Acessibilidade / Reportar erro

Glaucoma neovascular e esclerite necrosante com inflamação. Há uma relação?

Neovascular glaucoma and necrotizing scleritis with inflammation. Is there a relationship?

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi relatar um caso raro de glaucoma neovascular em paciente portador de diabetes mellitus tipo 1 que evoluiu para esclerite necrosante com inflamação. Homem, 22 anos e com diabetes mellitus tipo 1 mal controlada apresentou perda visual dolorosa súbita no olho direito. Acuidade visual em olho direito sem percepção luminosa e 20/80 em olho esquerdo. Pressão intraocular de 35mmHg e exame compatível com glaucoma neovascular em olho direito. Foi iniciado tratamento com colírios hipotensores no olho direito e panfotocoagulação a laser no olho esquerdo. Após 3 semanas, houve piora da dor, hiperemia e aparecimento de afinamento escleral na região superior de olho direito, com posterior protrusão uveal. Quadro compatível com esclerite anterior necrosante com inflamação, apesar das sorologias para doenças autoimunes negativas. Ainda que raro, este relato de associação de glaucoma neovascular e esclerite justifica a discussão dos mecanismos inflamatórios em comum nessas doenças, para melhor compreensão da patogênese dessas graves apresentações clínicas.

Esclerite; Diabetes mellitus tipo I; Glaucoma neovascular

ABSTRACT

The aim of this study was to report a rare case of neovascular glaucoma in a patient with type 1 diabetes mellitus that progressed to necrotizing scleritis with inflammation. A 22-year-old male with poorly controlled type 1 diabetes mellitus experienced sudden painful vision loss on the right eye. Visual acuity on the right eye was no light perception, while it was 20/80 in the left eye. Intraocular pressure was measured at 35 mmHg, and the examination was consistent with neovascular glaucoma on the right eye. Treatment with hypotensive eye drops was initiated in the right eye, and panphotocoagulation laser therapy was performed on the left eye. After three weeks, there was worsening pain, redness, and the appearance of scleral thinning in the upper region of the right eye, followed by uveal protrusion. This presentation was consistent with necrotizing anterior scleritis with inflammation, despite negative serology for autoimmune diseases. Although rare, this report of the association between neovascular glaucoma and scleritis justifies the discussion of common inflammatory mechanisms in these diseases to enhance the understanding of the pathogenesis of these severe clinical presentations.

Scleritis; Diabetes mellitus, type I; Glaucoma, neovascular

INTRODUÇÃO

Cerca de 50% dos pacientes com esclerite apresentam um distúrbio inflamatório sistêmico ou doença autoimune (DAI) associada, no qual é conhecida a ocorrência de vasculite.(11. Okhravi N, Odufuwa B, McCluskey P, Lightman S. Scleritis. Surv Ophthalmol 2005;50:351.) A esclerite é mais comumente observada em pacientes com artrite reumatoide, granulomatose com poliangeíte, poliarterite nodosa e policondrite recidivante, enquanto a esclerite necrosante induzida cirurgicamente pode ocorrer após qualquer forma de trauma.(22. Watson P, Romano A. The impact of new methods of investigation and treatment on the understanding of the pathology of scleral inflammation. Eye (Lond). 2014;28(8):915-930.) No entanto, sua patogênese é incerta.(33. Lagina A, Ramphul K. Scleritis. 2021 Oct 12. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan-. PMID: 29763119.) Biópsias esclerais de pacientes com esclerite grave ou esclerite necrosante demonstraram oclusões vasculares, necrose e evidência de macrófagos e células T.(44. Artifoni M, Rothschild PR, Brézin A, Guillevin L, Puéchal X. Ocular inflammatory diseases associated with rheumatoid arthritis. Nat Rev Rheumatol. 2014;10(2):108-16.)

Sabe-se que o glaucoma neovascular (GNV) secundário à retinopatia diabética proliferativa (RDP) está relacionado ao grau de isquemia retiniana. O evento primário é uma condição que leva à hipóxia e isquemia e interrompe o equilíbrio entre os fatores pró e antiangiogênicos e, assim, estimula a angiogênese.(55. Rodrigues GB, Abe RY, Zangalli C, Sodre SL, Donini FA, Costa DC, et al. Neovascular glaucoma: a review. Int J Retin Vitr. 2016;2:26.) A síntese de fatores pró-angiogênicos nos tecidos afetados pela hipóxia estimulam o endotélio a liberar enzimas proteolíticas, como as metaloproteinases de matriz (MMPs 2, 9 e 14). Além disso, pacientes com RDP possuem alta produção de interleucina (IL) 1, que ativa os linfócitos; IL-8, com papel quimiotático nos neutrófilos; IL-18, que ativa macrófagos, e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α).(66. Dumbraveanu L, Cu?nir V, Bobescu D. A review of neovascular glaucoma. Etiopathogenesis and treatment. Rom J Ophthalmol. 2021;65(4):315-29.) A relação entre diabetes e inflamação ocular, particularmente a uveíte, é apoiada por DM1 ser considerada uma DAI e pelo aumento de fatores pró-inflamatórios por disfunção da barreira hemato-ocular.(77. Nussenblatt RB, Liu B, Wei L, Sen HN. The immunological basis of degenerative diseases of the eye. Int Rev Immunol. 2013;32(1):97-112.

8. Baudouin C, Fredj-Reygrobellet D, Brignole F, Lapalus P, Gastaud P. MHC class II antigen expression by ocular cells in proliferative diabetic retinopathy. Fundam Clin Pharmacol. 1993;7(9):523-30.
-99. Kheir WJ, Sheheitli HA, Hamam RN. Intraocular Inflammation in Diabetic Populations. Curr Diab Rep. 2017;17(10):83.)

O objetivo deste artigo é relatar um caso raro de GNV em paciente portador de DM1 que evoluiu para esclerite necrosante com inflamação.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 22 anos e diagnóstico de DM1 há 5 anos com mau controle, apresentou perda visual dolorosa em olho direito (OD) nos últimos 7 dias, sem história de trauma, doença ocular ou cirurgias prévias. Ao exame, acuidade visual (AV) em OD sem percepção luminosa e 20/80 em olho esquerdo (OE).

Exame revelou pressão intraocular (PIO) de 35mmHg, injeção ciliar, edema de córnea, neovasos em íris, pupila midriática, esclera normal (Figura 1A) e gonioscopia com sinéquias em 360° em OD. O OE apresentava PIO de 8mmHg e RDP à fundoscopia (Figura 2). O diagnóstico de GNV foi estabelecido no OD e iniciado tratamento com colírios hipotensores, além da panfotocoagulação a laser imediata no OE.

Figura 1
(A) Fotografia mostrando injeção ciliar, edema corneano, rubeosis iridis, pupila midriática e esclera normal no olho direito. (B) Início de esclerite necrosante com inflamação no olho direito, 3 semanas depois. (C) Piora da protrusão uveal no olho direito, 2 meses após o início dos sintomas. (D) Piora significativa do afinamento escleral e protrusão uveal no olho direito no acompanhamento de 1 ano.

Figura 2
Retinografia mostrando retinopatia diabética proliferativa em olho esquerdo.

Após 3 semanas houve piora da dor e hiperemia ocular do OD, e ao exame paciente apresentava PIO de 10 mmHg e afinamento escleral na região superior de OD (Imagem 1b), desenvolvendo protrusão uveal nos 2 meses seguintes (Imagem 1c). Quadro compatível com esclerite anterior necrosante com inflamação.

Exames laboratoriais revelaram velocidade de hemossedimentação (VHS) de 71mm/h, mas todas as sorologias de rastreamento para doenças autoimunes – fator antinúcleo (FAN), fator reumatoide (FR), anticorpo anti-CCP, anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) – foram negativas. O uso de corticoesteroide sistêmico foi contraindicado devido à nefropatia diabética dialítica.

Após 1 ano, apresentou piora da dor e do afinamento escleral (Figura 1D), sendo realizada a enucleação por risco iminente de perfuração ocular, com posterior adaptação de prótese ocular (Figura 3).

Figura 3
Fotografias mostrando pré-operatório e pós-operatório de 14 dias de enucleação de olho direito com prótese ocular.

DISCUSSÃO

Em pacientes com esclerite, citocinas secretadas por células inflamatórias, como IL-1 e TNF-α, induzem a secreção de MMPs por células inflamatórias infiltrantes e fibroblastos esclerais estromais.(1010. Wakefield D, Di Girolamo N, Thurau S, Wildner G, McCluskey P. Scleritis: immunopathogenesis and molecular basis for therapy. Prog Retin Eye Res. 2013;35:44-62.) Níveis aumentados de TNF-α e MMP-9 foram detectados em lágrimas de pacientes com esclerite necrosante.(1010. Wakefield D, Di Girolamo N, Thurau S, Wildner G, McCluskey P. Scleritis: immunopathogenesis and molecular basis for therapy. Prog Retin Eye Res. 2013;35:44-62.)

Castagna et al.(1111. Castagna I, Fama F, Salmeri G. Anterior uveitis and diabetes mellitus: immunological study. Ophthalmologica. 1995;209(2):53-5.) e Ansari et al.(1212. Ansari AS, Lusignan S, Hinton W, Munro N, Taylor S, McGovern A. Understanding the relationship between diabetes, retinopathy, glycaemic control, acute uveitis, and scleritis or episcleritis: A cohort database study. JDC. 2018.) encontraram uma associação significativa entre uveíte anterior e DM1. Essa relação entre diabetes mellitus e inflamação ocular é atribuída à disfunção da barreira hemato-ocular, o que inclui o aumento de fatores pró-inflamatórios como IL-1, IL-6, IL-8, proteína 10 induzida por interferon e TNF-α na RD.(1212. Ansari AS, Lusignan S, Hinton W, Munro N, Taylor S, McGovern A. Understanding the relationship between diabetes, retinopathy, glycaemic control, acute uveitis, and scleritis or episcleritis: A cohort database study. JDC. 2018.)

Apesar de nenhuma relação significativa ter sido encontrada entre esclerite e episclerite, diabetes, controle glicêmico, retinopatia ou maculopatia,(1212. Ansari AS, Lusignan S, Hinton W, Munro N, Taylor S, McGovern A. Understanding the relationship between diabetes, retinopathy, glycaemic control, acute uveitis, and scleritis or episcleritis: A cohort database study. JDC. 2018.) a atividade inflamatória representa papel fundamental em sua fisiopatologia (particularmente citocinas da imunidade inata, como IL-1 e TNF-α e liberação de enzimas proteolíticas, como MMP-9), assim como na uveíte e RDP.

A hipótese de que o afinamento escleral ocorreu como resultado do aumento da PIO era improvável, uma vez que o paciente só apresentou o afinamento após iniciar o tratamento hipotensivo, não no caso agudo de aumento da PIO.

Poucos relatos de caso sugeriram DM como possível causa subjacente de esclerite infecciosa.(1313. Maskin SL. Infectious scleritis after a diabetic foot ulcer. Am J Ophthalmol. 1993;115(2): 254- 5.,1414. Locher DH, Adesina A, Wolf TC, Imes CB, Chodosh J. Postoperative Rhizopus scleritis in a diabetic man. J Cataract Refract Surg. 1998;24(4):562-5.) Estudos tentando estabelecer as características de pacientes com esclerite infecciosa notaram até 20% dos pacientes com diagnóstico subjacente de diabetes.(1515. Reddy JC, Murthy SI, Reddy AK, Garg P. Risk factors and clinical outcomes of bacterial and fungal scleritis at a tertiary eye care hospital. Middle East Afr J Ophthalmol. 2015;22(2):203-11.) A relação com esclerite não infecciosa nunca foi sugerida.

Ainda que raro, este relato de associação de GNV e esclerite justifica a discussão dos mecanismos inflamatórios em comum nessas doenças, a fim de contribuir para a compreensão da patogênese dessas graves apresentações clínicas. Mais estudos são necessários para confirmar a associação de DM1 e esclerite necrosante com inflamação.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Okhravi N, Odufuwa B, McCluskey P, Lightman S. Scleritis. Surv Ophthalmol 2005;50:351.
  • 2
    Watson P, Romano A. The impact of new methods of investigation and treatment on the understanding of the pathology of scleral inflammation. Eye (Lond). 2014;28(8):915-930.
  • 3
    Lagina A, Ramphul K. Scleritis. 2021 Oct 12. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan-. PMID: 29763119.
  • 4
    Artifoni M, Rothschild PR, Brézin A, Guillevin L, Puéchal X. Ocular inflammatory diseases associated with rheumatoid arthritis. Nat Rev Rheumatol. 2014;10(2):108-16.
  • 5
    Rodrigues GB, Abe RY, Zangalli C, Sodre SL, Donini FA, Costa DC, et al. Neovascular glaucoma: a review. Int J Retin Vitr. 2016;2:26.
  • 6
    Dumbraveanu L, Cu?nir V, Bobescu D. A review of neovascular glaucoma. Etiopathogenesis and treatment. Rom J Ophthalmol. 2021;65(4):315-29.
  • 7
    Nussenblatt RB, Liu B, Wei L, Sen HN. The immunological basis of degenerative diseases of the eye. Int Rev Immunol. 2013;32(1):97-112.
  • 8
    Baudouin C, Fredj-Reygrobellet D, Brignole F, Lapalus P, Gastaud P. MHC class II antigen expression by ocular cells in proliferative diabetic retinopathy. Fundam Clin Pharmacol. 1993;7(9):523-30.
  • 9
    Kheir WJ, Sheheitli HA, Hamam RN. Intraocular Inflammation in Diabetic Populations. Curr Diab Rep. 2017;17(10):83.
  • 10
    Wakefield D, Di Girolamo N, Thurau S, Wildner G, McCluskey P. Scleritis: immunopathogenesis and molecular basis for therapy. Prog Retin Eye Res. 2013;35:44-62.
  • 11
    Castagna I, Fama F, Salmeri G. Anterior uveitis and diabetes mellitus: immunological study. Ophthalmologica. 1995;209(2):53-5.
  • 12
    Ansari AS, Lusignan S, Hinton W, Munro N, Taylor S, McGovern A. Understanding the relationship between diabetes, retinopathy, glycaemic control, acute uveitis, and scleritis or episcleritis: A cohort database study. JDC. 2018.
  • 13
    Maskin SL. Infectious scleritis after a diabetic foot ulcer. Am J Ophthalmol. 1993;115(2): 254- 5.
  • 14
    Locher DH, Adesina A, Wolf TC, Imes CB, Chodosh J. Postoperative Rhizopus scleritis in a diabetic man. J Cataract Refract Surg. 1998;24(4):562-5.
  • 15
    Reddy JC, Murthy SI, Reddy AK, Garg P. Risk factors and clinical outcomes of bacterial and fungal scleritis at a tertiary eye care hospital. Middle East Afr J Ophthalmol. 2015;22(2):203-11.
  • Instituição de realização do trabalho: Departamento de Oftalmologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2023
  • Aceito
    21 Jan 2024
Sociedade Brasileira de Oftalmologia Rua São Salvador, 107 , 22231-170 Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (55 21) 3235-9220, Fax: (55 21) 2205-2240 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbo@sboportal.org.br