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Breve Resumo Histórico do Internato Rural da Faculdade de Medicina da UFMG

Resumo:

Descreve-se e se analisa a trajetória do Internato Rural da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Criado em 1978, o estágio, de caráter obrigatório, propiciou a cerca de seis mil acadêmicos a vivencia, de forma autônoma, da realidade sanitária de mais de 150 municípios. Sua trajetória coincide com os principais movimentos sanitários em direção a um sistema de saúde eficiente e democrático no País.

Palavras-chave:
Internato rural; Educação médica; Políticas de saúde

Summary

The article describes and analizes Rural lntership (Internato Rural da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais) course. Criated in 1978, the stage, with obligatory character, has propitiated to around six thousand medicine students a autonomous experience at more one hundred and fifty municipalities of Minas Gerais state. lts course coincide with the major sanitary movements toward to a efficient and democratic system of health.

Keywords:
Rural Internship; Medical education; Health policies

O Internato Rural, área de estágio do internato do curso de graduação em Medicina da UFMG, surgiu no bojo de um longo processo de mudança por que vem passando a educação médica no País, marcadamente a Faculdade de Medicina da UFMG (Alves11. ALVES, A. L. O Internato rural na formação médica na UFMG: um estudo qualitativo. Ribeirão Preto. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP, 1996. 175 p. Tese (Doutorado).)

Até então assentada na doutrina flexneriana, que privilegiava o Hospital Universitário como locus fundamental do ensino médico, este modelo, nas últimas décadas, vem-se desgastando pelos altos custos de sua realização, o que propicia o surgimento de novas opções mais racionalizadoras. A "crise" da educação médica, assim denominada por Landmann, foi por ele caracterizada: "Na década de 60, o número de cursos de graduação em Medicina deu um grande salto no Brasil. De 1959 a 1970 passamos de um total de 26 para 73 escolas com mais de duas criadas depois de 1971, perfazendo um total de 75 escolas médicas que graduarão, em 1978, 9.176 médicos".

As novas escolas que se formaram, algumas carecendo de mínimos recursos materiais e humanos, e as existentes que não se renovaram não produzem até hoje o médico que precisamos, seguem um currículo que se destina ao atendimento individual das elites, são influenciadas por teorias que Condau chamou de imperialismo cultural, a princípio europeu, hoje americano, ditado por professo­res muitos dos quais formados em residências e pós-graduações nos EUA. Formam médicos para ontem, competentes técnicos e especialistas que tiram primeiros lugares no concurso do Inamps, mas que não estão preparados para atender às necessidades de saúde da população" (Landmann22. LANDMANN, J. Política Nacional de Saúde. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1978.).

Uma dessas opções, a Integração Docente-Assistencial ou Ensino-Serviço, tem-se tornado a grande bandeira pela qual os novos educadores médicos se têm batido. Seria, talvez, o nosso currículo da Faculdade de Medicina da UFMG a maior expressão dessa nova proposta, e o Internato Rural a ponta de lança de tal currículo.

Esse novo currículo produzido por um processo de desenvolvimento curricular iniciado em 1972 e reavaliado em fins de 1974, quando da realização do I Seminário do Ensino Médico, foi fruto da participação expressiva dos alunos e professores e incorporou muitos dos postulados da Integração Docente-Assistencial, ou seja: "La IDA representa um medio, un espacio através del cual puede generarse una practica que tienda cada vez más a transformar las condiciones de salud de la población y tma practica docente que también se transforma en la cual ambos resultan beneficiados. El término Integracion, aunque nominalmente referido a la docencia y los servidos, implica la participación de la comunidad, no como un receptor pasivo sino como un elemento activo de este processo" (UAM33. UNTVERSIDAD AUTONOMA METROPOLITANA DE MÉXICO. Unidad Xochimilco. Maestria en Medicina Social, agosto, 1977.)

As mudanças ocorridas tinham como objetivo a formação de um médico com o seguinte perfil: "generalista, policlínico, capaz de prestar a assistência primária de saúde e exercer a medicina comunitária". Esse médico deveria aplicar, na realização de seu trabalho, conhecimentos básicos das ciências do comportamento e da realidade que o envolve, bem como exercer atitudes críticas permanentes em relação à dinâmica nosológica e aos sistemas existentes de prestação de serviços de saúde" (Universidade Federal de Minas Gerais, Colegiado do Curso de Medicina44. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Faculdade de Medicina. Colegiado do Curso Médico. O Processo de desenvolvimento curricular em educação médica na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1976.).

Em meio aos questionamentos que se faziam sobre o ensino médico da Faculdade de Medicina da UFMG, a realização de um estágio voluntário por um grupo de alunos dessa Faculdade na região do Vale do Jequitinhonha serviu de subsídio para a formulação da proposta do Internato Rural e sua inclusão no novo currículo a ser implantado. É importante ressaltar que esse estágio se desenvolveu nas Unidades de Saúde do Centro Regional de Saúde de Diamantina, que, naquele momento, experimentava um modelo de medicina simplificada em suas unidades, o que veio a enfatizar a necessidade da participação universitária em tais modelos, considerados mais próximos das necessidades reais da população.

Para sua implantação efetiva, que se deu em janeiro de 1978, restava somente a escolha do local apropriado. Por um raciocínio "lógico", sua localização deveria ser próxima a Belo Horizonte. No entanto, naquele momento, ocorria na região norte-mineira a implantação do Projeto de Extensão de Cobertura do Serviço Público de Atenção Médica, cuja filosofia se adequava aos objetivos pedagógicos do Internato Rural.

A extensão de cobertura dos serviços públicos de atenção médica, bem como os projetos de Integração Docente­Assistencial surgiram como resposta à crise que se manifestava internamente no setor Saúde e que teve seus determinantes na expansão capitalista no campo e no processo de acumulação de capital, presente também nos hospitais e nos setores de produção de equipamentos médicos e da indústria farmacêutica. Essas propostas são elaboradas dentro de um conceito de "desenvolvimento social integrado" adotado pelo Estado, que procura, por meio das políticas públicas, articular os setores de economia, saúde e educação na perspectiva de criar infra-estrutura social que melhor atenda às formas avançadas de or­ganização do capital.

No plano internacional, organismos como o Centro de Estudos para América Latina (Cepal) passam, no início da década de 70, a recomendar ênfase na formulação de políticas de desenvolvimento social, indicando a necessidade de enfrentar prioritariamente o problema "marginalidade". São propostos programas de desenvolvimento comunitário fundamentados no conceito de participação. Em 1972, os ministros da Saúde das Américas reúnem-se em Santiago para elaborar o Plano Decenal de Saúde para as Américas, situando como principal objetivo da década de 70 a extensão da cobertura dos serviços de saúde no campo.

Seu corpo doutrinário e conceituai baseia-se na regionalização, hierarquização e integração dos serviços, na ênfase em ações de cuidados primários com vistas a orientar a implantação de tais programas e no planejamento familiar.

A implantação de um projeto dessa natureza, em 1974, na região polarizada por Montes Claros foi fruto de um convênio entre o governo brasileiro e a Usaid1 1 Artigo baseado na Tese de doutoramento do autor intitulada “O Internato Rural na formação médica na UFMG: um estudo qualitativo”. , que Liberou recursos para a construção de uma rede de Postos de Saúde (180), Cen­tros de Saúde (55) e o treinamento de pessoal auxiliar (cerca de 580) para uma população de 1.078.000 habitantes que ocupam 128.816 quilômetros.

As principais características do modelo implantado em Montes Claros foram as seguintes:

  • Coordenação inter-institucional;

  • Máxima cobertura;

  • Financiamento multilateral;

  • Hierarquização dos serviços;

  • Relacionamento com o sistema informal;

  • Participação da comunidade;

  • Utilização da equipe de saúde com delegação de funções.

O modelo previa uma estrutura hierarquizada em quatro níveis - domiciliar, local, de área programática e de região - e os serviços distribuídos hierarquicamente entre os quatro níveis.

Três razões básicas justificaram o direcionamento do Internato Rural para a região norte do Estado de Minas Gerais: primeiro, como já dito, ali se estava ensaiando uma transfor­mação nos serviços de saúde e, portanto, seria mais pedagógico colocar os estudantes participando do desenvolvimento do projeto do que colocá-los em sistemas organizados de maneira tradicional. Em segundo lugar, a expansão da rede física ocorrida até aquele momento - existiam mais de 150 postos de saúde recém-inaugurados - tinha criado expectativas assistenciais por parte das autoridades locais e da própria população em relação aos serviços de saúde. E, finalmente, é que naquela região a resistência da corporação médica seria menor do que em áreas urbanas mais centrais (Campos55. CAMPOS, F. E. O Sistema integrado de prestação de serviços de saúde do Norte de Minas como espaço de atuação acadêmica. In: Teixeira, S. M. F. (Org.) Projeto Montes Claros: a utopia revisitada. Rio de Janeiro: Abrasco, p. 219-38, 1995.).

Definida sua área de atuação, o Internato Rural inicia suas atividades em janeiro de 1978, apresentando os seguintes objetivos (didático-pedagógicos):

  1. a compreensão, pelo estudante de Medicina, da causação extra biológica das doenças e da relatividade do papel da Medicina na solução destas numa realidade sociologicamente mais simples que a das grandes capitais;

  2. a crítica à tecnologia médica utilizada de maneira indiscriminada. Pode o estudante, contando com poucos recursos, perceber que toda a tecnologia médica deveria ser utilizada de maneira mais criteriosa;

  3. a autonomia do estudante. Na Escola Médica, existe uma estrutura que coloca os alunos sempre em dependência dos professores para tomar decisões. Longe dessa estrutura, pode o estudante perceber que inúmeros casos podem ser resolvidos por ele próprio. Como subproduto desses três elementos, poderíamos ter ainda uma desmistificação do interior, com o estímulo à interiorização do médico (Campos66. CAMPOS, F. E. Integração docente assistencial como prática da educação médica. Rio de Janeiro. Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1980. 150 p. Dissertação (Mestrado)).

Esses objetivos refletiram a conjuntura da época, quando a Medicina Comunitária e a Integração Docente-Assistencial representavam o horizonte do avanço possível.

Mais tarde, a partir de meados da década de 80, quando vários postulados dessas opções ganham espaço institucional e passam a fazer parte do discurso oficial do sistema de saúde, isto é, desde o surgimento das Ações Integradas de Saúde (AIS) até o Sistema Único de Saúde (SUS), o Internato Rural reformula seus objetivos. Estes, condensados numa ementa curricular, passam a ser:

"Colocar o aluno em contato com a realidade de saúde local para a compreensão e transformação da mesma, através de atendimento ambulatorial, do reconhecimento dos determinantes do processo saúde-doença e da organização dos serviços de saúde" (Universidade Federal de Minas Gerais, Colegiado do Curso de Medicina, 1993).

Nota-se que agora a proposta pedagógica desloca-se do "vivenciar a realidade" para o "transformar a realidade".

Foi necessário organizar estágios em cidades mais pró­ximas de Belo Horizonte para atender aos alunos que apresentavam situações peculiares: casados com filhos, arrimos de fa­mília, problemas delicados de saúde, etc.

No entanto, tal solução não se mostrou muito adequada, uma vez que a situação apresentada por esses alunos não permitia nem mesmo o deslocamento para cidades próximas à capital. Foi preciso organizar estágios junto aos Centros de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, os quais se constituíram no Internato Metropolitano.

A partir de fins de 1980, o Vale do Mucuri, a região de Teófilo Otoni e algumas cidades circunvizinhas passam a fazer parte da área de estágios do Internato Rural.

A abertura dessa nova frente de estágio representou o surgimento de uma nova concepção de trabalho para o Internato Rural, que deslocou o centro de sua ação do SERVIÇO para a POPULAÇÃO, em resposta a uma região que, naquele momento, não dispunha de uma rede de serviços como a região de Montes Claros, mas apresentava um processo de organização popular em desenvolvimento, tendo a questão da saúde como um de seus principais temas.

Em 1981, o Internato Rural se estende à região do oeste de Minas.

A partir de 1983, com a implantação das Ações Integradas de Saúde (AIS) no Estado, algumas regiões se propõem construir um sistema de saúde eficiente e democrático. Dentre elas, a região de Sete Lagoas se destacou, criando um modelo assistencial calcado no investimento público com uti­lização de tecnologia apropriada (superando a fase anterior da simplificação).

Em função disso, o Internato Rural integrou-se a essa região, passando a atuar em 13 de seus municípios até 1988, quando, por motivos de ordem política, essa proposta se esva­ziou no âmbito da política estadual de saúde.

Em 1989, após avaliação da conjuntura geopolítica do Estado e refletindo sobre a real inserção de nossos egressos, verificamos que um percentual significativo atuava em municípios de porte médio. Diante disso, resolvemos abrir mais uma frente de estágio na região industrial do Vale do Aço, na medida de nossa saída da região de Sete Lagoas.

Essa nova frente de trabalho representou um grande de­safio para o estágio. Consolidado pedagogicamente em pequenos municípios rurais, onde o papel do aluno é fundamental na prestação de serviços médicos e sua inserção social é muito profunda, a atuação em municípios de porte médio que possuem uma rede de serviços complexa e um número expressivo de profissionais de saúde representou a busca de um novo papel para o aluno. Nesse contexto, ele deveria aprender a trabalhar em equipe multidisciplinar e orientar seu trabalho na participação dos diversos programas que as secretarias municipais desenvolviam.

Infelizmente, essa experiência não logrou o êxito que se esperava. Na verdade, municípios de médio porte, industrializados, possuidores de secretarias municipais de saúde com grande complexidade, transformaram o aluno do Internato Rural numa pequena peça, na maioria das vezes sem um papel definido ou até sem nenhuma função. Ou seja, o estágio perdeu um pouco sua dimensão municipal, remetendo o estudante para a problemática da unidade de saúde ou, no máximo, à sua área de abrangência. Assim, essa experiência se encerrou no final de 1992

Entre 1993 e 1996, o Internato Rural não desenvolveu nenhum grande projeto. Sua prática se caracterizou por uma grande dispersão pelo território mineiro, com atividades definidas isoladamente pelos professores. Nesse período, as reuniões de área e geral não foram realizadas, o que aprofundou a fragmentação do projeto pedagógico da disciplina A marca desse período poderia ser definida como um difuso apoio ao Sistema Único de Saúde dos municípios conveniados.

Em agosto de 1996, por ocasião de um seminário, a equipe de professores da disciplina, percebendo que essa extrema dispersão e fragmentação do projeto político e pedagógico do estágio poderia levá-lo a uma situação em que o seu papel na formação do médico proposto pela instituição ficaria prejudicado, propôs uma estratégia de progressiva reconcentração geopolítica e definição temática. Nesse sentido, procurando dar consequência à decisão tomada naquele seminário, um grupo de professores iniciou o Projeto Manuelzão2 1 United States Agency for International Development. Os recursos, no montante de US$ 4 milhões, vieram por meio do convênio assinado em 18 de abril de 1975, dentro do Acordo entre o Brasil e o Usaid. . Tendo como eixo temático a articulação entre saúde e meio ambiente o projeto se propõe, numa perspectiva interdisciplinar e intersetorial, contribuir para a revitalização do Rio das Velhas3 2 Manuelzão, Manuel Nardy, [e personagem vivo do grande escritor Guimarães Rosa. desenvolvendo ações sanitárias, educacionais e de mobilização social ao longo de sua bacia, que compreende 51 municípios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ALVES, A. L. O Internato rural na formação médica na UFMG: um estudo qualitativo. Ribeirão Preto. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP, 1996. 175 p. Tese (Doutorado).
  • 2
    LANDMANN, J. Política Nacional de Saúde. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1978.
  • 3
    UNTVERSIDAD AUTONOMA METROPOLITANA DE MÉXICO. Unidad Xochimilco. Maestria en Medicina Social, agosto, 1977.
  • 4
    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Faculdade de Medicina. Colegiado do Curso Médico. O Processo de desenvolvimento curricular em educação médica na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1976.
  • 5
    CAMPOS, F. E. O Sistema integrado de prestação de serviços de saúde do Norte de Minas como espaço de atuação acadêmica. In: Teixeira, S. M. F. (Org.) Projeto Montes Claros: a utopia revisitada. Rio de Janeiro: Abrasco, p. 219-38, 1995.
  • 6
    CAMPOS, F. E. Integração docente assistencial como prática da educação médica. Rio de Janeiro. Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1980. 150 p. Dissertação (Mestrado)
  • 1
    Artigo baseado na Tese de doutoramento do autor intitulada “O Internato Rural na formação médica na UFMG: um estudo qualitativo”.
  • 1
    United States Agency for International Development. Os recursos, no montante de US$ 4 milhões, vieram por meio do convênio assinado em 18 de abril de 1975, dentro do Acordo entre o Brasil e o Usaid.
  • 2
    Manuelzão, Manuel Nardy, [e personagem vivo do grande escritor Guimarães Rosa.
  • 3
    Principal afluente mineiro do rio São Francisco, com uma extensão em linha reta de 400 quilômetros, nasce ao sul do município de Ouro Preto e deságua na localidade de Barra do Guaicui, município de Várzea da Palma, passando pela região metropolitana de Belo Horizonte, onde recebe sua maior carga poluidora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1998
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