Acessibilidade / Reportar erro

Uma Escola de Enfermagem no estado do Rio de Janeiro: interesses (inter)nacionais para a educação feminina brasileira (1943-1948)

A School of Nursing in the state of Rio de Janeiro: (inter)national interests for Brazilian female education (1943-1948)

Una Escuela de Enfermería en el estado de Río de Janeiro: intereses (inter)nacionales para la educación femenina brasileña (1943-1948)

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de criação e funcionamento da Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro entre 1943 e 1948. Compreende-se como agentes nacionais e internacionais interagiram no contexto da política da “Boa Vizinhança”. As fontes utilizadas foram documentos do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) e jornais, analisados a partir do paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg. Conclui-se que, apesar de a Escola ter sido criada com o apoio de uma agência bilateral Brasil/Estados (SESP), os interesses do governo de Getúlio Vargas foram preponderantes.

Palavras-chave:
SESP; história da enfermagem; Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro

Abstract

This article aims to analyze the process of creation and functioning of the School of Nursing of the State of Rio de Janeiro between 1943 and 1948. It is understood how national and international agents interacted in the context of the “Good Neighbor” policy. The sources used were documents from the Special Public Health Service (SESP) and newspapers, analyzed from the evidence paradigm proposed by Carlo Ginzburg. It is concluded that, although the School was created with the support of a bilateral Brazil/States agency (SESP), the nationalist interests of the Getúlio Vargas government were predominant.

Keywords:
SESP; history of nursing; School of Nursing of the State of Rio de Janeiro

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el proceso de creación y funcionamiento de la Escuela de Enfermería del Estado de Río de Janeiro entre 1943 y 1948. Se comprende cómo los agentes nacionales e internacionales interactuaron en el contexto de la política del “Buen Vecino”. Las fuentes utilizadas fueron documentos del Servicio Especial de Salud Pública (SESP) y periódicos, analizados desde el paradigma de la evidencia propuesto por Carlo Ginzburg. Se concluye que, aunque la Escuela fue creada con el apoyo de una agencia bilateral Brasil/Estados (SESP), predominaron los intereses nacionalistas del gobierno de Getúlio Vargas.

Palabras clave:
SESP; historia de la enfermeira; Escuela de Enfermería del Estado de Rio de Janeiro

Introdução

Este texto tem como objetivo analisar a criação e o funcionamento da Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro (EEERJ), entre 1943 e 1948, sob a influência da política da “Boa Vizinhança” estabelecida entre o Brasil e os Estados Unidos. São utilizados como fontes documentos do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) e notícias de jornal. A metodologia utilizada é o paradigma indiciário, proposto por Carlo Ginzburg (1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Gingburg. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Cia. das Letras.). O autor considera que os pequenos detalhes nos documentos são “sinais” de elementos não compreensíveis em uma análise que priorize apenas as informações mais evidentes.

Segundo Antônio Pedro Tota (2020Tota, A. P. (2020) O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. Cia das Letras.), durante muito tempo, os Estados Unidos haviam forjado uma imagem desabonadora da América Latina. Valorizava-se o homem branco, protestante, mencionado como condutor do progresso contra a vida “selvagem”. Após a Primeira Guerra Mundial, no entanto, essa imagem começou a ser criticada por intelectuais norte-americanos e, depois de 1933, o governo de Franklin Roosevelt passou a propagar a ideia do New Deal ou de reconstrução do continente americano.

Somente ao longo da Segunda Guerra Mundial, os esforços para ampliar as relações culturais entre países da América Latina e os Estados Unidos se intensificaram. Em 16 de agosto de 1940, foi criado o Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the Americas (OCIAA), composto por uma divisão Comercial e Financeira, uma Divisão de Comunicações e uma Divisão de Relações Culturais. Sua direção foi entregue a Nelson Rockefeller, segundo filho do milionário John D. Rockefeller Jr. (Tota, 2020Tota, A. P. (2020) O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. Cia das Letras.).

O OCIAA atuou em diversas áreas para além da econômica e da cultural, e a cooperação em saúde foi realizada pelo Office Inter-American Affairs (OIAA). Valendo-se do modelo organizacional e da experiência da Fundação Rockefeller (FR), agência filantrópica internacional idealizada por John Rockefeller Jr. (Farley, 2004Farley, J. (2004). To cast out disease: a history of the International Health Division of the Rockefeller Foundation (1915-1951). Oxford University Press.), o OIAA criou uma coordenação para os projetos de saúde e tecnologia, o Institute of Inter-American Affairs (IIAA), em março de 1942 (Prutsch, 2012Prutsch, U. (2012) Nelson Rockefeller’s Officer of Inter-American Affairs in Brasil. In G. Cramer & U. Prutsch (Orgs.), Americas Unidas: Nelson Rockefeller’s Office of Inter-American Affairs (1940-46) (pp. 249-282). Iberoamericana.). Em seguida, surgiu o SESP, uma agência bilateral Brasil/Estados Unidos para o desenvolvimento da saúde brasileira.

A FR desempenhou papel significativo na saúde da América Latina, desde a sua criação, o que permitiu o apoio oferecido ao projeto SESP. Segundo Federico Rayez e Karinna Ramaciotti (2021Rayez, F., & Ramacciotti, K. I. (2021). Ligações internacionais e saúde pública: pegadas da Fundação Rockefeller na Argentina, 1930-1950. Revista História: Debates e Tendências, 21(3), 118-134. https://doi.org/10.5335/hdtv.21n.3.12808
https://doi.org/10.5335/hdtv.21n.3.12808...
), os subsídios a cientistas e investigadores médicos, as ofertas de formação profissional a enfermeiros, as viagens de formação para especialização em saúde e higiene públicas e os convites para participação em congressos internacionais faziam parte de um repertório de práticas sociais partilhadas por diferentes escritórios continentais ou globais, como o da agência filantrópica internacional.

De acordo com André Luiz Vieira de Campos (2006Campos, A. L. V. (2006). Políticas internacionais de saúde na Era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Editora Fiocruz.), a criação do SESP ocorreu em pleno Estado Novo e sua configuração não pode ser dissociada das diretrizes político-ideológicas e institucionais empreendidas pelo governo varguista. Desejava-se criar uma agência temporária, encarregada de políticas sanitárias pontuais em regiões produtoras de matéria-prima estratégicas: a Amazônia e o Vale do Rio Doce.

Para a administração brasileira, entretanto, essas políticas se adequavam perfeitamente àquelas elaboradas pelo ministério da Educação e Saúde e ao processo de State and nation building do primeiro Governo Vargas. Campos (2006Campos, A. L. V. (2006). Políticas internacionais de saúde na Era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Editora Fiocruz.) defende ainda que, apesar do caráter internacional e do modelo de administração sanitária inspirado em padrões norte-americanos, as políticas de saúde do SESP nunca se constituíram como uma via de mão única, pois foram marcadas por conflitos, negociações e adaptações no Brasil.

A agência bilateral recebia recursos financeiros e técnicos do IIAA e do Estado brasileiro. Até 1944, o primeiro deles contribuiu com mais de 80% das verbas do acordo, mas, partir daquele ano, a relação entre sua média de investimentos e a do governo brasileiro se alterou e implicou recursos cada vez maiores do Brasil. Isso colaborou para uma crescente “nacionalização” da “agência especial”, que possuía estatuto jurídico diferenciado e se subordinava formalmente ao Ministério da Educação e Saúde, mas, na prática, gozava de grande autonomia administrativa e financeira (Campos, 2008Campos, A. L. V. (2008). Cooperação internacional em saúde: o serviço especial de saúde pública e seu programa de Enfermagem. Ciência e Saúde Coletiva, 13(3), 879-888.).

Dentre as ações do SESP, estava um Programa de Enfermagem que contribuiu para a formação profissional no país, com a criação de escolas de Enfermagem em estados como São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. A instituição construída em Niterói contou com o apoio de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, auxiliar do Gabinete Civil da Presidência da República (1937-1945) (Rocha & Barreira, 2002Rocha, L. B., & Barreira, I. A. (2002). A enfermagem e a condição feminina: figuras-tipo de mulheres no Estado Novo. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, 6(2), 195-210.), filha de Getúlio Vargas e esposa de Ernani Amaral Peixoto, interventor do Estado Novo no Rio de Janeiro; da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e da Faculdade Fluminense de Medicina.

O argumento central deste artigo é que, embora as relações internacionais tenham favorecido o surgimento de uma Escola de Enfermagem no estado do Rio de Janeiro, os interesses nacionais tiveram destaque, em um contexto marcado por conflitos e improvisações. Busca-se demonstrar que acordos firmados entre Brasil e Estados Unidos, durante a política da Boa Vizinhança, não figuraram como uma imposição norte-americana, mas como processos de interação nos quais o local foi preponderante.

Planos para uma nova Escola de Enfermagem no Brasil

A profissionalização da Enfermagem no Brasil teve origem pelo Decreto n. 790, de 27 de setembro de 1890, com a criação da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. A partir daí, cada vez mais, o cuidado caritativo e assistencial religioso vigente até então foi substituído (Moreira et al., 2002).

Em 1923, as transformações da assistência à saúde que criaram o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) deram origem à Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública. Em 1926, ela foi denominada Escola Anna Nery (EEAN), em homenagem à Anna Justina Ferreira Nery, personagem de destaque na enfermagem nacional, que prestou serviços voluntários na Guerra do Paraguai.

A despeito do federalismo implantado pela Constituição de 1891, Carlos Chagas, diretor do órgão nacional, solicitou à FR a organização de um serviço de enfermagem no país. Segundo Barreira (1997Barreira, I. A. (1997). Os primórdios da enfermagem moderna no Brasil. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, 1, 161-176.), a agência filantrópica enviou a norte-americana Ethel Parsons ao Brasil para realizar um estudo sobre a situação da enfermagem nacional. A responsável pela conhecida “Missão Parsons” afirmou, como resultado da sua investigação, que “[...] não havia no país escolas de enfermagem que apresentassem os padrões mínimos adotados nos ‘países anglo-saxões’ e nem enfermeiras treinadas nesses moldes” (Barreira, 1997, p. 164).

Ao longo da década de 1930, transformações significativas ocorreram no ensino de enfermagem nacional. Ao mesmo tempo que o Decreto nº 20.109, de 15/06/1931, instituiu a Anna Nery como modelo para equiparação e reconhecimento de outras escolas brasileiras, os conflitos decorrentes da instabilidade administrativa e as disputas por autoridade fizeram com que a diretora norte-americana, Bertha Pullen, deixasse a escola. O cargo foi assumido por Lais Moura Netto dos Reis, uma representante da liderança “nativa” em enfermagem, formada com o objetivo de garantir a reprodução do discurso norte-americano na profissão em solo brasileiro (Barreira, 1999Barreira, I. A. (1999). Transformações da prática da enfermagem nos anos 1930. Revista Brasileira de Enfermagem, 52(1), 129-143.).

Esses acontecimentos contribuíram para que a enfermagem brasileira tomasse novos rumos, inclusive com o deslocamento da FR para outro projeto educacional, criado em São Paulo. Um estudo realizado pelo OCIAA sobre o ensino de enfermagem na América Latina, em 1943, mostrou um cenário complexo e diversificado para o qual não havia solução simples e abrangente.

A enfermeira Elizabeth Tennant foi designada para avaliar as condições de enfermagem no país e traçar um plano para remodelar os padrões de formação profissional. O relatório Tennant sugeriu que o Ministério da Educação e Saúde deveria supervisionar a criação de escolas de enfermagem e o SESP deveria se encarregar de organizar as quatro primeiras (Campos, 2008Campos, A. L. V. (2008). Cooperação internacional em saúde: o serviço especial de saúde pública e seu programa de Enfermagem. Ciência e Saúde Coletiva, 13(3), 879-888.).

A EEERJ foi inaugurada em Niterói e surgiu de demandas explícitas de autoridades locais, como Alzira Vargas e Amaral Peixoto, que se apoiaram no discurso da deficiência de enfermeiras em hospitais e serviços de saúde cariocas. Desde a década de 1930, muitos nosocômios pertenciam a instituições católicas, que encarregavam mulheres religiosas do serviço de enfermagem e, a partir de 1933, por iniciativa do prefeito Pedro Ernesto, foram criadas diferentes unidades hospitalares e para-hospitalares que não previam a existência de um serviço de enfermagem de alto padrão (Barreira, 1999Barreira, I. A. (1999). Transformações da prática da enfermagem nos anos 1930. Revista Brasileira de Enfermagem, 52(1), 129-143.).

Assim, em 2 de setembro de 1943, o periódico carioca A Noite veiculava uma notícia intitulada: Criação de uma escola de alto padrão em Niterói. Nela, o Diretor do Departamento de Saúde do Estado, Adelmo Mendonça, afirmou que:

A ideia da realização de uma escola de enfermagem de alto padrão neste Estado, nos moldes da escola “Ana Neri”, é a sequência lógica, a orientação que vem sendo imprimida aos serviços de saúde, desde que o comandante Amaral iniciou a sua fecunda administração. Logo que se organizaram no Rio, a partir daquela época, os primeiros centros de saúde tecnicamente instalados, foi pensamento dos dirigentes por esse setor da administração fluminense, obter o concurso de enfermeira de saúde para a realização de um bom programa sanitário.

[...]

Esta realização marcará mais uma etapa do programa médico-social da administração Amaral Peixoto, evidenciando, também, o concurso da Legião Brasileira de Assistência, graças ao espírito plástico e vivamente interessado pelos problemas do bem estar coletivo, da senhora Alzira Vargas do Amaral Peixoto, e também representa uma afirmação da política de boa vizinhança dos nossos aliados americanos que, igualmente, não negam a sua cooperação às obras de interesse coletivo (Criação..., 1943, p. 2).

Naquele momento, o periódico adotava uma linha editorial comedida e afastada das campanhas de agressões pessoais a personalidades políticas (A Noite, n.d.). A informação veiculada evidenciava, de diferentes maneiras, como uma Escola de Enfermagem em Niterói atendia aos objetivos políticos empreendidos no governo de Getúlio Vargas. A primeira delas pode ser observada na ampliação da rede estatal de assistência à saúde, enfatizada como obra do interventor, como parte da proposta sanitária do Estado Novo.

Destaca-se que, durante o governo peronista, entre 1946 e 1955, também foi criada uma escola de enfermagem na Argentina, dependente do Ministério da Saúde da Nação. Em paralelo, também existia a Escola de Enfermagem da Fundação Eva Perón no mesmo país. A primeira imprimiu um perfil mais técnico e a outra mais político, mesmo que ambas transitassem entre esses dois campos (Rammaciotti & Valobra, 2009). O surgimento dessas instituições indica a atenção que governos da América Latina atribuíram à questão da saúde, naquele momento, como elemento de fortalecimento nacional.

De forma geral, a instauração do Estado Novo no Brasil, em novembro de 1937, facilitou a implementação de uma reforma centralizadora que extrapolou, inclusive, a Capital do país. Havia uma preocupação em assegurar a presença do governo central nos estados, reformulando a relação que até então eles estabeleciam com a União, pois, mesmo aqueles serviços que apresentavam em seu regulamento administrativo uma função nacional, na prática, ainda estavam pouco presentes fora do Distrito Federal (Hochman & Fonseca, 1999Hochman, G., & Fonseca, C. (1999). O que há de novo? Políticas de saúde pública e previdência, 1937-45. In D. Pandolfi (Org.). Repensando o Estado Novo (pp. 73-93). Fundação Getúlio Vargas.).

No Rio de Janeiro, Amaral Peixoto empreendeu uma política de assistência à saúde que procurou se equilibrar entre a modernidade técnica proposta pelos sanitaristas e a negociação política e ideológica com as elites locais. Dentre suas ações, pode-se destacar a criação de uma rede de centros de saúde, postos e subpostos de higiene, todos geridos pelo governo estadual (Ferreira, 2019Ferreira, L. O. (2019). Assistência à saúde e sanitarismo no Estado do Rio de Janeiro (1937-1945). In L. O. Ferreira, G. Sanglard & R. Barreto. A interiorização da assistência: um estudo sobre a expansão e diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945) (pp. 145-175). Fino Traço.).

Um segundo elemento de destaque no periódico A Noite é a menção ao apoio de Alzira Vargas do Amaral Peixoto e da LBA à criação da Escola de Enfermagem de Niterói. A Liga foi fundada em 28 de agosto de 1942, pela ação da primeira-dama do país, Darcy Vargas, que trouxe para junto de si o círculo de mulheres influentes na sociedade brasileira, assim como conclamou todas as primeiras-damas dos estados a se envolverem como voluntárias no amparo às famílias dos soldados brasileiros que atuaram na Segunda Guerra Mundial.

A LBA era financiada pelo Governo Federal e pelas Confederações Nacionais da Indústria e do Comércio, inscrevendo sua atuação em uma aliança entre o Estado e a sociedade civil para a efetivação da assistência social (Silva, 2018Silva, B. S. M. (2018). Tecnificação e gênero no corpo laboral da Legião Brasileira de Assistência: assistência social e modernidade (1945-1964). História Unisinos, 22(4), 604-619.). Sua atuação era atravessada pela ideia varguista de desenvolvimento nacional, e o seu apoio à Enfermagem, durante o Estado Novo no Rio de Janeiro, evidencia um exemplo concreto da mobilização realizada para colocar em prática os seus ideais.

Por fim, a criação da Escola de Enfermagem de Niterói visava atender às demandas sanitárias nacionais, visto que, segundo o jornal, o pequeno número de enfermeiras diplomadas “tipo Anna Nery” não ocupava todos os cargos disponíveis para a profissão no estado do Rio de Janeiro (Criação..., 1943). De acordo com Santos et al. (2020Santos, F. B. O., Carregal, F. A. S., Schreck, R. S. C., Marques, R.C., & Peres, M.A. A. (2020). Padrão Anna Nery e perfis profissionais de enfermagem possíveis para enfermeiras e enfermeiros no Brasil. História da Enfermagem: Revista Eletrônica, 11(1), 10-21.), a denominação “padrão Anna Nery”, ou “tipo Anna Nery” descrito no jornal, sustentou a introdução de um arquétipo da enfermeira moderna na sociedade brasileira, utilizando para esse fim instrumentos como a disciplina, um rigoroso ensino de base técnica-científica e a construção da imagem de um profissional solidamente preparado.

Simultâneo à publicação no jornal, agentes brasileiros e norte-americanos estabeleciam diálogos sobre o ensino de enfermagem no Brasil. A análise da documentação sobre as tratativas para a criação da escola indica que as autoridades nacionais solicitavam celeridade, por parte do SESP, na criação de uma instituição de ensino. Em agosto de 1943, por exemplo, Gertrude E. Hodgman, enfermeira do staff da agência bilateral, registrou os numerosos contatos realizados com Adelmo Mendonça que, segundo ela, estava ansioso para abrir uma escola na sua área de atuação profissional (Hodgman, 1943a).

Naquele momento, o representante da saúde no estado do Rio de Janeiro planejava construir dois hospitais - um em Niterói e um grande hospital estadual conectado com a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro - e sentia a necessidade de promover a formação de enfermeiras profissionais para suprir a demanda (Hodgman, 1943aHodgman, G. (1943a, ago.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). Por isso, Hodgman e sua companheira de trabalho, Lottie Chaikin Plaut, visitaram hospitais e postos de saúde niteroienses, de Petrópolis e de Campos, com o intuito de conhecer as instituições locais e sua possível viabilidade de articulação com uma nova instituição de ensino.

Gertrude conversou com Alzira Vargas, que lhe solicitou a apresentação de um projeto para a criação de uma Escola o mais rápido possível, além de escolher Plaut como enfermeira de ligação entre o trabalho de Enfermagem de Saúde Pública em Niterói e o escritório do SESP (Hodgman, 1943aHodgman, G. (1943a, ago.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). Uma das visitas realizadas pelas norte-americanas a instituições sanitárias ocorreu no dia 10 de agosto de 1943, no Posto de Saúde e Laboratório Estadual, em Niterói, quando Adelmo Mendonça aparentemente já havia recebido dinheiro de Alzira Vargas para colocar o projeto da escola em funcionamento.

Segundo as informações obtidas por Plaut e Hodgman, o Rio de Janeiro contava com apenas 14 enfermeiras de saúde pública, nove delas empregadas no Posto de Saúde de Niterói e quatro em outras regiões do Estado (Hodgman, 1943b). Naquele momento, a supervisora estadual de enfermagem era Delizeth Cabral, que havia estudado nos Estados Unidos, local para onde se pretendia enviar a jovem Marieta March, uma das enfermeiras do referido posto, com o objetivo de que atuasse na nova escola quando retornasse ao Brasil.

Hodgman e Plaut também foram a um hospital industrial que tinha 80 leitos, mas que não era utilizado completamente porque que não havia fundos para isso, e ao Sanatório Azevedo Lima, que tinha previsão de ser inaugurado em novembro daquele ano para tratar doenças transmissíveis e tuberculose (Hodgman, 1943c). Elas ainda visitaram uma casa sugerida como moradia para as futuras estudantes de enfermagem de Niterói. Situada em uma colina, com capacidade para acomodar entre 30 e 40 pessoas, precisaria de muitas reformas.

Tanto Mendonça quanto o ex-secretário de Saúde em Niterói, Marcolino Candau, que as acompanhavam, ficaram insatisfeitos com o local da possível residência. O primeiro sugeriu que os dois pisos superiores do novo sanatório fossem utilizados como moradia das enfermeiras, visto que possuíam banheiro, dormitórios e varanda (Hodgman, 1943cHodgman, G. (1943c, 13 ago.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Em mais uma conversa com Alzira Vargas, as enfermeiras foram novamente solicitadas a apresentar, no prazo de uma semana ou 10 dias, um plano para a criação de uma escola - “[...] que poderia estar localizada em Niterói ou em Campos” (Hodgman, 1943cHodgman, G. (1943c, 13 ago.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). E, logo em seguida, Hodgman e Plaut visitaram 16 instituições assistenciais de Campos. Nelas, diagnosticaram que dois hospitais estavam sendo construídos: um geral, com 350 leitos, e um infantil, com 75 leitos. Além disso, a comunidade demonstrava interesse em receber uma escola de enfermeiras.

Após um balanço sobre as observações realizadas, Gertrude Hodgman recomendou a criação da escola de Enfermagem em Niterói e a elaboração de planos para que, em cinco ou seis anos, Campos também recebesse uma instituição daquela natureza (Hodgman, 1943d). A escolha da cidade sede da escola foi justificada no plano de criação da EEERJ:

Depois de visitar os três possíveis centros sugeridos - Niterói, Petrópolis e Campos - me parece que o mais promissor é Niterói, pelas seguintes razões:

Possibilitará a ligação entre a Escola de Enfermagem e a Faculdade de Medicina de Niterói. Os Laboratórios da Faculdade de Medicina podem ser colocados à disposição da escola e presume-se que seu corpo docente esteja disposto a auxiliar no ensino.

Há um pequeno Hospital que pode ser totalmente ocupado e controlado pela Escola para o ensino clínico das alunas. Há também um Hospital Infantil em Niterói onde pode ser dada a experiência no cuidado de crianças. O Posto de Saúde de Niterói pode ser desenvolvido para o ensino das alunas. [...]

Existem 2 andares do novo hospital de tuberculose que podem ser destinados ao dormitório da escola e às salas de aula, que são bem adequadas para esses propósitos e exigirão relativamente poucas despesas e tempo a serem preparados (Plan..., n.d.).

O plano de criação da escola também enfatizava um hospital, que funcionaria como eixo articulador do ensino. Solicitava-se uma reforma imediata; providência de atendimentos a homens, mulheres e crianças; enfermarias, salas de atendimento dietético, salas de esterilização, salas de cirurgia, raios-X, salas de recepção, refeitório e banheiro para funcionários (Plan..., n.d.).

A partir desse parecer, uma comissão de enfermeiras brasileiras e norte-americanas foi criada para estudar os problemas de implantação da escola de enfermagem no Rio de Janeiro e se travou uma discussão sobre o futuro da profissão no país. O grupo de profissionais brasileiras julgava que os salários e as vagas disponíveis nos quadros dos estados e do Distrito Federal eram muito limitados (Plaut, 1943aPlaut, L. (1943a, set.). September, 1943 report. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). De fato, em 1937, por exemplo, a enfermeira Rosaly Taborda já havia afirmado que se pagavam ordenados tão exíguos que a profissão só poderia atrair pessoas consideradas pouco capazes e muito necessitadas de ganhar a vida (Taborda 1937).

Em contraposição a esse cenário, Hodgman defendia que os estados criassem grandes quadros e que o status do serviço de enfermeiras fosse elevado a níveis mais altos, que suas horas de trabalho fossem aumentadas e que as que lecionavam e supervisionavam as escolas recebessem classificações mais altas que os quadros de trabalhadoras da saúde pública, por exemplo. Isso implicava uma profissionalização da carreira.

Diante do seu protagonismo no processo, Hodgman foi designada para trabalhar definitivamente naquele projeto e, também, ajudar a organizar um comitê para a escola de enfermagem de Campos. Planejava-se abrir a Escola de Niterói em março de 1944, com uma equipe de professoras brasileiras. Além disso, esperava-se obter a consultoria de um grupo de enfermeiras americanas para a administração da escola e do hospital no qual as estudantes realizariam suas atividades do curso.

Sobre as atividades práticas da escola, decidiu-se que o Instituto de Proteção à Infância (IPAI) de Niterói seria utilizado para o atendimento pediátrico; a Faculdade de Medicina da Universidade, para as aulas de ciências básicas; e o 7º e o 8º andar do sanatório de tuberculose, para os dormitórios e as salas de aula de enfermagem. Todo esse processo foi acompanhado por Alzira Vargas, que expressava entusiasmo com relação ao projeto da escola de Enfermagem. Posteriormente, a instituição contaria com a vinda de mais 12 enfermeiras norte-americanas para o Brasil (Hodgman, 1943eHodgman, G. (1943e, 8 out.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

No mês de novembro de 1943, esperava-se que o Hospital Operário de Barretos fosse complementado com obras no novo ambulatório que estava sendo construído no seu terreno, no hospital infantil e nos postos de saúde de Niterói (Hodgman, 1943fHodgman, G. (1943f, 9 nov.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). A Secretaria Estadual de Saúde conseguiu recursos do estado e da Legião Brasileira de Assistência para a reforma do nosocômio, para mobiliar a residência das enfermeiras e para cobrir as despesas do hospital e da escola no ano de 1944.

Um projeto de decreto foi submetido à avaliação do interventor, para a criação a escola, e incluía um comitê formado por representantes do SESP, da LBA, da Faculdade de Medicina, uma enfermeira profissional escolhida pela Associação Brasileira de Enfermeira, a diretora da escola (escolha ex-oficio), um Educador e um representante da Secretaria de Saúde do Estado a serem escolhidos (Plaut, 1943bPlaut, L. (1943b, nov.). November, 1943 report. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, Caixa 107, Dossiê 21.). E, em janeiro de 1944, foram nomeados os seguintes profissionais para o Comitê Escolar (Quadro 1):

Quadro 1
Comitê Escolar da EEERJ

Para fortalecer a equipe, algumas enfermeiras foram designadas pelo SESP para trabalhar junto à escola de Niterói, com a esperança de que mais tarde fossem contatadas como parte do corpo docente da instituição de ensino ou do hospital. Eram elas: Mercedes dos Santos, que foi alocada na clínica de Higiene Infantil e Lactário do Centro de Saúde de Niterói; Yonita Acenço Torres, lotada em diversos serviços da Policlínica da Faculdade de Medicina de Niterói; Alayde Carneiro, designada para estudar e trabalhar no desenvolvimento dos procedimentos das “artes de enfermagem” nas instituições em que atuavam Mercedes e Yonita; e, por fim, Firmina Sant’Ana, nutricionista que trabalhava em tabelas de necessidades dietéticas de estudantes de enfermagem (Plaut, 1944aPlaut, L. (1944a, mar.). March 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21, 9.).

A documentação do SESP também registra que, entre os últimos meses de 1943 e outubro de 1944, quando a escola foi criada, ocorreram discordâncias entre brasileiros e norte-americanos sobre assuntos administrativos e curriculares. Uma das questões levantadas dizia respeito ao funcionamento da instituição nos primeiros anos. Na incerteza de que o Hospital Operários de Barretos ficasse pronto até a sua inauguração, Lottie Plaut sugeriu, em janeiro de 1944, uma modificação no currículo de enfermagem:

[...] desenvolvemos um currículo em que os alunos deveriam receber seu campo de prática no primeiro ano de treinamento em ambulatórios e postos de saúde. Nosso objetivo é fornecer uma base sólida que enfatize os aspectos preventivos da medicina e da higiene e apresente o aluno primeiro ao paciente normal e depois o exponha às situações anormais e de doenças [...] Tal plano equivaleria ao número de horas curriculares da Escola Anna Nery. Seria apenas uma mudança de posição de alguns artigos do plano curricular. Sentiu-se que essa não era apenas uma medida de conveniência, mas também estaria de acordo com o melhor pensamento na educação moderna de enfermagem nos Estados Unidos (Plaut, 1944bPlaut, L. (1944b, jan.). January 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Com base nesses argumentos, o currículo foi planejado e apresentado a Adelmo Mendonça, Marcolino Candau e Delizeth Cabral. Os dois últimos concordaram com a proposta, enquanto o representante estadual da saúde mostrou-se “[...] cético, sentindo que estávamos tentando treinar Visitadoras em um ano com este plano” (Plaut, 1944bPlaut, L. (1944b, jan.). January 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). Plaut afirmava que ele parecia ter necessidade de enfermeiras em hospitais estaduais e desejava que o programa de enfermagem enfatizasse profissionais hospitalares.

As enfermeiras visitadoras foram numerosas no Brasil da Primeira República. Ao longo dos anos 1920, enquanto a enfermagem moderna era ministrada na Escola Anna Nery, no Rio de Janeiro, outros estados, a exemplo da Bahia, ofereciam cursos rápidos com o intuito de que normalistas adquirissem a formação necessária para ocupar vagas nos serviços de saúde (Barreto, 1928Barreto, A. L. C. A. (1928). Relatório da Secretaria de Saúde e Assistência Pública: ano de 1927. Imprensa Oficial do Estado.), e eram chamadas de educadoras ou visitadoras.

Segundo Lina Faria (2007Faria, L. (2007) Saúde e política: a Fundação Rockefeller e seus parceiros em São Paulo. Editora Fiocruz.), em 1925, Geraldo Horácio de Paula Souza criou um curso de Educadoras sanitárias, ministrado no Centro de Saúde modelo do Instituto de Higiene de São Paulo. Em virtude da falta de enfermeiras diplomadas no estado até a segunda metade dos anos 1940, as autoridades deram preferência à formação de educadoras ou visitadoras.

A ideia de aproveitar o primeiro ano de formação das enfermeiras diplomadas, em Niterói, para também formar enfermeiras visitadoras não foi descartada das discussões do Comitê. Contudo, para Plaut, a própria ideia de enfermeira visitadora existente no Brasil era complexa, visto que em alguns momentos utilizava-se o termo “educadora” e, em outros, “visitadora”, de forma vaga e intercambiável:

Parece que as pessoas estão discutindo dois tipos de visitadoras - uma que não faz nada além de falar e a outra que é treinada para executar algumas técnicas de enfermagem.

Faz-se referência ao tipo de “Higiene Teacher” utilizado pelo Dr. Hydrick nas Índias Orientais Holandesas, uma espécie de educadora pura e simples. Em contraste, encontramos a “visitadora” usada no Norte do Brasil - um exemplo de “Enfermeira de Saúde Pública Modificada”. Deve haver esclarecimentos sobre esses termos (Plaut, 1944bPlaut, L. (1944b, jan.). January 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Após discussões, Adelmo Mendonça pareceu convencido da necessidade da mudança no currículo da escola de enfermagem de Niterói. O seu consentimento era determinante para a continuidade do plano. Em outro momento, ele demonstrava pressa na inauguração da instituição e sugeriu a possibilidade de oferecer o curso em 2 anos em vez de 3, como forma de incentivar a matrícula (Hodgman, 1944bHodgman, G. (1944b, ago.-nov.). August, 1944 to November 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Mendonça era citado constantemente no diário pessoal de Plaut. Atuou para o estabelecimento de um serviço de enfermagem na Policlínica da Faculdade de Medicina (Plaut, 1944c); e considerou que seria difícil estabelecer um “comitê administrador” como grupo independente com controle total dos fundos, como desejavam as enfermeiras. Ele e Candau consideravam que o Estado não estava disposto a autorizar esse comitê. Sugeriram um plano alternativo, para colocá-lo no Programa de Formação de Enfermeiras do SESP e fazer um contrato semelhante ao realizado entre a Divisão de Saúde e Saneamento e o Governo Brasileiro para criar o SESP (Hodgman, 1944cHodgman, G. (1944c, 10 fev.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Pelo menos outros dois conflitos foram marcantes na preparação para a abertura da escola. O primeiro deles diz respeito à oposição por parte do Serviço Federal de Tuberculose em relação à utilização de qualquer parte do sanatório para a residência das enfermeiras (Plaut, 1944dPlaut, L. (1944d, abr.). April, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). Hodgman soube que “[...] os dois andares do hospital de tuberculose não estavam disponíveis e que não havia água no 8º andar, de qualquer maneira” (Hodgman, 1944d). Em maio de 1944, registava-se que:

Aparentemente, o Serviço de Tuberculose, como é natural, opõe-se fortemente à utilização deste edifício para quaisquer outros fins que não seja o cuidado do paciente, - e, sem dúvida, o Estado concordou com isso. Uma situação muito difícil (Hodgman, 1944eHodgman, G. (1944e, 2 maio). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Por fim, após muitas discordâncias, quando a escola foi inaugurada, os 2 andares do sanatório foram utilizados, com previsão de se transferir para outro local em um ano. A decisão de construir uma escola e residência o mais rápido possível foi discutida e Adelmo Mendonça solicitou, a pedido da interventoria, que o arquiteto do SESP fizesse a planta para uma construção que integrasse uma “Cidade Universitária” do Estado do Rio de Janeiro (Hodgman, 1944fHodgman, G. (1944f, 8 nov.). Diary. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

Uma última questão de tensão entre norte-americanos e brasileiros, não menos importante, foi a decisão sobre a diretora, que parece não ter contado com a colaboração espontânea de Laís Netto dos Reis. Pequenos fragmentos observados nas fontes ajudam a fortalecer a ideia de que, muito provavelmente, a enfermeira considerava que o surgimento de outra Escola de Enfermagem no Rio de Janeiro poderia abalar a posição hegemônica da Anna Nery no estado, ou mesmo no Brasil, visto que a Escola da Universidade de São Paulo ainda não estava plenamente consolidada (Hodgman, 1944gHodgman, G. (1944g, 23 mar.). Diary. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21., 1944h).

Em reunião realizada em 23 de março de 1944, Laís afirmou ao Comitê Educacional que “[...] não havia necessidade de outra enfermagem nesta área, pois a Anna Nery ainda não havia preenchido sua cota” (Hodgman, 23 mar. 1944, p 1). Em maio, a comissão se reuniu e escolheu Aurora de Afonso Costa para diretora da nova escola de Enfermagem. Ela era graduada pela Anna Nery, onde também trabalhava. Costa aceitou o cargo, prevendo que a sua transferência para a EEERJ levaria algum tempo (Plaut, 1944ePlaut, L. (1944e, maio). May, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.), mas não se imaginava que esse processo demoraria muito.

Apesar da expectativa, a liberação de Aurora não ocorria, o que preocupava o staff do SESP. Após uma visita de Gertrude Hodgman a Laís Reis, ela se dispôs a ajudar no processo, mas deixou transparecer que aquele era um “grande sacrifício” (Hodgman, 1944h). Aurora só foi colocada à disposição do Governo do Estado para assumir a direção da escola em 23 de setembro de 1944 (Plaut, 1944fPlaut, L. (1944f, set.). September, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21, 19.).

Aurora Gypsophila de Afonso Costa nasceu em 4 de dezembro de 1903, na cidade de Morro do Chapéu, no estado da Bahia, filha de Affonso Costa e Presciliana da Silva Costa (Benito et al., 2022Benito, L. A. O., Benito, R. C., Karnikowski, M. G. O., & Silva, I. C. (2022). Contribuições da Dra. Aurora Afonso Costa para o cuidado do enfermeiro a pacientes vitimados de queimaduras. Revisa, 11(2), 266-275.). Seu pai era funcionário público federal, nascido na cidade de Jacobina em 2 de agosto de 1885, e que se transferiu para o Rio de Janeiro, onde trabalhou no setor de contabilidade do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública desde a sua criação (Afonso Costa, n.d.), em 1930. Como intelectual, foi um pesquisador arguto, empenhado nas questões do seu estado de origem, o que lhe abriu portas para filiação no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (Oliveira, 2021Oliveira, V. G. S. (2021). Usos do passado: Afonso Costa, o IGHB e a comemoração do bicentenário de jacobina (Bahia) em 1922. Saeculum - Revista de História, 26(44), 119-133.).

Assim, é possível afirmar que o núcleo familiar de Aurora lhe proporcionou um capital cultural importante para o cargo que ela assumiu na EEERJ. Ela era mais uma das proeminentes mulheres de origem baiana que migraram para o Rio de Janeiro e se inseriram no campo da Enfermagem, como se observa, por exemplo, com as mulheres da família Guanais Dourado, nascidas na mesma região que Aurora.

Em 19 de abril de 1944, foi promulgado o Decreto-Lei nº 1.130, que criou a EEERJ. Na manhã de 18 de outubro de 1944, o Diário Carioca, que naquele momento mantinha uma linha editorial atenta às questões nacionais de maior repercussão e menor preocupação com as questões regionais, anunciou que às 11 horas ocorreria o ato de instalação da Escola, com assistência do governo brasileiro e dos Estados Unidos (Inaugura-se..., 1944). O evento ocorreu no hospital Azevedo Lima, com a participação de autoridades, militares, civis e religiosas, além de médicos e de representantes da sociedade. Mas a primeira turma só começou a estudar no início de 1945.

Dos “Altos padrões internacionais de enfermagem” e muitas dificuldades

A documentação sobre os projetos desenvolvidos pelo SESP no Brasil é sempre precedida de uma ficha que apresenta informações sobre a instituição beneficiada, incluindo seu histórico, e o tipo de auxílio fornecido. Na ficha referente à EEERJ, afirma-se que “O curso para as alunas da Escola de Enfermagem, ministrado em três anos, contava com altos padrões internacionais de enfermagem, tendo as estudantes um amplo campo de prática” (Fundo I, administração..., 1943).

Uma leitura pouco atenta poderia tomar aquela informação como reflexo de um processo completamente propício ao aprendizado. Embora muitas das iniciativas, como o uso de material bibliográfico norte-americano traduzido e mimeografado, tenham sido exitosas, uma análise mais detalhada dos documentos mostra que os anos iniciais de funcionamento da EEERJ foram marcados por dificuldades e, inclusive, pela falta de candidatas à instituição de ensino.

Em janeiro de 1945, o staff do SESP esperava o início das aulas. Das 24 alunas matriculadas na primeira turma da escola, 11 eram bolsistas da agência, o que incluía deslocamento de ida e volta para casa e um auxílio financeiro mensal durante o curso (Hodgman, 1945aHodgman, G. (1945a, jan.). January, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.). A contrapartida do financiamento era que, após formadas, as enfermeiras deveriam aceitar vagas de trabalho nos projetos da cooperação internacional, caso fosse necessário.

As primeiras bolsistas SESP na EEERJ eram oriundas do Espírito Santo, Pará e Ceará (Quadro 2). As demais estudantes receberam bolsas de estudo financiadas pelo estado do Rio de Janeiro ou pela LBA.

Quadro 2
Estudantes financiadas pelo SESP na EEERJ

As aulas começaram em 1 de fevereiro de 1945, e uma questão debatida ao longo da elaboração do projeto voltou à discussão. Segundo Gertrude Hodgman, era urgente fazer planos para uma escola e uma residência. O sanatório de tuberculose, cujos 7 e 8 andares estavam sendo utilizados para o funcionamento da EEERJ, iria abrir suas portas em um futuro considerado próximo, o que poderia colocar em risco a saúde das estudantes.

Por isso, Aurora Costa e Hodgman elaboraram especificações para o novo prédio e o arquiteto do SESP passou a estudar os locais sugeridos, em função do tipo de edificação a ser construída. Esforços foram realizados para encontrar um edifício adequado, mas sem sucesso (Hodgman, 1945b).

Após a abertura da escola, algumas das mudanças que vinham sendo realizadas foram finalizadas. Um novo ambulatório, que abrigaria o laboratório do hospital, foi inaugurado em abril de 1945 e estava funcionando. Em maio do mesmo ano, o hospital da Escola estava sendo equipado, quase pronto para abrir, e se esperava uma segunda turma de estudantes em julho de 1945 (Hodgman, 1945cHodgman, G. (1945c, maio). May, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, Caixa 107, Dossiê 21.).

Por outro lado, conversas entre Marcolino Candau e Alzira Vargas definiram que a escola deveria ter alojamentos adicionais de residência antes de aceitar uma nova classe, em março de 1946; o diretor do sanatório estava disposto a disponibilizar o 6º andar para o funcionamento da instituição educacional, desde que fosse apresentada alguma garantia dos planos para retirá-la do sanatório; deveria ser feito um plano imediato de construção de um edifício escolar e, para que a enfermagem fosse mais atrativa para jovens “inteligentes e bem educadas do Estado”, deveria ser estabelecido um melhor plano salarial (Hodgman, 1945dHodgman, G. (1945d, jun.). Diary, jun. 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.).

O curso de Anatomia e Fisiologia foi ministrado à primeira turma por Geraldine Wilson, que trabalhava como consultora da Escola no ensino de ciências pré-clínicas. Ela era considerada a primeira enfermeira qualificada que concentrou sua atenção no ensino de ciências em uma escola de enfermagem no Brasil. Gertrude Hodgman afirmava que não havia profissionais de enfermagem brasileiras com formação científica suficientemente aprofundada para se prepararem como professoras naquela área (Hodgman, 1945e). Os principais problemas encontrados por Wilson foram:

Como toda nova empreitada: os cursos não eram ideais, principalmente o de anatomia e fisiologia, nos quais muitas dificuldades foram encontradas, como a falta de um laboratório próprio para alguns experimentos. As alunas aprenderam um pouco de histologia ou fisiologia, mas no geral, adquiriram uma boa compreensão da intrincada estrutura do corpo humano (Wilson, 1945Wilson, G. (1945, ago.). “Exhibit I”. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.a).

Embora houvesse um laboratório adequado no Instituto de Anatomia, raramente ele estava disponível, visto que os estudantes da Faculdade de Medicina, à qual o laboratório pertencia, também utilizavam o espaço. As aulas ministradas por um dos médicos, para as enfermeiras, também não se mostraram profícuas, visto que o professor Rocha Lagoa se mantinha muito ocupado, faltava e/ou se atrasava constantemente:

Ele falava claro e devagar para que as alunas pudessem escrever quase todas as palavras e sempre tinha um modelo na mesa diante dele [...] ele seguiu o esboço do curso, mas depois entrou em tantos detalhes e perdeu tantas aulas que se atrasou tanto que na última parte do curso teve que ir rapidamente para cobrir o material. Mais ou menos na metade do curso, seu assistente foi convidado a substituí-lo (Wilson, 1945Wilson, G. (1945, ago.). “Exhibit I”. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.a, 1).

A segunda turma de enfermeiras demonstrou bom desempenho no denominado “curso preliminar”, que oferecia conhecimentos de anatomia e fisiologia. Contudo, em agosto de 1945, ainda não havia um lugar adequado para os exercícios de laboratório, sendo que o pertencente à Faculdade de Medicina continuava indisponível e, se fosse utilizado, necessitava que o equipamento da Escola de Enfermagem fosse movido para lá (Wilson, 1945Wilson, G. (1945, ago.). “Exhibit I”. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.b).

Os relatórios produzidos pela diretora, Aurora Costa, no ano de 1946Costa, A. A. (1946, 18 jul.). E/E/357. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21., apresentam questões relacionadas ao número de estudantes matriculadas, às possibilidades de a escola mantê-las na instituição, à qualificação e ao destino dessas mulheres após a formação. Em abril de 1946, Costa afirmava que, embora tivesse enviado circulares para todos os setores da LBA, grupos escolares e Inspetores de Ensino do Estado do Rio, a Escola parecia continuar desconhecida no próprio estado: “Talvez fosse aconselhável uma propaganda mais distendida e eficiente, pelo rádio e jornais, sôbre as finalidades e vantagens do curso de enfermagem, em bem dos interesses coletivos” (Figura 1) (Costa, 1946a, pp. 1-2).

As dificuldades para conseguir candidatas que desejassem cursar Enfermagem podiam ser atribuídas a diferentes motivos. O primeiro deles era a necessidade de mais financiamento para as estudantes. Sabendo que 12 bolsas da Anna Nery seriam finalizadas naquele ano, Aurora Costa entrou em contato com a LBA e solicitou que seis delas fossem concedidas à EEERJ. Ela não considerava justo que se renovassem as bolsas naquela escola federal, quando uma escola estadual já possuía um instituto em funcionamento (Costa, 1946a). A questão financeira era, de forma geral, um problema para a Escola. A receita adquirida mal dava para pagar os funcionários.

Figura 1
Folder com informações sobre a EEERJ

Outra questão que não contribuía para recrutar estudantes era a localização da instituição de ensino: “A Escola permanece no grave inconveniente de ter sua residência localizada dentro de um hospital de tuberculosos. Não importa [que] as suas instalações sejam separadas, porque as desvantagens materiais e morais são imensas” (Costa, 1946Costa, A. A. (1946, 18 jul.). E/E/357. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.a, p. 3). A limitação de espaço para a moradia das estudantes também era um fator preponderante.

Aurora Costa afirmou, por exemplo, que o número de inscritas para o curso que iniciaria em fevereiro de 1946 foi de 25, mas que só foram aceitas 14, em função da desistência das demais. Isso agradava a EEERJ, porque, no segundo semestre, entrariam pelo menos mais 10 candidatas, sobrando apenas 17 lugares para a turma de 1947 (Costa, 1946b). Para ela, não importava que estivessem ocupando, naquele momento, o 6º andar do edifício do Sanatório Azevedo Lima, pois ainda assim não era considerado o bastante para as instalações completas da Escola (Costa, 1946b).

O tempo de contribuição das bolsistas do estado no serviço público também foi um fator que pode ter repelido candidatas. O Decreto-Lei nº 1.857, de 20 de junho de 1944, obrigava as normalistas contempladas com bolsa de estudo a prestar serviços para o Estado por prazo não inferior que cinco anos.

No mês de julho de 1946, Aurora de Afonso Costa escreveu para a Comissão Administrativa da Escola, devido à falta de candidatas:

Por nossos estatutos, deverá ser iniciado no corrente mês, o curso para novas alunas. As que se matricularam para o 2º semestre do ano escolar. Aconteceu, porém, que a despeito de todos os esforços possíveis, isso não ocorrerá, e o que é mais grave afirmar, por falta de candidatas.

O que ocorreria no caso? Desprestígio da Escola, desnecessidade de enfermeiras, exigências descabidas. Não. (Costa, 1946Costa, A. A. (1946, 18 jul.). E/E/357. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.c, p. 1).

Uma das respostas para a falta de candidatas pode ser compreendida pela tentativa de elevar o padrão cultural na formação de enfermeiras. Para realizar a matrícula, a EEERJ exigia que se fosse portadora do curso normal, clássico, científico, ou 5ª série ginasial. Não se permitia formadas apenas com o 4º ano ginasial, o que, segundo Aurora Costa, outras escolas daquela “categoria” admitiam. Para a seleção de estudantes, no segundo semestre de 1946, cerca de 10 mulheres apresentaram essa formação e foram automaticamente recusadas (Costa, 1946c).

Segundo Oguisso e Freitas (2015Oguisso, T., & Freitas, G. F. (2015). História da enfermagem: Instituições e práticas de ensino de assistência. Águia Dourada.), a enfermagem nacional desse período deveria ser composta por homens e mulheres capazes de promover, sem restrições, a saúde das populações, bem como consolidar instituições oficiais de assistência, ampliando o sentido atribuído à relação saúde-doença. Assim, presumia-se que, quanto maior o grau instrucional das enfermeiras, menores empecilhos seriam encontrados para alcançar esse objetivo.

Em 1949, ocorreu a primeira modificação nos currículos das escolas de Enfermagem, com a aprovação da Lei nº 775, de 6 de agosto de 1949, que tornou obrigatório o ensino em todo o território vinculado a um Centro Universitário ou uma Faculdade de Medicina. Em seu artigo 5º definiu que, para a matrícula de enfermeiras, seria exigido o certificado de conclusão do curso secundário. Porém o parágrafo único permitia que, da data da publicação até 7 anos de vigência da lei, ainda se aceitariam pessoas que portassem certificados de conclusão do curso ginasial, comercial ou normal (Oguisso & Freitas, 2015Oguisso, T., & Freitas, G. F. (2015). História da enfermagem: Instituições e práticas de ensino de assistência. Águia Dourada.). Somente com a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961, as Escolas de Enfermagem passaram a ser consideradas de nível superior e, portanto, com o curso ginasial como exigência.

Aurora Costa defendia que a Comissão Administrativa flexibilizasse aquele pré-requisito, para que as estudantes fizessem apenas o exame vestibular. Ela argumentava que a escola ainda estava em formação e que não deveria estabelecer rigidez na sua ação inicial. Apontamentos para solução da questão estavam então na seguinte proposta:

Feita a concessão para a matrícula de candidatas que tenham o 4º ano ginasial, submetendo-se a exame vestibular; assegurando-se bolsas de estudo e de incentivo, com redução de prazo para a prestação de serviços ao final do curso; permitindo as professoras situação que lhes despertem amôr a nobre profissão de enfermeira, e oferecendo ainda á terminação do curso, colocação remunerada da maneira que não fiquem as diplomadas assemelhadas e equiparadas a datilografa, certamente haverá maior estímulo para os que estudam e para as que se candidatarão no futuro (Costa, 1946Costa, A. A. (1946, 18 jul.). E/E/357. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.c, p. 3).

Mesmo com todas essas questões, a EEERJ continuou a funcionar e somente com o Decreto nº 22.526, de 27 de janeiro de 1947, recebeu a equiparação à escola padrão, ou seja, ao modelo Anna Nery. E a primeira turma de enfermeiras se formou em 1948.

Considerações Finais

A análise aqui realizada contribui para a historiografia da educação ao apresentar os conflitos inerentes à formação de uma instituição educacional ainda não estudada em profundidade na historiografia. Além disso, permite compreender os interesses do Estado brasileiro e dos Estados Unidos na formação profissional feminina de meados do século XX e as dificuldades enfrentadas por mulheres para alcançarem uma formação que, certamente, implicava em termos de autonomia em suas vidas.

Ao longo dos anos 1940, a Enfermagem se expandiu no Brasil por meio da criação de Escolas de Enfermagem apoiadas pelo SESP. Embora houvesse interesses nacionais e internacionais no acordo, a análise da documentação produzida pela agência bilateral - notadamente as anotações da enfermeira responsável, Gertrude Hodgman - indica inúmeras investidas dos agentes locais, como Adelmo Mendonça e Alzira Vargas, para que a nova escola fosse criada com a maior brevidade. Não foram encontradas evidências de resistências, por parte do staff do SESP, em relação à implementação da proposta.

Dessa forma, a EEERJ surgiu sem as condições materiais básicas, relacionadas à reforma do hospital e ao local no qual funcionariam a residência das estudantes e as aulas, instalado em um sanatório para tuberculosos, entre outros aspectos analisados ao longo do texto. A falta de estrutura obrigou, inclusive, a formulação de adaptações no currículo, dando ênfase à prática na saúde pública durante o primeiro ano de formação, para se adequar à provisória indisponibilidade de um hospital.

A historiografia sobre a atuação de agências internacionais, a exemplo da FR no Brasil - que pode ser estendida às ações do SESP -, foi construída, ainda nos anos 1980, a partir da ideia de que organizações norte-americanas figuravam como um braço do imperialismo estadunidense. Posteriormente, esta questão foi analisada por meio das categorias “centro” e “periferia”, que ainda atribuíam um peso maior às ações do primeiro “polo”. Nos últimos anos, a ideia de circulação do conhecimento tem sido base para se repensar a interpretação dos arranjos internacionais, mostrando como o local, em muitos momentos, teve um maior protagonismo nas interações internacionais (Porto & Batista, 2021Porto, P., & Batista, R. (2021). Fundação Rockefeller e Saúde Global: história e historiografia em entrevista com Marcos Cueto. História: Debates e Tendências, 21(3), 210-226.). O caso aqui analisado pode ser considerado um exemplo dessa última tendência.

Por outro lado, a celeridade exigida pelos representantes brasileiros para a criação de uma escola no Rio de Janeiro, sob a justificativa da necessidade de formar profissionais para os serviços hospitalares nacionais e atender aos planos de Getúlio Vargas, pode ter sido precipitada a tal ponto que impediu um planejamento mais cuidadoso sobre os rumos da instituição inaugurada em Niterói. Inclui-se o perfil das candidatas nesse processo, o que causou, em determinado momento, a dificuldade de conseguir estudantes, realizando com dificuldade os objetivos a que se propunha.

Espera-se que essas reflexões colaborem para a ampliação dos estudos na história da educação e na história da enfermagem, em análises sobre as relações entre local e internacional. Cada vez mais é necessário um olhar complexo sobre os processos de cooperação entre países, com destaque para o papel desempenhado pelas instituições nacionais e o questionamento de teses que consideram o local como mera reprodução do que vem do exterior.

REFERÊNCIAS

  • Afonso Costa. (n.d.). https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/acosta.html
    » https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/acosta.html
  • Barreira, I. A. (1997). Os primórdios da enfermagem moderna no Brasil. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, 1, 161-176.
  • Barreira, I. A. (1999). Transformações da prática da enfermagem nos anos 1930. Revista Brasileira de Enfermagem, 52(1), 129-143.
  • Barreto, A. L. C. A. (1928). Relatório da Secretaria de Saúde e Assistência Pública: ano de 1927. Imprensa Oficial do Estado.
  • Benito, L. A. O., Benito, R. C., Karnikowski, M. G. O., & Silva, I. C. (2022). Contribuições da Dra. Aurora Afonso Costa para o cuidado do enfermeiro a pacientes vitimados de queimaduras. Revisa, 11(2), 266-275.
  • Campos, A. L. V. (2006). Políticas internacionais de saúde na Era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Editora Fiocruz.
  • Campos, A. L. V. (2008). Cooperação internacional em saúde: o serviço especial de saúde pública e seu programa de Enfermagem. Ciência e Saúde Coletiva, 13(3), 879-888.
  • Costa, A. A. (1946, 16 jan.). E/E/249. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Costa, A. A. (1946, 20 abr.). E/E/308. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Costa, A. A. (1946, 18 jul.). E/E/357. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Criação de uma escola de alto padrão em Niterói. (1943, 2 de setembro). A Noite, ano XXXIII, n. 11.336.
  • Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro. (n.d.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Faria, L. (2007) Saúde e política: a Fundação Rockefeller e seus parceiros em São Paulo. Editora Fiocruz.
  • Farley, J. (2004). To cast out disease: a history of the International Health Division of the Rockefeller Foundation (1915-1951). Oxford University Press.
  • Ferreira, L. O. (2019). Assistência à saúde e sanitarismo no Estado do Rio de Janeiro (1937-1945). In L. O. Ferreira, G. Sanglard & R. Barreto. A interiorização da assistência: um estudo sobre a expansão e diversificação da assistência à saúde no Brasil (1850-1945) (pp. 145-175). Fino Traço.
  • Fundo I, administração, seção 3, cursos, treinamento e publicações. (1943, set.). Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In C. Gingburg. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Cia. das Letras.
  • Hochman, G., & Fonseca, C. (1999). O que há de novo? Políticas de saúde pública e previdência, 1937-45. In D. Pandolfi (Org.). Repensando o Estado Novo (pp. 73-93). Fundação Getúlio Vargas.
  • Hodgman, G. (1943a, ago.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1943b, 10 ago.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1943c, 13 ago.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1943d, set.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1943e, 8 out.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1943f, 9 nov.). Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944a, 11 jan.). Diary. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944c, 10 fev.). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944g, 23 mar.). Diary. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944d, abr.). April, 1944. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, Caixa 107, Dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944e, 2 maio). Diary. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944h, 23 maio). Diary.Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944b, ago.-nov.). August, 1944 to November 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1944f, 8 nov.). Diary. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1945a, jan.). January, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1945b, fev.) February, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1945c, maio). May, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, Caixa 107, Dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1945d, jun.). Diary, jun. 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Hodgman, G. (1945e, jul.). July, 1945. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Inaugura-se, hoje, em Niterói, o importante estabelecimento donde sairão as futuras enfermeiras do Brasil. (1944, 18 de outubro). Diário Carioca, ano XVII, n. 5014.
  • Moreira, A., Porto, F., & Oguisso, T. (2002). Registros noticiosos sobre a escola profissional de enfermeiros e enfermeiras na revista “O Brazil-Médico”, 1890-1922. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 36(4), 402-407.
  • A Noite. (n.d.). https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/NOITE,%20A.pdf
    » https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/NOITE,%20A.pdf
  • Oguisso, T., & Freitas, G. F. (2015). História da enfermagem: Instituições e práticas de ensino de assistência. Águia Dourada.
  • Oliveira, V. G. S. (2021). Usos do passado: Afonso Costa, o IGHB e a comemoração do bicentenário de jacobina (Bahia) em 1922. Saeculum - Revista de História, 26(44), 119-133.
  • Plan relating to school of nursing, State of Rio. (n.d.). Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1943a, set.). September, 1943 report. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1943b, nov.). November, 1943 report. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, Caixa 107, Dossiê 21.
  • Plaut, L. (1944b, jan.). January 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1944c, fev.). February, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1944a, mar.). March 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21, 9.
  • Plaut, L. (1944d, abr.). April, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1944e, maio). May, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Plaut, L. (1944f, set.). September, 1944. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21, 19.
  • Porto, P., & Batista, R. (2021). Fundação Rockefeller e Saúde Global: história e historiografia em entrevista com Marcos Cueto. História: Debates e Tendências, 21(3), 210-226.
  • Prutsch, U. (2012) Nelson Rockefeller’s Officer of Inter-American Affairs in Brasil. In G. Cramer & U. Prutsch (Orgs.), Americas Unidas: Nelson Rockefeller’s Office of Inter-American Affairs (1940-46) (pp. 249-282). Iberoamericana.
  • Tota, A. P. (2020) O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. Cia das Letras.
  • Ramacciotti, K., & Valobra, A. (2009). La profesionalización de la enfermería en Argentina: Disputas políticas e institucionales durante el peronismo. Asclepio, 62(2), 353-374.
  • Rayez, F., & Ramacciotti, K. I. (2021). Ligações internacionais e saúde pública: pegadas da Fundação Rockefeller na Argentina, 1930-1950. Revista História: Debates e Tendências, 21(3), 118-134. https://doi.org/10.5335/hdtv.21n.3.12808
    » https://doi.org/10.5335/hdtv.21n.3.12808
  • Rocha, L. B., & Barreira, I. A. (2002). A enfermagem e a condição feminina: figuras-tipo de mulheres no Estado Novo. Escola Anna Nery - Revista de Enfermagem, 6(2), 195-210.
  • Santos, F. B. O., Carregal, F. A. S., Schreck, R. S. C., Marques, R.C., & Peres, M.A. A. (2020). Padrão Anna Nery e perfis profissionais de enfermagem possíveis para enfermeiras e enfermeiros no Brasil. História da Enfermagem: Revista Eletrônica, 11(1), 10-21.
  • Silva, B. S. M. (2018). Tecnificação e gênero no corpo laboral da Legião Brasileira de Assistência: assistência social e modernidade (1945-1964). História Unisinos, 22(4), 604-619.
  • Taborda, R. (1937, maio). Enfermagem deficiente. Annaes de Enfermagem, 5(9), 46.
  • Wilson, G. (1945, jul.). Report July - 1945. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Wilson, G. (1945, ago.). “Exhibit I”. Escola Fluminense de Enfermagem. Centro de Documentação da Casa de Oswaldo Cruz. FSESP, caixa 107, dossiê 21.
  • Rodadas de avaliação:

    R1: três convites; nenhum parecer recebido.
    R2: três convites; um parecer recebido.
    R3: dois convites; um parecer recebido.
  • Financiamento:

    A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Licenciamento:

    Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Editado por

Editor-associado responsável:

Eduardo Lautaro Galak (UNLP, Argentina)
E-mail: eduardo.galak@unipe.edu.ar
https://orcid.org/0000-0002-0684-121X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2023
  • Aceito
    11 Set 2023
  • Publicado
    11 Jan 2024
Sociedade Brasileira de História da Educação Universidade Estadual de Maringá - Av. Colombo, 5790 - Zona 07 - Bloco 40, CEP: 87020-900, Maringá, PR, Brasil, Telefone: (44) 3011-4103 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: rbhe.sbhe@gmail.com