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Vidas bagaços! Os processos de vulnerabilização enfrentados pelos trabalhadores-migrantes nos canaviais de São Paulo e da Bahia

Bagasse lives! The vulnerability processes faced by migrant workers in the sugarcane fields of São Paulo and Bahia, Brazil

Resumo

Objetivo:

compreender os processos de vulnerabilização enfrentados pelos trabalhadores-migrantes canavieiros diante do avanço da mecanização.

Métodos:

abordagem qualitativa pautada na abordagem metodológica da Reprodução Social da Saúde proposta por Juan Samaja, nas dimensões biocumunal, tecnoeconômica e política. Foram realizadas 18 entrevistas semiestruturadas com trabalhadores-migrantes canavieiros no período de abril de 2020 a dezembro de 2021.

Resultados:

na dimensão tecnoeconômica verificou-se que na usina A o trabalhador se tornou polivalente, com a presença do trabalho em equipe e a introdução de tecnologias para aumentar o controle do trabalho. Na usina B, os trabalhadores encontram piores condições de trabalho devido à irrigação, à irregularidade dos terrenos, à presença de pedras e à exposição às queimadas. Na dimensão biocomunal, foram identificados potencialização dos acidentes, uso de agrotóxicos, distúrbios hidroeletrolíticos e problemas cardiovasculares. Na dimensão política, foi observada a precariedade da assistência à saúde do trabalhador canavieiro.

Conclusão:

a intensificação da mecanização na colheita de cana-de-açúcar não melhorou as condições de trabalho dos cortadores, ao contrário, provocou a perpetuação de velhos e a inserção de novos processos de vulnerabilização.

Palavras-chave:
saúde do trabalhador rural; migração interna; determinação social da saúde; saúde do trabalhador

Abstract

Objective:

to understand the processes of vulnerability faced by sugarcane migrant workers in the face of advancing mechanization.

Methods:

this study adopts a qualitative approach based on the biocommunity, techno-economic and political dimensions of the social reproduction of health proposed by Juan Samaja. In total, 18 semi-structured interviews were conducted with sugarcane migrant workers in the period from April 2020 to December 2021.

Results:

in the techno-economic dimension, it was found that in Mill A workers have become polyvalent, with the presence of teamwork and the introduction of technologies to increase work control. In Mill B, the workers identified worse working conditions due to irrigation, irregular terrain, rocky geography, and exposure to burnings. In the biocommunity dimension, the greater chance of accidents, the use of pesticides, hydroelectrolytic disorders and cardiovascular problems were identified. In the political dimension the precariousness of health care for sugarcane workers was identified.

Conclusion:

the intensification of mechanization in sugarcane harvesting has not improved the life of sugarcane workers, on the contrary, it has caused the perpetuation of old vulnerabilities and the insertion of new ones.

Keywords:
rural health; internal migration; social determination of health; occupational health

Introdução

A compreensão da determinação social da saúde foi operacionalizada por uma epidemiologia crítica de renovação paradigmática com base na reflexão sobre o crescimento das iniquidades em saúde e, consequentemente, da desumanização da vida no sistema capitalista. Ela tem sido utilizada para analisar problemas de saúde e relacioná-los com estruturas e organizações societais, por entender que as formas como as sociedades se organizam determinam maior ou menor probabilidade de sofrimento para grupos sociais distintos 11. Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Publica. 2013;31(1):13-27. .

Ao analisar o papel do trabalho na determinação social da saúde, González, Hartman e Cuapio 22. González ST, Hartman CE, Cuapio IC. El papel del trabajo en la determinación de las desigualdades en salud: reflexión crítica sobre el informe de la Comisión de Conocimiento sobre las Condiciones de Empleo de la Organización Mundial de la Salud. In: Nogueira RP. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 60-86. lembram que é necessário compreender a divisão social e as mudanças no mundo do trabalho. Eles partem do pressuposto de que as singularidades do modelo de acumulação capitalista influenciam o trabalho e têm impactado negativamente a saúde do ambiente, afetando a saúde das populações e, de forma exacerbada, a da classe laboral.

Com relação ao setor agrário brasileiro, em especial o canavieiro, apesar da redução significativa do trabalho manual, sobretudo nos estados com maiores índices de mecanização, decorrente do processo de reestruturação produtiva, ainda é possível perceber a permanência de trabalhadores-migrantes, em sua maioria agricultores familiares, oriundos de outros estados da federação e que, sazonalmente, migram para as áreas canavieiras em busca de trabalho, como forma de reprodução de si mesmos e de seus grupos familiares 33. Scopinho RA, Eid F, Vian CEF, Silva PRC. Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Cad Saude Publica. 1999;15(1):147-62. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1999000100015 .
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, 44. Costa PFF, Silva MS, Santos SL, Gurgel IGD. Uma libertação que não liberta: velhas e novas vulnerabilidades que afetam os cortadores de cana-de-açúcar. In: Gurgel AM, Santos MOS, Gurgel IGD. Saúde do campo e agrotóxicos: vulnerabilidades socioambientais político-institucionais e teórico-metodológicas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2019. p. 217-43. .

No agronegócio canavieiro, a modernização tem sido acompanhada por uma série de critérios de gestão da força de trabalho que aumentam a contratação temporária, em particular para tarefas difíceis. Isso reduz consideravelmente os custos salariais, limitando as contratações aos momentos em que é imprescindível e evitando gastos com benefícios e serviços a que têm direito os assim chamados colaboradores permanentes 55. Flores SML. Los olvidados del campo: jornaleros y jornaleras agrícolas en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; 2021. .

Desde o fim da primeira década do século XXI, estudiosos têm vaticinado o fim do trabalho manual, realizado por trabalhadores-migrantes nos espaços dos canaviais, em decorrência da intensificação do processo de mecanização da colheita de cana-de-açúcar, que fecharia as portas do mercado de trabalho para esses sujeitos 66. Frutuoso JT, Cruz RM. Mensuração da carga de trabalho e sua relação com a saúde do trabalhador. Rev Bras Med Trab. 2005;3(1):29-36. .

Nesse debate, alguns estudos enfatizavam que tal processo deveria ser analisado levando em conta as condições socioeconômicas dos lugares de origem dessa força de trabalho, caracterizados por poucas alternativas de emprego e renda 77. Cover M, Menezes MA. Estratégias de renda de trabalhadores migrantes e a mecanização da colheita de cana-de-açúcar: um olhar desde o Sertão Paraibano. Estudos Sociedade e Agricultura. 2020;28(2): 458-75. Disponível em: https://doi.org/10.36920/esa-v28n2-9 .
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. Além disso, realçavam que, mesmo considerando o mercado de trabalho mais amplo — seja por suas configurações intrínsecas, seja pelos baixos níveis de escolaridade dos trabalhadores-migrantes —, haveria pouca chance de inserção desses sujeitos em outros setores produtivos, o que representava novos desafios para o Estado e para as políticas públicas 88. Cover M. O “tranco da roça” e a “vida no barraco”: Um estudo sobre trabalhadores migrantes no setor do agronegócio canavieiro [Dissertação]. Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande; 2011. - 1010. Nunes DMP, Silva MS, Cordeiro RLM. A experiência de trabalho e dos riscos entre os trabalhadores-migrantes nordestinos nos canaviais paulistas. Saúde Soc. 2016;25(4):1122-35. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902016145485 .
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.

Ocorre que o processo de intensificação tecnológica nas usinas canavieiras do Brasil continua avançando, o que acarretou um decréscimo no número de trabalhadores-migrantes contratados a cada safra. No entanto, por um leque de razões cuja análise extrapola os limites deste artigo, as empresas canavieiras continuam a contratar sazonalmente esses trabalhadores para tarefas diversas. Por outro lado, considerando a tímida atuação do Estado e das políticas públicas, bem como a configuração do mercado de trabalho, os trabalhadores-migrantes continuam a depender dessas parcas oportunidades de trabalho sazonal.

Com base no exposto, busca-se, neste artigo, evidenciar os atuais processos de vulnerabilização enfrentados pelos trabalhadores-migrantes em consequência da intensificação da mecanização da colheita de cana-de-açúcar levada a cabo pelas empresas canavieiras do Brasil.

Métodos

Desenho e população do estudo

Realizou-se um estudo qualitativo, no período de abril de 2020 a dezembro de 2021, com trabalhadores rurais que residem no sertão pernambucano, paraibano, e que migram sazonalmente para usinas canavieiras no interior de São Paulo, na região de São José do Rio Preto (usina A), e para a Bahia, no município de Juazeiro (usina B).

De acordo com informações do setor de recursos humanos da usina A disponibilizadas na cartilha de recrutamento distribuída anualmente aos cortadores de cana, uma média de 1300 trabalhadores realizaram exames admissionais entre janeiro e fevereiro de 2021 com o objetivo de avaliar a aptidão para o trabalho nos canaviais. Por outro lado, na usina B, o setor de recursos humanos informou que, para a safra de 2021, foram contratados 1500 trabalhadores para a etapa da colheita.

O setor de recursos humanos da usina B durante os exames admissionais afirma que existe, a cada ano, uma ampliação do número de trabalhadores recrutados no sertão pernambucano e paraibano para o corte de cana na Bahia, em razão do aumento da produção da usina. Por outro lado, chama a atenção o número de trabalhadores que antes migravam para o Sudeste, o que, com o avanço da mecanização, vem diminuindo.

Para isso, adotou-se o referencial teórico da reprodução social, proposto por Juan Samaja 1111. Samaja J. A reprodução social e a saúde: elementos metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade; 2000. , que, quando aplicada ao tema da saúde, é uma das categorias de análise da determinação social da saúde. Essa escolha se deu em razão do potencial para explicar os distintos níveis de integração e interfaces hierárquicas que compõem as totalidades individuais e coletivas, de acordo com uma perspectiva do pensamento sistêmico.

Samaja 1212. Samaja J. Epistemología de la salud: reproducción social, subjetividad y transdisciplinar. Buenos Aires: Lugar; 2004. apresenta as seguintes reproduções constitutivas: biológica (bioindividual e biocomunal); da autoconsciência e da conduta (comunal-cultural); tecnoeconômica (societal); e ecológico-política (estatal). Neste artigo, foram evidenciadas três dessas dimensões: a biocomunal, a tecnoeconômica e a ecológico-política.

Coleta de dados

A coleta de dados aconteceu na cidade de Princesa Isabel, localizada na microrregião da Serra de Teixeira (sertão da Paraíba), e no município de Betânia, na microrregião do Sertão do Moxotó (sertão de Pernambuco). Os locais foram selecionados por apresentarem maior número de trabalhadores que migram para as referidas usinas, conforme informações dos próprios trabalhadores.

Foram realizadas 18 entrevistas semiestruturadas 1313. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 1994. de forma presencial nos locais de origem dos trabalhadores, e de forma on-line, via WhatsApp.

Amostra

A amostra foi do tipo intencional, por meio da seleção de indivíduos a partir da amostragem “bola de neve”, nas referidas comunidades rurais dos municípios pesquisados. Na pesquisa qualitativa, as amostras tendem a ser escolhidas de maneira deliberada, conhecida como amostragem intencional ou finalística. O objetivo de escolher as unidades de análise de acordo com as categorias da reprodução social de Samaja geram dados mais relevantes e fartos, segundo o objeto de estudo 1414. Yin RK. Métodos de pesquisa: pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016. .

O critério usado para a delimitação foi o da saturação, isto é, quando o conteúdo expresso pelos pesquisados começou a se repetir, a coleta de dados foi finalizada.

Análise dos dados

Foi feita uma análise temática dos dados por meio da qual se manipularam mensagens para evidenciar os indicadores que permitem inferir outras realidades, além daquelas que fazem parte do contexto deste estudo 1515. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Persona; 2011. .

Na dimensão tecnoeconômica, analisaram-se as transformações no processo de trabalho nos canaviais decorrentes de mecanização, condições de trabalho, formas de pagamento e controle. Na dimensão biocomunal, foram analisadas as percepções dos trabalhadores sobre os processos de vulnerabilização enfrentados nos canaviais. Por fim, na dimensão política, foi trabalhada a precariedade da assistência à saúde do trabalhador canavieiro.

A proposta de estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Pernambuco — CAAE: 29176719.1.0000.5190 (Parecer nº 4.018.850).

Resultados e discussão

Como o trabalhador é moído no estado de São Paulo

Com o avanço da mecanização nas usinas canavieiras, houve uma redefinição das atividades realizadas pelos trabalhadores-migrantes. Assim, o trabalhador que antes era contratado apenas para o corte manual, passou a assumir várias funções na mesma safra, tornando-se polivalente. Além de continuar cortando cana-de-açúcar, passou também a realizar serviços de capinação, plantio e coleta de pedras, visando facilitar o caminho das máquinas.

O trabalho nos canaviais sempre foi organizado em equipe, as denominadas turmas, grupo de 40 a 45 trabalhadores coordenados por um fiscal, também chamado “turmeiro”. No entanto, em cada turma, o trabalho era auferido individualmente, assemelhando-se ao que Marx denominava de “trabalho por peça”, uma vez que o pagamento era por produção individual.

Atualmente, as empresas canavieiras continuam a fazer uso das turmas no sentido acima mencionado, como no corte manual da cana-de-açúcar, em que o ganho continua de acordo com a produção individual, ou seja, conforme a quantidade de cana cortada por trabalhador. Todavia, os trabalhadores relatam modificações em relação ao trabalho no plantio, que deixa de ser realizado de forma individual para se tornar, nos últimos anos, um trabalho coletivo. Como relata E3: “Plantio é em equipe. Uma turma tem 30 trabalhadores. Eles se dividem em três equipes. Aquelas dez pessoas levam as dez ruas. Depois eles medem. Se levar 300 metros plantando, multiplicam por 0,35 e dividem o lucro para os dez trabalhadores”.

Vê-se, dessa forma, que os trabalhadores passam a ser obrigados a trabalhar em equipe, cooperando com os demais companheiros, nos moldes da solidariedade entre os integrantes de um time. De acordo com os entrevistados, o plantio por equipe se tornou mais desgastante, pois eles precisam acompanhar o ritmo de sua equipe. Para os trabalhadores, apesar de o trabalho no corte da cana exigir mais força física do que no plantio, ainda é melhor ficar no corte, uma vez que, trabalhando individualmente, o trabalhador pode atender a seu próprio ritmo de trabalho sem se sentir prejudicando seus companheiros. Como relatado por E3: “É melhor no corte porque é individual. Às vezes, o cabra cansa e quer sair para tomar uma fuga. Cortando, não. Você pode sentar e tomar uma fuga sem prejudicar os outros”.

Outra modificação, sinalizada pelos entrevistados, foi a adoção, pelas usinas, da forma de pagamento do plantio por produção (0,35 centavo por metro plantado), e não por diária, como era realizado antes 1616. Costa PFF. Invisibilidade no verde dos canaviais: trabalho, migração e saúde mental [Dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2015. . No pagamento por produção, o trabalhador recebe o equivalente à quantidade de cana plantada por dia, enquanto, no pagamento por diária, o valor recebido independe da quantidade plantada, já que ele recebia um valor fixo por dia trabalhado. Como diz E1: “Tem as equipes 1, 2 e 3. O pessoal da equipe 1 é o melhor, é o que ganha melhor, pois produz mais. Ganha, em média, 130 a 140 reais por dia. A equipe 2 ganha de 100 a 110. Já a equipe 3 ganha uns 90 reais”.

O pagamento por produção é visto como uma das formas de controle dos trabalhadores por parte das empresas, pois, ao mesmo tempo que incentiva a intensificação e a extensão da jornada de trabalho, funciona também como um engenhoso método de introversão da disciplina e do autocontrole por parte do trabalhador 1717. Alves F. Migração de trabalhadores rurais do Maranhão e Piauí para o corte de cana em São Paulo. In: Novaes JR, Alves F, organizadores. Migrantes: trabalho e trabalhadores no complexo agroindustrial canavieiro (os heróis do agronegócio brasileiro). São Carlos: EdUFSCar; 2007. p. 21-54. , 1818. Santos AP. O moinho satânico do agronegócio canavieiro no Brasil: dependência e superexploração do trabalho na região de Ribeirão Preto-SP [Tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2013. .

Quando indagados sobre a quantidade de cana cortada, os trabalhadores respondem que depende do tipo. Segundo eles, a cana boa é a cana em pé e a cana ruim é a cana que cresce inclinada, enroscada uma na outra. Como afirma E3: “Chega até 150 a 170 reais se a cana for boa. Tem dia que ganha 80, 90 reais, se a cana for ruim”.

Se até o fim da primeira década do século XXI a cana era queimada, visando facilitar o trabalho de corte, hoje a cana cortada no estado de São Paulo é crua, sem queima da palha, resultado de pressões dos ambientalistas contra as queimadas e do Protocolo Agroambiental, que as proibiu 1919. Companhia Nacional de Abastecimento. Safra brasileira de cana-de-açúcar [Internet]. Brasília: Conab; 2023 [citado em 1 fev 2024]. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana .
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. Os trabalhadores relatam dificuldades para trabalhar com o corte da cana crua graças a uma exposição maior aos animais peçonhentos. Há também relatos de que as folhagens crescem sobre as canas e engancham no facão, dificultando o corte da planta, o que provoca a exposição ao pelo da cana e irritação na pele.

Conforme enunciado, os trabalhadores-migrantes desempenham hoje outras atividades, além do corte e do plantio, a exemplo da capina, da retampa dos sulcos que a máquina não tampou e da catação de pedras para facilitar a entrada das máquinas. De igual modo, fazem parte de suas atividades recentes arrancar capim colonião que brota com intensidade na curva de nível 2020. Gonzaga MC. O uso dos equipamentos individuais de proteção e das ferramentas de trabalho no corte manual da cana-de-açúcar. São Paulo: Fundacentro; 2002. , 2121. Guanais JB. Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira [Tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2016. . O pagamento dessas atividades é por diária, ou seja, cada trabalhador recebe um valor fixo (37 reais) por dia trabalhado. Os trabalhadores consideram que trabalhar na diária é ruim e que o ganho é pouco, pois realizam as piores tarefas.

Outra modificação percebida pelos trabalhadores é o controle do horário trabalhado por meio da biometria digital, conhecido entre eles como coleta da digital. Como referido por E2: “Tem a digital. Lá eles controlam os horários. Tem que colocar o dedo de manhã, quando começa, de sete horas, [depois] às onze, ao meio-dia e quando acaba o serviço”.

O entrevistado 2 relata ter recebido cerca de 9 mil reais durante uma safra, no período de fevereiro a junho. A média de salário por mês é de 2 mil reais. Do salário mensal, ele relata que conseguia economizar mil reais por mês, pois enviava dinheiro para a família todos os meses (cerca de 700 reais) e gastava com alimentação no local de destino (uma média de 300 reais por mês). Desse modo, e segundo seus cálculos, ele conseguiu economizar 4 mil reais durante os meses trabalhados. O trabalhador afirma que, além da economia feita, ainda conta com o dinheiro do “acerto” 1 c Acerto é o termo utilizado pelos trabalhadores-migrantes para designar os direitos a que os trabalhadores fazem jus por ocasião da rescisão do contrato, a exemplo de 13º, 1/3 de férias proporcionais etc. da usina no fim do período (em média, de 5 mil reais).

Os trabalhadores sinalizam a vantagem oferecida pela usina A em relação às condições de moradia, a exemplo da disponibilização de casas para residirem durante o período trabalhado. As casas têm beliches, geladeira, fogão e gás. A usina também oferece um serviço de limpeza, realizado diariamente pelas faxineiras contratadas pela própria empresa.

E o bagaço é remoído na Bahia

Como exposto, o processo de intensificação da mecanização do corte de cana-de-açúcar acarretou uma diminuição no número de trabalhadores-migrantes anualmente contratados pelas usinas do estado de São Paulo. A baixa demanda de trabalhadores manuais, aliada à crescente disponibilidade de trabalhadores, tem contribuído para tornar os processos de seleção mais rigorosos, visando selecionar os melhores, isto é, os que apresentam os maiores índices de produção e, concomitantemente, são mais submissos às exigências das empresas.

Nesse contexto, nem todos conseguem encontrar vaga nas usinas canavieiras do estado de São Paulo. Os que não encontram, tendem a buscar novas rotas migratórias para o trabalho nos canaviais, em outros estados, como é o caso do município de Juazeiro, na Bahia, onde está localizada a usina B, a qual tem recrutado trabalhadores-migrantes sazonalmente, no período de abril a novembro de cada ano. Mesmo os trabalhadores que ainda conseguem migrar para São Paulo, em decorrência da diminuição do período da safra, ao retornarem para Paraíba ou Pernambuco, tendem a fazer outras rotas migratórias, inclusive para a usina B, nos demais meses do ano.

Os trabalhadores que migram para a usina B laboram exclusivamente no corte manual da cana-de-açúcar. Uma das características dessa usina é a agricultura irrigada, que torna as canas grossas e caídas, além da irregularidade dos terrenos e da maior quantidade de pedras, fatores que dificultam a inserção das colheitadeiras. É importante frisar que, na Bahia, ainda é permitida a queimada da cana-de-açúcar como forma de facilitar o trabalho do corte manual, não obstante suas consequências ambientais 2222. Fuligem de cana de açúcar causa problemas a moradores de Petrolina [Internet]. Petrolina: G1; 2019 [citado em 1 fev 2024]. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2019/10/02/fuligem-de-cana-de-acucar-causa-problemas-a-moradores-de-petrolina.ghtml .
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.

Segundo relatos dos trabalhadores-migrantes em pesquisas anteriores 44. Costa PFF, Silva MS, Santos SL, Gurgel IGD. Uma libertação que não liberta: velhas e novas vulnerabilidades que afetam os cortadores de cana-de-açúcar. In: Gurgel AM, Santos MOS, Gurgel IGD. Saúde do campo e agrotóxicos: vulnerabilidades socioambientais político-institucionais e teórico-metodológicas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2019. p. 217-43. , 1010. Nunes DMP, Silva MS, Cordeiro RLM. A experiência de trabalho e dos riscos entre os trabalhadores-migrantes nordestinos nos canaviais paulistas. Saúde Soc. 2016;25(4):1122-35. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902016145485 .
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, a cana crua (não queimada) cortada em São Paulo se tornava mais pesada. Mas, nos relatos atuais, os trabalhadores preferem a cana crua cortada em São Paulo à cana queimada da Bahia: “A cana na Bahia é queimada, é mais forte. Lá, é mais brabo por causa da irrigação. Mesmo na cana queimada é mais pesado” (E11).

Outra diferença percebida é em relação ao instrumento de trabalho, o facão, que precisa ser amolado de ambos os lados para lidar com a grande quantidade de pedras no terreno. Em relação às variedades de canas, os trabalhadores relatam que tem a “cana boa”, melhor de realizar o corte, e a “cana ruim”, que é grossa, dificultando o corte. A qualidade da cana cortada ocasiona alteração na medida (peso da cana) e, consequentemente, no pagamento recebido ao fim da quinzena. Como diz E4: “Na cana normal (sem gotejo), você faz mais ou menos 100 reais. Na cana de gotejo, tem que trabalhar o dia todinho para fazer 50 ou 60 reais”.

O modo de ganho é por produção, mas o sistema de pesagem é em toneladas e a medida, por braça . Como explicado pelos trabalhadores:

Eles colocam a estimativa no grupo do WhatsApp da usina um dia antes de cortar aquele lote. Só que a braça é por tonelada. Por exemplo, às vezes tem cana de quatro ou oito braças que vão dar uma tonelada. A gente vai lá e corta, mas às vezes pesa mais ou menos. (E3).

A formação de grupos de WhatsApp para informar a estimativa da média do peso da tonelada da cana que será cortada no dia posterior é algo novo para os trabalhadores que revela novamente o processo de reestruturação produtiva nos canaviais.

As falas dos trabalhadores demonstram a instabilidade em relação à diferença entre a estimativa e o peso real. Ao receberem pelo WhatsApp as informações relativas ao valor estimado do peso da cana a ser cortada, eles tendem a estabelecer uma meta relativa à quantidade que precisarão cortar para atingir um bom pagamento no fim do dia. Acontece que o valor real só é definido após o final do processo, quando toda a cana cortada for pesada, nem sempre coincidindo com o valor estimado.

Quanto ao pagamento mensal, os trabalhadores relatam que não há muita diferença entre as usinas B e A. No entanto, na B, o valor do acerto é menor em comparação ao realizado pela A, além das despesas com a moradia durante o período da safra na Bahia, pois os trabalhadores precisam pagar aluguel, água, energia, gás e eletrodomésticos (geladeira, fogão etc.), que não são disponibilizados pela usina B.

As alternativas de rotas migratórias, encontradas pelos trabalhadores, oferecem piores condições de trabalho, maior tempo de safra e menor ganho. Como explica o trabalhador E3: “Trabalho em São Paulo e consigo trazer uns 9 mil reais. Aí trabalho mais tempo na Bahia e só consigo trazer 8 mil”.

Percepção dos processos de vulnerabilização enfrentados nos canaviais

O avanço da mecanização vem imprimindo novos processos de vulnerabilização e perpetuando os velhos. Os trabalhadores que migram para a usina B relatam que precisam conviver novamente com a cana queimada, algo já superado em São Paulo, como relatado por E4: “Adoeci em 2008 lá em São Paulo. Lá ainda era cana queimada. Tive uma pneumonia por causa do carvão”.

Pesquisadores sinalizam os malefícios das queimadas nos canaviais 2323. Wissmann MA, Shikida PFA. Impactos econômicos, ambientais e sociais da agroindústria canavieira no Brasil. Revista Desenvolvimento, Fronteiras e Cidadania. 2017;1(1):134-60. . A fuligem da cana pode ocasionar problemas respiratórios em geral, como irritação das vias aéreas superiores e ocular, tosse, dores de cabeça, asma, bronquite crônica, enfisema, pneumonia, câncer de pulmão, bem como alteração dos mecanismos de defesa respiratórios 2424. Alessi NP, Navarro VL. Saúde e trabalho rural: o caso dos trabalhadores da cultura canavieira na região de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 1997;13(2):111-21. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1997000600010 .
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700...
, 2525. Faria NMX, Facchini LA, Fassa AG, Tomasi E. Trabalho rural, exposição a poeiras e sintomas respiratórios entre agricultores. Rev Saude Publica. 2006;40(5):827-36. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102006005000006 .
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, 2626. Ribeiro H, Ficarelli TRA. Queimadas nos canaviais e perspectivas dos cortadores de cana-de-açúcar em Macatuba, São Paulo. Saúde Soc. 2010;19(1):48-63. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902010000100005 .
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.

O mesmo trabalhador (E4) que já foi acometido pela pneumonia relatou ter sofrido um acidente com o facão em 2013, perdendo parte de um dedo. Após isso, ele passou 4 anos sem migrar para os canaviais. Chegou a pensou em desistir, porém a dificuldade de manutenção no território de origem o fez retornar para os canaviais em 2018.

Tendo sido descartado pela usina A, E4 migrou para a B. Por isso, pode-se afirmar que o trabalho na cana tem moído gente e espalhado os bagaços para ser remoído em outros canaviais. Na usina B, o trabalhador relata que o manuseio do facão é mais difícil: “Lá, o pessoal se acidenta mais porque o facão é amolado dos dois lados. Já vi muito cabra cortar testa, cortar a cabeça. Dá medo mesmo” (E4).

Um caso de afastamento do trabalho por causa de acidente mecânico foi relatado por um entrevistado. Segundo ele, o trabalhador, que é seu primo, sofreu um corte, sendo necessário se afastar das atividades por vários meses. Em seguida, foi demitido pela usina B antes da reabilitação: “Ele está perdendo o dedo mesmo. O dedo dele está secando e ficando preto. Ele já perdeu parte da unha e atingiu o nervo. Ele ia todo mês lá (passar no médico) e depois foi mandado embora da usina” (E11).

Com o avanço da mecanização do corte de cana-de-açúcar, as melhores plantações são destinadas ao corte mecanizado. As canas deitadas, desalinhadas, que crescem nas curvas, são destinadas aos trabalhadores manuais, o que aumenta a dificuldade do trabalho manual e os expõe a um risco maior de acidentes mecânicos. Além disso, os cortadores de cana passam a dividir o local de trabalho com as máquinas, o que também amplia o risco de acidentes 2727. Benatti DMF. Acidentes de trabalho na agroindústria canavieira: circunstâncias de ocorrência e suas consequências para os trabalhadores [Tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2016. .

Diante do cenário vivenciado, ao mesmo tempo que os acidentes são potencializados, os trabalhadores enfrentam a precariedade da assistência à saúde, o que foi observado na análise da dimensão política 1111. Samaja J. A reprodução social e a saúde: elementos metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade; 2000. . A precariedade da assistência foi mencionada em outro relato do mesmo trabalhador, ao se referir à obtenção do atestado médico após um acidente mecânico: “Em termo de atestado, em São Paulo é melhor. Lá em Juazeiro, eles dão três dias e depois vão avaliar o corte. Depois, avaliam de novo como está o corte. Lá em São Paulo, pode ser um ponto e já é sete dias” (E11).

Outro descaso quanto à assistência à saúde foi demonstrado no relato de um trabalhador afastado por problemas na coluna e demitido antes da reabilitação:

Isso foi em Juazeiro. Já faz uns seis meses que ele está tentando o benefício. A empresa alegou que ele já entrou com o problema na coluna. Mas não existe isso, não. Por que não fazem os exames quando a gente vai entrar na usina? Ele ia todo ano para lá. (E17).

A questão da precariedade da assistência à saúde dos trabalhadores é histórica e acompanha a própria precariedade de políticas e serviços de saúde no território brasileiro. No entanto, nos últimos anos, o recuo do Estado e o desmonte dos direitos da classe que vive do trabalho atingem níveis brutais, expressando-se numa política de assistência à saúde do trabalhador capenga e em serviços marcados pela pontualidade, bem como na não intersetorialidade que degrada a promoção de saúde em negação da saúde para populações e grupos sociais específicos 2828. Druck G, Dutra R, Silva SC. A contrarreforma neoliberal e a terceirização: a precarização como regra. Cad CRH. 2019;32(86):289-305. Disponível em: https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.30518 .
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.

Outro processo de vulnerabilização que vem se tornando mais grave é a exposição dos trabalhadores rurais aos agrotóxicos, em razão da flexibilização da regulação desses produtos no Brasil 2929. Gurgel AM, Guedes CA, Friedrich K. Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a (necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Desenvolv Meio Ambiente. 57:135-59. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5380/dma.v57i0.79158 .
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. A maioria dos trabalhadores entrevistados acredita que tem contato com agrotóxicos, mas não os associa com a possibilidade de adoecimentos. Como diz E4: “Mexeu com cana, mexeu com agrotóxico. O cabra pode não ser atingido, mas mexer, mexe sempre. Geralmente, a gente está cortando cana aqui, tem outra cana nova ali e 30 a 40 pessoas passando veneno do seu lado”.

Apenas um trabalhador relatou ter ouvido falar dos danos causados pelos agrotóxicos para a saúde humana pela experiência de outro colega da turma do corte: “Foi colocado um produto tóxico na cana, e esse produto atingiu o olho de um colega da nossa turma. Ele já está há cinco anos sem enxergar e continua afastado pela usina” (E5).

Para Melgarejo e Gurgel 3030. Melgarejo L, Gurgel AM. Agrotóxicos, seus mitos e implicações. In: Gurgel AM, Santos MOS, Gurgel IGD. Saúde do campo e agrotóxicos: vulnerabilidades socioambientais político-institucionais e teórico-metodológicas. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2019. p. 39-75. , os agrotóxicos podem acarretar desequilíbrios ou aceleração de processos de multiplicação celular, redundando em tumores, ou bloquear a capacidade de reação a alergênicos, levando à emergência de intolerâncias alimentares e doenças autoimunes. Também existem quadros clínicos mostrando que o contato com agrotóxicos pode levar a problemas de visão e de raciocínio.

Os trabalhadores identificam antigos processos de vulnerabilização relacionados com o ritmo intenso de trabalho 1919. Companhia Nacional de Abastecimento. Safra brasileira de cana-de-açúcar [Internet]. Brasília: Conab; 2023 [citado em 1 fev 2024]. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/cana .
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e os movimentos extenuantes durante a jornada no corte de cana 3131. Novaes JR. Campeões de produtividade: dores e febres nos canaviais paulistas. Estud Av. 2007;21(59):167-77. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142007000100013 .
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, 3232. Moraes MS, Priuli RMA, Chiaravalloti RM. A saúde e o jovem migrante. Cad Saude Publica. 2013;21(3):332-7. . Essas práticas vêm se tornando cada vez mais penosas com o avanço da mecanização:

É um trabalho muito forçado. Você trabalha muito, dá vontade de vomitar. Tem gente que dá canguru, dá aquelas câimbras. O sol quente tinindo e sua pele fica fria, gelada. Fica parecendo que você está dentro de uma geladeira. Tem gente que cai e você vê a câimbra correndo na barriga, levantando os catombos. (E18).

Além dos distúrbios hidroeletrolíticos decorrentes do esforço nos canaviais 3232. Moraes MS, Priuli RMA, Chiaravalloti RM. A saúde e o jovem migrante. Cad Saude Publica. 2013;21(3):332-7. , os trabalhadores identificaram casos de problemas cardiovasculares, principalmente elevação da pressão arterial e ataques cardíacos, como foi o caso da morte de um trabalhador em 2019 na usina B: “Teve um trabalhador de 38 anos que morreu de infarto na Bahia. Ele tinha uns três anos na usina. Disseram que era problema de coração” (E11).

Costa et al. 3333. Costa C. Morte por exaustão no trabalho. Cad CRH. 2017;30(79):105-20. Disponível em: https://doi.org/10.9771/ccrh.v30i79.19789 .
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estudaram a morte por exaustão no trabalho, as quais podem estar associadas à combinação entre jornada exaustiva e intensificação do trabalho, forçada pelo pagamento por produtividade. Bitencourt et al. 3434. Bitencourt DP, Ruas AC, Maia PA. Análise da contribuição das variáveis meteorológicas no estresse térmico associada à morte de cortadores de cana-de-açúcar. Cad Saude Publica. 2012;28(1):65-74. analisaram a contribuição das variáveis meteorológicas no estresse térmico ligada à morte de cortadores de cana-de-açúcar. Tais óbitos teriam ocorrido, possivelmente, pela combinação entre precariedade da saúde individual do trabalhador, más condições, excesso de esforço físico e sobrecarga térmica.

Conclusão

A análise integrada das três dimensões da reprodução social, proposta por Samaja, permitiu a construção do olhar na direção de uma perspectiva sistêmica, por desvelar os processos envolvidos na determinação social da saúde, em que o biológico está presente, porém perpassado pela dimensão técnico-econômica, política e por outras não analisadas neste artigo.

Na tecnoeconômica, os trabalhadores que laboram na usina A relatam a polivalência e o desempenho de múltiplas funções. Eles chamam a atenção para a emergência do trabalho em equipe e a constituição do trabalhador como colaborador da empresa. Também relatam a necessidade de extrapolar os limites corporais, algo que já era uma característica do pagamento por produção, além da introdução da biometria digital visando aumentar o controle no trabalho.

Na usina B, os trabalhadores identificam piores condições de trabalho em razão de irrigação, irregularidade dos terrenos, presença de pedras e exposição a queimadas. Eles relatam insegurança em relação à produção e ao ganho mensal, afirmando que cabe a eles arcar com as despesas com moradia.

Na dimensão biocomunal, foram apresentados os processos de vulnerabilização enfrentados pelos trabalhadores-migrantes, como retorno da exposição à fuligem da cana queimada, potencialização dos acidentes, exposição aos agrotóxicos, distúrbios hidroeletrolíticos e problemas cardiovasculares decorrentes do esforço físico nos canaviais. Já na dimensão política, observa-se a precariedade da assistência à saúde do trabalhador canavieiro, que ganha novos contornos no atual contexto de desmonte dos direitos da classe trabalhadora.

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  • c
    Acerto é o termo utilizado pelos trabalhadores-migrantes para designar os direitos a que os trabalhadores fazem jus por ocasião da rescisão do contrato, a exemplo de 13º, 1/3 de férias proporcionais etc.
  • 2
    Como citar (Vancouver): Costa PFF, Costa AM e Silva MS. Vidas bagaços! Os processos de vulnerabilização enfrentados pelos trabalhadores-migrantes nos canaviais de São Paulo e da Bahia. Rev Bras Saúde Ocup [Internet]. 2024;49:e3. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369/16222pt2024v49e3
  • Disponibilidade de dados: Os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Editado por

Editor-Chefe:
José Marçal Jackson Filho

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Disponibilidade de dados: Os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    25 Out 2022
  • Revisado
    17 Out 2022
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