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Dez anos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e os desafios da formação para (trans)formação do trabalho

Ten years of the National Occupational Health Policy and the challenges of health education for (trans)formation of work

Resumo

O objetivo do artigo, de natureza teórica, é discutir a formação em saúde tomando como referência a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), que no ano de 2022 completou dez anos. Essa reflexão crítica está baseada em revisão de literatura e na experiência profissional dos autores em ensino, pesquisa e serviços no campo da Saúde Coletiva/Saúde do Trabalhador. A PNSTT preconiza a capacitação e o desenvolvimento da força de trabalho em saúde de nível médio e superior, com prioridade às equipes de Vigilância em Saúde e da Atenção Primária/Estratégia Saúde da Família. A formação em saúde deve considerar o trabalho em sua função ontogenética enredada no sistema capitalista que o transforma, paradoxalmente, em afirmação e negação do sujeito: pelo trabalho nos tornamos humanos e sob as regras do capital o trabalho se torna arriscado e adoecedor. A formação enseja a construção de modos de trabalho conjunto e diálogo permanente entre trabalhadores e demais atores sociais, desde o planejamento até a efetivação e posterior avaliação dos projetos formativos em saúde, trabalho e ambiente. Atuando de forma democrática, coletiva e organizada, é possível reinventar práticas concretas de educação e trabalho na perspectiva da formação cidadã.

Palavras-chave:
aprendizagem; educação permanente; educação em saúde; política de saúde do trabalhador; saúde do trabalhador

Abstract

This theoretical article aims to discuss health training by taking as a reference the National Worker’s Health Policy (PNSTT), which celebrated its 10th anniversary in 2022. This critical reflection is based on a literature review and on the authors’ professional experience in teaching, research and services in the field of Collective Health/Occupational Health. The PNSTT advocates for the training and development of the mid and higher-level health workforce, with priority given to Health Surveillance and Primary Care/Family Health Strategy teams. Health education must consider work in its ontogenetic function, entangled in the capitalist system that paradoxically transforms it into an affirmation and denial of the subject: through work we become human and under the rules of capital, work becomes risky and unhealthy. Training gives rise to the construction of joint strategies and permanent dialogue between workers and other social actors, from planning to implementation, and the subsequent evaluation of training projects in health, work and environment. Acting in a democratic, collective and organized way, it is possible to reinvent concrete practices of education and work from the perspective of citizen formation.

Keywords:
learning; continuing education; health education; occupational health policy; occupational health

Introdução

O trabalho, elemento fundador da sociabilidade humana e determinante social do processo saúde e doença, é categoria central na compreensão das desigualdades nas sociedades contemporâneas. Os modos de vida e de trabalho estão diretamente relacionados à produção, ao consumo, à distribuição de riquezas, à exploração da força de trabalho, à transformação da natureza e aos impactos no ambiente, determinando formas de vida, mas também de sofrimento, adoecimento e morte das populações, em uma determinação que não deve desconsiderar aspectos simbólicos e subjetivos e sem apartar as pessoas da noção de liberdade, da sociedade e da própria natureza.

Em plena era informacional, das plataformas digitais e da indústria 4.0 1Antunes R, organizador. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo; 2020. , persistem as iniquidades na vida e no trabalho. O novo mundo do trabalho globalizado, tecnológico e híbrido não promoveu ruptura com o modo de produção capitalista caracterizado pela exploração e pelo individualismo, bem como pelo aumento do desemprego, da intensificação e da precarização do trabalho, aliado a um complexo plano ideológico de controle da subjetividade do trabalhador 2 Navarro VL, Padilha V. Dilemas do trabalho no capitalismo contemporâneo. Psicol Soc. 2007;19(Esp. 1):14-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000400004
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.

Expressão inequívoca das injustiças no âmbito do trabalho, as mortes por acidentes e doenças ocupacionais conformam um cenário dramático: a cada 15 segundos, morre um(a) trabalhador(a) em virtude de acidente ou de doença relacionada ao trabalho no mundo, correspondendo a 6.300 mortes por dia, totalizando 2,3 milhões de óbitos por ano 3 Organização Internacional do Trabalho. Segurança e saúde no trabalho. OIT [Internet]. [data desconhecida] [citado em 13 jan 2022]. Disponível em: https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650864/lang--pt/index.htm
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. Segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho do Ministério Público do Trabalho/Organização Internacional do Trabalho (MPT/OIT), no contexto dos países do G-20 e das Américas, o Brasil ocupou o segundo lugar em mortalidade no trabalho no período de 2012 a 2020, com uma média de seis óbitos a cada 100 mil vínculos de emprego, bem acima dos indicadores de países como Japão e Canadá (1,4 e 1,9 a cada 100 mil vínculos, respectivamente) 4 Frequência de notificações – CAT. SmartLab [Internet]. [data desconhecida] [citado em 14 dez 2021]. Disponível em: https://smartlabbr.org/sst/localidade/0?dimensao=frequenciaAcidentes
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.

A morbimortalidade relacionada ao trabalho sobrecarrega os sistemas de saúde, impacta a previdência social e a economia dos países e, em especial, a vida de milhões de trabalhadoras e trabalhadores e suas famílias 5World Health Organization. WHO/ILO joint estimates of the work-related burden of disease and injury, 2000-2016: technical report with data sources and methods. Geneva: WHO; 2021. . O objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) 8 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre trabalho digno e crescimento econômico enseja o comprometimento da comunidade internacional com a defesa dos direitos laborais e a promoção de ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Os efeitos adversos do trabalho têm sido objeto de estudos na área da saúde sob diversas perspectivas: riscos, desgastes, adoecimentos e agravos à saúde em geral 6 Assunção AA. Invisibilidade das doenças profissionais no Brasil (1919-2019). Cienc Saude Colet [Internet]. 2022 [citado em 6 nov 2023];27(4):1423-33. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.03632021
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- 8 Cordeiro R, Luz VG, Hennington EA, Martins ACA, Tófoli LF. Urban violence is the biggest cause of fatal work-related accidents in Brazil. Rev Saude Publica [Internet]. 2017 [citado em 6 nov 2023];51:123. Disponível em: https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051000296
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. Contra essas adversidades, diferentes formas de resistência são constituídas pelos sujeitos, individual e coletivamente. Nessa direção, foi instituída no Brasil a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) por meio da Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012 9 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2012 [citado em 10 mar 2023]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html
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, uma conquista das trabalhadoras e dos trabalhadores brasileiros contra os riscos de adoecimento e morte decorrentes do trabalho.

Para Foucault 10Foucault M. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 1984. , resistir é criar possibilidade de existência e provém das estratégias efetuadas a partir das relações de força no campo do poder, da composição de forças inéditas. Forças do devir, da mudança, que apontam para o novo e engendram possibilidades de vida. Não há resistência sem relações de poder-saber e, nesse sentido, resistir assume o significado de criar. Formas de resistir e de enfrentar de forma urgente os problemas que afetam os trabalhadores/as podem ser socialmente construídas no sentido de prevenir agravos, promover a saúde e qualidade de vida e de proteger a saúde do(a) trabalhador(a), sendo os processos educativos e formativos fundamentais nessa criação.

Marco da área de Saúde do Trabalhador (ST), a PNSTT reafirmou os princípios fundantes do Sistema Único de Saúde (SUS) de universalidade, integralidade e equidade, atendendo à diretriz de participação dos trabalhadores e da comunidade na luta pelo fortalecimento da Vigilância em Saúde do Trabalhador, pela atenção integral, pela promoção da saúde e de ambientes e processos de trabalho saudáveis. A formação em saúde, trabalho e ambiente (STA) na perspectiva da construção de autonomia dos sujeitos e do bem comum é uma das estratégias previstas pela PNSTT, visando colocar em prática a ST como direito e a participação dos trabalhadores na defesa da vida e na consolidação do próprio SUS.

Como elemento fundamental no processo de fortalecimento da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), a formação em STA visa não apenas à aquisição de conhecimentos técnicos específicos, mas implica criação, troca e produção de novos saberes e o desenvolvimento de práticas educativas e de trabalho contextualizadas e forjadas coletivamente em diferentes cenários – em serviços de saúde, escolas e sindicatos, junto ao controle social, aos movimentos sociais e à população em geral.

Completados dez anos da criação da PNSTT e diante de um mundo do trabalho em profunda transformação, busca-se discutir de forma ampla e crítica a educação e, mais diretamente, a formação dos atores sociais no campo da ST para uma atuação efetiva em todos os níveis de atenção à saúde, na perspectiva da formação cidadã, tomando como referências os preceitos da política nacional.

A formação em saúde na PNSTT e seus desdobramentos

Uma das mais importantes estratégias da PNSTT 3 Organização Internacional do Trabalho. Segurança e saúde no trabalho. OIT [Internet]. [data desconhecida] [citado em 13 jan 2022]. Disponível em: https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650864/lang--pt/index.htm
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é a qualificação das equipes de saúde por meio de processos de educação permanente com base em conteúdos e experiências específicos que favoreçam a integração da Vigilância em Saúde do Trabalhador com os demais componentes da Vigilância em Saúde e a Rede de Atenção à Saúde (RAS), com ênfase na Atenção Primária. Deve-se desenvolver práticas educativas em ST priorizando a Estratégia Saúde da Família, porém sem negligenciar serviços de urgência e emergência e atenção especializada – hospitalar e ambulatorial.

Pesquisa de Mendes et al. 11 Mendes JMR, Wünsch DS, Machado FSK, Martins J, Giongo CR. Saúde do trabalhador: desafios na efetivação do direito à saúde. Argumentum. 2015 [citado em 6 nov 2023];7(2):194-207. Disponível em: https://doi.org/10.18315/argumentum.v7i2.10349
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, que investigou as necessidades na área de ST no contexto da Atenção Básica de Saúde no estado do Rio Grande do Sul, constatou que o trabalhador permanece invisível perante as equipes de saúde e, em consequência, o processo saúde-doença-trabalho não é objeto de intervenção das equipes de saúde. Segundo os autores, existe necessidade de fomentar a Vigilância em Saúde do Trabalhador a partir da articulação intra e interinstitucional e do desenvolvimento de ações interdisciplinares, intersetoriais e transversais.

Em estudo também voltado para a formação em ST na Atenção Básica 12 Camara EAR, Belo MSSP, Peres F. Desafios e oportunidades para a formação em saúde do trabalhador na Atenção Básica à Saúde: subsídios para estratégias de intervenção. Rev Bras Saude Ocup [Internet]. 2020 [citado em 6 nov 2023];45:e10. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369000009418
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, fundamentado na revisão de artigos, em documentos de acesso público e utilizando a Matriz SWOT, foram considerados elementos positivos o fortalecimento da capacidade gestora da Renast e a boa articulação entre academia e serviços. Já o fato de que a maior parte das ofertas de formação esteve limitada a cursos de especialização e as poucas experiências avaliativas dos cursos e dos egressos foram consideradas “fraquezas”, de acordo com a Matriz.

Os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), como polo principal de disseminação da política na RAS, além de ofertar assistência integral à saúde, devem formar profissionais de saúde visando uma atuação técnica e política, prestando apoio técnico e pedagógico para o estabelecimento de diagnósticos de saúde e nexos causais entre agravos e ocupações. Do mesmo modo, deve promover ações formativas com os trabalhadores que possibilitem amplo reconhecimento de aspectos políticos, sociais e econômicos relacionados aos processos produtivos. A PNSTT preconiza ampliar investimentos na qualificação dos técnicos dos Cerest.

A política igualmente enfatiza a necessidade de incluir conteúdos curriculares na formação de profissionais de nível técnico e superior que possam atuar no campo. Assim como os profissionais de saúde, as práticas educativas em ST devem contemplar e apoiar, ainda, a formação de movimentos sociais e sindicatos, controle social e organizações não governamentais, inclusive grupos de trabalhadores em situação de vulnerabilidade, com vistas a ações de promoção da saúde.

No conjunto de atividades, a formação envolve, ademais, a comunicação e informação aos trabalhadores a respeito da nocividade que o trabalho pode oferecer à saúde. Sob esse aspecto, a criação de boletins informativos e outros materiais e instrumentos didático-pedagógicos e o desenvolvimento de seminários e oficinas, inclusive a elaboração de protocolos, são exemplos que podem orientar as práticas de trabalho com o objetivo de evitar riscos e danos à saúde.

A política recomenda, ainda, fomentar mecanismos de inserção de conteúdos de ST nos diversos cursos de graduação das áreas de saúde, engenharias, ciências humanas e sociais, entre outros, e de programas de pós-graduação, de forma a articular ensino, pesquisa e extensão. Para ampliar o escopo da formação, deve-se buscar atuação intersetorial do setor saúde com ministérios e secretarias de governo, especialmente com o Ministério da Educação, para fins de inclusão de conteúdos temáticos de ST nos currículos do ensino fundamental e médio, da rede pública e privada, bem como nos cursos voltados à qualificação profissional e empresarial.

Sobre competências profissionais para a atenção em ST no contexto da Atenção Primária, pesquisa de Geraldi et al. 13 Geraldi L, Miranda FM, Silva JAM, Appenzeller S, Mininel VA. Competências profissionais para a atenção à saúde do trabalhador. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2022 [citado em 6 nov 2023];46(2):e071. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.2-20210469
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desenvolvida por meio da triangulação de métodos identificou que apenas os cursos de Educação Física, Enfermagem, Fisioterapia e Terapia Ocupacional tinham competências específicas para atenção à ST nas diretrizes curriculares. No exterior, a maioria das pesquisas sobre formação está focada em carreiras específicas, como Medicina e Enfermagem, e em uma visão de saúde ocupacional 14 Baker BA, Dodd K, Greaves IA, Zheng CJ, Brosseau L, Guidotti T. Occupational medicine physicians in the United States: demographics and core competencies. J Occup Environ Med [Internet]. 2007 [citado em 6 nov 2023];49(4):388-400. Disponível em: https://doi.org/10.1097/jom.0b013e31803b947c
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- 17 Lalloo D, Demou E, Kiran S, Gaffney M, Stevenson M, Macdonald EB. Core competencies for UK occupational health nurses: a Delphi study. Occup Med [Internet]. 2016 [citado em 6 nov 2023];66(8):649-55. Disponível em: https://doi.org/10.1093/occmed/kqw089
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.

Para ampliar o poder da PNSTT de promover mudanças, ela deve, além de tudo, ser disseminada e apropriada pelos órgãos de ensino e fomento à pesquisa e por outras instituições responsáveis por processos educativos, como universidades, centros de pesquisa, organizações sindicais, entre outros, servindo como indutora na produção de conhecimento em ST. Deve-se estimular o uso de novas tecnologias de educação presencial e a distância pelos programas de formação em saúde, trabalho e ambiente, que precisam ser continuamente avaliados. Além disso, deve haver acompanhamento, avaliação e atualização dessas tecnologias.

Uma revisão sistemática sobre estratégias voltadas ao ensino em saúde no contexto laboral 18 Oliveira RM, Rosa CM. O Ensino em Saúde do Trabalhador: uma revisão sistemática. Interfaces Educ [Internet]. 2022 [citado em 6 nov 2022];13(38):52-72. Disponível em: https://doi.org/10.26514/inter.v13i38.4510
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, utilizando como base de dados o Portal de Periódicos Capes, concluiu que, embora a abordagem dos riscos em saúde no trabalho seja recorrente, existem poucas produções científicas sobre modelos de ensino em saúde, prevalecendo intervenções, muitas vezes, descontextualizadas, verticalizadas e esporádicas, com pouco ou nenhum planejamento prévio e análise de impactos.

Outra diretiva estabelecida pela PNSTT é a participação do controle social, dos sindicatos, dos movimentos sociais e da comunidade em geral nos processos formativos em ST, tomando por pressuposto que o percurso formativo diz respeito à própria experiência democrática. Deve-se colaborar para a organização de comissões, conselhos e representações dos movimentos sociais, visando fortalecer essa participação nos processos educativos, de controle social e de vigilância popular em saúde.

O mundo do trabalho em crise: novas exigências e novos caminhos dos processos formativos em Saúde do Trabalhador

A pandemia de COVID-19 agudizou um contexto global de crise sanitária e humanitária e impôs novos desafios à ST, com ampliação das formas violentas de extração de mais valia, exposição de trabalhadores ao risco de adoecimento e morte e precarização da vida e do trabalho 19Berardi F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu; 2020. , 20 Hennington EA. 28 de abril, dia mundial em memória às vítimas de acidentes e doenças do trabalho: o que aprender com a covid-19? Laboreal [Internet]. 2021 [citado em 6 nov 2023];17(1):1-8. Disponível em: https://doi.org/10.4000/laboreal.17665
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. Como afirma Franco “Bifo” Berardi 19Berardi F. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu; 2020. , estamos diante de um “corpo sufocado” pela exploração da força de trabalho e extrativismo incessantes, pela espoliação do meio ambiente, pela falta de liberdade e pelo esvaziamento da democracia.

Toda crise impõe movimentos de resistência 10Foucault M. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 1984. e de (re)existência 21Simas LA, Rufino L. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula; 2020. e uma das formas de luta é fazer com que as políticas saiam do papel, difundam-se e materializem-se em práticas concretas no cotidiano e afetem a vida das pessoas. Em cenário tão atribulado e desolador, é fundamental tornar viva e pulsante uma política que defenda e proteja a vida e a saúde de trabalhadores e trabalhadoras cada vez mais ameaçadas pela face perversa e destrutiva do capital e pela necropolítica 22Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições; 2020. , em oposição ao avanço de pautas conservadoras e governos de extrema direita com retrocessos no campo ético, político e dos direitos humanos 23 Barchifontaine CP, Trindade MA. Bioética, saúde e realidade brasileira. Rev Bioét [Internet]. 2019 [citado em 6 nov 2023];27(3):439-45. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1983-80422019273327
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, 24 Cohn A. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova [Internet]. 2020 [citado em 6 nov 2023];(109):129-60. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-129160/109
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, o que exige a conformação de novos projetos educativos.

O lugar estratégico em que o SUS situa a formação em saúde conferiu aos processos formativos a exigência de se considerar, ao mesmo tempo, a perspectiva de mudança de mentalidade na direção da compreensão da saúde como um valor da sociedade brasileira, então articulada àquilo que o movimento sanitário denominou de processo civilizatório, e a qualificação técnica de seus operadores por meio de estratégias ancoradas na política de educação permanente. Essa conjugação humanística e técnica gerou desafios para se pensar a formação em saúde, considerando que processos técnicos não podem ser apartados do contexto no qual as práticas de saúde acontecem e que inflexões sobre a realidade só podem existir em uma democracia com ampla participação social.

Sabemos desde a Antiguidade que nenhuma sociedade democrática é capaz de se sustentar sem a existência de um projeto capaz de formar indivíduos que possam de fato empreendê-la 25Aristóteles. Política. São Paulo: Vega; 1998. - 27Santos GB. O SUS na perspectiva da formação humana. In: Vianna JAV. Desafios institucionais da ordem de 1988. Rio de Janeiro: FCRB; 2014. p. 104-18. . No caso da sociedade brasileira recém-saída de um longo processo de ditadura militar, formar o cidadão para compreender e sustentar o projeto democrático figurava como urgência para fortalecer e solidificar o ideário da Constituinte de 1988. No entanto, a ampla participação popular no processo constituinte, no planejamento e na realização de políticas públicas não correspondeu à expectativa criada de oposição às ameaças à Constituição Cidadã. A parte da sociedade mais prejudicada com o forte avanço do modelo neoliberal no Estado brasileiro pôde oferecer pouca resistência diante do desmonte em curso. Hoje a ascensão do conservadorismo e do fascismo, inclusive no Brasil, reforça o cenário de ameaça à democracia.

Nesse contexto, o trabalho transformado em mercadoria torna-se fonte de todo o valor, mas, ao mesmo tempo, persiste como elemento central no processo de “humanização dos humanos” 28Neves JM. Trabalho e gestão na perspectiva da atividade: crítica, clínica e cartografia. Porto Alegre: Sulina; 2018. . Essa função ontogenética enredada no sistema de produção capitalista transforma o trabalho, paradoxalmente, em afirmação e negação do sujeito, pois pelo trabalho nos tornamos humanos, mas, sob as regras do capital, o trabalho não é mais livre, e sim explorado, estranhado 29Antunes R. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo; 1999. . A subjetividade do trabalhador, submetido aos ditames do capital e encarcerada em modelos de gestão, que negam a ele o pleno exercício de suas capacidades e da criação, torna-se não produtora de saúde, mas de sofrimento e adoecimento 30Hennington EA, Sant’anna FCR, Pasche DF. Democracia faz bem à saúde? Gestão do trabalho e a Vigilância em Saúde do Trabalhador (da saúde). In: Vasconcellos LCF, Corrêa Filho HR, Garrido PHS, Ponte CF, Silva CS, organizadores. Saúde do trabalhador em tempos de desconstrução: caminhos de luta e resistência. Rio de Janeiro: Cebes; 2021. p. 174-7. .

O trabalho não atua apenas como organizador da vida social, mas também ocupa a maior parte do tempo das pessoas, pois vender a força de trabalho é condição imperiosa no capitalismo. Do ponto de vista político, as repercussões, do mesmo modo, serão enormes. Se ao trabalhador está reservada a função de trabalhar (produzir), por óbvio, “fazer política”, ou seja, a mediação de interesses em sociedades de classe (detentores e não detentores dos meios de produção) caberá a representantes, tornando a participação social um mecanismo oblíquo, de incidência indireta.

E de maneira semelhante ao que foi preconizado pelo SUS, a razão mais forte do interesse pelo tema da formação na PNSTT não está descrita, de maneira explícita, na portaria que a regulamenta, mas está presente no seu espírito: um devir representado pela produção de sujeitos – trabalhadoras e trabalhadores – capazes de empreender o projeto da ST expresso pela política por meio de seus princípios, diretrizes e estratégias.

Saberes compartilhados, integralidade, interdisciplinaridade e autonomia: fundamentos do processo formativo em Saúde do Trabalhador para a cidadania

A ST tem como premissa de suas práticas a interlocução com os próprios trabalhadores, considerando a importância dos saberes da experiência desses sujeitos, patrimônio imprescindível para ações transformadoras. Seguindo a pedagogia freireana, é essencial que na formação em saúde as questões que dizem respeito à relação saúde-trabalho-ambiente sejam abordadas de modo que os saberes dos trabalhadores façam parte do próprio processo formativo. A participação desses sujeitos, a problematização e o compartilhamento de saberes formais e frutos da experiência são elementos fundamentais nas práticas educativas 31Freire P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1967. - 33Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. . Cabe desenvolver experiências mais democráticas nas relações de ensino-aprendizagem e projetá-las no exercício do próprio trabalho.

É importante também reconhecer o papel estruturante nos processos formativos dos conceitos de integralidade e de interdisciplinaridade. Na prática médica, a integralidade consiste em conduta profissional na qual o cuidado em saúde se caracteriza pela recusa ao modelo biomédico que tende a reduzir o indivíduo ao sistema biológico que produz a doença. Na perspectiva dos determinantes sociais do processo saúde-doença, a prática da integralidade do cuidado envolve ações assistenciais, curativas e preventivas de maneira articulada nos diferentes níveis de complexidade do sistema de saúde 34 Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cad Saude Publica [Internet]. 2004 [citado em 6 nov 2023]; 20(5):1411-6. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2004000500037
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. No campo da ST, essa prática é reconhecida pela incorporação dos saberes que os trabalhadores produzem sobre o processo de trabalho e esse reconhecimento está presente na formação, na pesquisa e nos serviços de saúde, de forma que os agravos e adoecimentos decorrentes do trabalho sejam abordados sob diferentes ângulos. Isso não ocorre fora de uma perspectiva interdisciplinar de construção do conhecimento, algo que se realiza pela

[…] prática de parceria, reciprocidade, complementaridade, troca e diálogo entre conhecimentos oriundos de diferentes disciplinas […] , de maneira a permitir que a pluralidade de sentidos responda concretamente por ações capazes de provocar mudanças na realidade, quando apresentada de maneira adversa 35Castoriadis C. As encruzilhadas do labirinto: vol III. Paz e Terra: Rio de Janeiro; 1997. . (p. 272).

A formação, assim como pensamos, consiste em uma prática ininterrupta de reflexão e interrogação sobre as estruturas e significações sociais, nas quais indivíduos e sociedade se reconhecem autores críticos de suas histórias, base para o desenvolvimento de uma ação autônoma, porém comprometida com o bem comum. Como observa Castoriadis 35Castoriadis C. As encruzilhadas do labirinto: vol III. Paz e Terra: Rio de Janeiro; 1997. , a autonomia humana e a singularidade evidenciada pelo poder de criação individual e coletiva atuam em oposição à tendência das instituições ao fechamento em um mundo próprio, no qual o questionamento de normas, valores, métodos é combatido ou ocultado.

As instituições “fabricam” indivíduos sociais que aderem, apoiam e legitimam o conjunto de significações que lhes dá sentido e, ao mesmo tempo, desenvolvem mecanismos singulares para sua perpetuação. Representações, significações ou práticas que diferem daquelas socialmente instituídas são, em geral, percebidas como um perigo, logo, devem ser evitadas. Contudo, o polo instituído, a ordem instituída, se depara com forças instituintes, de contestação e inovação. O jogo de forças entre essas duas instâncias movimenta as organizações e a própria sociedade em permanente mutação.

O exercício da autonomia consiste, entre outros, em interrogar sobre as próprias crenças, leis e representações, tanto o indivíduo quanto a sociedade, abrindo-se à possibilidade de se instaurar processos de mudança, ação exclusivamente humana 35Castoriadis C. As encruzilhadas do labirinto: vol III. Paz e Terra: Rio de Janeiro; 1997. . A formação cidadã para o exercício da autonomia deve propiciar compreender que a formação social e econômica e seus efeitos, a exemplo de relações de trabalho precarizadas, agravos e mortes decorrentes de precárias e indignas condições de trabalho, ou mesmo desgastes físico e mental do trabalhador oriundos da organização do trabalho, poderiam ser evitados ou minimizados, pois resultam de relações desiguais de poder que podem ser alteradas.

Romper com o “estado de coisas”, portanto, impõe acionar processos pedagógicos críticos e promotores de autonomia, mobilizando o poder de ação e de criação que passa pelo reconhecimento social e histórico da capacidade de indivíduos e coletivos instaurarem as próprias significações e de construir suas próprias leis, em uma autonomia modulada pelo sentido do bem comum. Esse movimento está na base de um projeto de transformação individual e social que busca a criação de um mundo diferente.

O processo de formação de indivíduos autônomos, dotados da faculdade e do poder de fazer as coisas e de transformar a sociedade, só pode existir na e pela criação de uma sociedade autônoma, capaz de suportar a ação criativa e criadora dos indivíduos e coletivos. Nisso consiste o poder da educação e sua relação com a política, que é fazer existir o que ainda não é 26Castoriadis C. Que democracia? In: Castoriadis C. As encruzilhadas do labirinto: vol VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2004. p. 197-246. . Pela formação, o trabalhador pode tanto compreender as significações que legitimam a produção de riquezas pela exploração do trabalho como se preparar para se interrogar sobre essas significações, abrindo passagem para pensar e experimentar outros processos de trabalho e de organização social que melhor respondam às necessidades (de vida plena) dos trabalhadores.

Todavia, esse processo somente pode existir na e pela democracia, que reconhece o poder de criação da sociedade, o qual ocorre por meio da participação social. E em que consiste essa participação? No caso dos processos formativos em ST, trata-se de uma prática na qual os agentes envolvidos tomam parte de todas as etapas e, inclusive, participam das decisões que os precedem. Em termos práticos, os agentes se responsabilizam pelo planejamento, conteúdo e pelas estratégias pedagógicas que servem de base à prática de reflexão e interrogação sobre essas significações.

A troca de saberes entre os envolvidos, elemento mais facilmente reconhecido nos discursos dos especialistas no âmbito da formação em saúde, não é o único nem o principal aspecto na formação em saúde. Tomar parte do processo significa ser ao mesmo tempo autor e protagonista da formação, deliberando sobre a finalidade e os processos do ato formativo, encarnando um projeto que reconhece que toda a formação é sempre uma atividade autoformativa, razão pela qual deve ser organizada a partir do olhar dos sujeitos em formação.

Não podemos esquecer, ainda, do compromisso da formação com práticas pedagógicas libertadoras, anticapitalistas, anticolonialistas, antirracistas e feministas, sustentadas em propostas flexíveis que possam ser reorientadas de acordo com as características e com os interesses de cada grupo, da valorização da presença e da contribuição de cada participante para a criação de uma verdadeira e entusiasmada comunidade de aprendizagem, com envolvimento na produção de ideias e vontade de aprender a partir de um prazeroso esforço coletivo 36Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2017. . A adoção de métodos participativos em processos de formação não apenas favorece a incorporação de uma multiplicidade de saberes e a produção de um projeto coletivo, mas também possibilita a construção de sujeitos mais democráticos.

Empreender projetos de formação em ST deve perpassar diversos cenários sociais, pois a compreensão de que a transformação social é responsabilidade de toda a sociedade parte do reconhecimento dos diversos espaços coletivos, como sindicatos e demais organizações sociais, comissões, conselhos de saúde e outros, que têm papel relevante na formação política. Não se trata de formar esses agentes sem considerar que o próprio ato de participar da experiência democrática é um processo formativo.

Em suma, além de temas técnicos referentes à ST como parte do percurso formativo na área da saúde, deve-se considerar os aspectos éticos e políticos na formação de pessoas comprometidas com o projeto de sociedade que a ST ambiciona. Além da formação de profissionais, esse desafio social global de promover a ampliação da cultura de saúde, trabalho e ambiente na formação cidadã deveria estar presente nos currículos escolares desde a educação básica. Formar cidadãos em uma perspectiva crítica e comprometida com um projeto de transformação das condições de trabalho, de defesa da natureza e de luta para a preservação da saúde e da vida dos trabalhadores deveria ser o propósito de qualquer processo formativo.

A saúde e a doença para além do corpo do trabalhador, a força do coletivo e os desafios da formação rumo a uma sociedade mais justa

Entendemos que a formação em ST deve ocorrer na vida cotidiana, de maneira continuada, nas práticas e a partir delas, nas relações que se estabelecem no viver. Diríamos que a formação deve ser “situada”, considerando as características e especificidades de pessoas, coletivos de trabalho, comunidades, territórios, por meio de projetos político-pedagógicos e programas construídos de forma coletiva, que seriam alvo de avaliação de resultados e impactos, reavaliação e reorientação, caso necessário.

Historicamente, o campo da ST é alicerçado na valorização do saber e no protagonismo dos trabalhadores na luta por melhores condições de vida e trabalho. Assim, a formação deve considerar os trabalhadores como sujeitos participativos e corresponsáveis na construção de projetos e espaços de promoção da saúde. Tal responsabilização deve ser compartilhada pelos grupos de trabalhadores de modo a propiciar a criação de algo que possa ser dividido, resultado de experiências individuais, bem como das trocas e das relações estabelecidas entre sujeitos e de um compromisso ético-político. Assim, o processo formativo deve ser sustentado pelo diálogo permanente e pela circulação de saberes: saberes formais, técnico-científicos, saberes da experiência, patrimônio dos próprios trabalhadores, permeado por um compromisso ético com a construção do bem comum e defesa da vida 37 Schwartz Y. Disciplina epistêmica, disciplina ergológica. Paidéia e politeia. Trab Educ [Internet]. 2003 [citado em 6 nov 2023]; 12(1):126-49. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643974/11429
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- 39 Hennington EA. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Rev Saude Publica [Internet]. 2008 [citado em 6 nov 2023];42(3):555-61. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102008005000022
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A saúde resulta da capacidade de lidar com as variabilidades do meio e de criar normas de vida 40Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. , pois viver não se restringe a aspectos adaptativos: requer criação. A falta de compartilhamento de ideias, ideais e sonhos entre aqueles que trabalham, do mesmo modo, é adoecedora. Relações de trabalho endurecidas e autoritárias são tão adoecedoras quanto a exposição a agentes insalubres ou perigosos; práticas autoritárias no trabalho causam mal-estar, sofrimento e doenças 30Hennington EA, Sant’anna FCR, Pasche DF. Democracia faz bem à saúde? Gestão do trabalho e a Vigilância em Saúde do Trabalhador (da saúde). In: Vasconcellos LCF, Corrêa Filho HR, Garrido PHS, Ponte CF, Silva CS, organizadores. Saúde do trabalhador em tempos de desconstrução: caminhos de luta e resistência. Rio de Janeiro: Cebes; 2021. p. 174-7. . O trabalho precário, sem proteção social e mal remunerado é altamente arriscado e a exploração da natureza de forma abusiva e predatória também o é. Enfim, pensar saúde e suas relações com o trabalho, processos

produtivos e modelos de desenvolvimento é reconhecer que ela está muito além da mera ausência de doença. Situações que causam sofrimento ou doença estão para além do nosso corpo; a saúde e a doença não dizem respeito a algo que tem a ver apenas com o nosso organismo biológico, mas afetam nossa subjetividade e nosso modo de estar no mundo.

A formação em ST deve envolver diálogo e construção de estratégias entre trabalhadores e demais atores sociais, que devem atuar de forma democrática, coletiva e organizada, para que possam reinventar práticas concretas de trabalho. Entretanto, nas escolas e nos ambientes de trabalho, ainda há pouco espaço para que o tema saúde seja discutido e compartilhado. E isso acontece mesmo nos serviços de saúde! É preciso dividir histórias, alegrias, tristezas e utopias nos espaços de trabalho, que devem ser espaços de formação. É preciso desestruturar o instituído e investir na mudança. Como diria bell hooks 36Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes; 2017. , “o ato de ensinar é um ato de resistência”, e o processo ensino-aprendizagem deve ser um momento de reflexão crítica, aberto à quebra de paradigmas e à transgressão.

A educação pode aumentar nossa capacidade de ser livres e de lutar contra todas as formas de dominação e opressão. Sonhos comuns nos tornam sujeitos mais potentes para a luta pela melhoria das condições de trabalho e transformação social. A história mostra que as conquistas são fruto de união e luta. Passamos grande parte de nossas vidas no trabalho e o sentimento de pertencimento e a partilha ajudam a enfrentar os problemas cotidianos. Juntos somos capazes de criar projetos e práticas educativas inovadores, imaginar alternativas, minimizar danos e encontrar sentidos para o trabalho.

O trabalho como devir: projetos educativos para formar cidadãos e forjar utopias

O que caracteriza o trabalho humano é nossa capacidade de antecipar nossas tarefas, de planejar o que irá acontecer no trabalho. Existem normas e prescrições de como elas devem ser feitas e nós conseguimos imaginar seus resultados. Mas o trabalho não é algo que possa ser totalmente aprisionado em uma idealização. O trabalho como atividade é vivo, faz-se em ato pela mediação que o trabalhador realiza entre as prescrições e as variabilidades do meio; logo, realizar o trabalho é sempre da ordem da inventividade, sempre um “vir a ser”.

As profundas mudanças no mundo do trabalho com o avanço da uberização, do trabalho digital e da indústria 4.0 conformam um cenário laboral caracterizado pela terceirização, flexibilização, informalidade e perda de direitos 1Antunes R, organizador. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo; 2020. , 2 Navarro VL, Padilha V. Dilemas do trabalho no capitalismo contemporâneo. Psicol Soc. 2007;19(Esp. 1):14-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000400004
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. No entanto, em pleno século XXI, princípios do antigo modelo taylorista-fordista ainda incidem na organização dos processos de trabalho: separação entre planejamento e execução; controle e intensificação do ritmo de trabalho para maior produtividade; e trabalho como repetição, e não como criação, são alguns dos preceitos que transformam o trabalho na mera realização de tarefas. Por outro lado, subjetividade e afetos do trabalhador passam a ser objetos de apropriação nos modelos mais recentes de administração e organização do trabalho no capitalismo. Proatividade, competitividade e colaboração tornam-se palavras de ordem nos ambientes laborais.

Diante de tudo isso, a riqueza e a complexidade do trabalho no cotidiano se expressam em um jogo entre normas antecedentes e renormatizações que surgem no aqui e agora, em um debate constante de normas e valores. Há dramáticas dos usos de si, exigências individuais e coletivas, não só físicas, mas também intelectuais e subjetivas para o desempenho do trabalho 37 Schwartz Y. Disciplina epistêmica, disciplina ergológica. Paidéia e politeia. Trab Educ [Internet]. 2003 [citado em 6 nov 2023]; 12(1):126-49. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643974/11429
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, 38 Schwartz Y. A experiência é formadora? Educação e Realidade [Internet]. 2010 [citado em 6 nov 2023];35(1):35-48. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/11030
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. O trabalho é muitas vezes modificado, atualizado em negociação com os colegas, com os gestores, com o público atendido, com os recursos disponíveis. O trabalhador é potente: graças a sua inventividade, seus saberes investidos, seu poder de adaptação e suas estratégias. Na micropolítica, somos gestores do nosso processo de trabalho, pois nem tudo pode ser prescrito, antecipado. Diante das dramáticas, dos novos acontecimentos que surgem na atividade, fazemos escolhas. E no coletivo, podemos intervir para transformá-lo 39 Hennington EA. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Rev Saude Publica [Internet]. 2008 [citado em 6 nov 2023];42(3):555-61. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102008005000022
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A PNSTT contempla o tema da formação em ST elencando várias estratégias que devem ser implementadas no âmbito da rede SUS e de outros espaços potencialmente formativos. Como qualquer política pública, aponta diretrizes e caminhos, mas só se faz de fato presente e efetiva à medida que sai do papel e passa a influenciar a vida das pessoas, garantindo saúde e colocando em prática direitos. Nesses dez anos, as agudas transformações sociais e o mundo do trabalho em constante mutação tornaram o tema da formação cada vez mais desafiador.

Os processos formativos não podem deixar de considerar tantas nuances, a complexidade e o dinamismo envolvidos no ato de trabalhar. O trabalho não é uma ação isolada para subsistência; é parte de uma cadeia reprodutiva e produtiva, local e global, na produção de riquezas de um país, que afeta o indivíduo, o ambiente e a vida de todos, incluindo a natureza. Ainda que esses processos e práticas estejam comprometidos com a construção e partilha de saberes e conhecimentos relacionados diretamente à saúde do trabalhador e da trabalhadora, eles devem ir além. Não podemos desconsiderar, no percurso formativo em ST, o compromisso ético e político da educação na formação de cidadãos críticos e engajados no fortalecimento de um projeto civilizatório e na utopia comum de uma sociedade democrática e justa.

Referências

  • Disponibilidade de dados: Os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
  • Como citar (Vancouver):
    Hennington EA, Santos GB e Pasche DF. Dez anos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e os desafios da formação para (trans)formação do trabalho. Rev Bras Saúde Ocup [Internet]. 2024;49:e4. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369/21622pt2024v49e4

Editado por

Editora-chefe
Ada Ávila Assunção

Disponibilidade de dados

Disponibilidade de dados: Os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
  • Revisado
    01 Dez 2022
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