Acessibilidade / Reportar erro

Infecção por parvovírus B19 como causa de miosite aguda em um adulto

Resumos

A infecção pelo Parvovírus B19 costuma ser assintomática, mas as expressões clínicas podem incluir crise aplástica transitória, eritema infeccioso, hidropisia fetal não imune e aplasia crônica da série vermelha. Esse vírus também se associa à artrite reumatoide e a outras doenças autoimunes do tecido conjuntivo; entretanto, não conseguimos identificar na literatura nenhum caso de miosite aguda em adulto desenvolvida depois de infecção pelo Parvovírus B19. Por essa razão, gostaríamos de apresentar um caso raro de miosite aguda desenvolvida depois de infecção pelo Parvovírus B19. Nos pacientes que apresentam sintomas de febre, rash nas pernas e miosite, devem ser consideradas as infecções virais, como a causada pelo Parvovírus B19.

Parvovírus B19; Miosite aguda do adulto; Febre


Parvovirus B19 infection is often asymptomatic, but clinical expressions may include transient aplastic crisis, erythema infectiosum, non-immune hydrops fetalis, and chronic red cell aplasia. This virus has also been associated with rheumatoid arthritis and other autoimmune connective tissue diseases; however, we could not identify any acute adult myositis case developed after a Parvovirus B19 infection in the literature. For this reason, we would like to present a rare case of acute myositis developed after Parvovirus B19 infection. In patients presenting with symptoms of fever, rash on the legs and myositis, viral infections such as Parvovirus B19 should be kept in mind.

Parvovirus B19; Acute adult myositis; Fever


Introdução

O Parvovírus B19 (B19), um vírus de DNA icosaédrico de hélice única e não envelopado com 22 a 26 nm, foi descoberto em 1975 e é o único membro da família Parvoviridae que se sabe ser patogênico para os seres humanos.1Crowson AN, Magro CM, Dawood MR. A causal role for parvovirus B19 infection in adult dermatomyositis and other autoimmune syndromes. J Cutan Pathol. 2000;27:505–15. Essa doença infecciosa, em geral, é vista durante a infância, mas raramente em adultos. A infecção parece conferir imunidade durante a vida toda em hospedeiros imunocompetentes. Embora a soroprevalência seja alta, é rara a viremia ou a presença de DNA viral no sangue periférico em indivíduos saudáveis.2Tolfvenstam T, Broliden K. Parvovirus B19 Infection. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine. 2009;14:218–21. O B19 é transmitido pela via respiratória, mas também pode ser transmitido verticalmente da mãe para o feto, por transplantes de medula óssea e de órgãos e por meio de hemoderivados transfundidos.2Tolfvenstam T, Broliden K. Parvovirus B19 Infection. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine. 2009;14:218–21. A maioria dos casos de infecções pelo B19 é assintomática e se resolve espontaneamente em adultos. Algumas vezes, porém, o B19 causa uma crise aplástica transitória, eritema infeccioso (quinta doença), hidropisia fetal não imune e aplasia crônica da série vermelha. Esse vírus também se associa à artrite reumatoide e a outras doenças autoimunes do tecido conjuntivo;3Kerr JR. Pathogenesis of human parvovirus B19 in rheumatic disease. Ann Rheum Dis. 2000;59:672–83. entretanto, não conseguimos identificar na literatura nenhum caso de miosite aguda em adulto desenvolvido após a infecção pelo B19. Por essa razão, gostaríamos de apresentar um caso raro de miosite aguda desenvolvida depois da infecção pelo B19.

Relato do caso

Paciente masculino de 38 anos foi internado na policlínica de medicina interna com queixas de febre alta e mal-estar. Esse quadro, junto com uma dor difusa, tinha começado três dias antes e se tornara cada vez mais intenso. Ele não tinha história de doenças nem de uso de medicamentos. Ao exame físico, sua temperatura corporal era de 39 °C, e outros exames sistêmicos eram normais. Os exames laboratoriais revelaram aumento dos níveis de alanina aminotransferase (ALT), de aspartato aminotransferase (AST) e de proteína C-reativa (PCR). Encontrou-se leucopenia, trombocitopenia e monocitose no hemograma (tabela 1). Foi encontrado discreto aumento dos monócitos no esfregaço de sangue periférico. A hemocultura, coletada durante o período de febre, não mostrou qualquer crescimento. Os anticorpos heterófilos (monospot) foram negativos.

Tabela 1
Resultados dos exames do paciente

Desenvolveram-se rashes maculopapulares abaixo de ambos os joelhos, mas sua febre diminuiu nos dois dias seguintes. A IgM para B19 foi positiva e, desse modo, considerou-se que o B19 fosse a causa dos rashes. No 3° dia da doença, desenvolveu-se artralgia em ambos os tornozelos e também em ambas as mãos. No 6° dia, os rashes tiveram remissão, e foram substituídos por dor em ambas as panturrilhas, que foi tão intensa a ponto de impedir a deambulação.

Nas investigações realizadas para seguimento, demonstrou-se que AST, ALT e creatina fosfoquinase (CPK) tinham diminuído até as faixas normais, mas a PCR e a velocidade de hemossedimentação (VHS) tinham aumentado (tabela 1). O paciente foi hospitalizado e se iniciou naproxeno sódico na dose de 1.100 mg/dia. Foi realizada RM de ambos os membros inferiores devido à dor contínua e intensa nos músculos de ambas as panturrilhas, o que revelou espessamento e edema em ambos os músculos gastrocnêmios e no grupo muscular semimembranoso, aumento de sinal em T2 e aspecto edemaciado. O envolvimento mínimo do contraste na série pós-contraste foi considerado como miosite (fig. 1). O controle no 10° dia do tratamento revelou redução da dor, sendo que VHS e PCR haviam retornado à faixa da normalidade.

Figura 1
RM de ambas as extremidades inferioresdo paciente.

Discussão

O B19 é comum no mundo todo, e a soroprevalência aumenta com a idade, de modo que 15% das crianças em idade pré-escolar, 50% dos adultos jovens e aproximadamente 85% dos idosos mostram evidências sorológicas de infecção passada.2Tolfvenstam T, Broliden K. Parvovirus B19 Infection. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine. 2009;14:218–21. Essa doença infecciosa, em geral, é vista durante a infância, mas raramente em adultos. O diagnóstico laboratorial de B19 pode ser feito usando-se sorologia, PCR, exame histopatológico e imuno-histoquímica.2Tolfvenstam T, Broliden K. Parvovirus B19 Infection. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine. 2009;14:218–21. O diagnóstico preciso de infecção recente ou passada pelo B19 depende do uso de imunoensaios enzimáticos para detectar IgM e IgG anti-B19 no plasma. Para confirmar a infecção aguda pelo B19, é preciso detectar anticorpos IgM no plasma ou soro. Esses anticorpos são sintetizados aproximadamente sete a dez dias depois de viremia com alto título.4Slavov SN, Kashima S, Pinto ACS, Covas DT. Human parvovirus B19: general considerations and impacton patientswith sickle-cell disease and thalassemia and on blood transfusions. FEMS Immunol Med Microbiol. 2011;62:247–62. A IgG do B19 aparece logo depois da IgM e persiste por toda a vida, sendo que os títulos diminuem lentamente, a menos que reforçados por encontros subsequentes com o vírus. A significância clínica dos diferentes títulos séricos do DNA do B19 ainda não ficou inteiramente estabelecida. Em indivíduos saudáveis com infecção aguda pelo B19, títulos virais que chegam a 1012 gEq/mL são detectáveis no sangue.3Kerr JR. Pathogenesis of human parvovirus B19 in rheumatic disease. Ann Rheum Dis. 2000;59:672–83.,4Slavov SN, Kashima S, Pinto ACS, Covas DT. Human parvovirus B19: general considerations and impacton patientswith sickle-cell disease and thalassemia and on blood transfusions. FEMS Immunol Med Microbiol. 2011;62:247–62.

A miosite aguda benigna é uma condição autolimitada (benigna), caracterizada por dor aguda bilateral na panturrilha e dificuldade para caminhar, que geralmente se desenvolve em crianças na idade escolar depois de se recuperarem de infecções virais. Foi reconhecida pela primeira vez em 1957 por Lundberg, em 74 pacientes pediátricos.5Lundberg A. Myalgia cruris epidemica. Acta Paediatr Scand. 1957;46:18–31.,6Mackay MT, Kornberg AJ, Shield LK, Dennett X. Benign acute childhood myositis: laboratory and clinical features. Neurology. 1999;53:2127–31. Os casos de miosite coincidem com dermatomiosite e lúpus eritematoso sistêmico depois da infecção por Parvovírus B19 em adultos.7Kalish RA, Knopf AN, Gary GW, Canoso JJ. Lupus-like presentation of human parvovirus B19 infection. J Rheumatol. 1992;19:169–71. Embora as causas virais mais comuns de miosite aguda sejam os vírus Influenza A e B (inclusive o vírus H1N1) e Coxsackievírus em criança, não se encontrou relato de caso sobre B19 associado à miosite aguda benigna na infância.8Koliou M, Hadjiloizou S, Ourani S, Demosthenous A, Hadjidemetriou A. A case of benign acute childhood myositis associated with influenza A (H1N1) virus infection. Clin Microbiol Infect. 2010;16:193–5. No entanto, há um relato de caso sobre miofasciíte associada ao B19 em um adulto saudável.9Ichinose K, Migita K, Sekita T, Hamada H, Ezaki H, Mukoubara S, et al. Parvovirus B19 infection and myofasciitis. Clin Rheumatol. 2004;23:184–5. Que saibamos, a literatura não traz relatos de casos sobre miosite associada ao B19 em um adulto. Conforme apuramos, a infecção por B19 ocorre especialmente em pacientes transplantados, pacientes com doenças sistêmicas e imunocomprometidos.4Slavov SN, Kashima S, Pinto ACS, Covas DT. Human parvovirus B19: general considerations and impacton patientswith sickle-cell disease and thalassemia and on blood transfusions. FEMS Immunol Med Microbiol. 2011;62:247–62. Em nosso caso, embora não houvesse história de doença nem de uso de medicamentos, os antecedentes de ritmo intenso de trabalho, estresse intenso e viagem de 12 horas podem ter tido um impacto negativo sobre a resistência imunológica e causado miosite associada ao B19.

Em nosso paciente, os achados clínicos e laboratoriais, a ressonância magnética e a resposta à terapia dão respaldo ao diagnóstico de miosite aguda. Foi encontrado o aumento de VHS e PCR esperado; entretanto, o nível de CPK não havia aumentado em nosso paciente. A ausência de aumento dos níveis de CPK pode levar à confusão. Com o seguimento laboratorial do paciente, pudemos ver que o nível de CPK estava três vezes mais alto no primeiro período. Mesmo assim, esteve normal em todo o período da doença. Embora a maioria dos pacientes com miopatias inflamatórias apresente aumento dos níveis de creatina fosfoquinase, as séries publicadas incluem alguns pacientes com níveis normais de CPK.9Ichinose K, Migita K, Sekita T, Hamada H, Ezaki H, Mukoubara S, et al. Parvovirus B19 infection and myofasciitis. Clin Rheumatol. 2004;23:184–5.

10 Fudman EJ, Schnitzer TJ. Dermatomyositis without creatine kinase elevation. A poor prognostic sign. Am J Med. 1986;80:329–32.
-1111 Chevrel G, Borsotti JP, Miossec P. Lack of evidence for a direct involvement of muscle infection by parvovirus B19 in the pathogenesis of inflammatory myopathies: a follow-up study. Rheumatology (Oxford). 2003;42:349–52. Nesses casos, embora a miopatia fosse diagnosticada por métodos como biópsia e RM, os níveis de CPK estavam normais. Não foram apresentadas evidências concretas que explicassem essa situação. Em um artigo apresentando sete pacientes com miosite, verificou-se que a falta de elevação da creatina fosfoquinase nos pacientes com miosite era sinal de mau prognóstico.1010 Fudman EJ, Schnitzer TJ. Dermatomyositis without creatine kinase elevation. A poor prognostic sign. Am J Med. 1986;80:329–32. Nosso caso teve uma evolução benigna, e os achados clínicos melhoraram rapidamente.

Apesar da semelhança com os casos de miosite aguda benigna na infância, pensamos que o nosso caso era interessante porque ocorreu em um adulto sem aumento do nível de CPK. Nos pacientes que apresentam febre, rash nas pernas e miosite (como em nosso caso), deve-se pensar em infecções virais, como por B19.

Agradecimentos

Agradecemos a S. Delecroix pela consultoria em tradução.

Referências

  • 1
    Crowson AN, Magro CM, Dawood MR. A causal role for parvovirus B19 infection in adult dermatomyositis and other autoimmune syndromes. J Cutan Pathol. 2000;27:505–15.
  • 2
    Tolfvenstam T, Broliden K. Parvovirus B19 Infection. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine. 2009;14:218–21.
  • 3
    Kerr JR. Pathogenesis of human parvovirus B19 in rheumatic disease. Ann Rheum Dis. 2000;59:672–83.
  • 4
    Slavov SN, Kashima S, Pinto ACS, Covas DT. Human parvovirus B19: general considerations and impacton patientswith sickle-cell disease and thalassemia and on blood transfusions. FEMS Immunol Med Microbiol. 2011;62:247–62.
  • 5
    Lundberg A. Myalgia cruris epidemica. Acta Paediatr Scand. 1957;46:18–31.
  • 6
    Mackay MT, Kornberg AJ, Shield LK, Dennett X. Benign acute childhood myositis: laboratory and clinical features. Neurology. 1999;53:2127–31.
  • 7
    Kalish RA, Knopf AN, Gary GW, Canoso JJ. Lupus-like presentation of human parvovirus B19 infection. J Rheumatol. 1992;19:169–71.
  • 8
    Koliou M, Hadjiloizou S, Ourani S, Demosthenous A, Hadjidemetriou A. A case of benign acute childhood myositis associated with influenza A (H1N1) virus infection. Clin Microbiol Infect. 2010;16:193–5.
  • 9
    Ichinose K, Migita K, Sekita T, Hamada H, Ezaki H, Mukoubara S, et al. Parvovirus B19 infection and myofasciitis. Clin Rheumatol. 2004;23:184–5.
  • 10
    Fudman EJ, Schnitzer TJ. Dermatomyositis without creatine kinase elevation. A poor prognostic sign. Am J Med. 1986;80:329–32.
  • 11
    Chevrel G, Borsotti JP, Miossec P. Lack of evidence for a direct involvement of muscle infection by parvovirus B19 in the pathogenesis of inflammatory myopathies: a follow-up study. Rheumatology (Oxford). 2003;42:349–52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2013
  • Aceito
    23 Jun 2013
Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: sbre@terra.com.br