Acessibilidade / Reportar erro

A expressão dos demônios de Morin

The expression of the demons of Morin

Resumos

O objetivo deste texto é promover um diálogo com a autobiografia intelectual de Edgar Morin, com os três temas de maior relevância na sua obra "Meus demônios": a epistemologia, a ética e a política; e destacar a importância do pensamento complexo no processo de produzir saúde. A postura de indagação contínua faz Morin refletir sobre a provisoriedade das "verdades" e "conclusões". Sobretudo, que o conhecimento nunca é total, mas multidimensional. Propõe-se a construir um conhecimento que religa, que é inacabado e inacabável. Trabalha com o conceito de auto-ética, com a urgência de "constituição" de uma identidade humanitária, de uma consciência planetária, da idéia de terra pátria. Na política assinala a necessidade de uma consciência de resistência entre os homens, em todos os tempos e áreas, a forças mentais, ideológicas, culturais e históricas que possam suscitar erros e desta forma reforça a crença na necessidade imperiosa de repensar a política. A lógica do pensamento complexo de Morin tem iluminado muitas das discussões no campo da saúde, uma vez que nesse campo os fenômenos envolvendo o processo saúde e doença apresentam múltiplas dimensões, o que nos faz refletir sobre a complexidade do conceito de necessidades de saúde.

Pensamento; Saúde; Conhecimento


This paper aims to promote a dialogue with the Edgar Morin's intellectual autobiography, with the three greatest relevant subjects in his work "My demons": the epistemology, the ethics and the politics; and to enhance the importance of the complex thought in the process of producing health. The continuous investigating attitude makes Morin reflect on the provisionment of the "truths" and "conclusions". Mainly that the knowledge is never total, but multidimensional. The knowledge is proposed to be constructed which re-links, which is unaccomplished and unaccomplishable. It works with the concept of auto-ethics, the urgency of "constitution" of a humanitarian identity, a planetary conscience, the native land idea. In the politics it designates the necessity of a conscience of resistance among men, in all the times and areas, the mental, ideological, cultural and historical forces that can rouse errors and thus it strengthens the belief in the imperious necessity to rethink the politics. The logic of the complex thought of Morin has illuminated many of the arguments in the health field, since in that the phenomena that involve the health and illness process presents multiple dimensions, what makes us reflect on the complexity of the concept of health necessities.

Thinking; Health; Knowledge


ARTIGOS ESPECIAIS SPECIAL ARTICLES

A expressão dos demônios de Morin

The expression of the demons of Morin

Maria do Socorro Veloso de AlbuquerqueI; Kátia Rejane de MedeirosII; Karla LunaIII; Sabrina Ribeiro de AlmeidaIV; Eronildo FelisbertoV

IDepartamento de Medicina Social. Universidade Federal de Pernambuco. Av. Moraes Rego, s. n. Recife PE, Brasil. CEP: 50. 670-420. E-mail: soveloso@oi.com.br

IICentro Pesquisas Aggeu Magalhães Fundação Oswaldo Cruz. Recife, PE, Brasil

IIIUniversidade Estadual da Paraíba. João Pessoa, PB, Brasil

IVLaboratório de Virologia e Terapia Experimental. Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães. Fundação Oswaldo Cruz. Recife, PE, Brasil

VInstituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira-IMIP. Recife, PE, Brasil

RESUMO

O objetivo deste texto é promover um diálogo com a autobiografia intelectual de Edgar Morin, com os três temas de maior relevância na sua obra "Meus demônios": a epistemologia, a ética e a política; e destacar a importância do pensamento complexo no processo de produzir saúde. A postura de indagação contínua faz Morin refletir sobre a provisoriedade das "verdades" e "conclusões". Sobretudo, que o conhecimento nunca é total, mas multidimensional. Propõe-se a construir um conhecimento que religa, que é inacabado e inacabável. Trabalha com o conceito de auto-ética, com a urgência de "constituição" de uma identidade humanitária, de uma consciência planetária, da idéia de terra pátria. Na política assinala a necessidade de uma consciência de resistência entre os homens, em todos os tempos e áreas, a forças mentais, ideológicas, culturais e históricas que possam suscitar erros e desta forma reforça a crença na necessidade imperiosa de repensar a política. A lógica do pensamento complexo de Morin tem iluminado muitas das discussões no campo da saúde, uma vez que nesse campo os fenômenos envolvendo o processo saúde e doença apresentam múltiplas dimensões, o que nos faz refletir sobre a complexidade do conceito de necessidades de saúde.

Palavras-chave: Pensamento, Saúde, Conhecimento

ABSTRACT

This paper aims to promote a dialogue with the Edgar Morin's intellectual autobiography, with the three greatest relevant subjects in his work "My demons": the epistemology, the ethics and the politics; and to enhance the importance of the complex thought in the process of producing health. The continuous investigating attitude makes Morin reflect on the provisionment of the "truths" and "conclusions". Mainly that the knowledge is never total, but multidimensional. The knowledge is proposed to be constructed which re-links, which is unaccomplished and unaccomplishable. It works with the concept of auto-ethics, the urgency of "constitution" of a humanitarian identity, a planetary conscience, the native land idea. In the politics it designates the necessity of a conscience of resistance among men, in all the times and areas, the mental, ideological, cultural and historical forces that can rouse errors and thus it strengthens the belief in the imperious necessity to rethink the politics. The logic of the complex thought of Morin has illuminated many of the arguments in the health field, since in that the phenomena that involve the health and illness process presents multiple dimensions, what makes us reflect on the complexity of the concept of health necessities.

Key words: Thinking, Health, Knowledge

A autobiografia intelectual de Edgar Morin1 é apresentada em "Meus demônios" como um entrelaço de sua vida profissional e pessoal - sua própria vida - uma vez que para Morin a vida intelectual é inseparável da vida de experiências. Uma vida em constante movimento, cheia de antagonismos e recomeços, entrecortada por ciclos de travessias de desertos e oásis.

Morin se intitula onívoro cultural ao descrever seus demônios culturais. A família ensinou-lhe o Mediterrâneo, o gosto pelo azeite, pela berinjela e outros. O pai se encarregou de transmitir-lhe uma cultura de cançonetas, de café-concerto, de operetas e nenhuma tradição ou um saber, normas e crenças. A mãe lhe ensinou o gosto pelas óperas italianas. No entanto, a mais importante lição que aprendeu na família foi aos nove anos: a morte da mãe. O resto ele aprendeu por si. Viveu sua infância com uma verdade secreta e uma identidade incerta. Na adolescência foi um cinéfilo voraz e leitor faminto. Seja por acaso (ou por sorte) encontrou os livros que lhe falaram, perturbaram-no, transformaram-no e o formaram. Pelo romance e pelo livro Morin chegou ao mundo. Percorreu o caminho do autodidata, movido por necessidades profundas.

Nas dez sessões que compõem o livro, verificam-se aspectos recorrentes do perfil e mesmo da história do autor, em especial a sua postura de indagação contínua, que o leva a "verdades" e "conclusões" temporárias. Essa posição inquieta de Morin se refletiu numa produção dinâmica e atenta aos fenômenos de seu tempo, e, especialmente sempre aberta ao diálogo, ou seja, capaz de incorporar a complexidade de fatos e elementos do mundo contemporâneo.

Assim, a obra de Morin espelha a imagem de um intelectual inquieto, intrigado, cético e ao mesmo tempo crente, capaz de se indignar frente ao conjunto de situações ricamente historiadas nas múltiplas dimensões abordadas, sejam elas políticas, sociais e culturais, com as quais teve de conviver.

As respostas, e mesmo a compreensão dos fatos apresentados por Morin, revelam uma outra característica que lhe é inerente, sua convivência pacífica, contudo não passiva com a contradição. Ele mesmo admite que é do choque de idéias contrárias que resultou cada um de seus livros e que a contradição tem para ele simultaneamente um caráter existencial e intelectual. Em Hegel, o autor descobriu que a contradição estava no fundamento do ser, sendo falsa toda a idéia fechada, cristalizada, abstrata, separada da totalidade de que faz parte. Identificou que a totalidade estava sempre em movimento, sempre inacabada, em marcha ininterrupta.

Na busca de seus próprios demônios, Morin classifica sua vida em três reorganizações genéticas. A primeira, sob forte influência hegeliana e marxista, concentra-se na perspectiva da integração das verdades isoladas, das contradições e o desejo de ultrapassá-las. Na segunda reorganização seu espírito é tomado pela idéia de revolução e retoma o conceito de totalidade. Um conhecimento não mais total, mas multidimensional, contrapondo-se ao pensamento unidimensional. A racionalidade do conhecimento não elimina ou supera as contradições, mas admite sua irredutibilidade. Na terceira reorganização o autor considera que faz uma revolução radical por dentro de si. A complexidade suplanta a totalidade, evidenciado pelo tetragrama dialógico: ordem/desordem/interações/organizações.

Morin liga a cultura humanística à cultura científica ao inferir que a cultura é policultura, não acumulativa, mas auto-organizadora. Ele acredita que a natureza do homem é 100% biológica e 100% cultural respaldado em seu modus vivendi: homem biológico necessitado de alimento, água, vento, terra; homem cultural faminto por cinema, livros, histórias, prazeres, derrotas, guerras, agruras, perdão.

Embora vários temas sejam retratados em "Meus demônios", três deles recebem maior destaque: a epistemologia, a ética e a política.

Morin tem uma disposição de confrontar teorias e idéias sem preconceitos. O autor se propõe a construir um conhecimento que religa, que chega ao conhecimento da ignorância, que é inacabado e inacabável. Assim, ao assumir a contradição ele assumiu também o pensamento complexo, uma teoria e racionalidade abertas.

Como um homem sintonizado com o seu tempo, Morin também reflete sobre o papel da ética nas sociedades a partir da própria experiência. Neste sentido, introduz um conceito que, para ele, é emergente em dadas circunstâncias históricas e culturais - o conceito de auto-ética - que tem como valores fundantes a fé, o amor, a compaixão, a fraternidade, o perdão e a redenção.

Morin adverte que tal como o pensamento complexo tem em seu cerne a contradição, a auto-ética também não escapa dela. Compreende que há nos homens uma multipersonalidade que pode revelar contradições e dessa forma, toma consciência da complexidade e dos desvios humanos. Assim, além da preocupação autocrítica da ética para si, o autor introduz a necessidade de uma moral da compreensão.

Tolerância, perdão e redenção fundem-se criando uma noção de ética da compreensão que impõem a necessidade de argumentação e refutação em oposição a lançar-se maldição sob os fatos ou indivíduos da sociedade.

Dessa lista de valores universais, o autor sugere a urgência de "constituição" de uma identidade humanitária, de uma consciência planetária, da idéia de terra pátria.

A política esteve sempre presente em sua vida, desde a adolescência. Nos anos 30 vivenciou a crise que abalou as economias capitalistas das democracias, a ascensão de Hitler ao poder e a transformação do bolchevismo em stalinismo. Inserido nesse cenário, Morin pôde perceber todas as contradições que permearam o pensamento da esquerda e direita.

Meus primeiros passos nas idéias políticas fazem-se no seio destas contradições. (Morin (1993: 52).1

Na política assinala a necessidade de uma consciência de resistência entre os homens, em todos os tempos e áreas, a forças mentais, ideológicas, culturais e históricas que possam suscitar erros e dessa forma reforça a crença na necessidade imperiosa de repensar a política.

Morin chegou a aderir ao comunismo, mas diante da contradição entre as exigências éticas inerentes à esperança revolucionária de emancipação e o sistema que negava essa exigência sob o regime stalinista, rompe com o partido comunista, mas não com o marxismo. Embora não deixe isto explícito em "Meus demônios", o autor não reduz o marxismo ao dogmatismo stalinista. Inspira-se nas idéias de Pascal,1 mesmo no período que o marxismo oficial, stalinista, fechava os olhos para as obras de mestres como Eckhardt, Nicolau de Cusa e Blaise Pascal. Assim, Morin recupera os escritos de Pascal, sobretudo na discussão que se refere às relações entre o todo e as partes:

[...] sendo todas as coisas causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço natural e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes. (Pascal: 1999: 72).

Morin acredita que o marxismo é abertura, e não fechamento, e o considera uma verdadeira ciência multidimensional que articula as ciências naturais às humanas. Desta forma, não "colocou no lixo" nenhuma escola de pensamento. Durante os escritos de "Meus demônios" Morin teve um insight sobre o que possibilitou a elaboração do livro "O método"

[...]. porque pode operar uma junção e uma aliança de suas duas culturas: "uma primeira cultura, de meus estudos, de minha curiosidade pela "humanidade" e de minha obra nas ciências humanas, alimentou minha necessidade, justificada por Marx, de articular os saberes disciplinares uns aos outros. O homem e a morte levaram-me a integrar as construções de pensamentos antropológicos, além de Marx, Freud, Ferencz, Jung, Rank, Bataille e Bolk; e depois, a aventura de Arguments me fez interar Adorno, Horkheimere e Marcuse. Assim, pude encarar tanto o homem e sociedade de forma multidimensional. (Morin: 2003: 257).1

Merece reflexão a negação de Morin da dimensão ontológica do homem, sobretudo de seu caráter genérico. Tal como Marx, acredita que o trabalho é a atividade vital do homem, uma vez que seu caráter genérico é expresso como trabalhador, diferenciando a espécie humana dos outros animais durante o processo capitalista de alienação do trabalho. Conforme salienta o filósofo húngaro Mészáros,4 em Marx,5 o trabalho constitui uma dimensão ontologicamente essencial da existência humana, uma necessidade da qual ele jamais pode prescindir e que deve, portanto, acompanhá-lo ao longo de toda a sua história.

[...] a vida produtiva, entretanto, é a vida genérica. É a vida criando vida. No tipo de atividade vital está todo o caráter de uma espécie, o seu caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constitui o caráter genérico do homem. (Marx, 2003: 116).5

A vivacidade e a atualidade de Morin encantam. Ele não se deixa desanimar. Mesmo em sua lúcida visão sobre as relações sociais no capitalismo e sobre o fracasso das experiências socialistas, o autor salienta a capacidade e o desejo de transformação que lhes são peculiares. Para ele nós não estamos no fim da história, pois o capitalismo continuará produzindo em nós aspirações socialistas não mais espelhadas na experiência soviética, de negação total do sujeito, e a degradação do ecosistema continuará fortalecendo movimentos de proteção ao meio ambiente.

Morin não deixou de ser caminhante, sua vida continuou errante, impulsionado por suas aspirações múltiplas e antagônicas - tão intensas e extensas em seu ser. Viveu sempre de recomeços.

A contradição e a atitude dialógica de Morin diante de sua caminhada, permitem ao leitor conhecer a história de vida do autor e compreender a produção dele no campo das ciências, assim como a gênese do pensamento complexo.

A lógica do pensamento complexo de Morin tem iluminado muita das discussões no campo da saúde, uma vez que nesse campo os fenômenos que envolvem o processo saúde e doença apresentam múltiplas dimensões. Esse fato nos conduz necessariamente ao conceito complexo de necessidades de saúde, conforme Cecílio,6 que utilizando a taxomonia definida por Stotz,7 postula que as necessidades de saúde passam por ter "boas condições de vida" - a maneira como se vive se traduz em diferentes necessidades de saúde. Necessidade de acesso e de consumir tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida, necessidade não só estabelecida pelos técnicos, mas também pelas pessoas, com suas necessidades reais; necessidades como criação de vínculos entre usuários e equipe profissional - vínculo entendido como o estabelecimento de uma relação contínua no tempo, pessoal e intransferível, encontro de subjetividades e não apenas adscrição a um serviço; necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia - informação e educação em saúde é apenas parte do processo de construção da autonomia de cada pessoa.

No campo da saúde, no qual os fenômenos que envolvem o processo saúde-doença apresentam múltiplas dimensões com outras políticas públicas, e mesmo na forma como a sociedade se desenvolve e organiza o setor, o pensamento complexo revela-se como uma abordagem importante na compreensão desses fenômenos em suas múltiplas dimensões, religando-os, juntando-os.

Recebido em 14 de maio de 2007

Versão final apresentada em 4 de setembro de 2007

Aprovado em 25 de setembro de 2007

  • 1. Morin E. Meus demônios. São Paulo: Bertrand Brasil; 1993.
  • 2. Konder L. A dialética e o marxismo. Rev Trab Necessário. 2003; Ano 1 (1).
  • 3. Pascal B. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural; 1999.
  • 4. Mèszáros I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo; 2006.
  • 5. Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret; 2003.
  • 6. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos R. Araújo, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ; 2001. p. 113-26.
  • 7. Stotz EM. Necessidade de saúde: mediações de um conceito (contribuição das Ciências Sociais para a fundamentação teórico-metodológica de conceitos operacionais da área de planejamento em saúde) [tese doutorado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública; 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2007
  • Aceito
    25 Set 2007
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br