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A invenção das habilitações básicas: a ‘solução’ para o ensino profissionalizante de 2º grau (Brasil, 1975)

The invention of basic qualifications: the ‘solution’ for professionalizing high school education (Brazil, 1975)

La invención de las cualificaciones básicas: la ‘solución’ para profesionalizar la enseñanza media (Brasil, 1975)

Resumo

A Lei nº 5.692/1971 instituiu mudanças no ensino de 1º e 2º graus, sendo as principais destas a profissionalização e a terminalidade deste último com fins de formar mão de obra para suprir as demandas do mercado de trabalho. A partir do materialismo histórico-dialético, são analisadas as Habilitações Básicas (HB), criadas, em 1975, como solução para as dificuldades de implantação dessa Lei. Utiliza-se como fontes a legislação editada à época: as Portarias nº 45/72 e 76/75 e aquelas que criaram as 10 HB. Percebeu-se que estas foram concebidas com vistas a implantar a lei e não davam, aos egressos, boas oportunidades para se inserir no mercado, visto que estes ocupariam funções subalternas de auxiliares dos técnicos de nível médio se não completassem seus estudos em uma escola técnica.

Palavras-chave:
Lei nº 5.692/1971; ensino profissionalizante; habilitação básica; pesquisa documental

Abstract

The Law nº 5.692/1971 instituted changes in the teaching of 1st and 2nd grades, the main ones being the professionalization and the terminality of the latter with the purpose of forming manpower for the demands of the labor market. Based on historical-dialectical materialism, the Basic Qualifications (HB), created in 1975, are analyzed as a solution to the difficulties of implementation of this Law. It is used as sources the legislation edited at the time: the Ordinances nº 45/72 and 76/75 and those that created the 10 HB. It was noticed that these were conceived in order to implement the law and did not give, to the former students, good opportunities to be inserted in the market, since they would occupy subordinate functions as assistants of the medium level technicians if they did not complete their studies in a technical school.

Keywords:
Law no. 5.692/1971; professionalizing education; basic qualification; documentary research

Resumen

La Ley nº 5.692/1971 instituyó cambios en la enseñanza de 1º y 2º grados, siendo los principales la profesionalización y la terminalidad de esta última con el objetivo de formar mano de obra para las demandas del mercado de trabajo. Partiendo del materialismo histórico-dialéctico, se analizan las Cualificaciones Básicas (CB), creadas en 1975, como solución a las dificultades de implantación de esta Ley. Se utiliza como fuentes la legislación creada en la época: las Ordenanzas nº 45/72 y 76/75 y las que crearon las 10 HB. Se constató que éstas fueron concebidas para implementar la ley y no daban a los graduados buenas oportunidades de inserción en el mercado, ya que ocuparían funciones subordinadas de ayudantes de los técnicos de nivel medio si no completaban sus estudios en una escuela técnica.

Palabras clave:
Ley nº 5.692/1971; profesionalización de la enseñanza; calificación básica; investigación documental

Introdução

O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 deu início a um período de 21 anos de ditadura no Brasil. A posse de Castello Branco, que se manteria no poder interinamente até a eleição presidencial, em 1965, significou o início de uma profunda mudança no sistema político, “[...] moldada através da colaboração ativa entre militares e setores civis interessados em implantar um projeto de modernização impulsionado pela industrialização e pelo crescimento econômico, e sustentado por um formato abertamente ditatorial” (Schwarcz & Starling, 2018Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2018). Brasil: uma biografia (2a ed.). Companhia das Letras., pp. 448-449).

O projeto de modernização estava pautado na relação direta entre desenvolvimento e industrialização, tendo como alicerce a Doutrina de Segurança Nacional (DSN). O seu êxito dependia da atração de investimentos estrangeiros e de medidas voltadas à formação de mão de obra para as indústrias e para os projetos que seriam implementados pelo governo ou já em andamento sob um regime autoritário de repressão e tortura dos opositores. Com efeito, foi realizada uma ampla reforma no ensino médio - denominação presente na primeira Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961) - por meio da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que reformou o ensino de 1º e 2º graus, tornando este último profissionalizante. Vale ressaltar que esta reforma foi uma das recomendações da equipe que elaborou a Reforma Universitária, Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968.

Todavia, a profissionalização compulsória estabelecida pela nova lei não foi bem aceita por estudantes, pela classe média e por gestores de escolas. Assim, em 23 de janeiro de 1975, foi realizada uma ‘reforma da reforma’ (Cunha, 2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., 2014) mediante o Parecer nº 76 do Conselho Federal de Educação (CFE). Neste documento, são apresentadas algumas ‘soluções’ para os impasses enfrentados para a aplicação da lei. Um dos expedientes foi a criação de Habilitações Básicas (HB) como uma alternativa a mais para pôr em prática a profissionalização compulsória. Assim, em seguida, foram criadas 10 HB que não formavam técnicos, mas auxiliares, egressos que poderiam, segundo o CFE, inserirem-se no mercado de trabalho.

Cury (2010Cury, C. R. J. (2010). Reformas educacionais no Brasil. In D. Saviani (Org.), Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira, (pp. 343-372). Edufes., p. 343), ao analisar o conceito da palavra ‘reforma’, afirma que esse termo assumiu o significado de “[...] dar uma ‘outra forma’ ou, então, dar uma outra e ‘nova forma’. No primeiro caso, trata-se de uma ‘mudança’, cujo conteúdo deve ser examinado. Já no outro caso, impõe-se o estudo da ‘inovação’ em face a uma situação”. Em face disso, as questões que mobilizam este artigo são: o que essa ‘reforma da reforma’ realmente trouxe de inovação para o ensino profissionalizante? Como esse ensino era percebido pelos elaboradores e relatores das propostas das HB? Como estas poderiam resolver os impasses e as críticas feitas à Lei nº 5.692/1971?

Considerando que, para Aróstegui (2006Aróstegui, J. (2006). A pesquisa histórica: teoria e método. Edusc., p. 490), “[...] é o problema o que condiciona as fontes e não o contrário [...]”, para responder nossos questionamentos, investimos em uma pesquisa documental, tendo por base a legislação produzida a partir da Lei nº 5.692/1971, a saber: o Parecer nº 45/72, que estabeleceu as normas para a implementação dessa lei e criou 130 Habilitações Profissionais (HP) para o ensino de 2º grau; o Parecer nº 76/75, que possibilitou a criação das HB; os pareceres das 10 HB originadas em fins de 1975. O acesso a essas fontes se deu, principalmente, pelo site do MEC e pelo Portal Domínio Público.

Os pareceres do CFE foram examinamos com o intuito de conhecermos não apenas as determinações ali impostas, mas também os comentários dos conselheiros com relação às HB, às propostas das disciplinas consideradas essenciais, à distribuição destas e de suas cargas horárias. No decorrer da análise, outras discussões emergiram, como a limitação orçamentária para a implantação da reforma e a deficiência quanto à formação de professores qualificados para lecionar no então chamado ensino profissionalizante.

Do ponto de vista historiográfico, partimos da concepção da história como produção social da existência: “Desde que se apresente este processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas” (Marx & Engels, 1979Marx, K., & Engels, F. (1979). A ideologia alemã. Livraria Editora Ciências Humanas., p. 38).

No que tange à documentação utilizada para a pesquisa, esta é vista com base em Le Goff (2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Editora Unicamp., pp. 547-548), como documento/monumento. Para esse historiador francês:

O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade.

A partir de Certeau (2008Certeau, M. (2008). A escrita da história (2a ed.). Forense Universitária.), consideramos que toda pesquisa histórica é articulada a partir de um lugar de produção socioeconômico, político e cultural do pesquisador. Mas é preciso destacar que as fontes utilizadas pelos historiadores também foram produzidas, em sua época, a partir de um lugar que precisa ser compreendido e decifrado por eles. Assim, como observa Le Goff (2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Editora Unicamp.), cabe ao historiador não ser ingênuo, desconfiar das fontes, conhecer sua intencionalidade.

É preciso levar em conta o lugar de produção da fonte histórica. Barros (2012Barros, J. A. (2012). A fonte histórica e seu lugar de produção. Caderno de Pesquisa do CDHIS, 25(2), 407-429. https://seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/15209
https://seer.ufu.br/index.php/cdhis/arti...
, p. 419) salienta que “[...] todo texto, seja qual ele for, tem um emissor (aquele que produz o texto), um objeto (a mensagem que é transmitida) e um receptor (aquele a quem a mensagem se destina)”. De início, esse historiador destaca que o emissor “[...] nunca é somente o seu autor nominal, mas também a sociedade na qual ele se inscreve, a sua posição social, os constrangimentos aos quais ele está submetido, e tantas outras coisas que fazem do autor nominal apenas a ponta de um imenso iceberg” (p. 149).

Portanto, tivemos a preocupação de buscar o que não estava dito explicitamente, pois, por se tratar de documentos oficiais, elaborados por conselheiros do CFE, certamente a posição social destes e o apoio ao governo implicaram a escrita do texto. Vale ressaltar que Ferreira (1990Ferreira, M. G. (1990). Conselho Federal de Educação: o coração da reforma [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas., p. 224), em sua tese, deixa clara a influência do Executivo nesse Conselho, ao longo da Ditadura, ao nomear e destituir conselheiros. Para a pesquisadora, “[...] o CFE nem sequer ousava a propor alterações no processo de escolha dos seus membros, ou tampouco, na rotina de trabalho que lhes eram atribuídos”.

Diante disso, algumas posições implícitas, claramente pessoais por parte dos conselheiros, levaram-nos a compreender essas habilitações como um artifício utilizado pelo MEC para colocar em prática uma lei cuja implantação enfrentava uma série de dificuldades, tais como as resistências do setor privado de educação em promover a profissionalização em detrimento da preparação para o ensino superior; e do setor público no que tange às limitações financeiras e de recursos humanos capacitados para atender à nova demanda.

O artigo está dividido em duas seções. Após esta introdução, discorremos acerca da Lei nº 5.692/1971, considerando o cenário histórico em que foi criada e a reforma pela qual passou mediante o Parecer nº 76/75. As HB, criadas por este documento do CFE, são tratadas na segunda seção a partir de três categorias de análise: distinção entre as HB e as HP; organização curricular e prática docente; atendimento ao mercado de trabalho.

Lei nº 5.692/1971: cenários de criação e implantação

Ao tomarem o poder, os militares, em defesa dos interesses das elites que apoiaram o golpe, passaram a pôr em prática a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), gestada pela Escola Superior de Guerra, instalada no Brasil, em 1949. Influenciado pela geopolítica estabelecida durante a Guerra Fria, o Estado, controlado por presidentes militares, fortaleceu o discurso contra os ‘inimigos internos’ e usou o mecanismo da violência e da ‘guerra psicológica’ (Germano, 2003; Gianazzi, 2013; Saviani, 2010Saviani, D. (2010). História das ideias pedagógicas no Brasil (3a ed.). Autores Associados.; Sanfelice, 2020Sanfelice, J. L. (2020). O Estado e a política educacional do regime militar. In D. Saviani (Org.), Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira (pp. 317-342). Edufes.).

São conhecidas, mediante farta documentação levantada e examinada por pesquisadores, as ações repressivas desenvolvidas pelos governos militares para limitar e punir atos de políticos ‘rebeldes’ e de demais opositores ao regime. A imposição dos Atos Institucionais (AI), já no início da presidência de Castello Branco (1964-1967), e no decorrer do período, merecendo destaque o AI-5, em 1968, no governo de Costa e Silva (1967-1969), evidencia como o sistema, aos poucos, fechou-se na repressão e no desmonte das instituições democráticas até chegar ao seu ápice no governo do presidente Garrastazu Médici (1969-1974). Apesar disso, louvava-se a ‘Revolução Democrática’ de 31 de março de 1964, data festiva e feriado nacional (Ferreira & Zimmermann, 2023Ferreira, C., & Zimmermann, A. C. (2023). O golpe vira uma festa: o 31 de março de 1964 nos discursos e nas práticas cívico-patrióticas (1970-1971). Revista Brasileira de História da Educação, 23, 1-26. http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e258
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).

A política econômica austera do presidente Castello Branco visou controlar a inflação e o endividamento público. Para tanto, foi criado o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), que implantou uma política de controle dos reajustes salariais, agravando o poder de compra dos trabalhadores. Para limitar o movimento grevista, o governo agiu com a força coercitiva que possuía, a ponto de tornar essas ações praticamente impossíveis. Portanto, o PAEG atendeu aos interesses do grande empresariado ao gerar um achatamento salarial, facilitar as demissões e reduzir a inflação.

Pode-se afirmar que o PAEG, associado à política desenvolvimentista, esta parte da DSN (Sanfelice, 2020Sanfelice, J. L. (2020). O Estado e a política educacional do regime militar. In D. Saviani (Org.), Estado e políticas educacionais na história da educação brasileira (pp. 317-342). Edufes.; Gianazzi, 2013), com o objetivo de estimular o consumo e o investimento público, gerou as condições para que ocorresse o chamado ‘Milagre econômico’, no período de 1968 a 1973, conforme comentam Schwarcz e Starling (2018Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2018). Brasil: uma biografia (2a ed.). Companhia das Letras., pp. 452-453):

O milagre tinha explicação terrena. Misturava, com a repressão aos opositores, a censura aos jornais e demais meios de comunicação, de modo a impedir a veiculação de críticas à política econômica, e acrescentava os ingredientes da pauta dessa política: subsídio governamental e diversificação das exportações, desnacionalização da economia com a entrada crescente de empresas estrangeiras no mercado, controle do reajuste de preços e fixação centralizada dos reajustes de salários.

Germano (2005Germano, J. W. (2005). Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) (4a ed.). Cortez., p. 72) destaca o intervencionismo estatal na economia mediante “[...] gestão da força de trabalho, aumento da sua capacidade extrativa ou de exação tributária, dispêndio de vultosos investimentos em infraestrutura e na indústria pesada, concessão de créditos, subsídios fiscais e favores a grupos empresariais [...]”. O autor frisa que esses favores resultaram em negociatas, corrupção e endividamentos externo e interno.

Quanto à política educacional, conforme Germano (2005Germano, J. W. (2005). Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) (4a ed.). Cortez.), a Ditadura pretendeu suprir o quadro de carência presente no Brasil à época, quando grande parte da sociedade estava excluída do acesso à cultura letrada e que contradizia com a imagem de um país que queria ser uma potência. Assim, dá-se início a um processo de ‘democratização’ do ensino que nada tinha nada a ver com a gestão participativa ou com a livre circulação de ideias, mas com a ampliação do acesso às escolas, ou seja, ações com metas puramente quantitativas.

Portanto, as reformas do ensino superior e do médio e primário, respectivamente, por meio das Leis nº 5.540/1968 e nº 5.692/1971, não podem ser compreendidas senão dentro do cenário de deficiências educacionais e de uma visão desenvolvimentista. Germano (2005Germano, J. W. (2005). Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) (4a ed.). Cortez.) salienta que a política educacional do regime militar privilegiou demasiadamente o capital e foi excludente com relação às classes subalternas. Para ele, a Reforma Universitária foi um exemplo de como, na Ditadura, os benefícios eram dados para o topo da pirâmide social. “Essa hipótese se confirma à medida que analisamos a reforma nos outros níveis de ensino. A realidade, portanto, acaba por desmentir o discurso oficial” (pp. 168-169).

No que diz respeito à reforma no ensino médio, esta foi uma das recomendações do grupo de trabalho que realizou a Reforma Universitária. Assim, mediante o Decreto nº 66.600, de 20 de maio de 1970, o então Ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho, instituiu um Grupo de Trabalho para, no prazo de 60 dias, apresentar estudos e sugestões para a atualização e expansão dos ensinos primário e médio. Em 14 de agosto de 1970, um anteprojeto de lei e um relatório foi entregue ao MEC, os quais, três dias depois, foram encaminhados ao CFE para exame (Brasil, 1970). Após análise desse Conselho, o anteprojeto tornou-se a Lei nº 5.692/1971.

A nova lei fundiu os ramos do 2º ciclo do ensino médio, os quais “[...] passaram a constituir um ramo único, com todas as escolas oferecendo cursos profissionais - então chamados profissionalizantes - destinados a formar técnicos e auxiliares técnicos para todas as atividades econômicas” (Cunha, 2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., p. 181).

Importante salientar que a ênfase no trabalho não se deu apenas no ensino de 2º grau, mas também no antigo primário que passou a fazer parte do chamado 1º Grau, com 8 anos de duração. Neste, a lei deixa clara a necessidade da formação profissionalizante por meio da sondagem de aptidões e da iniciação para o trabalho (Lei nº 5.692, 1971).

Além de estabelecer a profissionalização compulsória no 2º grau, a Lei nº 5.692/1971 instituiu a terminalidade desse grau de ensino. Consoante Cunha (2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., p. 186), havia a justificativa de que os egressos do 2º grau teriam “[...] um benefício imediato que não colheriam se não o tivessem concluído. No caso, seria a possibilidade de conseguirem desempenhar ocupações mais vantajosas que outras, em ‘consequência’ do curso”.

Argumentava-se ainda que a terminalidade combateria a frustração dos concluintes do 2º ciclo do antigo ensino médio, ramo secundário, que não conseguiam alcançar o ensino superior, como explicita o relatório do GT instituído pelo Decreto nº 66.600/1970:

[…] Só tardiamente, quando não se inclui na exceção dos egressos de cursos técnicos, o jovem descobre que a escola não lhe deu sequer a tão apregoada cultura geral, e apenas o adestrou para um vestibular em que o êxito é função do número de vagas oferecidas à disputa. Houvesse êle seguido concomitantemente algo de ‘prático’, e não se deteria nos umbrais da Universidade em busca de uma matrícula como saída de desespêro. No mínimo, quando não pretendesse engajar-se de uma vez no trabalho, encontraria neste o apoio financeiro e a estabilidade psicológica para novas tentativas. O caminho a trilhar não é outro senão o de converter a exceção em regra, fazendo que o 2º grau sempre se conclua por uma formação específica. Não é o caso, todavia, de prever três ou quatro modalidades imutáveis de ‘ramos’ ou ‘cursos’ separados, e sim de construir o ensino sôbre uma base de estudos gerais e comuns que se abra num leque de tantas habilitações, dentre as suscetíveis de desenvolvimento a êsse nível, quantas sejam as reclamadas pelo mercado de trabalho (art. 5º, § 2º, a, c) (Brasil, 1970, p. 23).

Fica evidente que o ensino profissionalizante compulsório aparecia como uma ‘solução’ para a falta de vagas nas universidades. Para os jovens pobres, o diploma de 2º grau abriria a oportunidade de um emprego; enquanto isso, as universidades ficariam disponíveis para os filhos da classe média e das elites, que poderiam ingressar nessas instituições ou mesmo custear as suas despesas em uma faculdade privada.

De acordo com Germano (2005Germano, J. W. (2005). Estado militar e educação no Brasil (1964-1985) (4a ed.). Cortez.), a Lei nº 5.692/1971 materializou os fundamentos da racionalização do trabalho, visto que, na relação educação e trabalho, estava presente uma visão utilitarista da educação escolar, sob inspiração da teoria do capital humano, estabelecendo um vínculo direto entre educação e produção. Segundo esse autor, a terminalidade, com vistas a reduzir a demanda para o ensino superior, demonstrava a função discriminatória da lei, pois, apesar do propalado discurso igualitarista e da profissionalização para todos, o Estado estava comprometido com o financiamento de setores que considerava realmente prioritários.

Sancionada a Lei nº 5.692/1971, o CFE, cinco meses depois, apresentou o Parecer nº 45, de 12 de janeiro de 1972, relatado pelo Pe. José Vieira de Vasconcelos, com o mínimo a ser exigido em cada habilitação. Neste documento, foram elencadas 130 HP cujas cargas horárias apresentam distinções conforme os setores econômicos: 2.900 horas para o primário e o secundário, sendo pelo menos 1.200 destas de conteúdos profissionalizantes, complementadas pelo exercício profissional orientado pela escola; para o setor terciário, foi estabelecido um mínimo de 2.200 horas, com pelo menos 900 de conteúdos profissionalizantes (não se menciona a orientação da escola nesse caso) (Parecer nº 45, 1972).

O Parecer nº 45/72 inicia com uma crítica à LDB vigente à época, pois, segundo o relator, esta tinha sido omissa quanto à habilitação para o trabalho. Ao contrário disso, segundo o referido Parecer, a Lei nº 5.692/1971 explicita suas três finalidades: “a) proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização; b) qualificação para o trabalho; c) preparo para o exercício consciente da cidadania” (Parecer nº 45, 1972, p. 108).

Apesar de um longo discurso quanto à importância de uma formação humanística, mostrando-a não como aversa à tecnologia e à religião, o relator evidencia a vinculação entre a lei e o mercado presente no seu artigo 6º: “As habilitações profissionais poderão ser realizadas em cooperação com as empresas”. É realçada a importância da sondagem de aptidões, já no 1º grau, mas, adverte o parecerista: “[...] a iniciação ao trabalho e a habilitação profissional, sem menosprezar as aptidões do educando […] deve[m] levar em conta ‘as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados’ (art. 5º § 2º b)” (Parecer nº 45, 1972, p. 111).

Outro aspecto que revela a ênfase na formação de trabalhadores para o mercado é o fato de a lei permitir que as disciplinas técnicas pudessem ser cursadas parceladamente, “[...] de forma que o aluno, já na força de trabalho com as primeiras habilitações (parciais) obtidas na escola, possa facilmente, com esse regime, ir galgando outros postos na empresa” (Parecer nº 45, 1972, p. 119).

Anexa ao Parecer nº 45/72, encontra-se a Resolução nº 2/72, que reforça a possibilidade de as escolas escolherem a melhor forma de distribuir a carga horária e a oferta das disciplinas conforme a Lei nº 5.692/1971. Merece destaque o artigo 7º dessa Resolução ao frisar que as escolas deveriam “[...] oferecer variedade de habilitações e modalidades diferentes de estudos integrados por uma base comum”. Não havendo as condições para o cumprimento dessa determinação, o documento recomendava “[...] a entrosagem e a intercomplementaridade dos estabelecimentos entre si ou com outras instituições, notadamente as organizações ou programas como as Escolas Técnicas Federais, o SENAC, o DNMO, o PIPMO e outras” (Parecer nº 45, 1972, p. 126).

Conforme as análises de Cunha (2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., 2014), a implantação do ensino profissionalizante em todas as escolas de 2º grau era uma meta muito difícil de ser atingida. Para ele:

De fato, a elaboração da reforma do ensino de 2º grau não levou em conta a realidade objetiva de carência de recursos humanos e materiais das escolas, especialmente a das escolas públicas. A não ser algumas concessões a essa realidade (implantação gradativa e alguma permissibilidade da titulação dos professores), não se levou em consideração o fato de que grande número de escolas tinha prédios adaptados, sem dispor sequer de instalações adequadas às disciplinas de educação geral, à recreação dos alunos, bibliotecas e laboratórios passíveis de utilização prática. Mesmo nos municípios das capitais, era comum encontrar-se professores do ensino de 2º grau sem titulação e/ou formação específicas (Cunha, 2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., p. 195).

Diante de tal realidade, não surpreende o fato de, em 1975, ser feita uma ‘reforma da reforma’ a partir da implantação das HB no ensino de 2º grau. As novas habilitações foram criadas mediante o Parecer nº 76/75, da conselheira Maria Terezinha Tourinho Saraiva.

Habilitações Básicas: reformar para conservar

As críticas de várias ordens voltadas à implementação da Lei nº 5.692/1971 tornaram a situação insustentável quando passaram a vir de pessoas prestigiadas pelo MEC, como Roberto Hermeto Corrêa da Costa, que, em 1973, quando era assessor da Comissão Especial para Execução do Plano de Melhoramentos e Expansão do Ensino Técnico e Industrial (Cepeti), em um evento em Fortaleza-CE, destacou alguns problemas enfrentados para a execução da lei (Cunha, 2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., 2014).

Em 1974, Roberto Hermeto organizou o Centro Brasileiro de Construções e Equipamentos Escolares (Cebrace), órgão do MEC. Também nesse ano, elaborou um documento no qual propôs alterações na Lei de modo que esta comportasse habilitações “[...] correspondentes a grupos ocupacionais e cursos de aprofundamento de estudos gerais nas áreas biomédicas, de ciências sociais, ciências exatas e tecnológicas, ciências humanas e filosofia, letras e outras” (Cunha, 2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., p. 199).

As críticas à Lei nº 5.692/1971, a crise econômica que se anunciava e a distensão do regime, proposta pelo presidente Ernesto Geisel (1974-1979), levou o então ministro da educação, Jarbas Passarinho, a enviar ao CFE o aviso ministerial nº 924, em 20 de setembro de 1974. Três meses depois, o conselheiro Newton Sucupira apresentou a Indicação 52/74 ao plenário do CFE e, em 23 de janeiro de 1975, foi aprovado o Parecer nº 76/75, relatado pela professora Maria Terezinha Tourinho Saraiva.

O Parecer nº 76/75 endossa o Parecer nº 45/72 quanto à importância da habilitação profissional no ensino de 2º grau, pois, segundo a relatora, não só qualificava para o trabalho, que deixava de ser apenas um ramo para se tornar uma meta, mas também porque os elaboradores da Lei nº 5.692/1971 visavam “[...] beneficiar a economia nacional, dotando-a de um fluxo contínuo de profissionais qualificados, a fim de corrigir as distorções crônicas que há muito afetam o mercado de trabalho [...]” (Parecer nº 76, 1975, p. 24).

Por considerar a atualidade da Lei com relação às transformações da sociedade à época, a professora Terezinha Saraiva salienta que, em todos os países desenvolvidos ou em desenvolvimento, “[...] o ensino secundário ou de 2º grau visa à formação para o trabalho, no seu sentido de terminalidade e ao preparo para o ensino superior, no sentido de continuidade” (Parecer nº 76, 1975, p. 25). Justifica esse argumento com as orientações da 18ª Sessão da Conferência Geral da Unesco.

A conselheira elenca o que considera como equívocos quanto à implantação da lei. Argumenta que esta “[...] não diz, em nenhum momento, que a ‘escola’ de 2º grau deva ser profissionalizante e sim, que o ‘ensino’ de 2º grau é que deve ser” (Parecer nº 76, 1975, p. 27). Com isso, reforça o caráter flexível da legislação ao permitir que as escolas congreguem recursos oferecidos

Por estabelecimentos do sistema estadual; por estabelecimentos de ensino e empresas; por estabelecimentos do ensino estadual e escolas técnicas federais; por escolas do sistema estadual e centros interescolares; pelos complexos escolares; por escolas e entidades que prestam serviços técnicos à comunidade mantidas pelos setores públicos e privados (Parecer nº 76, 1975, p. 27).

Para a conselheira, “[...] não se pretende […] que todas as nossas escolas se transformem em escolas técnicas, o que seria desnecessário e economicamente inviável”. Em seguida, deixa claro o pragmatismo da lei: “[...] o que se pretende é formar o jovem consciente do domínio que deve ter das bases científicas que orientam uma profissão e levá-lo à aplicação tecnológica dos conhecimentos meramente abstratos transmitidos até então, pela escola” (Parecer nº 76, 1975, p. 28).

Em outras páginas do Parecer, a relatora insiste na relação entre o ensino profissionalizante e o mercado. Para ela, essa formação se completaria na empresa, pois “[...] na escola de 2º grau, ele [o jovem] teria a informação de grandes problemas e estaria preparado para adquirir um leque de incumbências dentro da empresa, segundo as necessidades desta” (Parecer nº 76, 1975, p. 29).

Dando sequência ao seu raciocínio, a conselheira realça a importância da formação de centros interescolares, sob o regime de cooperação escola-empresa, que poderiam planificar atividades de lazer da comunidade. Para ela, esse tipo de órgão seria um “[...] fórum por excelência para a melhor integração da escola e da empresa e do encaminhamento de condições para a melhoria do relacionamento entre ambas através do contato formal e informal dos responsáveis pelas empresas e pelas escolas” (Parecer nº 76, 1975, p. 29).

Ao longo do Parecer, Terezinha Saraiva continua a combater as críticas mais veementes feitas à Lei nº 5.692/1975 e apresenta uma série de ‘soluções’ para os problemas que, para ela, não passavam de equívocos. Assim, uma forma de resolver parte dos impasses seria a criação de HB, de acordo com uma família ocupacional ou a habilitação parcial para uma ocupação definida no mercado de trabalho. Consoante a parecerista, essas habilitações “[...] exigem menor equipamento, atingem o objetivo de qualificar para o trabalho, preparam integralmente o educando para conjugação do ensino geral e especial sem fronteiras entre os dois […]” (Parecer nº 76, 1975, p. 38). Mas adverte que esta solução geraria um novo conceito de habilitação:

[...] que até agora tem sido entendido como ‘preparo para o exercício de uma ocupação’, e que passaria a ser considerada como o ‘preparo básico para iniciação a uma área específica de atividade, em ocupação que, em alguns casos, só se definiria após o emprego’ [...] Nada portanto se alteraria e estaríamos tornando mais operacional o princípio da profissionalização a nível de 2º grau (Parecer nº 76, 1975, p. 38).

Com isso, o Parecer nº 76/75 esclarece que os concluintes do 2º grau teriam as seguintes opções:

  • a) prosseguir seus estudos;

  • b) ingressar no trabalho por ter adquirido uma habilitação básica ou parcial, completando a parte operacional de sua formação, no emprego;

  • c) ingressar no trabalho por ter adquirido uma habilitação técnica de nível médio;

  • d) concluir sua formação técnica em escolas que ministrem cursos específicos, caso deseje obter um diploma correspondente a uma habilitação completa de 2º grau (Parecer nº 76, 1975, p. 40).

A partir disso, passaram a ser constituídos grupos de estudos que propuseram, meses depois, 10 projetos de HB analisados pelo CFE. Coube ao Cebrace planejar as instalações físicas e os equipamentos conforme as especificações dos ensinos de 1º e de 2º graus; padronizar essas especificações, considerando fatores sociais, econômicos, geofísicos e climáticos; intercambiar, em nível internacional, experiências, conhecimentos e inovações sob os aspectos pedagógico, arquitetônico, tecnológico e administrativo. Foram estes os 10 cursos aprovados:

  • Habilitação Básica em Agropecuária, aprovada pelo Parecer nº 3.474, de 1 de setembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Centro Brasileiro de Construções e Equipamentos Escolares [Cebrace], 1975a).

  • Habilitação Básica em Crédito e Finanças, aprovada pelo Parecer nº 3.496, de 4 de setembro de 1975, da conselheira Terezinha Tourinho Saraiva (Cebrace, 1975b).

  • Habilitação Básica em Saúde, aprovada pelo Parecer nº 3.962, de 6 de outubro de 1975, da conselheira Edília Coelho Garcia (Cebrace, 1975c).

  • Habilitação Básica em Comércio, aprovada pelo Parecer nº 4.490, de 5 de novembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Cebrace, 1975d).

  • Habilitação Básica em Eletricidade, aprovada pelo Parecer nº 4.493, de 5 de novembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Cebrace, 1975e).

  • Habilitação Básica em Administração, aprovada pelo Parecer nº 4.491, de 5 de novembro de 1975, da conselheira Edília Coelho Garcia (Cebrace, 1975f).

  • Habilitação Básica em Mecânica, aprovada pelo Parecer nº 4.800, de 2 de dezembro de 1975, da conselheira Terezinha Tourinho Saraiva (Cebrace, 1975g).

  • Habilitação Básica em Construção Civil, aprovada pelo Parecer nº 4.802, de 2 de dezembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Cebrace, 1975h).

  • Habilitação Básica em Química, aprovada pelo Parecer n° 4.811, de 3 de dezembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Cebrace, 1975i).

  • Habilitação Básica em Eletrônica, aprovada pelo Parecer nº 4.841, de 3 de dezembro de 1975, do conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza (Cebrace, 1975j).

A análise dos dez pareceres nos levou a constatar algumas semelhanças que, para efeito de discussão, agrupamos em três categorias: distinção entre as HB e as Profissionais; organização curricular e prática docente; atendimento ao mercado de trabalho.

Distinção entre as Habilitações Básicas e as Habilitações Profissionais

Os relatores dos processos submetidos ao CFE, de forma enfática ou não, destacaram a diferença entre os dois tipos de habilitação agora presentes nas escolas de 2º grau. O conselheiro Paulo Nathanael Pereira de Souza, autor da maioria dos pareceres, no primeiro destes, o da HB em Agropecuária, esmera-se nos pormenores ao resgatar o Parecer nº 45/72 e endossar a relevância da Lei nº 5.692/1971 para a constituição de uma escola ‘única’ e preocupada com a profissionalização. Para ele:

A educação de um modo geral e o ensino de 2° grau, em especial, já não se poderiam contentar, face a heterogeneidade de origem e aspirações que marcam a sua nova clientela, com o funcionamento de uma escola voltada apenas para os jogos florais do academicismo, com algo de ciência para completar o seu currículo [...] (Cebrace, 1975a, p. 9).

Por se posicionar contra o que considera uma educação puramente intelectual e que não prepara o estudante para agir produtivamente na sociedade, o professor Paulo Nathanael endossa a importância do acréscimo das HB como opções para o ensino profissionalizante. O relator realça que o Parecer nº 76/75 não foi criado para revogar ou alterar o Parecer nº 45/72, mas sim para “[...] abrir um caminho alternativo [...] no propósito de implantar a qualificação para o trabalho na escola de 2º grau” (Cebrace, 1975a, p. 10).

O fato de essas habilitações serem adjetivadas de ‘básicas’ leva o conselheiro em tela a destacar que:

Deve-se evitar que, nas habilitações básicas, o maior tempo do aluno seja tomado pela presença marcante de disciplinas tipicamente técnicas. O que vai certamente predominar no plano curricular dessas habilitações, serão as disciplinas instrumentais ligadas à área ocupacional para as quais se voltam, com grande carga de prática de laboratório, e oficina de demonstração, e pouca, se não mesmo nenhuma, preocupação com a especialização desta ou daquela linha de habilitação profissional (Cebrace, 1975a, p. 10-11).

Adiante, o parecerista reforça o seu argumento:

[…] uma habilitação básica, em termos profissionalizantes, não pode estreitar-se na intenção de preparar alguém para o desempenho pleno e imediato de uma ocupação qualquer, constante dos catálogos da OIT ou reclamada pelo mercado de trabalho local ou nacional. E não podendo estreitar-se, deve, antes, cultivar uma abrangência tal, que descubra, entre as ocupações afins, ligações de família e elementos comuns [...] (Cebrace, 1975a, p. 11).

Tais considerações estão também presentes em outros pareceres dados por Paulo Nathanael, embora nestes o professor tenha sido mais sucinto, talvez porque o parecer acima mencionado tenha sido o primeiro dos 10 que criaram as HB e, por isso, o relator sentiu-se na obrigação de apresentar o máximo de informações e argumentos. Os demais conselheiros são menos detalhistas, mas não deixam de realçar o adjetivo ‘básico’ desses novos cursos.

A professora Edília Coelho Garcia, no documento em que aprovou a HB em Administração, afirma que o Parecer n° 76/75 visou “[...] destacar a existência de uma etapa preliminar, de natureza mais genérica que especializada”. Assim, a nova habilitação teria a finalidade de reduzir as “[...] dificuldades de transição das escolas secundárias tradicionais, acadêmicas, para escolas de 2° grau mais realista, adaptadas às necessidades de um País que encontrou seu caminho para o desenvolvimento e onde nem todos nascem com talento para estudos universitários” (Cebrace, 1975f, p. 8).

Importa salientar que essa visão restritiva do acesso ao ensino superior, explicitada pela relatora, é uma reiteração do que vinha sendo estabelecida na educação brasileira há décadas, a exemplo das Leis Orgânicas dos anos 1940. Nestas, segundo Cunha (2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., p. 40), “[...] a articulação do ensino industrial com os demais graus e ramos se dava de modo a facilitar as entradas e a dificultar as saídas”.

No parecer em que aprovou a HB em Saúde, a mesma conselheira reforçou a importância dessa medida para a aplicação da Lei nº 5.692/1971. Para ela, é consensual “[...] que o ensino tradicional estritamente acadêmico e estéril não mais satisfaz, nem pode atender às necessidades de um País que se desenvolve e se industrializa e onde os campos de trabalho, dia a dia, se diversificam e se ampliam” (Cebrace, 1975c, pp. 9-10). Por assim compreender, a relatora afirma que a escola deve valorizar o trabalho como “[...] um fator indispensável para a verdadeira integração social do homem” (Cebrace, 1975c, p.10).

A professora Edília Garcia reforça o caráter generalista das HB: “[...] perde-se em formação especial, mas ganha-se em formação geral. Se as escolas efetivamente disso se conscientizarem, lucrará o alunado. Todavia, aquelas que souberem preservar uma habilitação mais completa, a nível técnico, é de desejar-se e louvar-se que o façam” (Cebrace, 1975c, p.10).

A conselheira Terezinha Tourinho Saraiva, ao aprovar a criação da HB em Crédito e Finanças, observa que esta “[...] deve ser entendida como o preparo para o ingresso no trabalho, em determinado ramo de atividade, em ocupação que, em alguns casos, só se definirá no próprio emprego, após treinamento necessário e que habilita para famílias ocupacionais” (Cebrace, 1975b, p. 9).

Implicitamente, é perceptível o menor relevo dado às HB, quanto à profissionalização, quando comparadas às HP criadas pelo Parecer nº 46/72. Embora nenhum conselheiro do CFE tenha entrado nessa seara, podemos perceber as ressalvas feitas pelo professor Paulo Nathanael, ao advertir que se evitem as disciplinas ‘tipicamente técnicas’, sejam enfatizadas as instrumentais e não se preocupem com a especialização (Cebrace, 1975a). Esse entendimento é aclarado quando vemos as justificativas dos conselheiros quanto às disciplinas e as cargas horárias dos cursos.

Ademais, caso o egresso de uma HB desejasse ter um diploma de técnico, ele precisaria aprofundar os seus conhecimentos com mais um ano de aulas em uma instituição de ensino técnico, como as Escolas Técnicas. No Portal Domínio Público, encontramos diversos documentos preparatórios para essa formação complementar.

Organização curricular e atividades docentes

Consoante a conselheira Edília Garcia, as HB eram uma “[...] solução transitória e progressiva para o que se vislumbra como perspectiva aberta pela Lei nº 5.692/71 para a profissionalização a nível de 2° grau. É importante destacar que não se profissionaliza ninguém com uma formação de 600 horas/aula” (Cebrace, 1975f, p. 8).

Portanto, mais uma vez, ficam claros os limites desse tipo de habilitação, reforçada adiante quando a relatora trata acerca das disciplinas instrumentais da HB em Administração:

Não se aceitou a sugestão do grupo de trabalho quanto à indicação, para este tipo de curso, de Estatística, Psicologia das Relações Humanas, Matemática Financeira e outras, como ‘disciplinas instrumentais’. Na verdade, a desenvolver tais disciplinas com a conveniente carga horária, ter-se-ia não uma [...] habilitação básica [...], mas de fato, a formação de um técnico (Cebrace, 1975f, p. 9).

Segundo a conselheira, sendo de 2.200 horas a carga horária mínima para os três anos de um curso de HB, pode-se desenvolver o conhecimento específico desta em 600 horas aula. No caso da HB em Administração, propõe a seguinte distribuição: 1.020 horas de Educação Geral; 1.050 de Formação Especial (incluídas as propriamente profissionalizantes e as chamadas ‘disciplinas instrumentais’); c) 180 h de Educação Física (Cebrace, 1975f).

As cargas horárias nas demais HB são semelhantes. Há uma ênfase dos conselheiros quanto à disciplina ‘Programa de Orientação Ocupacional’, obrigatória em todos os cursos e que, para o conselheiro Paulo Nathanael, “[...] tem por objetivo iniciar o educando no conhecimento amplo das oportunidades de trabalho ligadas à habilitação estudada” (Cebrace, 1975a, p. 14). A ausência dessa disciplina na proposta da HB em Comércio, apresentada ao CFE, levou-o a advertir que fosse sanada “[...] o que nos parece uma falha” (Cebrace, 1975d, p. 10).

As 10 HB aprovadas apresentaram 2.250 horas distribuídas em três anos do 2º grau. A matriz curricular estava dividida em três partes: as disciplinas da educação geral; da formação especial; e as atividades comuns, conforme podemos visualizar na HB em Eletricidade que aqui utilizamos como exemplo (Quadro 1).

Quadro 1
Distribuição das disciplinas e cargas horárias na Habilitação Básica em Eletricidade

Importa salientar que as disciplinas Organização Social e Política do Brasil e Educação Moral e Cívica, respectivamente criadas em 1962 e 1969, ambas obrigatórias no ensino de 2º grau, segundo a Lei nº 5.692/1971, tinham o objetivo de veicular as ideias que sustentavam a Ditadura, tais como: nacionalismo, civismo, manutenção da ordem como condição sine qua non para o desenvolvimento. Quanto às disciplinas das atividades comuns, o Ensino Religioso, por ser facultativo, não apresentava carga horária que deveria ser considerada na duração do curso, o mesmo ocorrendo com Programa de Saúde; já a disciplina Educação Física, segundo a lei, deveria seguir o disposto no Decreto-Lei nº 369, de 12 de setembro de 1969 (Lei nº 5.692, 1971).

Nos pareceres, comumente os conselheiros davam sugestões de inclusão, substituição ou exclusão de disciplinas, sobretudo quando se tratava das ‘disciplinas instrumentais’ e das ‘disciplinas especiais’, estas últimas voltadas diretamente à área específica do curso. Tomemos como exemplo desse direcionamento na organização curricular, o parecer da HB em Eletricidade, redigido pelo professor Paulo Nathanael:

São conhecimentos tecnológicos e técnicos agrupáveis em três disciplinas principais: Eletricidade, Instalações Elétricas e Desenho Técnico. Dada a afinidade dos conteúdos que as caracterizam não será difícil encontrar-se um professor capaz de sozinho ministrá-las todas integradamente. A carga horária para elas reservada é de 600 horas, o que corresponde a 27% do total de 2.200 horas, que é a duração completa do curso, em três anos de seriação. Quanto às demais 450 horas necessárias à predominância da parte de formação especial sobre o núcleo comum, serão preenchidas por disciplinas instrumentais e complementares, assim distribuídas: Desenho Básico, Matemática e Física. Consta desse elenco, Língua Estrangeira, que também comparece ao núcleo comum. Como nos parece difícil a defesa dessa solução extremamente artificial no caso da Eletricidade, propomos, como alternativa, a inclusão do estudo da Química Aplicada à Eletricidade, com duas aulas semanais, e da disciplina intitulada Programa de Orientação Ocupacional, com mais duas aulas (Cebrace, 1975e, p. 9-10).

Alguns pareceristas são muito discretos nos seus textos. Outros, como o professor Paulo Nathanael, deixam pistas importantes sobre as limitações dos recursos humanos e técnicos. Uma análise do comentário do conselheiro quanto à afinidade entre as disciplinas especiais da HB em Eletricidade deixa evidente a carência de docentes com essa formação para lecionar nas instituições ofertantes: segundo o conselheiro, um único professor bastaria para ministrar as três disciplinas.

Em face desse problema, no parecer da HB em Agropecuária, Paulo Nathanael aconselha alterações na legislação de modo a permitir formar minimamente docentes para o seu exercício profissional:

No que diz respeito à formação de professores, impõe-se a urgente revisão da Portaria BSB n° 432/711 1 Essa Portaria trata do currículo dos cursos de grau superior para a formação de professores de disciplinas especializadas do 2º grau. Para isso, foram criados 2 esquemas: a) Esquema I, para portadores de diplomas de grau superior relacionados à habilitação pretendida, sujeitos à complementação pedagógica, com a duração de 600 horas; e b) Esquema II, para portadores de diplomas de técnico de nível médio, nas referidas áreas com a duração de 1.080 (mil e oitenta), 1.280 ou 1.480 horas (Portaria nº 432, 1971). , a fim de aos Esquemas I e II, aliar-se uma licenciatura, conforme previu a Indicação nº 22/73, que habilite professores polivalentes, que se deverão encarregar do ensino da parte especial do currículo das habilitações básicas. [...] Com a formação desse professor polivalente, os custos de manutenção do ensino de 2º grau tenderão a diminuir, eis que onde atuavam muitos, vai atuar apenas um (Cebrace, 1975a, p. 12).

No parecer em que foi criada a HB em Comércio, o mesmo conselheiro sugere a junção de algumas disciplinas em apenas uma, pois isso ensejaria a “[...] possibilidade de, para ela, haver um só professor capaz de acompanhar as turmas da 1ª à 3ª série, o que trará evidentes benefícios para a formação dos alunos, além de facilidades na programação didática e economia nos custos” (Cebrace, 1975d, p. 10).

Paulo Nathanael evidencia a sua inquietação não só com a carência de professores qualificados, mas ainda com relação aos custos dos equipamentos para a oferta e manutenção dos cursos:

A disciplina ‘Técnicas de Redação e Mecanografia’ ensejará que, num só ambiente, se distribua parte da turma para trabalhos de redação de estilo empresarial e parte para exercícios mecanográficos, feitos com o uso de máquinas datilográficas, calculadoras, duplicadoras etc, observada a natural limitação na disponibilidade desses equipamentos (Cebrace, 1975d, p. 10).

No Parecer da HB em Construção Civil, o professor Paulo Nathanael afirma que: “[...] para a disciplina ‘Topografia’, sendo o instrumental de campo de custo elevado, deve-se conduzir o ensino de maneira a dar ao educando as noções básicas teóricas correspondentes ao trabalho de escritório” (Cebrace, 1975h, p. 9). Na página seguinte do documento, o parecerista observa: “[...] não se deve nunca perder de vista que se trata de uma habilitação básica, que insistirá no ensinamento de princípios, o que torna o equipamento tanto quanto possível reduzido em número” (Cebrace, 1975h, p. 11).

No texto em que aprovou a HB em Eletrônica, o conselheiro em tela novamente salientou a solução para a falta de docentes qualificados: “A carga horária mínima semanal de 20 horas para o total das disciplinas permite que um só professor, devidamente preparado, atue nas três séries, acompanhando a turma do início ao fim do curso” (Cebrace, 1975j, p. 9).

A cautela quanto aos gastos quase sempre está presente nos pareceres do professor Paulo Nathanael:

[...] a escola valer-se-á, para o desenvolvimento de uma habilitação básica, de práticas laboratoriais intensivas e de módulos de demonstração de fácil montagem e baixo custo. O objetivo, no caso, é ensinar tecnologias e não formar um técnico. [...] a simplificação do equipamento exigido pelo ensino de habilitações básicas aparece como uma solução digna de aplausos e bastante consentânea com as nossas realidades (Cebrace, 1975a, p. 12).

É notório que alguns documentos do CFE aqui mencionados apresentam cuidados quanto às despesas. Podemos associar esse fato ao fim da obrigatoriedade da União, dos estados e dos municípios a destinar um percentual mínimo de recursos para a educação. Consoante Saviani (2008Saviani, D. (2008). O legado educacional do Regime Militar. Caderno Cedes, 28(76), 291-312. https://doi.org/10.1590/S0101-32622008000300002
https://doi.org/10.1590/S0101-3262200800...
), a extinção do princípio da vinculação orçamentária, pela Constituição de 1967, levou o governo federal a reduzir progressivamente os recursos para a educação. Assim, o sistema modular, pelo seu baixo custo e facilidade de manuseio, era uma boa solução também para os professores que não haviam sido capacitados para o ensino profissionalizante. Nessa direção, salientamos a ‘flexibilidade’ do Parecer nº 76/75 quanto ao exercício da docência nesse ensino. Para a relatora Maria Terezinha Saraiva, tal problema poderia ser sanado com os técnicos de nível médio formados com uma carga horária mínima de 2.900 horas. Estes

[...] poderiam ministrar as disciplinas de formação especial que estivessem ligadas à parte prática em laboratórios e oficinas. Receberiam mediante apresentação do diploma, registro com a denominação ‘Colaborador de Ensino’ [...] Este registro só teria a validade por 3 anos, ficando o profissional obrigado a frequentar o Esquema II, quando ao conclui-lo receberia o diploma de licenciatura curta, deixando de ter validade o registro anterior (Parecer nº 76, 1975, p. 36).

Logo, a necessidade de professores para formar, em pouco tempo, a mão de obra reclamada pelo mercado, também gerava a urgência de formar docentes, mesmo que fosse na aparência. Esse aligeiramento estava implícito nos adjetivos ‘emergencial’ e ‘especial’ que, à época, acompanhavam a denominação desses cursos (Souza & Rodrigues, 2017Souza, F. C. S., & Rodrigues, I. S. (2017). Formação de professores para educação profissional no Brasil: percurso histórico e desafios contemporâneos. Revista Histedbr on line, 17(2), 621-638. https://doi.org/10.20396/rho.v17i2.8644682
https://doi.org/10.20396/rho.v17i2.86446...
).

Atendimento ao mercado de trabalho

Conforme registramos, todos os pareceres do CFE que criaram as HB, implícita ou explicitamente, ressaltam a importância da legislação educacional criada a partir da Lei nº 5.692/1971, pois os seus efeitos, segundo os relatores, superariam a formação academicista que marcou a educação brasileira durante séculos. Ademais, como afirmou a professora Edília Coelho Garcia, “[...] nem todos nascem com talento para estudos universitários” (Cebrace, 1975b, p. 8). Tal argumento deixa patente a dualidade da educação, haja vista que, em várias passagens dos Pareceres nº 45/72 e 76/75, havia críticas ao elitismo na educação brasileira, logo, a relatora se contradiz ao estabelecer que a universidade era para os ‘mais capazes’, os ‘talentosos’ que, por sinal, não eram a maioria da população brasileira.

No parecer em que aprovou a HB em Saúde, a conselheira acima mencionada comenta a respeito das limitações existentes no ensino superior no Brasil, um dos fatores que justificaram a profissionalização no 2º grau. Assim, afirma que:

[...] as possibilidades de ingresso no ensino superior de muitas áreas do saber continuam e continuarão escassas. Os postos e funções de nível intermediário em todos os setores recairão sobre pessoas às quais, quando muito, terá sido possível apenas concluir estudos de 2º grau e ingressar desde logo numa atividade economicamente rentável de natureza profissional. À escola de 2º grau está assim reservado o papel importante de formar com rapidez e máxima eficiência, a ‘mão-de-obra’ qualificada desse nível (Cebrace, 1975b, p. 10).

Aliada à necessidade de superar o academicismo e criar um tipo de escola que se apresentava como voltada para uma formação mais ampla, o conselheiro Paulo Nathanael, no parecer em que criou a HB em Agropecuária, ressaltou a importância da reforma, pois “Tinha que preocupar-se urgentemente com a terminalidade, a fim de capacitar o maior número dos concluintes desse nível de estudos a iniciar desde logo uma atividade qualquer remunerada” (Cebrace, 1975a, p. 9).

Segundo esse conselheiro, uma das áreas que mais requeria mão de obra especializada era a da Construção Civil:

A construção civil, que se apresenta, hoje, como o setor responsável pela parcela mais expressiva da expansão de empregos no mercado de trabalho do País, mercê do desenvolvimento urbano acelerado e das grandes obras públicas ligadas ao transporte e à geração de energia, está a reclamar quantidade e qualidade crescentes de recursos humanos especializados (Cebrace, 1975e, p. 9).

Tinha razão o professor Paulo Nathanel ao destacar a urbanização acelerada pela qual passava o Brasil à época, vista, pelo governo, como um sinal de que o Brasil estava marchando para o desenvolvimento. Para as camadas populares que habitavam a zona rural, o crescimento das cidades significava esperança de dias melhores.

Contudo, apesar da importância que o parecerista dava à terminalidade e, com efeito, a conquista, pelo egresso, de um trabalho assalariado, o professor Paulo Nathanael não desestimula a possibilidade de essas pessoas alçarem ao ensino superior: “Essa base de conhecimentos que não pode ser somente direcionada para o mundo do trabalho, eis que não é esse o único objetivo do ensino de 2º grau, mas que deve concomitantemente assegurar capacitação para o prosseguimento de estudos em níveis ulteriores [...]” (Cebrace, 1975a, p. 11). Portanto, podemos perceber uma distinção entre os posicionamentos desse conselheiro e da sua colega do CFE, a professora Edília Garcia, quanto ao prosseguimento nos estudos em níveis mais elevados.

Apesar de algumas menções dos conselheiros ao mercado de trabalho, uma leitura dos dez pareceres nos mostra que as HB não gerariam boas opções em termos de emprego e renda. Pelo que vemos nos textos dos pareceres, os egressos desses cursos eram uma espécie de auxiliares dos técnicos. Restava-lhes, como já apontamos, a opção de complementar sua formação em uma escola técnica.

Em todos os pareceres das HB há um rol de atividades que poderiam ser desenvolvidas pelos egressos. Fazemos um destaque para o parecer da professora Edília Coelho Garcia ao examinar a proposta da HB em Saúde:

Não obstante essa carência crítica [de pessoal habilitado na saúde], tem a Relatora que confessar que encara o problema com extrema cautela, pois que os profissionais da área da Saúde, sempre são responsáveis por atos ou procedimentos que, direta ou indiretamente, vão contribuir para o processo de preservação ou recuperação de saúde, ou seja, da preservação ou manutenção da vida humana [...] No caso específico que ora se examinará, partiu-se do pressuposto de que, para a saúde, o conceito de preparo básico representará apenas uma iniciação a uma área específica de atividade que visa a uma ocupação que se definirá no próprio ‘treinamento em serviço’, isto é, no próprio emprego (Cebrace, 1975b, p. 11).

A professora, após se referir aos cuidados que devem ter os egressos na sua atuação profissional, distingue essa HB da Habilitação Técnica em Saúde, evidenciando a secundarização das HB:

Pretende-se que, com uma formação geral básica no campo específico da saúde, possa o alunado destinar-se ao trabalho em clínicas, consultórios e hospitais ou centros de saúde, onde, orientado pelos médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, ou pelos técnicos das diferentes especialidades, possa ser útil e tenha condições de complementar sua formação. Sua atividade será, portanto, de cooperação, não lhe cabendo qualquer iniciativa independente e direta na coleta ou manipulação do material. Sua ação será mais a de execução de tarefas de rotina, sempre sob a coordenação, controle, orientação e supervisão dos especialistas. Podem ser delegadas a esses profissionais as tarefas secundárias e necessárias de lavagem e esterilização de vidraria, preparo de pacientes para exames, revelação de filmes de raios X, desinfecção, assepsia e antissepsia de ambientes, manutenção de aparelhagem para fisioterapia e outros serviços auxiliares que não tenham implicações com a responsabilidade direta na manutenção de saúde e cuja execução seja sempre verificada e controlada por um técnico ou profissional de nível superior (Cebrace, 1975b, p. 11).

Em face do exposto, ressaltamos que o caráter de subalternidade dos egressos de HB se repete na maioria dos pareceres mediante as palavras ‘auxiliar’ e ‘encarregado’, amplamente usadas no rol de atividades que poderiam ser realizadas por aqueles que concluíssem esses cursos.

Considerações finais

A Lei nº 5.692/1971 trouxe um conjunto de mudanças no ensino de 1º e 2º graus, atualmente designada de educação básica. As transformações impostas foram tão profundas que muitos ainda hoje confundem essa lei como sendo uma LDB.

Neste artigo, buscamos compreender não apenas o contexto histórico que alicerçou a criação dessa lei, mas, sobretudo, a reforma pela qual passou em meados da década de 1970, com o Parecer nº 76/75, e que, para Cunha (2005Cunha, L. A. (2005). O ensino profissional na irradiação do industrialismo (2a ed.). Unesp/Flacso., 2014), significou uma reforma dentro da reforma, sendo a criação de Habilitações Básicas (HB), um dos recursos propostos para viabilizar a reforma estipulada pela Lei nº 5.692/1971.

Baseados em uma pesquisa documental, a partir da legislação da época e dos pareceres que criaram as 10 HB, pudemos perceber que há uma concordância dos conselheiros do CFE, pelo menos nos textos legais, com relação à Lei nº 5.692/1971, apresentada para solucionar vários problemas da educação brasileira, sobretudo o que chamam de formação bacharelesca, desvinculada da formação para o trabalho. Os conselheiros retomam e enfatizam textualmente trechos da lei e do Parecer nº 45/76.

No entanto, precisamos lembrar que essa formação preocupada com o trabalho não é a mesma preconizada por educadores que militam em prol de uma transformação da sociedade de modo a assegurar a educação geral para todos. Logo, a contrapelo da formação do trabalhador cidadão produtivo, abraçam um modelo de educação voltada para emancipação humana (Frigotto & Ciavatta, 2003Frigotto, G., & Ciavatta, M. (2003). Educar o trabalhador cidadão produtivo ou o ser humano emancipado? Trabalho, Educação e Saúde, 1(1), 45-60. https://doi.org/10.1590/S1981-77462003000100005
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).

Há, portanto, nos documentos examinados, o endosso da importância da Lei nº 5.692/1971 ao salientarem o caráter ‘transformador’ desta ao profissionalizar jovens no 2º grau, dando-lhes a oportunidade de ingressarem no mercado de trabalho. Quanto às mudanças, essas são pontuais e estão voltadas para um aligeiramento da formação de profissionais que serão inferiores aos técnicos de nível médio em termos técnico-profissionais, científicos e hierárquicos. Portanto, entendemos a alternativa das HB como uma manobra com fins de pôr a lei em prática, pois facilitava a sua implantação naquelas instituições que não tinham uma boa infraestrutura para a oferta de um curso técnico mais oneroso e/ou um corpo docente qualificado. Por conseguinte, as HB contribuíram para o silenciamento das críticas.

Para resolver os impasses à Lei nº 5.692/1971, tudo valia: cursos profissionalizantes de 600 horas com apenas três disciplinas especiais, lecionadas por um único docente; utilização de técnicos de nível médio para ministrar aulas e usar os laboratórios; material didático modular e de baixo custo; organização dos espaços para o uso ‘racional’ dos poucos equipamentos disponíveis nas escolas; cursos emergenciais de formação de professores com baixa carga horária, dentre outras ações vistas como ‘inovadoras’ mas que revelavam a permanência dos problemas e até os substituíam por outros

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  • 1
    Essa Portaria trata do currículo dos cursos de grau superior para a formação de professores de disciplinas especializadas do 2º grau. Para isso, foram criados 2 esquemas: a) Esquema I, para portadores de diplomas de grau superior relacionados à habilitação pretendida, sujeitos à complementação pedagógica, com a duração de 600 horas; e b) Esquema II, para portadores de diplomas de técnico de nível médio, nas referidas áreas com a duração de 1.080 (mil e oitenta), 1.280 ou 1.480 horas (Portaria nº 432, 1971).
  • Rodadas de avaliação:

    R1: 3 convites; nenhum parecer recebido.
    R2: 3 convites; um parecer recebido.
    R3: 4 convites; um parecer recebido.
  • Financiamento:

    A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Licenciamento:

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Raquel Discini de Campos (UFU)
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https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2023
  • Aceito
    14 Nov 2023
  • Publicado
    28 Dez 2023
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