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A responsabilidade ética das Revistas Científicas frente à pressão para publicar

EDITORIAL

Editor Executivo da Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil

No final de 2011, assinalando um momento impar na história do desenvolvimento do periodismo científico no nosso país, a Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) realizou o seu XIII Encontro Nacional (XIII ENEC) com temática sobre integridade e ética na publicação científica, evento da maior importância para todos aqueles envolvidos com a divulgação da ciência no país. De fato, tornou-se claro, a partir de tudo o que ali foi discutido, que a responsabilidade de todos nós, editores e articulistas enquanto elementos centrais na disseminação do conhecimento, é muito maior do que geralmente se considera. Neste sentido é fundamental estarmos atentos à possibilidade de fraudes de todos os tipos tais que o maquiamento ou mesmo a invenção de dados, como também, a famosa técnica do "copiar e colar" - como se diz hoje numa linguagem simplista, mas muito ilustrativa - e de várias outras formas de repetição de informações já publicadas pelo próprio autor, o denominado autoplagiarismo.

Aliás, como disseminadores do conhecimento precisamos ter o máximo cuidado para que a chamada "modernidade líquida" do mundo atual - conforme a metáfora de Zigmundt Bauman,1 - com a sua imensa oferta de informações irrelevantes, não contamine a comunicação científica, prejudicando a qualidade e a idoneidade tão necessárias às informações divulgadas.

A velocidade das mudanças e dos fatos novos com o crescimento exponencial da quantidade de publicações2 que nos chegam continuamente poderia, inclusive, reduzir a nitidez que todos precisamos ter como expositores de ideias e de achados científicos. Porque, uma coisa é a competição genuína e saudável, e mesmo o atrito entre indivíduos ou grupos de pesquisa; outra é o padrão ético que, em tudo se deve respeitar. E ambos os aspectos, podem perfeitamente conviver.

A história da Ciência é rica em episódios de grandes debates e até contendas3 entre cientistas, hoje reconhecidos como figuras luminares do saber universal. É por demais conhecida a luta por prioridades sobre a invenção do cálculo integral e diferencial entre Newton e Leibniz ou entre Darwin e Wallace sobre a Teoria da Evolução das Espécies. Estes são dois exemplos clássicos em que, apesar das disputas, não são encontrados, ao meu conhecimento, desrespeito à ética na investigação científica.

Menos conhecida, porém eticamente exemplar embora não propriamente uma disputa de prioridades, é o caso de uma contestação de resultados feita pelo filósofo matemático Bertrand Russel em 1901,4 quando descobriu uma inconsistência na teoria de Gottlob Frege sobre os fundamentos da lógica, a qual já estava em vias de ser publicada naquele mesmo ano. Por mais constrangedor e sofrido que lhe possa ter sido, Frege reconheceu o seu erro, ao mesmo tempo em que Russel, em todas as suas publicações subsequentes sobre o tema, reconheceu o valor e a originalidade das ideias e descobertas de Frege, naquela área de pesquisa. Nas palavras de Russel: "Ele se conduziu com uma franqueza tão nobre que jamais poderá ser por demais elogiada".4

Não se faz hoje, ciência como antigamente? Certamente que se faz e seguramente podemos afirmar que na sua maioria os pesquisadores são corretos e éticos. Mas, dada a enormidade das pressões para publicar a que estamos submetidos precisamos ter o maior cuidado com possíveis deslizes. O problema é que precisamos estar ao máximo atentos para não atingirmos ou prejudicarmos os outros nos seus direitos. Muitas vezes esses direitos têm sido desrespeitados e, se observarmos a literatura científica, vamos encontrar um sem número de evidências nesse sentido. Não é raro, na experiência de muitos editores, a identificação de casos de apropriação de ideias alheias já publicadas, a inclusão de autoria em artigos nos quais não se teve participação, a omissão de outras autorias ou ainda a copia de si próprio em republicações de um artigo. Assim não só o plágio aberto e declarado com reprodução de textos de outrem sem o devido crédito ou a clássica manipulação de dados ou o mais descarado de todos, a invenção pura e simples de resultados, merecem ser lembrados aqui.

São por demais conhecidos casos típicos,5 ao longo do nosso século, de tais "pesquisas" e publicações fraudulentas, exemplos paradigmáticos de conduta anti-ética na ciência. Dentre eles figura por exemplo, aquela que é conhecida como a grande mistificação do século, denominada de "o homem de Piltdown" em 1912, desmascarada em 1953 e que fez um mal tremendo aos estudos paleontológicos; igualmente as ideias de Trofin Lysenko, na União Soviética, prejudicando a ciência da genética e toda a produção agrícola do seu próprio país na década de 1940. Ainda famosa é a falsificação por Cyril Burt sobre diferenças cognitivas entre gêmeos, ao descrever dados fictícios de 53 pares gemelares, fraude descoberta vários anos depois, em 1974. A lista não é pequena, mas podemos encerrar aqui com a aquela mais recente, quando o sulcoreano Hwang Woo-Suk alardeou em 2004 ter conseguido produzir embriões humanos por clonagem. Sua desmoralização começou logo no ano seguinte.

Esses são alguns dos casos mais graves, mas devemos ter em mente que seus perpetradores não podem ser incluídos na categoria de cientistas, mas na de falsários, espécie de marginais, que ofenderam a ciência e o ser humano.

Mas deixando de lado as aberrações não é ocioso lembrar que mesmo alguns nomes respeitáveis na ciência cometeram pecados éticos - de menores consequências mas não desculpáveis - ao divulgarem os resultados das suas pesquisas. Vejam-se os casos de Watson e Crick não incluindo na sua revolucionária publicação na Nature sobre a estrutura da molécula do DNA, o nome de Rosalind Franklin cujas investigações e conhecimento das imagens cristalográficas foram condição sine qua non para a proposta daquele modelo molecular - fato só reconhecido posteriormente por Watson.6 Tem-se comentado também sobre o não reconhecimento do matemático Henri Poincaré nos trabalhos de Einstein sobre a Teoria da Relatividade. Mas estas questões assumem várias interpretações e a controvérsia continua em aberto.7,8

De tudo isso resulta que aqueles debates na reunião da ABEC e as ideias a partir dali suscitadas, levam os Editores à prestar a máxima atenção, nos seus periódicos, aos aspectos éticos expondo-os com a maior clareza possível nas recomendações aos autores e exigindo o seu rígido cumprimento na política editorial da sua Revista.

  • 1. Bauman Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar; 2001.
  • 2. Mabe M. The growth and number of journals. Serials. 2003; 16 (2): 191-7.
  • 3. Hellman H. Grandes Debates da Ciência. São Paulo: UNESP; 1999.
  • 4. Russel B. Alguns contatos filosóficos. In: Russel B. Retratos de Memória. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1958.
  • 5. Oppermann A. As grandes fraudes da ciência. [Internet] [Acesso em 12 Jan 2012]. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/grandes-fraudes-ciencia-628462.shtml
  • 6. Watson JD. The Double Helix. New York: Atheneum Publishers; 1969.
  • 7. Lévy-Leblond JM. A Velocidade da Sombra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil Ltda; 2009.
  • 8. Silva MR. As controvérsias a respeito da participação de Rosalind Franklin na contrução do modelo da dupla hélice. Scientlae Studia. 2010; 8 (1): 69-92.
  • A responsabilidade ética das Revistas Científicas frente à pressão para publicar

    JE Cabral Filho
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012
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