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Cinaem, Raem, PBL, Ensino Basea do em Evidências e Telemedicina: O que Falta Dizer?

“Meu coração tem um sereno jeito E as minhas mãos o golpe duro e presto. De tal forma que, depois de feito, Desencontrado eu mesmo me contesto. Se trago as mãos distantes do meu peito, É que há distância entre intenção e gesto.

Estes versos são parte de um soneto recitado durante a execução da música Fado tropical. Esta, por sua vez, integra o texto da peça Calabar - o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra, escrita e encenada em 1973. Ela a presenta uma versão diferente da oficial sobre o personagem histórico Calabar, durante a invasão holandesa em 1635. A história oficial o retrata como desertor e traidor embora outros o vejam como um patriota, cujos aios teriam sido motivados pelo sincero desejo de que o Brasil fosse colonizado por um pais mais progressista que Portugal.

Mas não é sobre isso que desejo falar, e sim sobre do que o poema trata, notadamente a distância entre intenção e gesto. Nas palavras dos autores da peça, Calabar assinala a seu futuro algoz que sua atitude, passando a servir ao exército invasor, não se trataria de aparente traição, mas de uma suposta opção por um destino melhor para o pais.

Quantas vezes, em nossas vidas, não vivemos situações em que o confronto entre intenção e gesto se apresenta como uma contradição insolúvel? Se pensarmos um pouco, veremos que especialmente nas relações interpessoais este conflito se apresenta de forma mais frequente do que poderíamos imaginar. Quantas vezes não ouvimos um “não foi isso que eu queria dizer” ou “isso não quer dizer aquilo”?

Mas há que assinalar a distinção entre a incompreensão, pelo outro, de determinado fato ou o arrependimento após um ato de dissimulação da intenção. Neste último caso, teríamos o que mais frequentemente observamos na prática política, onde a astúcia na prática da dissimulação é vista como uma virtude, não rara, que confere a seus praticantes o título de “raposa da política”. Assim, nem sempre o que parece ser de fato é, após analisarmos os fatos, suas relações e consequências. É impossível atuar politicamente sem exercitar e praticar a análise política, e, modernamente, o planejamento é uma técnica e um método que incorporou as análises políticas (ou talvez seja uma prática política fundamentada por técnicas e métodos específicos).

É impossível planejar sem incorporar uma análise do que, potencialmente, ajudará ou prejudicará a execução do plano; sem identificar os atores que serão facilitadores da ação, os que serão parceiros e os que se oporão, veladamente, dissimuladamente ou não; sem identificar os reais interesses de cada um desses atores; sem saber exatamente o que se quer. Mas também não é possível planejar sem reavaliar, criteriosa e sistematicamente, todos os fatores relacionados com o nosso plano, qualquer que ele seja, e sem aceitar, com tranquilidade, que as posições políticas não são constantes, posto que se referem a pessoas.

Fiz esta breve introdução para tecer alguns comentários sobre uma breve análise que realizei sobre o que temos publicado em nossa revista nos últimos dez anos. Não foi, ainda, uma análise sistemática, que possibilite alguma incursão no campo da Sociologia do Conhecimento (que está sendo preparada), mas fez-me refletir sobre o que tem sido produzido de teoria no campo da Educação Médica.

Entendo que, pelo foto de a Revista Brasileira de Educação Médica ser a única publicação especializada em Educação Médica na América Latina, além do órgão oficial da associação que congrega as escolas médicas do pais, ela é o veículo escolhido para a publicação dos artigos sobre esse tema, o que, obviamente, não exclui a possibilidade de publicações sobre o tema em outras revistas não especializadas. Mas, ao contemplarmos o rol de originais publicados na RBEM nos últimos dez anos, constatamos como foi inexpressivo o debate sobre o grande projeto que vem envolvendo boa parte das escolas médicas e todas as entidades representativas nacionais da profissão médica. A impressão que fica é que, por haver certo consenso político sobre a necessidade de mudança e de transformação da estrutura e da prática das escolas médicas - consenso este que vai do Ministério da Educação aos alunos das escolas -, inibiu-se a produção acadêmica e intelectual sobre o tema quando não oriunda do núcleo formulador e executor das ações da Cinaem. Ou, o que seria terrível até de supor, não haveria capacidade de crítica e reflexão teórica fora desse núcleo. É claro que esta última conjectura não passa de uma provocação, e os artigos publicados aqui ao longo desses dez anos são uma das expressões da falsidade desse raciocínio, mas o debate não está acontecendo. E uma das razões dessa inibição talvez seja não a falta de capacidade crítica, mas o temor de sofrer certo isolamento político, motivado por uma possível incompreensão das razões que motivaram seu ato.

Vivemos uma situação paradoxal: nunca, em toda a história do ensino médico, tantas instituições e pessoas estiveram durante tanto tempo envolvidas no projeto político de transformar esta atividade, assim como nunca a produção acadêmica sobre o tema esteve tão carente de artigos com reflexões sobre o mesmo processo. E não estou me referindo exclusivamente ao Projeto Cinaem, mas também à Raem e, por que não, às experiências com o Ensino Baseado em Problemas (PBL), à Medicina Baseada em Evidências e à telemedicina. Onde estão as reflexões críticas sobre esse elenco de falos que vem dominando o debate sobre o ensino e a prática médica ao longo dos últimos dez anos?

Seja qual for a razão, ou o sentimento, que deu origem a esta situação, o fato é que sem a reflexão sistematizada transformada em insumo teórico para o aprofundamento das discussões, a despeito de todas as bem-sucedidas ações políticas deflagradas ao longo deste tempo, estaremos construindo um castelo de cartas que, por méritos de algumas (poucas) instituições e seus atores, poderão ganhar alicerces sólidos numa ou noutra escola, mas que, no conjunto, ruirão quando os ventos da reação soprarem ou quando formos atropelados pelos naftas ou alcas do mundo globalizado.

Espero que a RBEM, agora definitivamente regular em sua periodicidade e com um conselho cientifico com a mesma competência acadêmica de sempre, mas ampliado em seu número e no leque de temas em que seus membros são especialistas, possa ser utilizada como o instrumento de divulgação do debate sobre a transformação do ensino médico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2001
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