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O cuidado de pessoas idosas em processo de fragilização: dificuldades e emoções na perspectiva de quem cuida

Resumo

Objetivo

Compreender dificuldades e emoções no processo de cuidado na perspectiva das pessoas que cuidam de pessoas idosas em processos de fragilização nos seus domicílios.

Método

Pesquisa qualitativa, ancorada no referencial teórico-metodológico da Antropologia Interpretativa e Médica. Nove cuidadoras e um cuidador foram entrevistados no domicílio da pessoa idosa cuidada. A análise êmica foi guiada pelo modelo dos Signos, Significados e Ações

Resultados

As dificuldades aparecem na ausência de formação para cuidar, nos constrangimentos das rotinas de higiene, na ausência de cumprimento de direitos trabalhistas, na falta de acessibilidade e de recursos materiais, nas relações familiares e na interpretação das ações da pessoa cuidada como teimosia. As emoções descritas pelas pessoas entrevistadas são de carinho, satisfação, cansaço, estresse, sobrecarga e medo de agravamento e de erro.

Conclusão

As pessoas que cuidam revelaram um envolvimento intenso e complexo de âmbito moral, mas também ético e emocional. Evidenciam um cenário em que é fundamental reconhecer e enxergar o trabalho de cuidar de as pessoas idosas em processo de fragilização e implementar políticas de cuidado com ações comunitárias e intersetoriais de suporte ao cuidado.

Palavras-Chave:
Antropologia; Cuidadores; Idoso Fragilizado

Abstract

Objective

To comprehend the challenges and emotions within the caregiving process from the perspective of those who care for older adults in situations of frailty within their own homes.

Method

A qualitative research approach rooted in the theoretical and methodological framework of Interpretative and Medical Anthropology was employed. Nine female caregivers and one male caregiver were interviewed within the homes of the elderly individuals they were caring for. Emic analysis was guided by the model of Signs, Meanings, and Actions.

Results

Challenges manifest in the absence of caregiver training, constraints related to hygiene routines, the absence of compliance with labor rights, lack of accessibility and material resources, family relationships, and the interpretation of the actions of the care recipients as stubbornness. Emotions described by the interviewees include affection, satisfaction, fatigue, stress, burden, and fear of worsening and making mistakes.

Conclusion

Caregivers revealed a deep and complex moral, ethical, and emotional involvement in their caregiving roles. They highlight a scenario where it is essential to recognize and acknowledge the work involved in caring for older adults in situations of frailty and to implement caregiving policies with community and cross-sector support actions.

Keywords
Anthropology; Caregivers; Frail older individual

INTRODUÇÃO

O aumento da longevidade quando acompanhado da síndrome multifatorial da fragilidade11 Nan J, Duan Y, Wu S, Liao L, Li X, Zhao Y et al. Perspectives of older adults, caregivers, healthcare providers on frailty screening in primary care: a systematic review and qualitative meta-synthesis. BMC Geriatrics. 2022;22(482).,22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127. gera maior demanda de cuidados33 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):17-26.

4 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.

5 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.

6 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46.

7 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.
-88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114.. O processo de fragilização é dinâmico conjugando fatores individuais, familiares e sociais, e requer ampliar o acesso a cuidados de longa duração e a redes informais e formais de cuidado99 Basu R, Steiner AC, Stevens AB. Long-Term Care Market Trend and Patterns of Caregiving in the U.S, Journal of Aging & Social Policy. 2022;34(1):20-37.. Sabe-se que cuidadoras e cuidadores são essenciais no empoderamento e no cuidado de pessoas idosas frágeis11 Nan J, Duan Y, Wu S, Liao L, Li X, Zhao Y et al. Perspectives of older adults, caregivers, healthcare providers on frailty screening in primary care: a systematic review and qualitative meta-synthesis. BMC Geriatrics. 2022;22(482).,1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465., porém, o envelhecimento populacional tem acontecido com número insuficiente de pessoas na atividade de cuidado, com escasso apoio às famílias e com despreparo de profissionais e de serviços, além da insuficiência de políticas públicas de cuidados33 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):17-26.

4 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.

5 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.

6 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46.
-77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.,1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465.,1111 Debert GG, Pulhez MM, organizadoras. Desafios do cuidado, gênero, velhice e deficiência. 2ª ed. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019..

No Brasil, a maioria das pessoas que cuidam possuem vínculo familiar e mais de 50 anos de idade22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127.,33 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):17-26.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,99 Basu R, Steiner AC, Stevens AB. Long-Term Care Market Trend and Patterns of Caregiving in the U.S, Journal of Aging & Social Policy. 2022;34(1):20-37. e, quando há presença de alguém profissional, geralmente, possui pouca formação e trabalha em condições precárias33 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):17-26.. Por sua vez, o envelhecimento com fragilidade reorienta a dinâmica familiar transformando principalmente a mulher em cuidadora, de modo integral, solitário e sem remuneração44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465.. As pessoas idosas e quem delas cuida são afetadas por vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas, com precarização das condições de vida e de saúde33 Ceccon RF, Vieira LJES, Brasil CCP, Soares KG, Portes VM, Garcia Júnior CAS et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):17-26.,44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36., tornando-as esquecidas, desvalorizadas e invisibilizadas44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56., sendo, portanto, necessário politizar o cuidado de modo globalizado, para além da oposição entre formal e informal1111 Debert GG, Pulhez MM, organizadoras. Desafios do cuidado, gênero, velhice e deficiência. 2ª ed. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019.,1212 Tronto J. Caring democracy: Markets, equality, and justice. New York: New York University Press, 2013..

No campo da geriatria e gerontologia considera-se importante compreender como quem cuida vivencia a relação intersubjetiva com o cuidado55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465., especialmente no contexto de fragilidade22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127.. Interessa-se por conhecer o universo no qual o cuidado acontece e a complexidade dessa atividade, de modo a identificar as estratégias utilizadas1313 Nespolo G, Merhy EE. Trabalho em saúde: biomedicalização de quem cuida. Saúde em Rede. 2018;4(2):9-18. para gerar informações que visem apoiá-los1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465.,1414 Wiles J, Moeke-Maxwell T, Williams L, Black S, Trussardi G, Gott M. Caregivers for people at end of life in advanced age: knowing, doing and negotiating care. Age Ageing. 2018;47(6):887-895. e subsidiar políticas públicas55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56., com a retaguarda dos serviços de saúde44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114. para melhorar as condições de cuidado22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127. para todas as pessoas envolvidas.

Por outro lado, a Antropologia inspira a pensar os circuitos e os diversos fios que tecem o cuidado, incluindo as múltiplas maneiras de trabalho concreto, os significados socioculturais, os valores e afetos na sua apreensão1010 Kleinman A. Varieties of Experiences of Care. Perspectives in Biology and Medicine. 2020;63(3):458–465.. Contudo, é rara a análise do cuidado na perspectiva de cuidadoras e cuidadores de pessoas idosas em processo de fragilização11 Nan J, Duan Y, Wu S, Liao L, Li X, Zhao Y et al. Perspectives of older adults, caregivers, healthcare providers on frailty screening in primary care: a systematic review and qualitative meta-synthesis. BMC Geriatrics. 2022;22(482).. Além disso, as descrições androcêntricas não contemplam amplamente o cuidado em suas diferentes facetas, pois a sociedade se vale de quem promove o cuidado, mas lhe nega um lugar e visibilidade1515 Molinier P. Ética e trabalho do care. In: Hirata H, Guimarães NA, organizadores. Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: editora Atlas, 2012, p.29-43.. Desse modo, este artigo objetiva compreender dificuldades e emoções no processo de cuidado na perspectiva das pessoas que cuidam de pessoas idosas em processos de fragilização nos seus domicílios.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa ancorada no referencial teórico-metodológico da Antropologia Interpretativa e Médica1616 Nunes MO. Da aplicação à implicação na Antropologia médica: leituras políticas, históricas e narrativas do mundo do adoecimento e da saúde. Análise Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2014;21(2).,1717 Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, LTC, Antropologia Social, 1989., o qual compreende que é por intermédio dos padrões culturais que o ser humano encontra sentido, interpreta e guias suas ações1717 Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, LTC, Antropologia Social, 1989.. Assim, desvela a ordem social metaforizada no biológico e lê o processo cultural sem estar míope às dimensões sociais e políticas do adoecimento, evidenciando as relações de poder; a relação entre o capitalismo e a sociedade; a luta por direitos humanos e por justiça social1616 Nunes MO. Da aplicação à implicação na Antropologia médica: leituras políticas, históricas e narrativas do mundo do adoecimento e da saúde. Análise Hist. cienc. saude-Manguinhos. 2014;21(2)..

Para a seleção dos participantes realizaram-se contatos telefônicos com as pessoas idosas do banco da linha de base do estudo FIBRA do polo de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil1818 Vieira RA, Guerra RO, Giacomin KC, Vasconcelos KSS, Andrade ACS, Pereira LSM et al. Prevalência de fragilidade e fatores associados em idosos comunitários de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil: dados do estudo FIBRA. Cadernos de Saúde Pública. 2013;(29):1631-1643.. Buscou-se a heterogeneidade no território do município. Os agendamentos das entrevistas seguiram por critério de conveniência. As pessoas que aceitaram participar da pesquisa foram incluídas. As entrevistas foram realizadas no domicílio da pessoa cuidada e as preferências de conciliar o horário com a rotina de cuidados foram acolhidas. A coleta de dados aconteceu em dois momentos: de janeiro a agosto de 2016 com indivíduos identificados como frágeis no banco de dados; porém em virtude da dificuldade em localizar pessoas sobreviventes ou a mudança do número telefônico disponibilizado no banco de dados, de janeiro a maio de 2018 com indivíduos que estavam identificados como pré-frágeis no banco de dados. Não houve recusa à participação. Para acessar a percepção do cuidado no processo de fragilização as entrevistas foram realizadas com roteiro semiestruturado, buscando compreender as percepções da condição de saúde, do envelhecimento, da fragilidade, do cuidado, as estratégias utilizadas (recursos comunitários e pessoais); as dificuldades e como lidam com elas no cotidiano e de que modo resolvem ou minimizam-nas; além de inquirir sobre a existência de apoio de outras pessoas ou instituições e explorar as ações que realizam fora desse âmbito de cuidar. As entrevistas foram realizadas por profissionais da psicologia e fisioterapia especialistas em envelhecimento humano, duraram em média 42 minutos e foram gravadas e transcritas. O encerramento das entrevistas teve como critério a qualidade, a quantidade e a intensidade dos dados coletados, ao permitir evidenciar a complexidade do fenômeno e possibilitar a imersão no universo sociocultural1919 Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa. 2017;5(7):1-12..

A análise dos dados foi fundamentada no modelo de “signos, significados e ações”, partindo das ações para aceder ao nível semântico como uma via de acesso privilegiado aos sistemas culturais2020 Corin E, Uchôa E, Bibeau G. Articulation et variations des systèmes de signes, de sens et d'action. Psychopathologie africaine. 1992;24(2):183-204.. Empregou-se a perspectiva êmica1717 Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, LTC, Antropologia Social, 1989.. A análise iniciou-se com a leitura em profundidade do material coletado, tendo sido realizadas sucessivas leituras para identificar níveis de signos, significados e ações relacionados ao tema. Desse modo, o conteúdo de cada entrevista foi seccionado e organizado, o que possibilitou acessar as interpretações, examinar as relações entre os níveis e aprofundar a análise, compilada em categorias analíticas.

Esta pesquisa é parte do projeto “Fragilidade em idosos: percepções, mediação cultural, enfrentamento e cuidado”, aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto René Rachou – Fiocruz, sob o parecer nº 2141038/15 . Antecedendo ao início das entrevistas os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. No decorrer de toda pesquisa respeitaram-se as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Com vistas a assegurar o sigilo, os cuidadores e as cuidadoras foram identificados pela letra “C” seguido do número de identificação da entrevista.

DISPONIBILIDADE DE DADOS

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente Gislaine Alves de Souza.

RESULTADOS

Foram entrevistados nove cuidadoras e um cuidador, conforme categorização apresentada na Tabela 1. Sete cuidadoras eram solteiras e três casadas (dois cônjuges e uma filha), sendo notada a presença de pessoas idosas na atividade de cuidar. Acerca do suporte no cuidado, um familiar referiu haver revezamento diário entre filhos; as demais cuidadoras familiares relataram ser responsáveis pelo gerenciamento do cuidado integral e cotidiano, com apoio apenas pontual de terceiros. As cuidadoras profissionais descreveram esse suporte familiar de modo heterogêneo: uma família participa, outra é omissa e a terceira inexiste; mas reportam suporte de outros profissionais.

Tabela 1
Caracterização das pessoas entrevistadas no município de Belo Horizonte, MG, 2018.

Nas entrevistas foi relatado envolvimento no cuidado há mais de uma década, exceto pela cuidadora mais jovem. Contingências determinaram o exercício dessa atividade: agravamento do quadro clínico da pessoa cuidada; demais familiares trabalhavam; desemprego; não conseguir pagar por profissional do cuidado; e residir com a pessoa. Quatro relataram experiências anteriores como cuidadora. Todos residiam com a pessoa cuidada, salvo uma cuidadora profissional.

No cenário estudado, observa-se que o cuidado é realizado a pessoas idosas com diferentes condições de saúde e ao serem questionados acerca da fragilidade, contextualizavam:

“Ela (a mãe) já tá ficando mais frágil, está sendo caminho que a gente tem que ter mais cuidado, ficar sempre de olho, querendo ou não querendo fazer as coisas dela. Ela está mais frágil. (...) Ah eu fico de olho nela, vigiando ela o tempo todo. (...) É uma pessoa assim que ela precisa, do cuidado da gente com eles.” (C1)

“Eu acredito que (a fragilidade) seja a junção de várias coisas (...) porque eles tinham uma vida ativa, tinha independência de outra pessoa, aí quando passa a ter que depender por não ter condições mais físicas ou psicológicas de realizar suas atividades do dia-a-dia, isso deixa eles muito frágeis, às vezes depressivos assim, sabe, por não se sentir mais útil ou algo do tipo, então eu acho que essa é a fragilidade mesmo de, de questão de também, do próprio corpo né, de não ter mais aquela força física (...) porque o osso já não tá tão forte, sabe, pra suportar, então tem esse tipo de fragilidade, física, psicológica também. (...) tem diversas (fragilidades), diversos cuidados que você tem que trabalhar.” (C2)

“Idoso Frágil? Com as fragilidades da vida? (...) Ah se ele não tem uma saúde 100%, se ele não tem um acompanhamento na sua família, ou se ele não tem uma parte monetária que não pode ajudá-lo também, ou se ele não tem uma parte espiritual que o ajude a funcionar (...) pode ter essas fragilidades físicas, mentais ou... (...) ela (a mãe) tinha certas fragilidades, mas ela, bancou vencer em muitas coisas (...) a vida não foi fácil pra ela (a mãe), depois que o papai faleceu, então, fragilidade monetária é uma fragilidade (...) ela não deixou, ela não esmoreceu (...) Tia M. foi uma pessoa vencedora, enterrou um monte de gente e tá viva até hoje, com tudo isso que ela teve (...) então, uma fragilidade é fortilidade (risos).” (C3)

Constata-se que a percepção do processo de fragilização acontece quando, em virtude das condições de saúde, a pessoa precisa do cuidado de outrem para auxiliar na realização das atividades básicas e da mobilidade; bem como na perda de uma independência anterior; na diminuição da energia e da disposição de viver. Enquanto o cuidado cotidiano é elucidado, respectivamente, em narrativas de uma cuidadora familiar e de uma profissional, como visto a seguir:

“Uai, eu tenho ali. Um banho? É dependente. Os horários dos remédios, o almoço que eu tenho que sempre estar (...) deixar transparecer pra ela que ela tem a mim como companheira. (...) Te falar a verdade, vivo por ela (...) 24 horas aqui dentro.” (C5)

“É totalmente dependente hoje. É eu que dou banho, é eu que dou a medicação, como ela não enxerga direito, eu ajudo ela na alimentação (...) eu coloco na cadeira de rodas, e pra ir ao médico, eu que levo. (...) Eu fico 12 horas com ela todos os dias, só não fico à noite.” (C6)

Para compreensão das relações de cuidado, à análise emergiram como categorias: “Dificuldades” e “Emoções”.

Dificuldades

A maioria relatou dificuldades nos cuidados que impactam o cotidiano:

“Na época que nós tivemos uma cuidadora, que infelizmente não conseguimos, que financeiramente não deu, que não é barato (...) eu já falei, vai chegar num ponto que vai sobrar pra todos: um banho, ir no banheiro, trocar uma fralda. ‘Ah, mas nós somos homens’ (referindo-se aos argumentos dos filhos). E daí? mas é filho (...) A neurologista falou, tem que ter uma, uma pessoa que fala mais forte com ela: ‘Não é não’. Então quando eu falo ‘não’, ela fala: ‘você é brava, você está brava comigo’... (emociona) (...) Muitas vezes, se eu saio aqui por perto, tem outra pessoa com ela, na mesma hora ela me cobra: ‘por que que você saiu?’” (C5)

“Eu acho que o que mais interfere é que não existe a possibilidade do erro, sabe!? Porque é uma pessoa, é uma vida que tá dependendo de você (...) a mobilidade é uma dificuldade (...) já cheguei no Hospital X e não tinha cadeira de roda lá! (...) é uma chateação, uma falta de comprometimento (...) Eu carrego ela no colo.” (C2)

“Eu tinha que ficar com mamãe praticamente 24h (...) Alguém fala assim: ‘Nossa! Uma senhora de 71 anos, cuidar de uma pessoa de 90 anos! São duas idosas!’ (...) Queria dormir à noite e ela tava acordada (risos) (...) um dia a casa cai, a gorducha cai (referindo-se a si) (risos) fica gorda, porque tá muito ansiosa, cresce vinte e tantos quilos, mas um dia pifa!” (C3)

Não conseguir pagar, precisar colocar limites, não poder se ausentar, precisar lutar para ter tratamento adequado, adoecer, ter de lidar com o impacto das emoções da pessoa cuidada e com a relação com demais familiares são algumas das dificuldades que requerem atenção. Um compilado das dificuldades enumeradas está apresentado na Tabela 2.

Tabela 2
Síntese das dificuldades no cuidado na perspectiva de quem cuida de pessoas idosas em processo de fragilização. Belo Horizonte, MG, 2018.

Emoções

Face às dificuldades, diferentes emoções são expressas nas narrativas de atos cotidianos significados como cuidado e manifestadas ao longo das entrevistas:

“Papai foi diagnosticado (Alzheimer) em 2008 (...) teve a fase de perseguição, foi muito difícil. (...) É um contato carinhoso e físico que eu não tinha com ele, e que eu tô podendo ter.” (C9)

“Ah, a coisa pesa (...) O medo de, não do hoje, mas geralmente eu já penso, e amanhã!? Como ela vai amanhecer? (...) Será que eu vou dar conta?” (C5)

“Eu acho que nós dois já virou um vínculo de pai e filho (...) Seu A. quando passa mal, eu acho que eu passo mal junto com ele (...) eu já fiquei aqui três meses sem ir na minha casa, por causa dele (...) as filhas falam que se eu sair, ele morre (...) Já aconteceu de eu estar na hemodiálise com Seu A, meu irmão infartou, faleceu (...) daí eu tive que esperar, não pude transparecer pro Seu A.” (C4)

Uma síntese das emoções está apresentada na Tabela 3.

Tabela 3
Síntese de emoções desencadeadas na relação de cuidado na perspectiva de quem cuida de pessoas idosas em processo de fragilização. Belo Horizonte, MG, 2018.

A Figura 1 esquematiza os achados deste artigo.

Figura 1
Dificuldades e emoções no processo de cuidado para quem cuida de pessoas idosas em processos de fragilização. Belo Horizonte, MG, 2018.

Discussão

Nesta pesquisa, a fragilidade é reconhecida pela pessoa que cuida de modo diverso: física, mental, emocional, cognitiva, familiar/ausência de acompanhante, monetária, comunicacional, espiritual. As pessoas entrevistadas contribuem para compreensão de que quem cuida também se sente frágil ao se ver incapaz de suprir todas as necessidades da pessoa cuidada. Adicionalmente, essa percepção de fragilidade não exclui a “fortilidade”: a força de sustentar a vida e o processo de cuidado. Contudo, na literatura pesquisada não foram encontradas pesquisas sobre o processo de fragilização na perspectiva da pessoa que cuida.

Na literatura, a fragilidade configura-se como um conceito complexo, polissêmico, multidimensional e multideterminado, influenciado por fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais2121 Kim Y, Jang S. Mapping the knowledge structure of frailty in journal articles by text network analysis. PloS one. 2018;13(4):e0196104.. Ainda que inexista uma unanimidade na definição de fragilidade, ela geralmente está associada ao aumento de condições clínicas desfavoráveis, tais como suscetibilidade a doenças, declínio funcional, dependência em atividades de vida diária, quedas, hospitalização e morte precoce2121 Kim Y, Jang S. Mapping the knowledge structure of frailty in journal articles by text network analysis. PloS one. 2018;13(4):e0196104.. E ainda conjuga questões que extrapolam o indivíduo, como o ambiente e aspectos macro que influenciam na qualidade de vida2222 Dury S, Dierckk E, Vorst A, Elst M, Fret B, Duppen D, et al. Detecting frail, older adults and identifying their strengths: results of a mixed-methods study. BMC Public Health. 2018;18(1):191., o que aponta para causas sociais, subjetivas, políticas e culturais.

Ao longo das entrevistas, observaram-se inicialmente dificuldades em nomear as limitações da pessoa cuidada, superadas após a acolhida do espaço de escuta. De modo similar, um estudo relata a negação inicial da carga de cuidar, embora transparecesse a existência de carga física, psicológica e financeira2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14.. Nesta pesquisa, visualizou-se ainda em campo, a preocupação por parte do grupo entrevistado para demonstrar que cuida da melhor maneira possível.

Nas entrevistas, expuseram desafios com a mobilidade e em levar para consultas médicas por dependerem do auxílio de outra pessoa e pelas barreiras à acessibilidade – dificuldade também reconhecida em outros estudos2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14.. Adicionalmente, a necessidade de cuidado ressignifica o projeto existencial de quem cuida; afeta projetos pessoais, familiares e profissionais77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.; ocasiona desgaste físico e emocional22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127.,44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114., cansaço, sobrecarga, esgotamento e privação da liberdade44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.. As pessoas que cuidam afirmaram a impossibilidade de manutenção sozinha do cuidado necessário, uma responsabilização descomedida pela vida da pessoa cuidada. Muitas vezes o cuidado é realizado sozinho, sem apoio social e sem reconhecimento da atividade realizada. A literatura alerta para a diminuição da provisão de cuidados pela família e para a incapacidade de ela suprir sozinha mais que 50% das necessidades de cuidados de pessoas idosas dependentes88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114.. Constata-se uma pressão sobre cuidadoras e cuidadores familiares, a ausência do apoio do Estado2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14. e a demanda de regulamentação desses profissionais66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46..

A dificuldade do envolvimento de demais figuras familiares no cuidado, especialmente os homens, denunciam as questões de gênero, contestando a naturalização do cuidado como tarefa exclusivamente feminina. A literatura tem investido esforço nessa discussão1212 Tronto J. Caring democracy: Markets, equality, and justice. New York: New York University Press, 2013. e reconhecido que ainda há uma predominância de mulheres na atividade de cuidar e uma invisibilidade desse fazer44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,1313 Nespolo G, Merhy EE. Trabalho em saúde: biomedicalização de quem cuida. Saúde em Rede. 2018;4(2):9-18.,2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14.,2424 Araújo AB. Cuidado de idosos e emoções na pandemia. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.235-244.. O trabalho doméstico gratuito é ainda correlacionado a uma atribuição das mulheres2525 Avila MB, Ferreira V. Trabalho doméstico remunerado: contradições estruturantes e emergentes nas relações sociais no Brasil. Psicol. Soc. 2020;32.,2626 Hirata H. Cuidado: teorias e práticas. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.31-40..

Outro reflexo da significação da velhice presente na sociedade é a interpretação de algumas ações da pessoa cuidada que dificultam os cuidados como “mania de velho”, “teimosia”, “não querer sair de casa”, que aparecem nas narrativas de quem cuida - seja profissional ou familiar. Essas interpretações revelam um ageísmo, segundo o qual os estereótipos sobre a velhice são naturalizados e transformados em um problema individual2727 Debert GG. O velho na propaganda. Cad. Pagu. 2003;(21).. A ética de cuidado configura-se como um desafio devido às relações de poder existentes na vigilância contínua e na disciplinarização das ações1111 Debert GG, Pulhez MM, organizadoras. Desafios do cuidado, gênero, velhice e deficiência. 2ª ed. Campinas: Unicamp/IFCH, 2019..

Observam-se, em campo, relações e recursos de cuidado muito heterogêneos relativos a vínculos familiares e comunitários, diferentes condições de saúde, agravamento e manifestação de sintomas comportamentais. Investimento ininterrupto na busca de serviços e de um acesso efetivo aos recursos, inclusive os de saúde, conflitam com a ausência de acessibilidade física, restrições no acesso a tratamento, suporte e formação e a condição social vulnerável apresentam-se, frequentemente como dificuldades no processo de cuidado. Esses aspectos encontram ressonância na literatura77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.,1414 Wiles J, Moeke-Maxwell T, Williams L, Black S, Trussardi G, Gott M. Caregivers for people at end of life in advanced age: knowing, doing and negotiating care. Age Ageing. 2018;47(6):887-895..

Além disso, quando o cuidado é prolongado podem surgir conflitos intrafamiliares88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114. e, muitas vezes, a disposição para cuidar é sustentada às custas da negligência com o próprio cuidado2828 Bjorge H, Kvall K, Ulstein I. The effect of psychosocial support on caregivers' perceived criticism and emotional over-involvement of persons with dementia: an assessor-blinded randomized controlled trial. BMC Health Serv Res. 2019;9(1):744.. O sentimento de falta de apoio dos demais membros da família é identificado neste e em diferentes estudos1313 Nespolo G, Merhy EE. Trabalho em saúde: biomedicalização de quem cuida. Saúde em Rede. 2018;4(2):9-18.,2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14..

Todas as entrevistadas nomearam vivenciarem impactos na saúde física, mental e emocional. Ao encontro de outra pesquisa44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36., depararam com demandas repetitivas, crescentes e variadas; jornadas exaustivas, com dedicação irrestrita. Uma cuidadora conta “pifar” revelando que a prestação de cuidados tem consequências psiquiátricas e somáticas2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14.,2828 Bjorge H, Kvall K, Ulstein I. The effect of psychosocial support on caregivers' perceived criticism and emotional over-involvement of persons with dementia: an assessor-blinded randomized controlled trial. BMC Health Serv Res. 2019;9(1):744.,2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56., bem como repercussões em sua saúde integral. As jornadas prolongadas causam sobrecarga1313 Nespolo G, Merhy EE. Trabalho em saúde: biomedicalização de quem cuida. Saúde em Rede. 2018;4(2):9-18. e o autocuidado é relatado como pouco possível, embora seja essencial para continuar a cuidar44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36..

Cuidadoras e cuidadores familiares e profissionais abdicam de seu bem-estar para cuidar77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.,2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14. e têm desvantagens na saúde comparado com grupo de não cuidadores77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.. Experenciam sobrecarga em diferentes graus77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798. e âmbitos55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,2323 Faronbi JO, Faronbi GO, Ayamolowo SJ, Olagun AA. Caring for the seniors with chronic illness: The lived experience of caregivers of older adults. Archives of Gerontology and Geriatrics. 2019;82:8-14. (física, emocionais, sociais, mentais e financeiras) e dificuldades em se preparar para cuidar77 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.. Ademais, relatam serem cansativos o comportamento repetitivo, a bagunça e a agressividade2828 Bjorge H, Kvall K, Ulstein I. The effect of psychosocial support on caregivers' perceived criticism and emotional over-involvement of persons with dementia: an assessor-blinded randomized controlled trial. BMC Health Serv Res. 2019;9(1):744. da pessoa cuidada.

Entrevistadas mencionaram o desconforto da pessoa cuidada em ter outros indivíduos assistindo-a nas rotinas de higiene - situações que podem gerar constrangimentos1414 Wiles J, Moeke-Maxwell T, Williams L, Black S, Trussardi G, Gott M. Caregivers for people at end of life in advanced age: knowing, doing and negotiating care. Age Ageing. 2018;47(6):887-895.,2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56.. Ter que dormir no hospital ou ser a pessoa a realizar o cuidado transpareceram na entrevista quando a pessoa cuidada não aceita o suporte de outrem.

Com exceção de uma profissional que trabalha 12 horas diárias e um familiar que, com recursos sociais e econômicos, readaptou sua vida para manutenção dos cuidados, todas as demais cuidadoras exibiram desafios em conciliar a tarefa de cuidado com outras dimensões da própria vida. Todas as profissionais entrevistadas nomearam extrapolar as oito horas diárias de trabalho. Essa sobrecarga e a precariedade de vínculo trabalhista aparecem em outros estudos66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46..

Desse modo, os resultados evidenciam que o cuidado não deve permanecer oculto e precisa de apoio, uma vez que uma das dificuldades experimentadas é a inversão de papeis, quando é necessário exercer autoridade sobre figuras parentais, ou quando a pessoa receptora de cuidados sofre pelo cuidado recebido – ambos os sofrimentos têm especificidades ao campo da geriatria e gerontologia.

As pessoas entrevistadas narraram experimentar sentimentos e emoções contraditórios22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56.,66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46.,99 Basu R, Steiner AC, Stevens AB. Long-Term Care Market Trend and Patterns of Caregiving in the U.S, Journal of Aging & Social Policy. 2022;34(1):20-37.,2424 Araújo AB. Cuidado de idosos e emoções na pandemia. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.235-244. faces ao cuidado. Cuidar é ressignificado como um ato de amor; uma oportunidade para aproximação e vínculo afetivo; uma circunstância para se compreender como uma pessoa com virtudes por investir cotidianamente para preservar a vida de alguém. Na literatura, cuidar de um familiar que perdeu a autonomia reflete sentimentos como gratidão, reciprocidade, generosidade, justiça, entrega, responsabilidade ética e moral44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36.,55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56..

Duas cuidadoras profissionais mencionaram assumir a atividade de cuidado “como um familiar”. Soares2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56. aborda que o cuidado é considerado mais bem feito quando a dedicação for semelhante à de um familiar. Trata-se de uma relação em que o envolvimento e o amor são presentes, inevitáveis, essenciais e positivos, embora desconsiderados e invisibilizados3030 Le Breton D. As Paixões Ordinárias: Antropologia das Emoções. Tradução: Peretti, L.A.S. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. 276p.. Embora no cuidado haja um código moral de renúncia a si mesmo que vincula o sujeito à pessoa cuidada66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46., valores socioculturais atribuídos ao cuidar pela sociedade atual3030 Le Breton D. As Paixões Ordinárias: Antropologia das Emoções. Tradução: Peretti, L.A.S. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. 276p. esperam a ponderação na manifestação das emoções por quem cuida. Contudo, todo o grupo vivenciou mudança em sua vida pela condição de cuidar e pelo envolvimento afetivo de uma dedicação integral. As entrevistadas declararam esquecer de si, sendo inclusive demonstradas relações simbióticas – de dependência mútua66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46. - e sobrevivências dedicadas ao cuidado.

A empatia com a dor do outro, a tristeza em assistir alguém que perde uma função que antes realizava, bem como a alegria em recuperar a mobilidade, foram descritas pelas cuidadoras. Essa responsabilidade pela vida do outro é parte da ética do cuidado1212 Tronto J. Caring democracy: Markets, equality, and justice. New York: New York University Press, 2013. que impõe reflexão e não se limita às prescrições2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56.. Neste trabalho face a face, a expressão emocional dos sujeitos que relacionam2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56. afeta a dinâmica do cuidado e muito trabalho emocional é realizado1414 Wiles J, Moeke-Maxwell T, Williams L, Black S, Trussardi G, Gott M. Caregivers for people at end of life in advanced age: knowing, doing and negotiating care. Age Ageing. 2018;47(6):887-895.,2424 Araújo AB. Cuidado de idosos e emoções na pandemia. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.235-244.,2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56.. As cuidadoras se esforçam para que a pessoa cuidada as reconheça afetivamente como companheiras. A literatura discute que esse amor compassivo possibilita o bem-estar da pessoa idosa, ocorrendo uma conexão afetiva benéfica aos envolvidos3131 Kahana E, Bhatta TR, Kahana B, Lekhak N. Loving Others: The Impact of Compassionate Love on Later-Life Psychological Well-being. The Journals of Gerontology: Series B. 2021;76(2):391-402. e à sociedade3131 Kahana E, Bhatta TR, Kahana B, Lekhak N. Loving Others: The Impact of Compassionate Love on Later-Life Psychological Well-being. The Journals of Gerontology: Series B. 2021;76(2):391-402.,3232 Horden J. The Dignity of the Frail: On Compassion, Terror, and Social Death. Literature and Medicine, Johns Hopkins University Press. 2020;38(2):349-370..

Por outro lado, outras emoções atravessam as falas das pessoas entrevistadas: lidar com os medos de falhar na oferta de cuidado55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56., de não dar conta do cuidado e reconhecer que a convivência ditada pelo cuidado é complicada e cansa. Cuidadoras e cuidadores reconhecem os desafios em lidar com o julgamento próprio e alheio55 Gutierrez DMD, Sousa GS, Figueiredo AEB, Ribeiro MNS, Diniz CX, Nobre GASS. Vivências subjetivas de familiares que cuidam de idosos dependentes. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):47-56., com a irritabilidade e com os sentimentos de perda e de impotência devido ao agravamento da condição da pessoa cuidada88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114..

Espera-se que o conhecimento sobre o problema de saúde da pessoa cuidada, o maior tempo da relação44 Sousa GS, Silva RM, Reinaldo MAS, Soares SM, Gutierrez DMD, Figueiredo MLF. “A gente não é de ferro”: Vivências de cuidadores familiares sobre o cuidado com idosos dependentes no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):27-36., o relacionamento positivo2828 Bjorge H, Kvall K, Ulstein I. The effect of psychosocial support on caregivers' perceived criticism and emotional over-involvement of persons with dementia: an assessor-blinded randomized controlled trial. BMC Health Serv Res. 2019;9(1):744. e o estabelecimento de um vínculo de confiança2929 Soares A. O trabalho de cuidar e as emoções nos tempos da Covid-19. In: Angotti B, Vieira RSC, organizadores. Cuidar, verbo coletivo: diálogos sobre o cuidado na pandemia da Covid-19. Joaçaba: Editora Unoesc, 2021, p.41-56. possibilitem mais segurança no desempenho da função e diminuam o trabalho emocional. De modo contrastante, nesta pesquisa, a flutuação ou o agravamento do quadro e a complexificação de demandas desestabilizam essa segurança e requerem mais trabalho emocional. Falta informação diante de novos desafios22 Lacerda MA, Silva LLT, Oliveira F, Coelho KR. O cuidado com o idoso fragilizado e a Estratégia Saúde da Família: perspectivas do cuidador informal familiar. Rev baiana enferm. 2021;35:e43127.; há dúvida se o cuidado prestado está correto, suficiente, dentro do prescrito ou adequado para o bem-estar da pessoa idosa. Além disso, existe incipiência de ações de apoio, orientação e suporte ao cuidado no Brasil66 Figueiredo MLF, Gutierrez DMD, Darder JJT, Silva RF, Carvalho ML. Cuidadores formais de idosos dependentes no domicílio: desafios vivenciados. Ciênc. Saúde Colet. 2021;26(1):37-46.

7 Diniz MAA, Melo BRS, Neri KH, Casemiro FG, Figueiredo LC, Gaioli CCLO et al. Estudo comparativo entre cuidadores formais e informais de idosos. Ciênc. saúde colet. 2018;23(11):3789-3798.
-88 Santos SMA, Rifiotis T. Cuidadores familiares de idosos dementados: um estudo crítico de práticas quotidianas e políticas sociais de judicialização e reprivatização. In: Grossi MP, Schwabe E, organizadores. Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letras, Associação Brasileira de Antropologia, 2006. p.95-114.. O trabalho evidencia em última análise a falta de letramento para cuidado a uma pessoa idosa em processo de fragilização.

São limitações desta pesquisa ter sido realizada apenas com quem cuida de participantes da linha de base do estudo FIBRA, o que pode ter restrito o alcance, mas fornece insigths sobre a experiência de cuidar de pessoas idosas em processo de fragilização. A opção de explorar o universo do cuidado onde ele acontece possibilitou escutar a voz de cuidadoras e cuidadores profissionais e familiares, considerando as colisões e especificidades. Isso se configura como um desafio para encontrar literaturas semelhantes, mas também introduz o ineditismo desta pesquisa. A percepção de que todo cuidado é trabalho3333 Antunes R. Adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2021. sustenta essa construção, que visa trazer luz sobre os conhecimentos tácitos imbricados e inseridos culturalmente, com marcas sociopolíticas que os naturaliza e invisibiliza. Considera-se que o cuidado como emprego é mais uma discussão que carece de regulação no país.

CONCLUSÃO

Nesta pesquisa entre as pessoas que cuidam de pessoas idosas em processo de fragilização, o cuidado é algo intenso – configura-se uma relação que envolve presença e dedicação em múltiplas dimensões - e complexo - em virtude da necessidade de outros suportes para apoiar alguém que vivencia a perda de uma independência anterior.

As pessoas que cuidam revelaram um comprometimento moral (“a pessoa cuidada depende de mim”), mas também ético (de humanidade, dedicação) e emocional (de interesse, afeto e reciprocidade), agregando conhecimento para o campo da geriatria e gerontologia. O cuidado para quem cuida configura-se uma relação de confiança sutil e complexa, envolta por emoções e dificuldades. A ausência de formação para cuidar, a falta de acessibilidade e de recursos materiais são vivenciadas por cuidadoras e cuidadores familiares e profissionais; logo, são necessárias políticas públicas para amenizar essa dificuldade. Nessa mesma perspectiva, para aquelas com vínculo profissional, chama atenção a ausência de cumprimento de direitos trabalhistas; para os cuidadores familiares, a invisibilidade da atividade realizada no âmbito domiciliar como um trabalho. Para todas as pessoas que cuidam, fica evidente a necessidade de apoio para continuarem a cuidar sem negligenciar o autocuidado.

O cuidado à pessoa idosa em processo de fragilização é uma tarefa essencial sustentada nas criações e enfrentamentos. Isso significa compreender as pessoas idosas em processo de fragilização e quem delas cuida como sujeitos cujas humanidade e subjetividade devem ser reconhecidas e respeitadas. Para tanto, são necessários a presença e o suporte da rede sociofamiliar, bem como o investimento em políticas públicas que ofertem ações comunitárias e intersetoriais de cuidado, com a participação de todos os envolvidos: a pessoa idosa, a pessoa que cuida, a família, a sociedade e o Estado.

  • Financiamento da pesquisa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Código 001. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Nº do processo: 303372/2014-1, Bolsa de produtividade. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Nº do processo: APQ-00703-17.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente Gislaine Alves de Souza.

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Editado por

Editado por: Maria Helena Rodrigues Galvão

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação ao autor correspondente Gislaine Alves de Souza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2023
  • Aceito
    25 Set 2023
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