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Hemoglobinopatias no Brasil: um tema inesgotável

Editorial

Hemoglobinopatias no Brasil: um tema inesgotável

Haroldo W. Moreira

Apesar de controversa, a patologia ocasionada pela presença da hemoglobina S muito provavelmente foi descrita pela primeira vez por Cruz Jobim no Rio de Janeiro em 1835 (Ramalho, 1983), sendo sua hereditariedade constatada pelo trabalho de Jessé Accioly na Bahia em 1947 (Acciolly, 1947). Somado a isso, o gene da beta globina humano na posição responsável pela anemia falciforme foi o primeiro a ser amplificado pela PCR em 1985 (Saiki e cols., 1985), uma ferramenta que se mostrou poderosa e a responsável pelo verdadeiro desenvolvimento da biologia molecular, permitindo com que fosse desvendada a estrutura e organização dos genes, suas seqüências reguladoras, seus agrupamentos em famílias, a existência de pseudogenes, entre tantas outras (Kaplan e Delpech, 1990; Labie e Elion, 1990). Desde então, os inúmeros conhecimentos científicos obtidos com os estudos desse gene mutante, da anemia falciforme ocasionada pelo mesmo, da relação com outras patologias, da possibilidade da terapia gênica e das tentativas de amenizar as seqüelas dessa patologia com a melhora clínica dos portadores, resultaram em um enorme número de publicações científicas e que pareciam dar-nos uma idéia errônea de que nada mais restava a fazer com referência ao mesmo. Uma simples busca no PubMed da National Library of Medicine (http://www.ncbi.nlm.nih.gov), um banco de dados científicos sobre biologia molecular, bioquímica e genética, informa a publicação nos dois últimos anos de 120 trabalhos quando a procura se refere à hemoglobina S e 683 artigos científicos quando nos reportamos à anemia falciforme. Acreditamos que muito ainda tem que ser feito e nesse fascículo da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, o Professor Doutor Paulo César Naoum, alicerçado em sua experiência acumulada em mais de 30 anos em pesquisas sobre as hemoglobinas normais e anormais e atuando como responsável pelo Centro de Referência de Hemoglobinas da UNESP localizado em São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, tendo já analisado mais que 100 mil amostras de 65 cidades de diferentes cidades do Brasil, nos brinda com uma revisão referente aos "Interferentes eritrocitários e ambientais na anemia falciforme". No mesmo, o Dr. Naoum relata de uma forma bastante esclarecedora e muito bem detalhada a formação de nossa população, dado sobejamente importante para quem realiza análise em genética antropológica ou necessita dessa informação para o conhecimento da população brasileira sabidamente com um pool genético variado e intensamente miscigenada. Ressalta em especial o histórico da origem e dispersão da hemoglobina S com a apresentação das possíveis teorias do aparecimento do gene S, bem como discorre sobre o processo migratório e de miscigenação ocorrido em nosso país com relação a esse gene. Trata dos aspectos da fisiopatologia da hemoglobina S na forma desoxigenada, enfatizando a possibilidade da geração de radicais livres associado à presença dessa hemoglobina, informação esta de fundamental importância e motivo recente de revisão científica tentando entender a geração de espécies reativas do oxigênio e do estresse oxidativo associada às anemias geneticamente determinadas (Sies, 1997; Chan e cols, 1999). Descreve a associação benéfica da maior concentração da hemoglobina fetal em portadores de anemias falciforme e as tentativas em aumentar essa concentração, utilizando-se de produtos químicos e medicamentosos, enfocando os diferentes haplótipos correlacionados a essa patologia e observados nas diferentes populações. Um tópico especial é dedicado às reconhecidas associações da anemia falciforme com a talassemia do tipo alfa, com a deficiência em glicose-6-fosfato desidrogenase e com a esferocitose hereditária, sendo que seu difícil estabelecimento laboratorial se reveste de fundamental importância, considerando que a população brasileira é formada por significativo contingente de negros e de seus descendentes miscigenados, somado ao reconhecimento das altas freqüências de talassemia do tipo alfa (perto de 30%) e as significativas expressões da deficiência em G6PD observadas em populações africanas. Considera as principais conseqüências dos interferentes ambientais na anemia falciforme relatando o meio ambiente, a deficiência alimentar e a qualidade nutricional inadequada e a deficiência em assistência médica, social e psicológica que os indivíduos portadores do gene S estão mais freqüentemente expostos. Finaliza apresentando uma proposta de monitoramento laboratorial das síndromes associadas à hemoglobina S, contribuindo, mais uma vez, com um trabalho do mais alto cunho científico fornecendo informações valiosas, esclarecedoras e úteis para quem trabalha nessa área.

Referências bibliográficas:

1. Ramalho AS. As hemoglobinopatias hereditárias de importância médica no Brasil. Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP, Campinas, SP. 1983.

2. Accioly J. Anemia falciforme. Arq Univ Bahia 1947; 1:169.

3. Saiki RK, Scharf S, Faloona F, Mullis KB, Horn GT, Erlich HA, Arnhein N. Enzymatic amplification of b-globin genomic sequences and restriction site analysis for diagnosis of sickle cell anemia. Science 1985; 230:1350-4.

4. Kaplan J, Delpech M. Biologie moléculaire et médicine. Médicine-Sciences Flamarion, Paris, 1990. 610 p.

5. Labie D, Elion J. Molecular and cellular pathophysiology of sickle cell anemia. Pathol Biol (Paris) 1999; 47(1):7-12.

6. Sies H. Oxidative stress: oxidants and antioxidants. Exp Physiol 1997; 82 (2):291-5.

7. Chan AC, Chow CK, Chiu D. Interation of antioxidants and their implication in genetic anemia. Proc Soc Exp Biol Med 1999; 222(3):274-82.

Professor Titular em Hematologia. Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara - UNESP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2000
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