizacionais que promovam retorno de experiência e aprendizagem para atuar na prevenção de “acidentes organizacionais” (1414. Llory M, Montmayeul R. O acidente e a organização. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2014..

Desde o momento em que a abordagem da análise da situação de trabalho em sua globalidade teve início, Wisner1515. 15. Wisner A. Arretons d'opposer cause technique et cause humaine. Santé et Travail. 1991;(2):29-35. já questionava a separação entre condição insegura e erro humano. Posteriormente, a análise da atividade possibilitou contribuições mais específicas sobre a natureza do erro humano ao analisar a dinâmica da atividade em situações normais e em casos de acidentes e incidentes.

A emergência do fator humano

O aumento progressivo da confiabilidade técnica teve como efeito secundário evidenciar os erros como causa predominante dos acidentes, com frequência chegando à proporção de 80% a 90%1616. Vilela RAG, Iguti AM, Almeida IM. Culpa da vítima: um modelo para perpetuar a impunidade nos acidentes do trabalho. Cad Saude Publica. 2004;20(2):570-9.. No campo da psicologia, desde os anos 1980, em paralelo com o desenvolvimento da AET e da análise da atividade, o erro humano se tornou um dos temas principais de estudo e o “fator humano” passou ser considerado o elo frágil dos sistemas sociotécnicos1313. Reason J. The human contribution: unsafe acts, accidents and heroic recoveries. London: CRC Press; 2008.), (1717. Woods D, Dekker S, Cook R, Johannesen L, Sarter N. Behind human error. Farnham: Ashgate; 2004.), (1818. Le Coze JC. Trente ans d'accidents : le nouveau visage des risques sociotechnologiques. Toulouse: Octarès; 2016.), (1919. Reason J. Human error. Cambridge: Cambridge UP; 1990.. Partindo do fator humano, a psicologia do trabalho e a psicologia ergonômica se deparam com as condições materiais e organizacionais que influenciam a atividade dos trabalhadores, entrando na era do “acidente organizacional” (2020. Reason J. Managing the risks of organizational accidents. Farnham: Ashgate; 1997.. Nessa ocasião, abordagens sociológicas da segurança realizam um movimento semelhante, gerando a abordagem dos “acidentes normais” (2121. Perrow C. Normal accidents: living with high-risk technologies. New York: Basic Books; 1984.) e, mais tarde, o estudo seminal de Vaughan2222. Vaughan D. The challenger launch decision: risky technology, culture, and deviance at NASA. Chicago: University of Chicago Press; 1996. sobre o acidente da Challenger. Por falta de espaço, a discussão será limitada à psicologia.

Essa demanda da Segurança à Psicologia para tratar o “fator humano” levou a análises do comportamento e de processos cognitivos separados da situação vivenciada. Essa separação gerou resultados sistemáticos sobre as falhas humanas1919. Reason J. Human error. Cambridge: Cambridge UP; 1990.), (2323. Rasmussen J, Duncan K, Leplat J, editors. New technology and human error. Chichester: John Wiley and Sons; 1987., mas com perda da compreensão das interações entre os elementos do sistema de trabalho, ampliados com a abordagem transversal, vertical e histórica dos fatores organizacionais1414. Llory M, Montmayeul R. O acidente e a organização. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2014..

Compreender os acidentes como consequência de processos subjetivos e de causas organizacionais, sem dúvida, representa um avanço na prevenção, mas esse duplo movimento criou um desequilíbrio. Seguindo Reason, Le Coze1818. Le Coze JC. Trente ans d'accidents : le nouveau visage des risques sociotechnologiques. Toulouse: Octarès; 2016. se pergunta se os modelos e as teorias não teriam ido longe demais, afastando-se de causalidades próximas aos acidentes, como manutenções e falhas de procedimentos. Esse autor propõe um modelo de análise multinível que procura integrar aspectos da situação imediata e da organização mais geral (social, econômica e política) e os níveis da atividade individual e coletiva considerando os processos cognitivos. Para isso, a análise deve ser capaz de descrever o que aconteceu no exato momento em que ocorreram os erros, incidentes e acidentes. Esse é o ponto em que a AET - e, em especial, a análise da atividade situada - possibilita avançar ao descrever de forma integrada como se entrelaçam o contexto organizacional, as condições materiais e a atividade de trabalho.

A contribuição da análise da atividade para a prevenção de acidentes com motofretistas

Normalmente, as discussões sobre acidentes com motofretistas ou motociclistas profissionais - trabalhadores que realizam serviço com motocicletas - pouco distanciam do senso comum de como promover a prevenção desses eventos e muito longe passam das possíveis implicações das relações e da organização do trabalho sobre o comportamento da categoria. Conscientização dos riscos e do valor da vida, capacitação por especialistas em legislação e aplicação das penalidades estão sempre presentes nas propostas que se pretendem preventivas2424. Diniz EPH. As condições acidentogênicas e as estratégias de regulação dos motociclistas profissionais: entre as exigências de tempo e os constrangimentos do espaço [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003..

Ao desconsiderar a gestão opressiva e as condições de trabalho precarizadas, as recomendações em geral formuladas para a prevenção de acidentes nesse setor se configuram em fábulas ou perversidades, dada a impossibilidade de os trabalhadores obedecerem a todo o tempo ao código de trânsito2424. Diniz EPH. As condições acidentogênicas e as estratégias de regulação dos motociclistas profissionais: entre as exigências de tempo e os constrangimentos do espaço [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003.. A análise da atividade dos motofretistas na expedição das empresas e nas vias públicas revelou o quanto a organização e as relações de trabalho impactavam a conduta desses trabalhadores2424. Diniz EPH. As condições acidentogênicas e as estratégias de regulação dos motociclistas profissionais: entre as exigências de tempo e os constrangimentos do espaço [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003..

Para ilustrar a situação, o Quadro 1 sumariza as contribuições das diferentes perspectivas sobre o trabalho da categoria e mostra que, com a Ergonomia, mesmo em situações extremas e aparentemente sem solução como essa, é possível extrair da atividade algumas propostas de ações que podem ser adotadas no âmbito das empresas e, para além delas, na regulamentação de uma dada atividade profissional. A análise da atividade dos motofretistas confirma que o que é decisivo para a segurança não é o poder normativo e de maneira isolada, mas sim que as normas e os procedimentos não dissociem ou impeçam a capacidade de gestão da atividade exercida pelos trabalhadores, seja individual ou coletivamente2525. Lima FPA. Paradoxos e contradições do direito de recusa. In: Lima FPA, Rabello L, Castro M, organizadores. Conectando saberes: dispositivos sociais de prevenção de acidentes e doenças no trabalho. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015. p. 173-212.. Como exemplo de ação que ultrapassa o limite normativo, a autonomia que alguns motofretistas dispunham em alguns momentos de poder reorganizar a própria tarefa2424. Diniz EPH. As condições acidentogênicas e as estratégias de regulação dos motociclistas profissionais: entre as exigências de tempo e os constrangimentos do espaço [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2003. lhes permitia explorar as informações do ambiente técnico e humano e, por efeito, reduzir de forma mais eficaz a complexidade2626. Leplat J. Aspectos da complexidade em Ergonomia. In: Daniellou F, coordenador. A Ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher; 2004. p. 57-77. que caracteriza o sistema de tráfego veicular.

Quadro 1
As contribuições das diferentes visões sobre o trabalho dos motofretistas

A análise ergonômica da atividade mostrou que outro mundo é possível quando se reconhece e se valida a experiência dos trabalhadores como um recurso valioso e imprescindível para a garantia da produção e a prevenção de acidentes2525. Lima FPA. Paradoxos e contradições do direito de recusa. In: Lima FPA, Rabello L, Castro M, organizadores. Conectando saberes: dispositivos sociais de prevenção de acidentes e doenças no trabalho. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2015. p. 173-212.. A análise da atividade dos motofretistas permitiu evidenciar que os determinantes mediatos da situação de trabalho (tempo prescrito versus tempo real, relações de poder, gestão e organização do trabalho) se sobrepõem aos fatores imediatos (comportamento no trânsito), podendo comprometer as margens de manobra dos trabalhadores. O método, ao auxiliar a ver e compreender o mundo dos trabalhadores pelos olhos deles próprios, possibilitou elaborar recomendações ainda pouco exploradas.

Entretanto, o uso do método demanda uma mudança de perspectiva do observador, que deve ser construída superando obstáculos arraigados no senso comum e nas visões de mundo hegemônicas1111. Lima FPA. A formação em ergonomia: reflexões sobre algumas experiências de ensino da metodologia de Análise Ergonômica do Trabalho. In: Kiefer C, Fagá I, Sampaio MR. Trabalho - educação - saúde: um mosaico em múltiplos tons. São Paulo: Fundacentro; 2001. p. 133-48., como a atribuição de culpa aos trabalhadores que se acidentam.

Mas que outro mundo é de fato possível se a análise da atividade, ainda que constitua um método adequado para expor os efeitos do modelo econômico sobre a produção e o trabalhador, e as recomendações dela originadas, ainda que validadas, não dispõem de meios e força para alterar per se a dimensão organizacional, estruturante e essencial da situação de trabalho? A economia de mercado e a financeirização das empresas jogam por terra qualquer tentativa ou iniciativa, seja individual ou do coletivo de trabalhadores, de garantir a própria segurança ou a do cliente, mesmo em áreas consideradas de referência nesse assunto, como a da aviação civil. O caso da Boeing e seu modelo de aeronave 737 Max, impactado pela gestão neoliberal e de financeirização sobre a companhia aérea, tornou-se emblemático ao priorizar os dividendos dos acionistas em detrimento da gestão da segurança até então praticada pelos trabalhadores da empresa2727. Queda livre: a tragédia do caso boeing [Documentário]. Direção: Rory Kennedy. [place unknown]: Imagine Documentaries; 2022.. No caso dos motofretistas, as regulações individuais ou coletivas praticadas pela categoria atuavam conforme as brechas e os limites do espaço de liberdade ainda preservados àquela época e visavam moldar uma verdadeira égide que lhes servisse de instrumento prático de atenuação da pressão temporal associada à elevada demanda de serviço. Com o advento da uberização - trabalho controlado por empresas-plataformas de aplicativos na prestação de serviços (de delivery, por exemplo) -, foram retirados todos e quaisquer vestígios de autonomia que a categoria dispunha para gerir a produção e a própria segurança, exacerbando ao extremo as já precárias condições e relações de trabalho2828. Kalil RB. A regulação do trabalho via plataformas digitais. São Paulo: Edgard Blucher; 2020.. A transformação das condições de trabalho, no sentido de maior precarização, anda em sentido oposto ao acúmulo de conhecimentos sobre as condições de trabalho e sobre a atividade real dos motofretistas.

O caso dos motofretistas e sua tênue apropriação dos resultados da pesquisa por parte daqueles envolvidos no processo confirmam também a tese defendida por Daniellou2929. Daniellou F. Apresentação à edição brasileira. In: Daniellou F, coordenador. A Ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher; 2004. p. vii-x. de que a transformação do trabalho não é um subproduto automático da análise da atividade. Ou seja, as análises não podem se limitar apenas a identificar e a publicizar os efeitos dos determinantes mediatos do modelo econômico. A transformação tem início quando o ergonomista intervém e se posiciona como catalisador e motor dos processos de ação de melhoria das condições de trabalho.

Análise da atividade, sinais fracos e sistemas ultrasseguros

As melhorias conjuntas da confiabilidade técnica, organizacional e humana levaram alguns sistemas a um patamar de segurança que permite classificá-los como ultrasseguros77. Amalberti R. Gestão da segurança. Presidente Prudente: Gráfica CS Eireli; 2016. ou como “organizações de alta confiabilidade” (High Reliability Organizations - HRO) (1010. Roberts KH. New challenges in organizational research: high reliability organizations. O&E. 1989;3(2):111-25.. A queda contínua dos índices de acidentes desenha uma assíntota oscilante e um tanto errática, demandando à gestão da segurança buscar novas ferramentas e abordagens de prevenção para retomar a curva descendente e chegar cada vez mais perto do zero acidente. Embora essa meta seja mais um horizonte do que uma possibilidade imediata, como acreditam alguns profissionais da segurança, existe uma demanda social real, mesmo em sistemas ultrasseguros, como a aviação civil, para reduzir ainda mais os acidentes, raros, mas catastróficos.

Aqui é que a Ergonomia pode atuar nos sistemas existentes, criando novas ferramentas ou aperfeiçoando as vigentes. Nesse sentido, ainda há muito a se fazer na antecipação de riscos. Um ponto de inflexão comum em diversas abordagens é que a prevenção e o aprendizado baseado apenas na análise de acidentes, incidentes e anomalias são limitados e atuam sempre de forma corretiva.

Análise do trabalho normal e dos sinais fracos para promover a prevenção de acidentes

Para superar esse paradoxo da prevenção que já não é preventiva, autores de diversas áreas, como a Engenharia de Resiliência88. Hollnagel E, Woods DD, Leveson NG. Resilience engineering: concepts and precepts. Aldershot: Ashgate; 2006., a abordagem da Segurança II99. Hollnagel E. Safety-I and Safety-II: the past and the future of safety management. Farnham: Ashgate; 2014.) ou mesmo a proposta provocativa de uma “segurança anarquista”, enfocam a análise da normalidade3030. Dekker S. The safety anarchist: relying on human expertise and innovation, reducing bureaucracy and compliance. London: Routledge; 2018.. De modo semelhante à Ergonomia da atividade, esses autores reconhecem a diferença entre “work-as-done” e “work-as-imagined”, que reproduz o par “trabalho prescrito” e “trabalho real”, levando à necessidade de analisar o trabalho normal para compreender os riscos antes que eles se manifestem na forma de incidentes ou acidentes. Todavia, além dos conceitos, esse princípio de análise da normalidade ainda apresenta dificuldades para ser operacionalizado, como alertam Lima et al. (3131. Lima FPA, Duarte F, Sznelwar LI, Rocha R, Drakos A, Flandin S. La perception des signaux faibles : propositions pour l'analyse de l'activité dans les organisations à risques. 56ème Congrès SELF : Vulnérabilités et Risques Émergents : Penser et Agir Ensemble pour Transformer Durablement; 6-8 juillet 2022; Genève.:

Nessa perspectiva, a já antiga noção de “sinal fraco” é tanto promissora quanto assustadora: promissora, porque se refere à etapa crucial das premissas da especificação por profissionais de um estado degradado do sistema; assustadora, porque permanece hoje em dia bastante difícil de teorizar, em particular no nível fenomenológico [o estudo da emergência do fenômeno para o ator], e consequentemente pouco documentada ao nível empírico. (p. 3).

Quando se trata de situações de normalidade, é necessário se perguntar não apenas sobre a força do sinal que indica um risco potencial, mas também sobre a própria natureza de sinal atrelado a um risco3131. Lima FPA, Duarte F, Sznelwar LI, Rocha R, Drakos A, Flandin S. La perception des signaux faibles : propositions pour l'analyse de l'activité dans les organisations à risques. 56ème Congrès SELF : Vulnérabilités et Risques Émergents : Penser et Agir Ensemble pour Transformer Durablement; 6-8 juillet 2022; Genève.:

Quando considerado fraco, o sinal pode designar duas coisas muito diferentes conforme se coloque em uma epistemologia cognitivista (cognição como sistema de processamento de informações disponível fora do ator) ou ecológica (cognição como meio e produto da emergência de informações formadas no acoplamento ator-ambiente). Em uma abordagem cognitivista, o sinal existe no ambiente e sua natureza “fraca” refere-se a uma dificuldade de percepção e interpretação intimamente ligada a um grau de especialização. Numa abordagem ecológica, o sinal não existe antes de emergir no acoplamento ator-ambiente e seu caráter “fraco” refere-se ao fato de ainda não se configurar como um “signo” que teria um significado claro para o ator. É então apenas uma discrepância no ambiente, uma diferença entre o esperado e o real. (p. 3).

Com certeza, investir na apreensão dos sinais fracos é uma via interessante para avançar nas questões de segurança abordadas a partir da perspectiva da atividade real dos trabalhadores, mas isso requer uma abordagem ecológica, como a Teoria do Curso da Ação (TCA) (3232. Theureau J. O curso da ação: método elementar. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2014..

As hipóteses ontológicas e a análise semiológica propostas neste referencial teórico nos permitem descrever a parte da atividade humana que pode ser apreendida subjetivamente pelo ator e possibilitar a análise ex ante de situações pré-acidentais, podendo lançar luz sobre a ruptura causada pelo acidente durante a atividade que parecia normal3131. Lima FPA, Duarte F, Sznelwar LI, Rocha R, Drakos A, Flandin S. La perception des signaux faibles : propositions pour l'analyse de l'activité dans les organisations à risques. 56ème Congrès SELF : Vulnérabilités et Risques Émergents : Penser et Agir Ensemble pour Transformer Durablement; 6-8 juillet 2022; Genève. (p. 3).

Assim, toda a organização que deseje produzir com segurança e qualidade deve buscar formas de identificar os sinais fracos presentes nas situações de trabalho. Várias dessas organizações reconhecem isso e buscam, em maior ou menor grau, desenvolver métodos e dispositivos com o intuito de trazer à tona esses sinais e, assim, aprender com as equipes operacionais e se desenvolver a partir da própria experiência.

Uma nova abordagem do Retorno da Experiência para fazer a prevenção de acidentes

As tentativas de desenvolvimento do Retorno da Experiência (REX), por exemplo, a divulgação de análises de acidentes, os sistemas de notificação de incidentes ou acidentes e as reuniões sobre segurança (diálogos diários de segurança, minuto da segurança etc.) são, de maneira geral, focados em sistemas apenas retrospectivos, baseados em eventos indesejados, com desfechos já encerrados. São abordagens reativas à segurança, que já mostraram seus limites, uma vez que o contexto acidental - normalmente atrelado a uma visão só normativa da segurança e à responsabilização dos operadores envolvidos - limita o aprendizado sobre a situação3333. Amalberti R, Gremion C, Auroy Y, Michel P, Salmi R, Parneix P, et al. Les systèmes de signalement des événements indésirables en médecine. Etudes et Resultats. 2007;(584):1-8.. Com isso, poucos são os elementos da atividade real de trabalho que aparecem nesses espaços, assim como os sinais fracos do sistema e, portanto, o REX clássico, ou reativo, tradicionalmente desenvolvido pelas organizações, não é capaz de conceber, com os diferentes trabalhadores, um ambiente de prevenção. Faz-se necessário pensar em sistemas mais abrangentes de retorno da experiência, baseados não em eventos pontuais, singulares e indesejados, com desfechos já definidos, mas também nas “situações normais” (3434. Assunção AA, Lima FPA. A contribuição da ergonomia para a identificação, redução e eliminação da nocividade do trabalho. In: Mendes R. Patologia do trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu; 2003. p. 1768-89., em que o evento indesejado não necessariamente ocorreu, mas poderia ter ocorrido. Nessas situações, a atividade de trabalho poderia, ao menos em parte, ser revelada e contribuir para o campo da segurança. Como mostra Amalberti3535. Amalberti R. The paradoxes of almost totally safe transportation systems. Saf Sci. 2001;37(2):109-26., os encadeamentos de ações que geram os acidentes são, com frequência, muito parecidos com aqueles que foram eficazes na prevenção dos eventos, com diferenças, entre um e outro, em pequenos detalhes da atividade.

Essa é, portanto, uma forma de desenvolver a organização a partir da sua própria experiência e da sua capacidade de tirar lições de situações que ainda não geraram problemas, ou seja, por meio de métodos prospectivos de retorno de experiência, que podem ser operacionalizados mediante a criação de momentos e espaços institucionalizados de confrontação e debate sobre o trabalho real3636. Rocha R. Espaços de debate e poder de agir na construção da segurança das organizações. Laboreal. 2017;13(1):1-9..

Contribuição da Ergonomia ao projeto dos artefatos para integração homem-máquina (sistemas informatizados)

O esquema da Figura 1 representa três grandes etapas do desenvolvimento da segurança na segunda metade do século XX, que hoje parece ter encontrado um limite cuja superação demanda novas abordagens dos fatores humanos. Na perspectiva da Ergonomia, não se trata de uma sequência de etapas sucessivas, mas sim de abordagens que caminharam em paralelo, até certo ponto se distanciando umas das outras, mas que, agora, devem ser aproximadas em uma segurança integrada. A contribuição da Ergonomia consiste, assim, em repensar a confiabilidade técnica e os sistemas de gestão a partir das práticas e dos métodos de REX. Acima, enfatizamos como os dispositivos de REX contribuem para mudanças organizacionais, criando espaços de autonomia, integrando ações em diferentes níveis hierárquicos e alimentando a organização com fluxos de informação ascendentes e descendentes. Outras importantes contribuições da Ergonomia, para completar esse quadro da segurança integrada, são as práticas de projeto colaborativo, pelas quais a experiência dos trabalhadores pode alimentar a confiabilidade técnica, via de regra, uma atribuição restrita aos engenheiros.

Figura 1
A nova fronteira dos fatores humanos e organizacionais da segurança

A intenção da Ergonomia de concepção é transformar “artefatos técnicos” em “instrumentos”, facilitando o processo de apropriação pelos trabalhadores. Esse processo de instrumentação ocorre quando esquemas de ação se desenvolvem e se juntam às propriedades funcionais dos artefatos3737. Rabardel P, Béguin P. Instrument mediated activity: from subject development to anthropocentric design. Theor Issues Ergon Sci. 2005;6(5):429-61.. Para exemplificar a contribuição da Ergonomia no caso dos sistemas ultrasseguros, é interessante tratar o paradoxo da automação, que aumenta a segurança técnica ao mesmo tempo que diminui a confiabilidade humana. Essa situação foi apontada desde os anos 1980 por Bainbridge3838. Bainbridge L. Ironies of automation. In: Rasmussen J, Duncan K, Leplat J, editors. New technology and human error. New York: John Wiley; 1987. p. 271-83., que evidenciou diversos efeitos negativos para o desempenho dos operadores decorrentes da forma como os engenheiros desenvolviam a automação dos sistemas técnicos. “O projetista tem a ideia de que o operador humano não é confiável nem eficiente, devendo, portanto, ser eliminado do sistema” (p. 272). A contradição é que, ao projetar excluindo a intervenção humana, considerada o elo frágil dos sistemas homem-máquina, os engenheiros criam situações que são fontes de erro. O que se ganha de um lado com a confiabilidade técnica, perde-se, em parte, do outro, com as dificuldades criadas para que os operadores mantenham sob controle os sistemas automatizados. Quando se tenta eliminar o homem, o projetista deixa para o operador apenas a realização de tarefas que não consegue automatizar. Em consequência, o operador fica responsável por uma coleção arbitrária de tarefas, e pouco é pensado sobre como lhe dar suporte em sua atividade3838. Bainbridge L. Ironies of automation. In: Rasmussen J, Duncan K, Leplat J, editors. New technology and human error. New York: John Wiley; 1987. p. 271-83.. Por exemplo, em uma emergência, quando se requer a intervenção humana, há dificuldades de acesso às informações necessárias para estabelecer um diagnóstico e para retomar o controle em manual (sobre isso, ver a análise do acidente do voo 447 da Air France em Rocha e Lima3939. Rocha R, Lima FPA. Erros humanos em situações de urgência: análise cognitiva do comportamento dos pilotos na catástrofe do voo Air France 447. Gest Prod. 2018;25:568-82.). No fim, cria-se situação que leva ao erro humano, não porque os operadores são o elo frágil, mas sim porque o desenvolvimento não integrado dos sistemas homens-máquinas leva a situações acidentogênicas:

Ora, se o computador está sendo usado para tomar decisões porque o julgamento humano e o raciocínio intuitivo não são adequados no contexto, então como saber quais decisões do computador devem ser aceitas? Ao operador humano foi atribuída uma tarefa impossível de ser realizada3838. Bainbridge L. Ironies of automation. In: Rasmussen J, Duncan K, Leplat J, editors. New technology and human error. New York: John Wiley; 1987. p. 271-83. (p. 274).

Esses problemas apontados no início da difusão da automação se repetem, hoje, com o uso intensivo das tecnologias informatizadas, baseadas no tratamento de grande quantidade de dados acumulados pelos sistemas de controle de processos, atualmente explorada por importantes inovações agrupadas sob a denominação de indústria 4.0. Esses avanços caracterizam um novo paradigma tecnológico, mas ainda deixam indefinido o papel dos operadores humanos nesses sistemas informatizados e inteligentes. Nos debates sobre a indústria 4.0, fala-se mais do trabalho que desaparecerá do que do trabalho que permanecerá. No entanto, tal como aconteceu em outras épocas de revolução tecnológica, o trabalho não deixará de existir, mas o lugar e a natureza da atividade humana serão profundamente transformados. Para evitar que os paradoxos da automação continuem a acontecer, é necessário produzir estudos sobre a atividade humana e gerar conhecimentos tecnológicos para projetar interfaces adaptadas na indústria 4.0. Ela deve evoluir no sentido da indústria 5.0, projetada para favorecer a atividade dos operadores que ocupam uma posição de vigilância e reparação de desvios dos sistemas automáticos.

Para isso, a Ergonomia se apoia na análise cognitiva da atividade de vigilância a fim de conceber as diversas interfaces que servem de suporte à atividade dos operadores, sobretudo em situações de perturbação, como partidas, paradas ou instabilidades imprevistas. A análise cognitiva da atividade dos operadores constitui a base para conceber sistemas integrados de modo a, por exemplo, aumentar a sensibilidade ao contexto e a inteligência da situação dos operadores. Dessa forma, o conceito de “loss situation awareness” pode ganhar um conteúdo mais concreto e deixar de ser apenas um substituto do erro humano, como bem apontado por Dekker4040. Dekker S. The field guide to understanding 'human error'. Boca Raton: CRC Press; 2014.. Da mesma forma, pode-se otimizar os sistemas de gestão de alarmes, agora redefinidos em função da situação vivida pelos operadores, e não apenas como indicação de falhas que reproduz a configuração do sistema técnico.

Considerações finais

O desafio atual da segurança é criar espaços de recuperação da experiência dos indivíduos, que sejam capazes, por um lado, de tratar das situações normais e cotidianas, e, de outro, que sejam livres do jugo da culpa e permitam o desenvolvimento da autonomia com base na experiência profissional. Em sistemas de alto risco, as formas de retorno da experiência são frequentemente inexistentes. Em sistemas ultrasseguros, o REX pode ser mais ou menos eficiente, a depender da organização, mas continuam prevalecendo espaços em que não se discute o trabalho, ao mesmo tempo que visam a atribuição de culpa e penalidades aos envolvidos na situação em destaque. Está posta, assim, a necessidade de incorporação dos estudos do trabalho no desenvolvimento de sistemas de retorno da experiência capazes de gerar ambientes, de fato, seguros.

A retomada da curva descendente da taxa de acidentes não pode mais acontecer como ocorreu na segunda metade do século XX. Os sistemas vulneráveis, como o trabalho dos motociclistas, podem certamente se beneficiar de ações regulamentadoras e de melhorias de confiabilidade técnica com intervenções nas motocicletas e nas vias urbanas. Todavia, as barreiras de prevenção de acidentes colocadas para promover a segurança em um contexto de flexibilização das relações de trabalho torna quase nula a possibilidade de implementar melhorias significativas das condições de trabalho. As análises ergonômicas oferecem alternativas de ação entre as relações de trabalho desfavoráveis e a impotência que leva à naturalização dos acidentes.

Os sistemas ultrasseguros, que parecem ter encontrado um limite, ainda podem melhorar a segurança, aproveitando os avanços recentes na análise da ação e cognição situadas e na construção de espaços de debate sobre o trabalho que permitam o retorno da experiência de campo, para alimentar ações de prevenção. Nesse caso, o que aparece atualmente como limite deve ser considerado apenas como barreira organizacional que impede o aparecimento do saber dos trabalhadores, capazes de reconhecer e tratar os sinais fracos da organização, os quais, devidamente instruídos, podem trazer à tona as situações reais de trabalho. Essa é a nova fronteira da segurança que a Ergonomia pode ajudar a superar.

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  • Disponibilidade de dados:

    todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Financiamento:

    os autores declaram que o estudo não foi subvencionado.
  • Apresentação do estudo em evento científico:

    os autores informam que o estudo não foi apresentado em evento científico e que não foi baseado em dissertação ou tese.

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Ada Ávila Assunção

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Revisado
    27 Set 2023
  • Aceito
    29 Set 2023
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