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Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais ?

Which Health Professionals and How Many Are Needed to reorient the Health Care Model?

Resumo:

Ao longo do século 20, ocorreram três gerações de reformas em sistemas de Saúde. Quanto maior a orientação de sistemas de Saúde para a Atenção Primária, melhores os resultados de cuidados em relação aos custos. A avaliação de necessidades / demandas é realizada por excelência no nível primário dos sistemas de saúde e é onde a estrutura do mesmo pode frustrar ou facilitar a adequada exploração das especialidades. As funções dos diferentes níveis da atenção clínica e da saúde pública são apresentadas, assim como os diferentes níveis administrativos. A gestão dos recursos humanos de um sistema de saúde orientado para a estratégia do Programa de Saúde da Família necessita de 50% de médicos de família. As demais especialidades - mais de 60 - resultariam em relativamente pequenas proporções de especialidades gerais, subespecializas e profissionais da saúde pública. Estas alterações caracterizam mudança de paradigma, não apenas um especialistas a ser acrescido aos já existentes, determinam mudanças no ensino de medicina e geram incontáveis conflitos que só poderão ser suplantados por meio de amplos entendimentos entre todos os protagonistas, inclusive o público.

Palavra-chave:
Política de Saúde; Saúde da Família; Recursos Humanos em Saúde; Cuidados Primários de Saúde

Abstract:

During the 20th century there have been three overlapping generations of health systems reforms. The greater the orientation towards primary care, the better the outcomes of care in relation to costs. Needs assessment is mainly the role of primary care, and that is where the structure of the health care system can frustrate or facilitate exploitation of the specialized fields, the functions of each level of clinical care and of public health are presented hare, along with the respective administrative levels. Human resources management in a health system, including primary care, requires some 50% of Family practitioners. The others specialties - more than 60 - normally involve relatively smaller proportions of general specialists, and public health personnel. This means not only a change of paradigm (rather than merely adding one more specialist to others), but also charges in medical training meanwhile giving rise to countless conflicts that can only be resolved through broad agreements by all protagonists , including the lay public.

Key-words:
Health Policy; Family Health; Health Manpower; Primary Health Care

O médico de família deve proteger seus pacientes dos especialistas inapropriados e os especialistas dos pacientes inapropriados. John Fry

INTRODUÇÃO

Hoje e a cada dia, a vida de grande número de pessoas está nas mãos de sistemas de saúde. Desde o nascimento seguro de uma criança sadia até cuidados dignos oferecidos para frágeis idosos, sistemas de saúde têm responsabilidades vitais e contínuas para as pessoas, ao longo da sua trajetória de vida1l. World Health Organization (WHO). Overview In: The World Health Report. Health Systems: Improving Performance. Geneva: WHO; 2000..

Fatores tão diversos como desenvolvimentos tecnológicos, a dinâmica demográfica e o crescente envolvimento de usuários provocam alterações na provisão dos cuidados médicos em todo o mundo22. Whitehouse C, Roland M, Campion P, Editors. Teaching Medicine in the community: a guide for undergraduate education. Oxford: Oxford University Press; 1997. (Oxford General Practice Series; 38)..

No Brasil, mudanças no modelo assistencial estão sendo implementadas. Os recursos humanos, físicos, tecnológicos e farmacêuticos deverão ser redimensionados.

Todas as tarefas a serem enfrentadas pelos profissionais da saúde demandarão quadros técnicos qualificados e motivados, o que implica uma política de recursos humanos para o setor saúde ainda por ser construída no país33. Monteiro CA, org. Velhos e novos males da Saúde no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 1995..

Na rede pública, até porque é pública, o caso (clínico) não é de ninguém. Na rede privada, o paciente, por sua conta e risco, migra de consultório em consultório, frequentemente buscando a opinião de várias especialistas, novamente sem a mínima troca de informações entre eles (44. Warth MP. A relação médico-paciente. Médicos HC-FMUSP 1998; (2): 95..

No momento atual de expansão da estratégia do programa de saúde da família (PSF), prioridade assumida pelo governo federal como eixo condutor da reorientação do modelo assistencial, a temática de recursos humanos mantém-se como um dos postos-chave nos foros de discussão dos gestores do SUS55. Rede Unida. Editorial. Como garantir pessoal para ações prioritárias? Boletim da Rede UNIDA 2000; (1)..

Reorientar o modelo assistencial implicará discussões prepositivas e, principalmente, ações mais específicas.

Em primeiro lugar, admitir que será necessário construir um novo sistema de saúde claramente explicitado, inclusive para o público. Depois, surgem outras questões relativas aos recursos humanos do pretendido novo modelo.

Quantos e quais são os profissionais necessários para operá-lo? Trabalhando onde? Ganhando quanto? Quais são as funções da medicina clínica e da saúde pública?

Este trabalho pretende contribuir para esta ampla discussão, endereçando-se a estas questões essenciais, na complexa tarefa de mudar o modelo assistencial no Brasil.

O QUE É UM SISTEMA DE SAÚDE? OS DETERMINANTES DE SAÚDE E UMA POLÍTICA INTEGRADORA. A TERCEIRA GERAÇÃO DE REFORMAS

No complexo mundo atual, pode tomar-se difícil dizer exatamente o que é um sistema de saúde, em que ele consiste, onde começa e termina. Uma definição de sistema de saúde inclui todas as atividades cujo objetivo seja o de promover restaurar ou manter saúde.

Os serviços prestados por profissionais estão claramente dentro destas premissas. Como estão as ações prestadas por curandeiros tradicionais e todos os usos de medicação, sejam prescritos por provedor ou não66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

Quatro amplos elementos - biologia humana, ambiente, estilo de vida e organização dos cuidados médicos - determinam os níveis de saúde de populações humanas. Foi proposta uma política integradora para sistemas de saúde nos anos 8077. Lec PR, Franks PE. Health and disease in the community. In: Fry J, editor. Primary Care. London: William Heinemann Medical Books; 1980. p.3. Nela, as estratégias de intervenções foram classificadas nas seguintes categorias :1) promoção de saúde; 2) proteção de saúde; 3) cuidados de saúde; 4) pesquisa em saúde. As relações entre os determinantes de saúde e as intervenções estão representadas na Figura 1. Estas, resumidamente, incluiriam:

  • Promoção de saúde - disseminação de informações habitação, emprego, educação;

  • Proteção de saúde - saúde ocupacional, poluição do ar, agua, segurança de alimentos;

  • Cuidados de saúde-cuidados pessoais médicos, odontológicos, de enfermagem, farmacêuticos, imunizações, diagnóstico, tratamentos, reabilitação;

  • Pesquisa em todos os elementos determinantes de saúde.

Figura 1
Uma estratégia política integradora77. Lec PR, Franks PE. Health and disease in the community. In: Fry J, editor. Primary Care. London: William Heinemann Medical Books; 1980. p.3).

Os fatores socioculturais e ambientais têm amplas repercussões nos níveis de saúde:

  • Baixo status socioeconômico é, provavelmente, o mais poderoso fator isolado que contribui para mortalidade e morbidade prematuras, não somente nos EUA, mas em todo o mundo. O excesso de mortalidade, associado com baixo status socioeconômico, é mediado por fatores em todos os determinantes de saúde. O ambiente adverso nos quais os pobres vivem, especialmente na infância, é um forte candidato para ser responsabilizado pelo aglomerado de comportamentos que causam danos à saúde, além dos fatores de risco biológicos e socioculturais. Homens cujos pais foram pobres durante a sua infância eram mais prováveis de se engajar em comportamentos de risco à saúde e tinham maiores níveis de fatores psicossociais, como desesperança e hostilidade, do que homens cujos pais tinham sido prósperos88. Williams RB Lower socioeconomic status and increased mortality. JAMA 1998; 279:1745-1746..

  • Pobreza material é um fator de risco não somente para doença mental, mas, também, para o seu desfecho insatisfatório99. Sartorius N, Emsley RA. Psychiatry and technological advances: implications for developing countries. The Lancet 2000; 356:2090-2092.

  • Apesar de toda a excitação causada pela denominada nova genética e as preocupações com poluição e a emergência de novas infecções, as variáveis sociais permanecem os mais importantes determinantes de saúde. Os níveis educacionais gerais para as mulheres, em países em desenvolvimento, têm maior efeito na saúde da família do que qualquer outro fator isolado1010. Chard J, Lilford R, Gardiner O. Looking beyond the next patient: sociology and modem health care. The Lancet 1999; 353: 486-489..

  • Pobreza não somente exclui as pessoas dos benefícios de sistemas de saúde, mas também as limita de participar nas decisões que afetam sua saúde1111. Macfarlane S, Racelis M, Muli-Muslime F. Public Health in developing countries. The Lancet 2000; 356:841-846.

Durante o século 20, ocorreram três reformas nos sistemas de saúde. A primeira geração viu a fundação dos sistemas nacionais de saúde e a extensão de sistemas de seguridade social para nações de renda média, a maioria delas nos anos 1940 e 1950 nos países ricos e algo mais tarde nos países mais pobres. Na década de 60, muitos dos sistemas fundados uma ou duas décadas antes estavam sob grande pressão. Altos custos, especialmente com os aumentos do volume e da intensidade dos cuidados hospitalares, em ambos: países desenvolvidos e em desenvolvimento. Estudos sobre o que os hospitais faziam revelaram que mais da metade dos gastos se destinavam a internações que tratavam condições como diarreia, malária, tuberculose e infecções respiratórias agudas, que poderiam ser manejadas ambulatorialmente. Foi reconhecida a necessidade de uma mudança radical, que tornasse os sistemas mais apropriados em relação a eficiência, equidade e acessibilidade. Esta segunda geração de reformas, portanto, viu a promoção da Atenção Primária à Saúde (APS) como a rota para se obter cobertura universal em perspectivas de viabilidade econômica66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

Esta abordagem refletiu a experiência com projetos de controle de doenças nos anos 1940 em países como África do Sul, República Islâmica do Irã e a então Iugoslávia. Também China, Cuba, Tanzânia, Costa Rica e Sri Lanka adicionaram 15 a 20 anos de expectativa de vida ao nascer, com custos relativamente baixos, em apenas duas décadas. Em cada caso, houve um forte compromisso de assegurar um nível mínimo de todos os serviços de saúde, alimentação, educação, juntamente com o adequado suprimento de água potável e saneamento básico. Adotando a APS como estratégia para atingir o objetivo de “Saúde para Todos”, a OMS e o Uicef, conjuntamente em 1978, revigoraram os esforços para levar os serviços básicos de saúde universalmente. Apesar destes esforços, muitos deles foram considerados fracassos parciais. A provisão de recursos era inadequada; os trabalhadores tinham pouco tempo para atividades preventivas e de alcance na comunidade, seu treinamento e equipamento eram insuficientes para os problemas enfrentados; a qualidade dos cuidados era frequentemente caracterizada como “primitiva” mais do que “primária”, quando a APS era limitada aos pobres e aos serviços mais simples66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

Os serviços de referência, que são uma particularidade de serviços de saúde e uma necessidade para seu adequado desempenho, tornaram-se difíceis de operar a contento. Como consequência, países continuaram a investir em centros urbanos de nível terciário. Todos estes processos levaram a uma convergência gradual do que a OMS denomina "novo universalismo": serviços de alta qualidade, definidos principalmente por critérios de custo-efetividade, para todos, mais do que todos os cuidados possíveis para toda a população ou os cuidados mais simples e básicos para os pobres.

Esta terceira geração de reformas implica ênfase em recursos financeiros e regulação pública, mas não necessariamente a provisão pública de serviços. Também implica escolhas explícitas de prioridades entre intervenções, respeitando o princípio ético de que pode ser necessário e eficiente racionar serviços, mas é inadmissível excluir grupos inteiros da população. As ideias de responder mais às demandas, tentando com mais ênfase assegurar acesso aos pobres e enfatizando o financiamento, incluindo subsídios, mais do que apenas provisão dentro do setor público, estão incorporadas em muitas das atuais reformas da terceira geração. Estes esforços são mais difíceis de caracterizar do que as reformas anteriores, pois elas se devem a uma variedade maior de razões e incluem mais experimentações em suas abordagens66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

OS CUIDADOS MÉDICOS PESSOAIS. QUATRO NÍVEIS DE CUIDADOS E DE ADMINISTRAÇÃO. AS BASES POPULACIONAIS DE UM SISTEMA DE SAÚDE QUE INCLUA O MÉDICO DE FAMÍLIA

Para atender às necessidades de cuidados pessoais de saúde, um sistema que inclua a APS ou a estratégia do PSP necessita abarcar quatro níveis distintos de atenção:

  • Um primeiro nível não profissional, informal, os auto cuidados;

  • O nível da APS é aquele nível de atenção prestada por profissionais generalistas, o médico de família;

  • O nível de Atenção Secundária, prestado por especialistas gerais;

  • O nível de Atenção Terciária, prestado por subespecialistas.

A APS pode ser vista como um conjunto de atividades, como um processo, um nível de cuidados, uma estratégia para organizar o sistema de saúde como um todo e como uma filosofia. O conceito de níveis de atenção médica - ou seja, a APS como primeiro contato dentro de um sistema de atenção médica que inclui os níveis acima citados- foi descrito pela primeira vez pela Comissão Millis, nos EUA, há mais de trinta anos, e foi enriquecido ao longo dos anos, particularmente por John Fry. Duas escolas de pensamento surgiram sobre APS: a primeira com um paradigma biomédico, com foco em cuidados médicos para o indivíduo; a outra tem um paradigma mais amplo, biopsicossocial, e enfatiza a saúde da população servida, assim como o indivíduo. Esta última abordagem é também denominada Atenção Primária orientada para a comunidade (1212. Lee PR. Models of excellence. The Lancet 1994; 344:1484- 1486..

No Brasil, o PSP é considerado como estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde e tem demonstrado potencial para provocar um importante movimento de reordenação do modelo vigente de atenção. Suas diretrizes apontam uma nova dinâmica na forma de organização dos serviços e ações de saúde, possibilitando maior racionalidade na utilização dos níveis de maior complexidade assistencial e resultados favoráveis nos indicadores de saúde da população assistida (1414. Souza HM. Reforma da reforma. Rev Bras Saúde Fam 2002; 2(4): 2..

Sejam quais forem as perspectivas, existem dentro de cada sistema certos níveis comuns e inevitáveis de cuidados e de administração com papéis e f unções similares. Cada nível está relacionado com diferentes bases populacionais e tipos de doenças (Figura 2)1313. Fry J. A New Approach to Medicine. Lancaster: MTP Press Limited; 1978..

Figura 2
Níveis de cuidados e administração (1313. Fry J. A New Approach to Medicine. Lancaster: MTP Press Limited; 1978..

Todos os níveis profissionais de atenção médica trabalham em equipe, incluindo outros profissionais da área da saúde.

Quando adultos adoecem (illness), primeiro recorrem aos autocuidados. Dados obtidos em estudos sobre os cuidados médicos nos EUA e Reino Unido sugerem que, numa população de 1.000 adultos (> 16 anos de idade), num período de um mês, 750 adoecerão, 250 consultarão um médico, 9 serão hospitalizados, 5 serão referidos para outro médico e 1 será referido para um centro médico universitário. Estes atendem amostras enviesadas de 0,0013 dos "doentes" adultos e 0,004 dos pacientes na comunidade. De onde estudantes das profissões de saúde devem obter um conceito irrealista das tarefas da medicina tanto nos países ocidentais quanto nos países em desenvolvimento1515. White KL, Williams T.F, Greenberg BG. The ecology of medical care. N Engl J Med 1961; 265:885-892..

Médicos tendem a ignorar ou menosprezar os autocuidados, que, entretanto, são a maior parte - aproximadamente dois terços - dos cuidados tomados pelos adultos ao adoecerem. Estaria aí a explicação, ao menos parcial, da popularidade e do sucesso de práticas alternativas?

Não resolvido o problema, a consulta a um profissional é decidida, e este profissional fará o que é denominado primeiro contato, no sistema formal.

O Brasil atual opera um sistema virtualmente sem APS, orientado para especialistas. Usuários consultam os mais diferentes especialistas: pediatras, ginecologistas, cardiologistas, internistas, endocrinologistas, dermatologistas, cirurgiões e psiquiatras, entre outros. Neste modelo, os cuidados tendem a tomar-se irracionais, fragmentados, com incalculáveis perdas econômicas de escassos recursos e de precioso tempo de profissionais.

Em inúmeras circunstâncias, não existe uma clara responsabilidade por ações realizadas, nem pelo não atendimento de necessidades.

Um sistema explicitamente planejado e coerente admitiria os três níveis profissionais acima descritos seguindo parâmetros racionais: profissionais generalistas fariam um primeiro contato em quaisquer circunstâncias, ou seja, dariam atendimento para todas as idades, os dois sexos e problemas ou sintomas em quaisquer órgãos ou sistemas do organismo humano, não importando a gravidade da situação ou as circunstâncias econômicas do paciente. Este seria o nível da APS ou a estratégia da PSP.

Pacientes cujo problema não pudesse ser diagnosticado e/ou tratado neste nível deveriam ser referidos para o nível secundário. Este nível seria acionado por profissionais do PSF mais do que por pacientes.

Há de se considerar que entre 70 e 90%de todas as doenças são manejadas no ambiente do paciente: a sua casa1616. Kleinman A. Concepts and models for the comparison of medical systems as cultural systems. Soc Sci Med 1978; 12: 85-93..

Os profissionais do nível secundário seriam os especialistas gerais: cirurgiões gerais, ginecologistas, pediatras, oftalmologistas, psiquiatras, dermatologistas, cardiologistas e otorrinolaringologistas, entre outros.

Situações mais complexas exigiriam intervenções de profissionais altamente especializados em locais centralizados.

A especialização tomou-se essencial em medicina, pois é impossível para um único clínico ser um expert em mais do que pequena parte ou apenas num único órgão. Se esta fosse a única variável na equação, seria lógico instalar unidades centrais para tratar todas além das condições mais frequentes. Entretanto, tal política não é funcional, a menos que o paciente já tenha sido corretamente diagnosticado e não tenha mais do que uma doença importante. Existem, naturalmente, outros fatores na equação: idosos têm frequentemente várias condições sérias, cada qual exigindo um especialista diferente, e as pessoas se apresentam aos seus médicos com sintomas mais do que diagnósticos. Mais ainda, pacientes têm desejos conflitantes - obter os melhores tratamentos e ser tratados o mais perto de suas casas, tanto quanto possível. A superespecialização também tem seus perigos porque muito poucos pacientes com sangramento retal têm câncer colo-retal e uma menor proporção ainda daqueles com indigestão têm câncer de estomago (1717. Specialization, centralized treatment, and patient care. Editorial. The Lancet 1995; 345: 1251-1252..

Existem pelo menos três razões para transferir pacientes para centros altamente especializados:

  • Condições raras em que habilidades e treinamento não podem ser obtidos, a menos que o tratamento seja centralizado - por exemplo, tumores na cabeça e pescoço, câncer em crianças;

  • Condições que necessitem habilidades técnicas especiais-por exemplo, cirurgia de carótida, cirurgia urológica reconstrutora;

  • Condições que necessitem grandes equipes e/ ou equipamentos caros- por exemplo, doença hepática complexa e cirurgia cardíaca1717. Specialization, centralized treatment, and patient care. Editorial. The Lancet 1995; 345: 1251-1252..

QUANTOS E QUAIS PROFISSIONAIS, TRABALHANDO ONDE, GANHANDO QUANTO? FUNÇÕES DA MEDICINA CLÍNICA E DA SAÚDE PÚBLICA

A gestão de recursos humanos é um problema maior na formulação de políticas de saúde e na operação de sistemas de saúde.

Os diferentes profissionais, clínicos e não clínicos, que fazem cada intervenção individual ou de saúde pública acontecer são o mais importante insumo de um sistema de saúde. O desempenho de um sistema de saúde depende, em última análise, dos conhecimentos e da motivação das pessoas responsáveis pela execução dos serviços. Em geral, não existem respostas fáceis na área de desenvolvimento de recursos humanos. Sem gestão, o mercado de habilidades humanas leva anos, mesmo décadas, para responder aos sinais do mercado66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

Quantos profissionais? Trabalhando onde? Quanto pagar por seus serviços? Quais as suas funções? Estas seriam perguntas básicas a serem formuladas por gestores de recursos humanos na área da saúde, no setor público ou privado.

Alguns países tentaram racionalizar os números de seus profissionais da saúde, mas a variação entre países se mostrou considerável. No Canadá, por exemplo, a taxa de médicos para a população era de 17:10.000, comparada com 1,4:10.000 no Haiti. Taxas de enfermeiros para médicos também variavam amplamente, com 4:1 no Canadá e 6:1 na Finlândia, comparadas com 0,6:1 na Bolívia e índia com 0,65:11818. Hasler J. Workers. In: Fry J, Hasler J, Editors. Edinburgh: Churchill Livingstone 1986. (Primary Health Care; 2000)..

Entre os médicos também existem amplas variações em suas diferentes áreas de atuação. Somente um terço de todos os médicos dos EUA está no setor primário, comparado com mais de 50% no Reino Unido, Austrália, Alemanha e França. Entretanto, os EUA gastam USS 3.000 per capital ano, quase 14% do Produto Nacional Bruto, ou três vezes mais que o Reino Unido. A renda líquida de radiologistas, anestesistas e muitos cirurgiões é de quase USS300 .000 anuais, comparada com USS 100.000 para médicos do setor primário. Tudo isto para índices de saúde muito similares aos do Reino Unido, e ainda uma em cinco pessoas não está coberta por seguros-saúde. As pessoas estão insatisfeitas, e muitas temerosas de sua incapacidade de pagar custos extras de doenças sérias, mesmo estando seguradas1919. Fry J. The mouse and the elephant: can primary care save the US health system? The Lancet 1992; 340:594-595..

Os médicos brasileiros foram recentemente objeto de abrangente estudo. Suas especialidades, sua renda, seus desejos econômicos foram assim delineados: dentre as 64 especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, 14,17% se dedicavam à pediatria; 12,04% à ginecologia-obstetrícia;8,12% à medicina interna; 6,07% à cirurgia geral; 2,98% à medicina geral comunitária; os demais, às outras especialidades. Tinham vinculação com o setor público 71,7%; 79% consideravam sua atividade profissional desgastante; 35% declararam renda entre R$ 1.001 e RS 2.000 mensais; esta mesma proporção (35%) desejava renda entre R$ 4.001 e R$ 8.000 mensais (2020. Perfil dos médicos RADIS - Fiocruz; 1996. (19).).

Este estudo evidenciou que os médicos dedicados à APS ou à estratégia do PSF (2,98%)estavam em menores proporções que anestesistas (4,95%) ou oftalmologistas (3,61%).

Um indicador da orientação de um sistema de saúde é a proporção de médicos dedicados a especialidades ou à APS.

Um estudo realizado em dez nações industrializadas mostrou que, quando a proporção dos médicos ativos está acima de 75% nas diferentes especialidades, o sistema é orientado para as especialidades e não para a APS; valores entre 50% e 75% são considerados intermediários. Somente quando estes valores estiverem abaixo de 50% considera-se um sistema orientado para a APS2121. Starfield B. Primary Care. Concept, Evaluation and Policy. New York: University Press; 1992..

Quanto pagar para generalistas e especialistas? Uma alta taxa das médias de salários de médicos da APS para especialistas (0,9:1 ou mais) indica incentivo para APS. Baixas taxas (0,8:1 ou menos) são consideradas incentivo para sistemas orientados para especialistas. Taxas entre 0,8 e 0,9 são tidas como intermediária2121. Starfield B. Primary Care. Concept, Evaluation and Policy. New York: University Press; 1992..

Quantos generalistas? Trabalhando onde? Quais as suas funções? Um sistema de saúde orientado para APS - ou à estratégia do PSF - exige que a maioria dos médicos, pelo menos 50% deles, se dediquem à APS, numa taxa médico população de aproximadamente 1:2.000.

Os generalistas são necessários em zonas rurais, em pequenas cidades, em cidades de médio porte em regiões metropolitanas. Ou seja, são os médicos que se apresentam na ponta do acesso ao sistema de saúde, universalmente.

Sua função será sempre no nível "local" do sistema. Devido à sua proximidade com a população, podem orientar os autocuidados. Fazem o primeiro contato, diagnosticam e tratam problemas de saúde, referem pacientes para os níveis secundário e terciário. Fazem, em conjunto com outros profissionais, prevenção de doenças e promoção de saúde, nos limites de suas competências. Em termos ideais, com responsabilidades definidas - "sua" população-alvo.

Na Europa, os melhores balanços nas relações de custo benefício são encontrados no Reino Unido, Holanda e Dinamarca, países onde médicos de família têm listas pessoais de pacientes e referem para cuidados especializados. Espanha e Portugal, onde existem centros de APS, sem listas pessoais, vêm em segundo lugar2222. Van Weel C. Primary care: political favourite or scientific discipline? The Lancet 1996; 348: 1431-1432./.

Quantos especialistas e subespecialistas? Trabalhando onde? Quais as suas funções? Se metade dos médicos se dedica ao PSF, a divisão de todas as mais de 60 especialidades e subespecialidades resultaria em relativamente pequenas proporções de especialistas e de subespecialistas. Os especialistas gerais em cidades de médio porte e nas regiões metropolitanas, quase sempre no nível " distrital" do sistema de saúde, servindo populações de até 500 mil pessoas. Os subespecialistas no nível "regional" do sistema, atendendo a populações entre 500 mil e 5 milhões de pessoas.

Não existe nenhuma dificuldade na definição de funções de especialistas ou de subespecialistas, cada um na sua área de competência. O que existe são outros problemas, especialmente para o SUS. Os pagamentos realizados pelo SUS são considerados baixos - e de fato são; muitos especialistas ou subespecialistas se recusam a trabalhar por tais valores, este é um tipo de problema. Outro seria adequar a quantidade deles no SUS de maneira que não ocorram duas disfunções graves e indesejáveis: ociosidade ou sobrecarga de trabalho.

Neste modelo de sistema de saúde, incluindo o PSP, os especialistas e os subespecialistas deverão compreender que seus modos de trabalho seriam modificados. Eles trabalhariam como consultores e não fazendo primeiro contato. Nos ambientes clínicos do pretendido sistema, o que importa é a relação entre os três níveis profissionais, comunicação, colaboração entre eles, fluxo de pacientes ágil e eficaz. Especialistas, subespecialistas, médicos de família e suas respectivas equipes deverão trocar experiências, conhecimentos, apoios, informações. Onde? Nos ambulatórios, nos hospitais, nos postos de saúde, na casa de pacientes, ao telefone, na internet e em contatos informais.

Aqui, neste ponto, surgem enormes potenciais para colaborações, para propostas inovadoras em vários sentidos. Para acolhimento humano e personalizado de indivíduos em sofrimento, para diagnósticos mais precoces, para cuidados e tratamentos mais racionais, para evitar duplicação de gastos e, quando possível, longas esperas. Enfim, haveria cuidados mais racionais, eficazes, eficientes e humanizados do que os existentes hoje no Brasil.

Em medicina, é impossível a um só profissional dominar todo o conhecimento e todas as técnicas diagnósticas e terapêuticas. Assim, os médicos de família devem reconhecer seus limites e referenciar para hospital e especialistas, quando as necessidades surgirem. Por outro lado, os hospitais e os especialistas deveriam reconhecer que, para usarem todo o seu conhecimento e habilidades - que não são poucos-, é necessária uma adequada seleção de pacientes pelo médico de família.

Quantos profissionais da área de saúde pública? Trabalhando onde? Quais as suas funções? A área da saúde pública exige outras considerações, pois deve ser a área mais difícil de caracterizar. Seus objetivos são claros o suficiente - reduzir doenças e manter a saúde de populações. Sua extensão é, portanto, ampla. Igualmente amplas são as estratégias disponíveis para alcançar seus objetivos. Ê está amplidão que coloca a disciplina em risco de confusão sobre sua natureza e de fragmentação e desorganização2323. Putting public health back into epidemiology. Editorial. The Lancet 1997; 350: 229..

Na Inglaterra, existem cerca de 30 médicos de família para cada médico ligado à saúde pública. Ê pouco provável que exista um profissional de saúde pública, envolvido com APS, para uma população de 500 mil ou mais, e usualmente será uma atividade em tempo parcial2424. Bhopal R. Public health medicine and primary health care: convergent, divergent, or parallel paths? J Epidemiol Community Health; 1995. 49:113-116..

O ãrnago das funções da prática de saúde pública inclui a monitoração dos níveis de saúde de populações e seus determinantes; prevenção e controle de doenças, danos e incapacidades; promoção de saúde e proteção do ambiente. Poucas destas funções essenciais são realizadas em altos padrões, mesmo nas nações mais prósperas2525. Beaglehole R, Bonita R. Reinvigorating public call. The Lancet 2000; 356: 787-788..

O dinamismo que caracteriza o perfil de saúde da população brasileira, exaustivamente evidenciado, demanda, em primeiro lugar, a construção urgente de um sistema de vigilância e monitorização capaz de acompanhar não apenas a evolução das doenças transmissíveis, mas que se estenda à desnutrição infantil, à mortalidade materna e perinatal e às doenças crônico-degenerativas e seus fatores de risco33. Monteiro CA, org. Velhos e novos males da Saúde no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 1995..

O futuro da área de saúde pública é, atualmente, objeto de amplos debates em outros países, assim como no Brasil. São discutidas alternativas para o futuro da saúde pública, nos marcos do pensamento e das exigências da pós-modernidade. Com base nos aportes do pensamento pós-moderno, é proposta uma agenda de desafios a serem enfrentados pela "Nova Saúde Pública". Especificamente, são propostos novos aportes conceituais para lidar com as relações subjetivo-objetivo e coletivo-individual no campo sanitário2626. Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis - Saúde e Cidadania na Pós- Modernidade. Ciência Saúde Coletiva 1996; 1: 104-121..

Ainda em nosso país, existem amplas abordagens do objeto possível da promoção-saúde enfermidade-cuidado da proposta da "Nova Saúde Pública", da construção de novas teorias, enfoques e métodos da epidemiologia e da planificação em saúde, além de investigações concretas que buscam a aplicação de métodos das ciências sociais no campo da saúde coletiva. Esta pode ser considerada um campo de conhecimento de natureza interdisciplinar, cujas disciplinas básicas são a epidemiologia, o planejamento/ administração de saúde e as ciências sociais. Esta área do saber fundamenta um âmbito de práticas transdisciplinar, multiprofissional, interinstitucional e transetorial. O campo da saúde pública não se encontra imune nem à crise de paradigmas, nem à transição paradigmática. Enquanto a saúde pública institucionalizada, refém da regulação, enfrenta sua crise entre mais mercado, mais Estado ou mais comunidade, a saúde coletiva apresenta-se como um campo aberto a novos paradigmas, numa luta contra hegemônica a favor da emancipação. As instituições acadêmicas e de serviços de campo da saúde poderão reatualizar suas concepções e práticas acerca da saúde pública, explorando oportunidades de diálogo e de construção de alianças entre organizações não-governamentais e organismos de governo para o enfrentamento dos problemas e desafios da saúde (2727. Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde Pública. Salvador (BA): UFBA; 2000..

APS, A ESTRATÉGIA DO PSF IMPORTA? TEM CONSEQUÊNCIAS? O QUE É, O QUE NÃO É O NÍVEL PRIMÁRIO DE ATENÇÃO

Médicos da APS são os únicos, entre todas as especialidades, capazes de manejar cerca de 90% de todos os pacientes com asma, depressão, hiperlipidemia, hipertensão, hipotireoidismo, problemas emocionais agudos e infecções de ouvidos, garganta, pulmões, intestinos, pele, vagina e trato urinário. Na Inglaterra, o governo notou que 90% dos contatos entre a população e os serviços de saúde ocorrem no nível da APS, um impressionante total de 225 milhões de consultasem 1986. Existe cerca do dobro de médicos da APS, quando comparados com consultores em todas as especialidades combinadas. Cerca de 95% das pessoas com idade acima de 75 anos estão sob os cuidados de médicos da APS. Esta especialidade é a única em que os médicos trabalham regularmente no próprio ambiente do paciente: a casa dele; trabalham frequentemente com vários membros da família, além de usarem terapeuticamente a relação médico-paciente, construída ao longo de décadas. Esta é a única parte do sistema de saúde na qual o paciente pode escolher e mudar o seu médico, e é também o melhor lugar para estudar o balanço da seriedade dos problemas de saúde2828. Pereira Gray O. Research in general practice: law of inverse opportunity. Br Med J; 1991. 302:1380-83..

Embora o nível primário da atenção médica tenha estas possibilidades, potencialidades e vantagens, ele irá competir por recursos econômicos com os outros dois níveis profissionais, em nítida desvantagem, pois os orçamentos disponíveis são usualmente capturados pelos provedores politicamente mais fortes, como hospitais e especialistas, em vez de serem utilizados de acordo com as necessidades da população66. World Health Organizatíon (WHO). The world health report. Health systems: improving performance. Geneva: WHO ; 2000..

Os cuidados especializados sempre demandam mais recursos que os cuidados básicos, porque é desenvolvida mais tecnologia para manter vivas pessoas seriamente doentes, do que programas para prevenir doenças ou reduzir desconforto causado por doenças mais frequentes, problemas que não ameacem a vida. Um sistema de saúde orientado exclusivamente para especialidades tem outro problema: a especialização ameaça os objetivos da equidade. Nenhuma sociedade tem recursos ilimitados para prover os cuidados de saúde. Cuidados especializados são mais caros do que os cuidados primários e, portanto, menos acessíveis a indivíduos com menos recursos para pagar por eles. Mais ainda, os recursos necessários para cuidados que utilizam alta tecnologia competem com aqueles que são requeridos para prover serviços básicos, particularmente para pessoas incapazes de pagar por eles (2121. Starfield B. Primary Care. Concept, Evaluation and Policy. New York: University Press; 1992..

A APS cuida não somente dos 90% dos problemas de saúde de uma dada população, acima delineados. Incorporando outros profissionais, ela pode executar, permanentemente, outras ações fundamentais na prevenção primária de doenças, como imunizações e estímulo à amamentação. Pode fazer prevenção secundária de doenças, através de rastreamento (screening), onde houver evidências da efetividade de tais procedimentos, como, por exemplo, na prevenção secundária de câncer de colo uterino. O PSP lida com necessidades, no nível "local" do sistema de saúde, sem utilizar alta tecnologia, com custos relativamente baixos. Os custos da APS ou a estratégia do PSP para o sistema são pequenos, quando comparados aos custos hospitalares. Pode ainda educar sobre vários aspectos relevantes da saúde humana.

Devido a esta situação ímpar, como mostrado na Figura 2, a APS pode ser comparada a um sanduíche: na parte inferior, em suas relações com "sua" população-alvo, e na parte superior, em suas relações com os hospitais e os especialistas.

A APS é o local por excelência para avaliar necessidades, e, com base nesta avaliação, o sistema de saúde utilizar apropriadamente as diferentes tecnologias e os especialistas. É o local onde cuidados podem ser oferecidos a todos, independentemente de circunstâncias econômicas ou classe social. Para se obter o máximo de desempenho, médicos de família devem ser habilitados para lidar com todos os problemas de saúde daquela comunidade, a despeito do estágio da doença ou de sua severidade. Tudo isto em relações de custo efetividade mais favoráveis, quando comparadas com vários especialistas fazendo primeiro contato2222. Van Weel C. Primary care: political favourite or scientific discipline? The Lancet 1996; 348: 1431-1432./.

Com o progressivo e continuado crescimento no volume dos conhecimentos e das tecnologias ocorrido no século passado, o estabelecido acrescenta novas especialidades médicas, de acordo com o surgimento de necessidades. Em espaços de tempo relativamente curtos, outras novas especialidades serão necessárias.

Entretanto, a APS ou a estratégia do PSP não é apenas uma especialidade a mais a ser acrescida aos especialistas existentes. Esta estratégia é mais do que isto, é mais ampla, significa mudar o paradigma da assistência médica, transformando o modelo assistencial. Significa levar em conta necessidades e demandas da população. O foco do sistema de saúde passa de cuidados episódicos de indivíduos em hospitais para promoção de saúde na comunidade. Significa também reconhecer que o setor saúde, isoladamente, não tem potência para proporcionar saúde plena à população. Outros setores, como educação, habitação e saneamento, entre outros, são fundamentais.

Dentro das transformações propostas, a APS ou a estratégia do PSF é apenas um dos níveis dentro do sistema. Especialistas gerais, subespecialistas, além de outras profissões da área saúde, todos têm papéis relevantes a serem desempenhados e considerados. Obviamente, a coordenação de todas as atividades torna-se complexa.

Se em países industrializados as vantagens deste modelo podem ser evidenciadas, no Brasil, onde uma significativa parte da população é pobre, a APS ou a estratégia do PSF tem um enorme potencial a ser explorado em futuro próximo.

Nos anos recentes, houve crescimento considerável do PSF no Brasil: no período 1996-99, passou-se de 847 equipes em 228 municípios para 4.945 equipes em 1.970 municípios. Para o ano 2000, a meta do MS era alcançar 11 mil equipes (2929. Souza HM. Prefácio. Cadernos da Atenção Básica: PSF. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2000. (Caderno 1)..

Num país de dimensões continentais como o Brasil, com as conhecidas e intensas desigualdades locais e regionais, a implantação do PSP, seguramente, não será homogênea. Em locais pobres nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste ou Sul, em zonas rurais ou em pequenas cidades, atualmente sem cuidados médicos ou com cuidados precários, o PSF será bem-vindo, de fácil implantação, produzirá resultados imediatos. Em cidades de médio porte e nas regiões metropolitanas, onde já existe em atividade outro modelo -orientado para especialistas-, a implantação do PSF será muito mais laboriosa, envolverá muito mais negociações técnicas e políticas, enfrentará uma miríade de conflitos de interesses. Isto tudo no interior de um sistema único enquanto princípio orientador, mas flexível quanto às formas organizacionais, de modo a dar conta das diversidades econômicas, sociais e culturais do país. Isto é, único, mas não padronizado3030. Barros E. Política de Saúde no Brasil: a Universalização Tardia como Possibilidade de Construção do Novo. Cienc Saúde Coletiva 1996;1: 5-17.

Existem dificuldades adicionais. No município de São Paulo, por exemplo, a violência é alegada, em certas regiões, como fator impeditivo de trabalho de profissionais da saúde. De acordo com levantamento do Sindicato dos Médicos de São Paulo, 40,8% dos profissionais relataram algum tipo de violência em seu local de trabalho3131. Violência tira médico da periferia de SP. Folha de São Paulo 2001 ago 06; Cotidiano: C1..

Outro aspecto a ser imediatamente considerado é a qualidade dos cuidados oferecidos pelo PSF. Nenhuma nação desenvolveu arranjos satisfatórios para a monitorização da qualidade de cuidados oferecidos em APS3232. Gambrill E. Organizatíon of Primary Care . In: Fry J, editor. Primary care. London: William Heinemann Medical Books ; 1980. p.106./.

Esta monitorização, no Brasil, poderia ser colocada na agenda da saúde pública? Das academias? Das secretarias municipais? Dos conselhos municipais de saúde? Ou deveria estar a cargo das entidades de classe? Através de revisão de pares? Talvez fosse lógico imaginar que cada "distrito" de cerca de 100.000- 500.000 pessoas fizessem arranjos, criasse mecanismos para essa finalidade. Este aspecto receberia ampla atenção de gestores do SUS, das diferentes esferas governamentais e da sociedade brasileira como um todo.

Seja como for, a implantação da estratégia do PSF de boa qualidade, com aportes adequados e suficientes de estrutura física, pessoal e tecnologias simples, mas eficazes, permitirá antecipar algumas consequências: melhor e mais organizado acesso ao sistema, independentemente de circunstâncias econômicas do indivíduo ou daquela população; melhorias significativas na qualidade de vida da população brasileira, especialmente dos mais pobres, no curto prazo. Ainda se pode esperar que as responsabilidades institucionais e individuais se tornem mais precisas. O às vezes confortável conluio do anonimato pode ser minimizado ou talvez eliminado. Também se espera maior participação da sociedade nas difíceis e dolorosas decisões relativas à saúde, entre outras.

Entretanto, outras consequências emergem: os especialistas e os hospitais deverão também reorientar, reformular suas práticas e suas abordagens, seus modos de trabalho. As academias clínicas e de saúde pública deverão rever seus papéis nesta mudança de modelo.

Neste modelo, a quantidade e a qualidade do trabalho dos especialistas dependerão da seleção de pacientes feita pelo médico de família; o que se denomina a função de gatte-keeper. Deveria ser esclarecido, para o público, que esta função não quer dizer que se esteja negando acesso a especialistas, mas representa uma utilização mais racional, mais eficaz e eficiente do sistema, dentro de limites econômicos estabelecidos pela própria sociedade.

A quantidade de especialistas deverá sofrer alterações, uma nova composição na proporção de médicos e das outras profissões da área saúde será necessária. As academias deverão, também, passar por processos de reorientação. São, portanto, situações que, ao serem planejadas e principalmente ao serem executadas, vão lidar com vários conflitos, competições de várias naturezas, inclusive econômicas e de poder. Conflitos não são, necessariamente, abomináveis. Quando conflitos geram luz, novos conhecimentos, inovações, novas formas de pensamento, novas práticas, eles são bem-vindos, e seus resultados valorizados. Eles são lamentáveis quando improdutivos, estéreis, apenas desgastantes.

Para desenvolver este complexo processo com sucesso, são necessários vários ingredientes. Serão muito relevantes as posições das lideranças das várias áreas - saúde pública, especialistas, subespecialistas, PSP, academias clínicas e de saúde pública e das outras profissões da área saúde. Em sociedades democráticas, o público, além de ser informado, precisa participar ativamente de decisões que afetarão sua saúde.

Ou, melhor ainda, como na proposta da Saúde Coletiva: uma das formas de enfrentar os desafios da Saúde com Equidade se rá constituir sujeitos sociais comprometidos com novas utopias, e estabelecer canais de comunicação com outros sujeitos sociais que passem da condição de usuários ou destinatários de serviços públicos e de políticas de saúde para um patamar mais elevado, de parceiros e cidadãos2727. Paim JS, Almeida Filho N. A crise da saúde Pública. Salvador (BA): UFBA; 2000..

CONCLUSÕES

As descrições da evolução de sistemas de saúde feitas pela OMS sugerem que, no Brasil, a segunda (inclusão do PSF) e a terceira ("novo universalismo") geração de reformas deverão ocorrer simultaneamente.

Pobreza constitui ameaça à saúde, em todas as categorias de seus determinantes. O modelo de sistema de saúde mais apropriado, com melhores relações de custo-efetividade para atingir a todos, é aquele orientado para o PSF. Nele, a quantidade e a qualidade de trabalho dos outros dois níveis profissionais - secundário e terciário - dependem da adequada seleção de pacientes no nível primário. Médicos de família deverão tornar-se a maioria dos profissionais - 50% ou mais.

Mudanças inevitavelmente provocam desacordos de opiniões, conflitos e confrontações. Tais dificuldades só poderão ser suplantadas por meio de amplos entendimentos, em que lideranças e visões dos profissionais das distintas áreas, além de efetiva participação do público, terão papéis a desempenhar. Procurar convergências em nossas ações, não confrontações estéreis, é uma perspectiva para todos nós, profissionais da saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2003

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2002
  • Revisado
    06 Dez 2002
  • Aceito
    16 Jan 2003
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