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EFEITOS DA MUDANÇA CURRICULAR: CARACTERÍSTICAS DO APRENDIZ E DESFECHOS DA APRENDIZAGEM

Resumo:

Um estudo comparativo foi realizado envolvendo a grande maioria dos estudantes de currículo em desativação e de novo currículo em implantação, no curso de Medicina da Universidade de Brasília. Foram comparadas as características motivacionais dos alunados e os desfechos da aprendizagem no pré-clínico. Três diferenças significantes foram observadas: estudantes do currículo em desativação apresentavam maior nível de autoconfiança, enquanto a motivação para aprender era maior nos alunos do novo currículo; ademais, os escores da significação percebida do aprendizado (durante o pré-clínico) eram mais elevados no alunado do novo currículo. Não houve diferenças significante de rendimento acadêmico (média geral) entre os dois grupos na iniciação clínica, nem nas preferências por carreira dos estudantes. Os achados indicam que a reestruturação curricular no pré-clínico não afetou o nível de conhecimento aplicado, embora as percepções iniciais da significação do aprendizado tenham sido mais positivas entre os alunos do novo currículo. Essas percepções são influenciadas por várias características motivacionais individuais.

Palavras-Chave:
Educação médica; Mudança curricular; Avaliação de curso

Summary:

An evaluation study was undertaken to compare data of students in two medical curriculum tracks at the Universily of Brasilia. Pre-clinical motivacional characterislics and learning outcomes were compared. Some significant differences were observed: students in the standing curriculum showed higher level of self confidence while motivation to learn was higher among students in the new curriculum. Also, the scores of perceived meaningfulness of learning were higher in the new curriculum. There were no significant differences between student groups in grade point averages of clinical clerkships or in career preferences. The finings suggest that the change in curriculum structure has not affected students applied knowledge as they started the clinical phase, although they showed more positive perceptions of their pre-clinical experience. Such perceptions were influenced by many motivational characteristics.

Key-Words:
Medical Education; Curriculum Change; Program Evaluation

Introdução

Quais são os efeitos de mudanças curriculares? Em muitos casos, as alterações curriculares efetuadas nos cursos de Medicina não são acompanhadas, ou comparadas em seus resultados. Entretanto, estudos avaliadores se tornam necessários para prover evidências empíricas sobre efeitos significativos produzidos, ou não, pelas mudanças efetuadas.

Um caso em questão é a reestruturação curricular efetuada no curso de Medicina da Universidade de Brasília, a qual passou a vigorar a partir de 1988. O currículo anterior, na forma definida em 1971, apresentava como tônica da fase pré-clínica a integração inter­disciplinar nos denominados 'blocos de sistemas'. As dificuldades na sua manutenção e desenvolvimento, referidos em estudo prévio88. SOBRAL, D.T. - O curso de Medicina de Brasília: problemas e perspectivas. Brasília Médica. 30 (supl.4): 11-23, 1993., foram fatores importantes que levaram à proposta de reestruturação curricular.

O novo currículo, que conta com os mesmos recursos humanos e de infra-estrutura do anterior, passou a realçar nova organização de conteúdo e uma estratégia educativa mais convencional. Em particular, as três seguintes medidas foram tomadas em relação ao ensino pré-clínico.

  1. Extinção dos blocos de ensino integrado, que foram substituídos por disciplinas de concepção ortodoxa, desenvolvendo conteúdos biomédicos ou ele saúde coletiva.

  2. Desdobramento do programa pré-clínico em número ampliado de disciplinas.

  3. Aumento da carga horária por período letivo, em conseqüência ela extensão da duração do internato de dois para três semestres, conservando a duração total do curso em 12 semestres.

Considerando a análise de Harden e colegas (1984) sobre ensino integrado em contraste com ensino baseado em disciplinas convencionais, várias vantagens e desvantagens da alteração curricular poderiam ser antecipadas55. HARDEN, R.M., SOWDEN, S. & DUNN, W.R. -Some educational strategies in curriculum development: the SPICES model. Medical Education, 18( 4 ): 283-297.. O estudo aqui relatado contempla tal perspectiva, O propósito preliminar foi comparar características do alunado e desfechos da aprendizagem em turmas consecutivas dos dois currículos: o novo já em vigência e o antigo, agora extinto.

Três objetivos do estudo são enfocados neste artigo:

  1. determinar as diferenças nas características motivacionais dos estudantes, incluindo as preferências por carreira no campo da Medicina;

  2. apurar diferenças no rendimento acadêmico e na percepção do valor e do significado do aprendizado pré-clínico;

  3. verificar as relações entre as características dos aprendizes e os indicadores citados acima.

Métodos

Sujeitos e Contexto

Sujeitos. O estudo incluiu 12 turmas consecutivas do curso, as seis últimas do currículo em desativação (acompanhamento curricular 2/71) e as seis primeiras do currículo em implantação (acompanhamento curricular 2/88).

O total da amostra, pelo critério de inclusão, alcançou 324 estudantes, dos quais 48,2% pertencentes ao novo acompanhamento curricular. Cinco foram excluídos do estudo por ausência de dados descritores.

Contexto. O estudo inquiriu os estudantes na fase pré-clínica do curso. No currículo em desativação, esta fase compreendia 16 disciplinas obrigatórias, incluindo os blocos de aparelhos e sistemas, e correspondendo à média de 27 créditos por período letivo. Já no currículo em implantação, o total de disciplinas obrigatórias passou para 21 e a média de créditos por período letivo elevou-se para 31,2. Vale dizer que não houve alteração de critérios de admissão dos alunos no curso e a com­posição do corpo docente permaneceu substancialmente a mesma durante o tempo de desenvolvimento do estudo.

Medidas: características motivacionais e desfechos

Quatro medidas foram utilizadas como descritores dos sujeitos, as quais são identificadas a seguir.

Autoconfiança. A medida de autoconfiança como aprendiz foi aferida por escala de auto-relato, representada por linha de 10 cm, cujos extremos são assim sinalizados: "Não tenho qualquer confiança em mim como aprendiz" e "Tenho completa confiança em mim como aprendiz".

Motivação. A medida de motivação para aprender foi aferida por escala de auto-relato análoga, cujos extremos indicavam os níveis nulo e máximo de motivação.

Estilo de aprendizagem. Utilizou-se o Inventário de Kolb44. KOLB, D.A. - Experimental Learning. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1984. Esse instrumento identifica a orientação predominante na aprendizagem segundo duas dimensões Abstrato-Concreto e Ativo-Reflexivo. Quatro estilos são identificados, conforme as orientações predominan­tes: dois ativos (convergentes e acomodadores) e dois meditativos (assimiladores e divergentes).

Preferência por carreira. As respostas com indicações específicas de preferência foram agrupadas em três grupos: (i) reunindo clínica médica e subespecialidades+cirurgia geral e subespecialidades: (ii) reunindo Medicina geral, Pediatria e Tocoginecologia: (iii) reunindo qualquer outra preferência, inclusive ausência de preferência.

Outras duas medidas foram apuradas como indicadores de desfechos: a significação do aprendizado para os estudantes e as médias de rendimento acadêmico.

Significação do aprendizado. Este construto foi aferido mediante o Inventário de Valorização do Curso(IVC), o qual contém 36 itens distribuídos em quatro seções: valorização geral, aprendizado de conteúdo, aprendizado pessoal e aprendizado de condutas. O IVC foi desenvolvido por Nehari e Bender (1978) para medir a apreciação estudantil da própria aprendizagem66. NEHARI, M. & BENDER, H. - Meaningfulness of a learning experience: a measure for educational outcomes in higher education. Higher Education, 7 (1): 1-11, 1978..

Rendimento acadêmico. O indicador de rendimento acadêmico foram as médias ponderadas das menções durante a iniciação clínica (primeiro e segundo semestres).

Administração

As respostas referentes às características dos aprendizes, em 12 turmas consecutivas do curso de Medicina, foram obtidas ao início do período letivo, na segunda metade da fase pré-clínica. O IVC foi aplicado na mesma ocasião, tendo como referência a vivência de aprendizagem anterior no curso, no respectivo acompanhamento curricular.

As médias das menções foram obtidas ao término do primeiro e do segundo semestres clínicos, incluindo as disciplinas de semiótica, clínica médica e clínica cirúrgica.

Análise

Os trabalhos de Andrews e colegas (1981) e de Kirkwood (1988) serviram de guia na seleção das técnicas estatísticas11. ANDREW, F.M., KLEM, L. DAVIDSON, T.N. e col.-A Guide for Selecting Statistical/ Techniques for Analysing Social Science Data. Ann Arbor, Institute for Social Science Research, University of Michigan, 1981.),(33. KIRKWOOD, B.R. - Essentials of Medical Statistics. Oxford, Blackwell, 1988.. Foram utilizados testes de qui-qua­drado para comparação de proporções em grupos; testes t para comparação de médias de escores. O pacote EPI 6.0 foi utilizado na análise.

Resultados

A Tabela I mostra as comparações entre os alunados dos dois currículos, em termos das características dos aprendizes. As diferenças nas proporções de distribuição sexual e de estilo de aprendizagem não foram significantes. Foram observadas, porém, diferenças significantes tanto para motivação para aprender quanto na autoconfiança como aprendiz: o alunado do novo currículo mostrou proporção significantemente maior de alta motivação; em contraposição, o alunado do currículo em desativação apresentou proporção maior de alta autoconfiança.

TABELA I
Diferenças nas características dos alunados em dois acompanhamentos curriculares distintos do curso de Medicina

Não houve distinções significantes quanto à preferência por carreira entre os dois grupos. Em particular, as proporções de preferência por carreiras de "primeiro contato" foram equivalentes (Tabela II).

TABELA II
Preferência por carreira em alunados de acompanhamentos curriculares distintos

Diferenças significantes foram observadas entre os dois grupos nos escores do IVC, exceto quanto ao aprendizado de condutas, conforme mostra a Tabela III. A magnitude do efeito (ES = 'effect size') foi maior no caso do aprendizado de conteúdo.

TABELA III
Médias e desvios padrões dos escores do Inventário de Valorização do Curso (IVC)

Que fatores são preditores do escore total do IVC? Uma análise de regressão revelou que, além do acompanhamento curricular, quatro outros fatores contribuem para explicar a variância nas respostas do total de sujeitos: magnitude de motivação, grau de autoconfiança, tipo de preferência por carreira e classe de estilo de aprendizagem.

TABELA IV
Regressão múltipla do escore total do Inventário de Valorização do Curso por fatores preditores

Não foram observadas diferenças significantes entre os dois grupos nas médias das menções dos dois primeiros semestres clínicos. As diferenças no número de alunos decorrem de evasão, por transferência ou abandono. No segundo semestre, a perda total alcançou 11 alunos (9 do currículo novo).

TABELA V
Médias e desvios padões das notas médias dos alunos no primeiro e no segundo semestres clínicos em dois acompanhamentos curriculares

Finalmente, não foram observadas correlações significantes entre os índices de rendimento acadêmico e qualquer dos descritores utilizados no estudo.

Discussão

Os achados do presente estudo indicam duas diferenças significantes (e de sentido oposto) entre os alunos do currículo em desativação e do currículo em implantação, nas duas características motivacionais: magnitude de motivação para aprender e grau de auto-confiança como aprendiz. A motivação para aprender pode ter sido intensificada pela própria mudança curricular e o entusiasmo gerado entre os participantes. Já no caso da autoconfiança, a relação com o processo curricular é menos evidente.

A propósito, um comentário sobre as indicações de preferência por carreira. Embora as diferenças observadas não tenham sido significantes, as proporções apontam para a tendência histórica77. SOAL, D. T.- Preferência por Medicina geral num curso de Medicina: relação com mudança na ambiência clínica. Rev. Hosp. Clin. Fac. Med. S. Paulo, 48 (1): 48-52, 1993. de queda na preferência por áreas de atendimento de "primeiro contacto". Essa tendência, aliás, é contrária ao propósito nominal do novo currículo de formar o médico geral, -conforme proposto no documento base de criação.

A ausência de diferenças significantes entre os grupos nas médias de rendimento acadêmico (obtidas durante a iniciação clínica) sugere que o nível de conhe­cimento biomédico dos estudantes não foi substancialmente afetado pela reestruturação curricular. Não foram realizados neste estudo, contudo, exames de resolução de problemas os quais seriam mais apropriados para à ferir o conhecimento funcional dos aprendizes.

Os dados do inventário de valorização do curso (IVC) são de interesse especial. - Os escores desse instrumento detectam a atratividade da vivência de aprendizagem: seu valor e significado pessoal. Noutro estudo mostrou-se, por exemplo, que a incorporação de um enfoque de aprendizagem baseada em problemas a um dos blocos do pré-clínico resultou em significativa elevação dos escores do IVC. Naquele caso, fatores de qualidade da aprendizagem (motivação, atividade do aprendiz, interação interpessoal) podem ter contribuído para tal elevação99. SOBRAL, D.T. - Aprendizagem baseada em problemas: efeitos no aprendizado. R. Bras. Educ. Med.. 18(2): 61-64, 1994..

No caso presente, as diferenças observadas podem resultar tanto da vivência curricular, quanto da própria composição do alunado, antes e depois da alte­ração curricular. Em tese, por ocasião da obtenção dos dados, as percepções dos estudantes do novo currículo, quanto ao valor e significado do aprendizado anterior, eram mais favoráveis. O efeito direto da mudança curricular nos escores do IVC pode estar associado à percepção de organização e estrutura dos conteúdos. No currículo em desativação, desajustes de funcionamento e inadequação dos conteúdos podem ter sido mais nitidamente percebidos pelos estudantes.

A maior parcela das diferenças entre os escores do IVC nos dois grupos são atribuíveis, contudo, às diferenças nas características motivacionais, conforme revelado pela análise de regressão. Observaram-se associações significantes e independentes do escore total do IVC com a magnitude de motivação, o estilo ativo de aprendizagem, o grau de autoconfiança como aprendiz e a preferência por carreira em clínica médica, ou cirurgia (incluindo subespecialidades em ambos os casos). As características individuais dos estudantes, portanto, podem ter um efeito mais forte na percepção do valor e significado do aprendizado pré-clínico do que o fato de pertencerem a um ou a outro currículo. Soo uma perspectiva mais ampla, o próprio contexto educativo diverso - constituído por características dos estudantes, valores cios docentes, atividades formais e informais, processos de comunicação - pode ser a fonte direta dos efeitos observados, conforme discutido por Friedman e colegas22. FRIEDMAN, C.P., BLIEK, R., GREER, D. S. e col.- Charting the winds of change: evaluating inno­vative medical curricula. Acad. Med., 65( 1 ): 8- 14, 1990..

Na verdade, seis anos após o início da implantação do novo currículo, já existe um movimento para sua reforma, embora sem raízes profundas no corpo docente. Chama a atenção que, dentre os princípios propugnados por esse movimento, esteja a noção da interdisciplinaridade - que fora descartada na reformulação de 1988. Parece claro que os subsídios obtidos da análise dessa experiência recente poderiam ajudar a delinear planos mais sólidos de mudanças futuras.

Concluindo, o estudo aqui relatado enfocou dois efeitos potenciais importantes ele renovamentos curriculares - a satisfação dos aprendizes e o conhecimento biomédico aplicado na iniciação clínica. Os achados relatados são parciais e não permitem predizer, com segurança, efeitos mais significativos da mudança curricular nos comportamentos dos concluintes do curso. De qualquer forma, os resultados são pertinentes para o planejamento curricular futuro e, também, para o estabelecimento da -monitoração e avaliação do programa.

Referências bibliográficas

  • 1
    ANDREW, F.M., KLEM, L. DAVIDSON, T.N. e col.-A Guide for Selecting Statistical/ Techniques for Analysing Social Science Data. Ann Arbor, Institute for Social Science Research, University of Michigan, 1981.
  • 2
    FRIEDMAN, C.P., BLIEK, R., GREER, D. S. e col.- Charting the winds of change: evaluating inno­vative medical curricula. Acad. Med., 65( 1 ): 8- 14, 1990.
  • 3
    KIRKWOOD, B.R. - Essentials of Medical Statistics. Oxford, Blackwell, 1988.
  • 4
    KOLB, D.A. - Experimental Learning. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1984
  • 5
    HARDEN, R.M., SOWDEN, S. & DUNN, W.R. -Some educational strategies in curriculum development: the SPICES model. Medical Education, 18( 4 ): 283-297.
  • 6
    NEHARI, M. & BENDER, H. - Meaningfulness of a learning experience: a measure for educational outcomes in higher education. Higher Education, 7 (1): 1-11, 1978.
  • 7
    SOAL, D. T.- Preferência por Medicina geral num curso de Medicina: relação com mudança na ambiência clínica. Rev. Hosp. Clin. Fac. Med. S. Paulo, 48 (1): 48-52, 1993.
  • 8
    SOBRAL, D.T. - O curso de Medicina de Brasília: problemas e perspectivas. Brasília Médica. 30 (supl.4): 11-23, 1993.
  • 9
    SOBRAL, D.T. - Aprendizagem baseada em problemas: efeitos no aprendizado. R. Bras. Educ. Med.. 18(2): 61-64, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1996
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