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Ambulatório de genética médica na Apae: experiência no ensino médico de graduação

A medical genetics clinic in a Day-care Center for Handicapped: an experience in undergraduate medical education

Resumos

Este trabalho relata uma experiência de ensino cujo objetivo foi oferecer formação significativa e integradora na área de genética médica aos graduandos de medicina do Centro Universitário Barão de Mauá. Para isto, em 2005, foi estruturado um ambulatório de genética médica na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) do município de Jardinópolis (SP), como parte do estágio de internato em Saúde Coletiva e Medicina da Família e Comunidade, realizado nos serviços de saúde desse município. Desde então, os estudantes do sexto ano do curso médico avaliaram 140 pacientes, estabelecendo o grau de comprometimento intelectual, a etiologia da deficiência mental e oferecendo aconselhamento genético não-diretivo às famílias, sob orientação dos professores. A diversificação do cenário de ensino e aprendizagem aproximou os alunos da realidade dos pacientes com deficiência mental no País. Além disto, os estudantes puderam se apropriar de alguns fundamentos teóricos da genética médica a partir da constatação de suas implicações na prática clínica, tornando a aprendizagem significativa. Com esta experiência espera-se ter contribuído para a formação de médicos mais competentes na área da genética médica e saúde coletiva, e dispostos a trabalhar de forma integrada e integradora com a comunidade.

Educação médica; Genética médica; Serviços de integração docente-assistencial


This paper relates an educational experience, whose goal was to offer community-integrated qualification in the field of medical genetics to students of the Barão de Mauá Medical School, Ribeirão Preto, State of São Paulo, Brazil. For this purpose, a medical genetics clinic was established in 2005 at the Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - Apae (Association of Parents and Friends of Handicapped Children) as part of the course of Collective Health and Family and Community Medicine. Since then, the sixth year medical students have evaluated 140 patients, establishing their degree of intellectual disability, the etiology of the mental deficiency, and offered genetic counseling to the families under the guidance of their teachers. The diversification of the learning-teaching scenario brought the students closer to the patients and to the reality of the community. Moreover, the students could assimilate some theoretical bases of medical genetics by experiencing its implications in the clinical practice, turning the learning experience significant. The authors hope that this experience will contribute to qualify doctors better prepared in medical genetics and collective health and ready for working in an integrated and integrative manner with the community.

Education, medical; Genetics, medical; Teaching care integration services


RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Ambulatório de genética médica na Apae: experiência no ensino médico de graduação

A medical genetics clinic in a Day-care Center for Handicapped: an experience in undergraduate medical education

Débora Gusmão MeloI; Marcelo Marcos Piva DemarzoI; Jair HuberII

IUniversidade Federal de São Carlos, São Paulo, Brasil

IICentro Universitário Barão de Mauá, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Débora Gusmão Melo Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Campus São Carlos Rodovia Washington Luís (SP-310), Km, 235 Departamento de Medicina (área norte) CEP 13565-905 São Carlos / SP E-mail: dgmelo@ufscar.br

RESUMO

Este trabalho relata uma experiência de ensino cujo objetivo foi oferecer formação significativa e integradora na área de genética médica aos graduandos de medicina do Centro Universitário Barão de Mauá. Para isto, em 2005, foi estruturado um ambulatório de genética médica na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) do município de Jardinópolis (SP), como parte do estágio de internato em Saúde Coletiva e Medicina da Família e Comunidade, realizado nos serviços de saúde desse município. Desde então, os estudantes do sexto ano do curso médico avaliaram 140 pacientes, estabelecendo o grau de comprometimento intelectual, a etiologia da deficiência mental e oferecendo aconselhamento genético não-diretivo às famílias, sob orientação dos professores. A diversificação do cenário de ensino e aprendizagem aproximou os alunos da realidade dos pacientes com deficiência mental no País. Além disto, os estudantes puderam se apropriar de alguns fundamentos teóricos da genética médica a partir da constatação de suas implicações na prática clínica, tornando a aprendizagem significativa. Com esta experiência espera-se ter contribuído para a formação de médicos mais competentes na área da genética médica e saúde coletiva, e dispostos a trabalhar de forma integrada e integradora com a comunidade.

Palavras-chave: Educação médica; Genética médica; Serviços de integração docente-assistencial.

ABSTRACT

This paper relates an educational experience, whose goal was to offer community-integrated qualification in the field of medical genetics to students of the Barão de Mauá Medical School, Ribeirão Preto, State of São Paulo, Brazil. For this purpose, a medical genetics clinic was established in 2005 at the Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - Apae (Association of Parents and Friends of Handicapped Children) as part of the course of Collective Health and Family and Community Medicine. Since then, the sixth year medical students have evaluated 140 patients, establishing their degree of intellectual disability, the etiology of the mental deficiency, and offered genetic counseling to the families under the guidance of their teachers. The diversification of the learning-teaching scenario brought the students closer to the patients and to the reality of the community. Moreover, the students could assimilate some theoretical bases of medical genetics by experiencing its implications in the clinical practice, turning the learning experience significant. The authors hope that this experience will contribute to qualify doctors better prepared in medical genetics and collective health and ready for working in an integrated and integrative manner with the community.

Key words: Education, medical; Genetics, medical; Teaching care integration services.

O MOVIMENTO DE REFORMA NO ENSINO MÉDICO DE GRADUAÇÃO E A INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO-COMUNIDADE

Em nossa sociedade, a educação universitária tem sido revisitada nas diversas áreas do saber devido à percepção de algumas de suas peculiaridades, que tendem a favorecer a alienação do estudante e fazer com que a universidade não forneça a formação adequada ao desenvolvimento de certas competências profissionais, nem o profissional adequado às necessidades dos diversos países1. Em função disso, desde o final dos anos 1960, muitos países, entre eles Canadá, Países Baixos e Austrália, iniciaram o processo de reforma na educação dos profissionais de saúde, visando adequá-la às novas necessidades profissionais e demandas de saúde da população1.

No contexto histórico brasileiro, a construção e a homologação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)2 para os cursos de graduação em saúde se somam ao movimento de construção de um novo paradigma, um novo modelo de assistência em saúde, o da integralidade. Políticas mais recentes aproximam os ministérios da Saúde e Educação para ações coordenadas que reduzam as distâncias entre as escolas, os serviços de assistência à saúde e a comunidade (Aprender SUS, Promed, Pró-Saúde)3. A atenção primária à saúde tem constituído um cenário privilegiado de ensino-aprendizagem nesse contexto3. Aparece, então, um contexto que favorece o desencadeamento de ações que, monitoradas de forma crítica e reflexiva, diante da vivência de aproximação escola, serviço e comunidade, podem determinar mudanças que levem à transformação paradigmática4.

O ENSINO DE GENÉTICA MÉDICA

A importância do ensino de genética nos cursos de medicina foi reconhecida pela primeira vez por Madge Thurlow Mackin, que cunhou o termo "genética médica" em seu artigo intitulado Medical genetics: a necessity in the up-on-date medical curriculum, publicado em 19325.

O grande marco do ensino da genética foi o Short Course in Medical Genetics, um curso de verão oferecido no Jackson Laboratory, em Bar Harbor, concebido por McKusick e John Fuller, e ministrado por McKusick em 1960. Esse curso foi uma oportunidade para professores tomarem conhecimento dos mais recentes trabalhos na área da genética médica6,7.

Em 1961, a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveu, em Genebra, uma reunião com vários especialistas com a finalidade de discutir o ensino da genética nos cursos de medicina. Representou o Brasil o professor Oswaldo Frota-Pessoa, da Universidade de São Paulo (USP)8.

Nesse contexto, a genética é reconhecida oficialmente como uma ciência clínica e laboratorial, refletindo, assim, a consciência, dentro da classe médica, de sua importância na educação e prática de saúde9. Desde então, o crescimento exponencial dos conhecimentos da genética vem sendo gradativamente absorvido nos currículos de graduação da área da saúde9.

Com o reconhecimento da importância da genética na medicina e os resultados das pesquisas atualmente desenvolvidas, impõe-se o preparo dos profissionais para que todos esses avanços sejam incorporados na prática de saúde10. No entanto, é necessário que os professores de genética tenham clareza de que educar não é exigir que o estudante memorize uma série de detalhes sobre doenças raras; ao contrário, é necessário enfatizar a relevância clínica da genética, de forma que o conhecimento adquira significado para o estudante11.

Todas as doenças têm um fundamento genético, com a possível exceção de algumas formas de traumatismos12. No entanto, a (r)evolução da genética na medicina e seus subseqüentes benefícios vêm tendo pequeno ou nenhum impacto nos países em desenvolvimento, onde vivem mais de 80% da população mundial13,14. Não deveria ser assim, pois o ônus de haver doenças geneticamente determinadas nesses países pode ser até mesmo maior do que nos países desenvolvidos15.

Para reverter esta situação, algumas propostas práticas e condizentes com a realidade brasileira já foram apontadas. Entre elas destacam-se: necessidade de campanhas educacionais sobre fatores de risco para deficiências, como, por exemplo, o controle do uso de álcool por mulheres gestantes; a vacinação contra a rubéola das mulheres em período fértil e o controle, nas meninas, do uso de teratógenos, como talidomida, misoprostol e tretinoína; a conscientização do fato de que de 2% a 3% dos nascimentos geram crianças com defeitos congênitos e que no Sul-Sudeste as anomalias congênitas representam as primeiras causas de mortalidade infantil (como nos países desenvolvidos); o apoio às instituições de atenção aos deficientes para o correto estabelecimento do diagnóstico etiológico e realização adequada do aconselhamento genético não-diretivo; o incentivo para que todas as crianças com defeitos congênitos recebam avaliação genética; a avaliação da genética de todos os casais com perdas reprodutivas e/ou dificuldades de fertilização; e o estímulo para que todas as faculdades da área da saúde abordem os conteúdos de genética médica em seus currículos16.

Acredita-se que, com o início do século 21, todos os campos da medicina, incluindo a atenção primária à saúde (APS), incorporarão os avanços científicos e tecnológicos da genética na sua prática clínica13. É inquestionável a necessidade de médicos geneticistas nas situações mais complexas, mas isso, por si só, não é suficiente, uma vez que a medicina genética será praticada, na maior parte dos casos, e cada vez mais, por diferentes profissionais da APS13.

Ainda que de forma limitada, a educação e o treinamento em genética médica vêm sendo implantados no Brasil17. No entanto, geralmente a aprendizagem é fundamentada em uma disciplina, freqüentemente isolada, com uma prática clínica limitada e restrita ao estudo de doenças raras na população geral, mas freqüentes nos hospitais-escola.

Se é esperado que os profissionais da APS assumam maior responsabilidade nos cuidados gerais a paciente com doenças genéticas, eles precisam ser educados e treinados para conduzir os problemas genéticos comuns da melhor forma possível nas condições disponíveis, encaminhando a serviços especializados somente os pacientes que requeiram cuidados especiais em termos de diagnóstico, investigação e tratamento13.

No prefácio do Nuffield Trust Genetics Scenario Project Genetics and Health18, Wynn-Owen afirma que não se pode prever exatamente qual será o impacto da genética na prática médica e quando acontecerá. Contudo, considera que seu significado não pode ser subestimado e que é necessário planejar estratégias para as mudanças que indubitavelmente acontecerão mais adiante. Para esse autor, "se o destino esperado é melhorar a saúde para todas as nações, então nossa tarefa imediata é descobrir, tanto quanto possível, o melhor caminho que conduz a esse destino".

A DISCIPLINA DE SAÚDE COLETIVA E MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE DO CURSO DE MEDICINA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO BARÃO DE MAUÁ

O Centro Universitário Barão de Mauá (CBM) é uma das instituições formadoras dos profissionais da área de saúde do município de Ribeirão Preto (SP). O curso de medicina do CBM (CMCBM) iniciou suas atividades no segundo semestre de 1999 e formou a primeira turma em agosto de 2005. O curso recebe anualmente 60 novos estudantes e tem por missão a formação do médico generalista, entendendo ser este o perfil de médico mais adequado às demandas sociais contemporâneas mundiais e também no Brasil19.

Em 2003, a disciplina de Saúde Coletiva começou a ser ministrada ao corpo discente da primeira à sexta série do curso médico. O objetivo principal da disciplina é dar ao estudante a oportunidade de traçar um perfil epidemiológico da população com que irá atuar, conhecendo as dificuldades e expectativas desta população e os fatores determinantes no processo saúde-adoecimento daquela localidade; desenvolvendo, junto a ela, atividades de promoção de saúde e prevenção de doenças; auxiliando também no processo de recuperação da saúde; e, finalmente, criando sólidos vínculos com as pessoas e suas famílias, que, no futuro, serão os objetos de sua atenção profissional, além de entender a dinâmica e as peculiaridades do sistema de saúde local e nacional19.

Em 2004, foi criado o módulo de Medicina de Família e Comunidade (MFC), ligado à disciplina de Saúde Coletiva, dando seqüência à inserção do corpo discente na comunidade e integrando o elenco de disciplinas ministrado aos estudantes da quarta série do curso médico. O objetivo é capacitar o corpo discente a aprender, in loco, a promoção de saúde e os conceitos de Atenção Primária à Saúde (APS), sob a ótica do médico de família e comunidade, a tratar as doenças prevalentes no cenário dos cuidados primários e a recuperar a saúde dos integrantes das famílias e comunidades com as quais teve contato nas etapas anteriores. Os cenários de prática são as UBS e USF dos municípios conveniados com o CMCBM - Ribeirão Preto e Jardinópolis (SP)19.

A disciplina de Saúde Coletiva envolve docentes especialistas em Medicina de Família e Comunidade, além de um docente com formação em Psicologia e Trabalho com Grupos. Ainda conta com médicos preceptores (médicos de família e comunidade, geneticistas e um psiquiatra), além de um administrador de empresas, que aborda os conceitos de gestão em saúde com os estudantes19.

De forma sucinta, a disciplina de Saúde Coletiva atualmente envolve os módulos de Saúde Coletiva I e II - Introdução à Saúde Coletiva e à Epidemiologia (1ª série); Saúde Coletiva III - Comunicação em Saúde (2ª série); Saúde Coletiva IV - Epidemiologia Básica e Aplicada (3ª série), Medicina de Família e Comunidade (4ª série) e Treinamento em Serviço (Internato, 5ª e 6ª séries)19.

A EXPERIÊNCIA DO AMBULATÓRIO DE GENÉTICA MÉDICA NA APAE

A experiência do Ambulatório de Genética Médica da disciplina de Saúde Coletiva e MFC ocorre durante o módulo de Treinamento em Serviço do sexto ano médico e tem como cenário a Associação de Pais e Amigos do Excepcional (Apae) de Jardinópolis, interior de São Paulo.

Tem o objetivo de promover a capacitação em genética médica dos estudantes de medicina do CBM, buscando o entendimento do papel da comunidade como sujeito e não como objeto das ações de saúde e estimulando atividades intersetoriais. Procura-se também contribuir para a democratização do conhecimento no processo saúde-adoecimento com enfoque na genética e para o entendimento das relações políticas, sociais e familiares que envolvem o paciente com doença genética.

O ambulatório foi estruturado na Apae de Jardinópolis em fevereiro de 2005 e existe até os dias atuais. Esta Apae foi fundada em 20 de outubro de 1978 e atende a 123 crianças e adultos com deficiência mental, de graus variados e etiologias distintas. A instituição conta com uma equipe de profissionais de saúde composta por fisioterapeuta, psicóloga, fonoaudióloga e assistente social. Além disto, existem equipes pedagógicas e de apoio administrativo.

Anualmente, 60 estudantes de medicina do sexto ano participam do ambulatório. Os estudantes são divididos em dez grupos, sendo que um dos grupos se desloca uma vez por semana para a Apae com o objetivo de realizar as atividades ambulatoriais.

Dois consultórios médicos foram organizados na Apae, e cada subgrupo de três estudantes faz avaliação clínica de três pacientes por dia. A escolha dos pacientes a serem avaliados é feita pelas equipes de saúde e pedagógica da Apae, priorizando a demanda da instituição. Foi estruturado um arquivo médico, com prontuários individuais e fichas de caso novo e seguimento ambulatorial. Mediante convênio firmado com a prefeitura local, é possível a realização de exames complementares.

A dinâmica do ambulatório é a seguinte: os pacientes são agendados semanalmente pela assistente social da Apae, que contata os seus responsáveis e os convida a participar da consulta. O paciente só é avaliado se seu responsável legal concordar e comparecer à consulta agendada. Os estudantes de medicina realizam história clínica individual e familiar, constroem o heredograma da família, fazem exame clínico geral e dismorfológico e levantam hipóteses diagnósticas para a deficiência mental do paciente. Os casos são discutidos com os professores médicos geneticistas, que orientam os estudantes em relação às condutas e ao aconselhamento genético não-diretivo.

Quando necessário, para esclarecimento diagnóstico, são solicitados exames complementares, encaminhamentos a outros profissionais ou mesmo avaliação de outros familiares do paciente. Ao final de cada atendimento, o estudante prepara um relatório, que é disponibilizado para a equipe de profissionais da Apae. Mensalmente, as equipes se reúnem para discutir os casos mais complexos. Quando é feito o diagnóstico de alguma patologia determinada geneticamente, são oferecidos atendimento médico e aconselhamento genético a toda a família do paciente. Sendo excluída a doença genética como causa da deficiência mental, a família recebe orientações pertinentes às suas demandas, e o paciente recebe alta do ambulatório, podendo ser marcadas novas consultas para cuidados médicos gerais, se necessário.

O presente relato refere os resultados das atividades dos estudantes ao longo destes dois anos de experiência com o ambulatório de genética médica. Este trabalho foi avaliado e autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Barão de Mauá (Protocolo 185/2007).

Perfil do Ambulatório de Genética Médica da Apae

Durante os dois anos relatados, foram avaliados 140 pacientes, o que corresponde à totalidade das pessoas cadastradas e acompanhadas na instituição, e 17 familiares destas pessoas. Setenta e sete pacientes (55%) tinham menos de 18 anos na época da avaliação. Observou-se predomínio de homens, que representavam 67,14% (94) da população geral avaliada.

Em relação ao grau de comprometimento cognitivo, 62 (44,27%) dos pacientes tinham deficiência mental grave ou severa, 33 (23,58%) tinham deficiência mental moderada, e 34 (24,29%), leve. Em 11 pacientes (7,86%) não foi possível determinar o grau de comprometimento intelectual.

A análise da etiologia da deficiência mental revelou que em 46 (32,86%) pacientes a causa mais provável era genética, em 53 (37,86%) era ambiental e em 41 (29,28%) não foi possível fazer esta determinação. Entre os pacientes com doenças genéticas, 16 (11,43%) tinham Síndrome de Down.

Vinte e três (16,43%) pacientes foram encaminhados a outros serviços de maior complexidade, pois não foi possível atender às suas necessidades de saúde no âmbito deste ambulatório de genética.

REFLEXÕES

Observou-se que a integração entre academia e comunidade possibilitou diversificar os cenários de ensino e aprendizagem, aproximando o estudante de uma prática clínica condizente com a realidade. Além disto, em se tratando de um ambulatório de genética médica, foi possível romper com a dicotomia que existe entre disciplinas do ciclo básico e clínico do currículo médico, possibilitando ações integradoras.

Os estudantes puderam se apropriar de alguns fundamentos teóricos da genética médica a partir da constatação de suas implicações na prática clínica, o que tornou a aprendizagem significativa. Por exemplo, o predomínio de pacientes do sexo masculino na Apae foi reconhecido como conseqüência dos muitos genes de deficiência mental ligados ao cromossomo X, dado epidemiologicamente conhecido mesmo antes de estes genes serem mapeados20.

Tendo por base as diretrizes da Association of American Medical Colleges (AAMC) publicadas em 1984, a American Society of Human Genetics (ASHG) criou uma força-tarefa multidisciplinar com o objetivo de examinar como estava sendo feito o ensino da genética humana nas escolas médicas norte-americanas21. O resultado desse estudo sugere que o estudante de medicina deveria ter familiaridade com os sinais e sintomas mais importantes das doenças genéticas comuns, como a Síndrome de Down, ou tratáveis, como a fenilcetonúria. A maior parte das doenças genéticas mais específicas e raras deveria ser ensinada como exemplo de conceitos importantes. Assim, a Doença de Huntington poderia servir para discutir a variação da idade de início dos sintomas nas doenças genéticas, e a neurofibromatose poderia ser usada como exemplo de variabilidade da expressão clínica.

No Ambulatório de Genética Médica da Apae de Jardinópolis procurou-se utilizar os pacientes com problemas genéticos para o treinamento clínico dos estudantes na perspectiva acima. No entanto, os estudantes foram, todo o tempo, estimulados a terem o foco "no paciente com doença genética" e não "na doença que o paciente tem", desenvolvendo o pensamento genético aplicado ao cuidado integral do indivíduo e de sua família.

O não esclarecimento etiológico da deficiência mental numa parcela importante dos pacientes é fato bem documentado na literatura genética, que considera que em cerca de 40% dos pacientes com deficiência mental a causa permanece desconhecida, mesmo após exaustiva investigação médica22. Diante desta observação, os estudantes puderam reconhecer seus próprios limites profissionais e a importância da auto-aprendizagem contínua.

Participando do ambulatório, os estudantes aprenderam como sintetizar os dados relatados pelo paciente sobre a deficiência mental e como usar essas informações para formular um plano apropriado para diagnóstico e cuidado. Foi treinada a capacidade de extrair uma história genética, construir um heredograma apropriado e inferir sobre o padrão das heranças genéticas; executar um exame físico compreensível para anomalias maiores e menores, com atenção especial para os aspectos anatômicos e para as medidas antropométricas; formular hipóteses diagnósticas e indicar exames complementares condizentes.

A realização de aconselhamento genético não-diretivo permitiu o encorajamento de algumas atitudes, desejáveis na prática médica, como: respeito e empatia pelas famílias, total compartilhamento das informações com o paciente e sua família, respeito pela autonomia e não condenação na comunicação.

Os fundamentos do aconselhamento genético não-diretivo também prevêem que o aconselhador dever ser empático e respeitar os valores religiosos, morais, éticos e as tendências dos pacientes, mesmo que elas sejam diferentes dos seus valores próprios23. Com isto, foi possível trabalhar junto aos estudantes questões como: a tolerância da repetição da informação, por conta da ansiedade do paciente ou da não familiaridade com os conceitos empregados; a aplicação de técnicas apropriadas para repassar notícias ruins; o reconhecimento dos mecanismos de defesa dos pacientes e a capacidade de perceber quando preservá-los e quando eles precisam ser quebrados; a capacidade de conter-se emocionalmente frente às diferentes respostas dos pacientes; a capacidade de interpretar suas próprias atitudes com respeito aos aspectos éticos, sociais, culturais, religiosos e étnicos e de desenvolver a habilidade de individualizar cada paciente ou membro da família.

O valor do uso apropriado de serviços e instituições de suporte da comunidade, como a Apae, foi discutido e percebido pelos estudantes. Houve o reconhecimento de que grupos de apoio a pacientes com doenças genéticas são essenciais para maior suporte e conforto às famílias, ajudam na divulgação de informação e exercem papel fundamental para a introdução do tema "genética médica" na agenda política do País24. Verificou-se que a interação estudante/comunidade fortaleceu e ajudou a comunidade em suas lutas por melhor qualidade de vida e atenção integral ao paciente com deficiência mental, estimulando um maior controle social das ações e serviços de saúde.

Além disto, trabalhando em equipe, os estudantes puderam constatar que o cuidado em saúde, quando exercido com as devidas características de multiprofissionalismo e interdisciplinaridade, obtém melhores resultados, em termos de qualidade técnica e humana, do que as formas usuais de organização do cuidado, centradas no monoprofissionalismo do médico ou na plenipotência de seu saber e de suas técnicas25.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ministérios da Saúde e Educação têm mobilizado esforços no sentido de reorientar o modelo assistencial brasileiro, conforme preconizado pela Reforma Sanitária, entendendo que a consolidação do Sistema Único de Saúde depende, também, da revitalização dos projetos pedagógicos dos cursos de graduação em medicina3.

As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina preconizam que este deve estar organizado, em sua estrutura curricular, de tal maneira que permita a inserção do aluno em atividades práticas, de complexidade crescente durante a graduação, utilizando vários cenários de aprendizagem, por meio da integração ensino-serviço26.

Para professores de medicina permanece o desafio de superar seus dilemas e suas especificidades, interagir com outros segmentos da sociedade e com outros profissionais de saúde, assegurando a formação de profissionais médicos adequados a responderem às demandas fundamentais em saúde e com capacidade de se aprimorarem continuamente27,28.

Nesse contexto, com a experiência do Ambulatório de Genética Médica da Apae de Jardinópolis, espera-se ter contribuído para a formação de médicos mais habilitados na área da genética médica e dispostos a trabalhar de forma integrada e integradora com a comunidade e a realidade social de seus pacientes.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à equipe multidisciplinar da Apae de Jardinópolis, aos pacientes e seus familiares.

Recebido em: 22/06/2007

Reencaminhado em: 26/11/2007

Aprovado em: 26/11/2007

CONFLITOS DE INTERESSE: Declarou não haver.

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  • Endereço para correspondência
    Débora Gusmão Melo
    Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
    Campus São Carlos Rodovia Washington Luís (SP-310), Km, 235
    Departamento de Medicina (área norte)
    CEP 13565-905 São Carlos / SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2008

    Histórico

    • Recebido
      22 Jun 2007
    • Revisado
      26 Nov 2007
    • Aceito
      26 Nov 2007
    Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
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