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O Ensino Médico e os Novos Cenários de Ensino-Aprendizagem

Medical Education and New Scenarios for Teaching/Learning

Resumo:

Este artigo trata da integração da Escola Médica em cenários diversificados de ensino-aprendizagem, tendo em vista as inúmeras críticas no setor; quanto à inadequação e insuficiência do conteúdo disciplinar, ao formar médicos despreparados para abordagem da clientela em ambiente extra-hospitalar e distanciados da realidade de trabalho necessária a sociedade. Discorre-se sobre as propostas de novos cenários de prática no âmbito do ensino médico a partir de órgãos oficiais - tais como ABEM, CINAEM, Ministérios da Educação e da Saúde, OPAS - no sentido de inserir as Escolas Médicas nas discussões em torno de um novo modelo de atenção a saúde da população. Nesse processo de integração com as escolas, o SUS tem papel fundamental como cenário, através da rede de unidades de saúde. Práticas de extensão universitária, articulando ensino e pesquisa, igualmente proporcionam contato de professores e alunos com realidades sociais. A seguir, apresentam-se algumas experiências desenviolas por algumas Escolas Médicas do pais, em cenários diversos; tais como escolas e serviços da rede básica de saúde. Por fim, apresentamos nossa experiência curricular de integração ensino­serviço junto à UNIGRANRIO, no município de Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro.

Palavras-chave:
Ensino; Aprendizagem; Educação Médica

Abstract:

This article deals with the integration of Medical School in several teaching-learning scenarios in light of the inadequacy and insufficiency of course contents, to the extent that Medical School trains physicians who are unprepared to treat health system clients in non-hospital settings and are estranged from society's health needs. The article expounds on proposals for new settings for practices in medical education based on the position of official agencies, including the Brazilian Association for Medical Education (ABEM), Inter-Institutional Commíssion for the Evaluation of Medical Education (CINAEM), the Ministries of Education and Health, and the Pan-Ameriam Health Organization (PAHO), in the sense of including Medical Schools in the discussions on a new health care model for the Brazilian population. In this process of integration with the schools, the United National Health System (SUS) plays a central role as a setting, through the networlk of health care units. University extension activitics linking teaching and research also provide contact between faculty and students and various social realities. The article goes on to discuss experiences developed by several Medical Schools in Brazil in various settings, such as schools and primary health care services. The authors conclude by presenting their curricular experience with the integration of teaching and health services at UNIGRANRIO in the municipality of Duque de Caxias in Rio de Janeiro state.

Key-words:
Teaching; Learning; Education, Medical

INTRODUÇÃO

Muito se tem criticado a inadequação e a insuficiência do conteúdo disciplinar das escolas médicas ao formar médicos despreparados para abordagem da clientela em ambiente extra-hospitalar. De acordo com E. Almeida, a prática extra-hospitalar vem sendo considerada essencial, ocupando "lugar estratégico no projeto médico moderno, articulada a uma outra realidade de discurso e de demanda"11. Almeida E. Medicina Hospitalar - medicina extra-hospitalar: duas medicinas? [Dissertação] Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1988.. Todavia, paradoxalmente, uma formação acadêmica que dê conta do tipo de clientela extra­hospitalar está longe de ser satisfatória, na medida em que se prioriza a formação especializada e científica.

Na ótica do autor, "o discurso da medicina científica está estruturado para dar conta basicamente da clientela hospitalar"11. Almeida E. Medicina Hospitalar - medicina extra-hospitalar: duas medicinas? [Dissertação] Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1988., de forma que a prática não hospitalar (focada em diferentes espaços, tais como o ambulatório, a família, o trabalho, a escola) - por trabalhar com um referencial de objeto que não somente o corpo anatômico da medicina hospitalar, mas também o social - não tem encontrado correspondência adequada na abordagem da Escola Médica.

Discute-se, também, o distanciamento que há entre o perfil do médico, egresso das faculdades de medicina, da realidade de trabalho necessária à sociedade. Paralelamente, as políticas públicas privilegiam os campos de atuação profissional como espaços de inserção do aluno, o que contribui para movimentos mais consistentes na mudança da formação de profissionais de saúde, principalmente de medicina, no sentido de melhor adequá-los às propostas de reformas da prática médica. Estas, conforme análise de E. Almeida, dizem respeito essencialmente à prática extra-hospitalar.

Neste panorama inscrevem-se, por exemplo, propostas de reformulações no campo da medicina preventiva, orientada para uma intervenção anterior à manifestação clínica (anos 40-50); da medicina comunitária (anos 60), focada nos pequenos grupos (família, alcoólatra, etc.); da atenção primária à saúde (anos 70), a qual preconiza ampliação de cobertura e formação profissional de nível básico. Todas essas formas de intervenção se inscrevem no campo da medicina extra-hospitalar, privilegiando-se do "espaço social" e assessorando-se das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia).

Durante os anos 70, observando que a formação médica deva ajustar-se às exigências da sociedade quanto à prestação de serviços, reitera-se a necessidade de reforma da educação médica como um instrumento para a melhoria da assistência à saúde e da qualidade da prática médica. Introduziram-se programas de medicina preventiva e social, comunitária e projetos de integração docente-assistencial, os quais, segundo determinadas avaliações, pouco puderam fazer quanto a mudanças mais profundas na escola médica e na educação médica em geral2424. Santini L. A educação médica e a reforma sanitária. Cad Saúde Pública 1986; 2(4).. Também, conforme análise d Almeida22. Almeida MJ. Educação Médica e Saúde : Possibilidades de Mudança. Londrina: Ed. UEL, ABEM; 1999., as propostas de reformas e mudanças no ensino médico nos anos 70-80 não surtiram o efeito esperado; ou seja, propostas orientadas pela medicina comunitária, medicina geral, familiar, integração docente-assistencial - alterações curriculares que na realidade fossem representar transformações na essência da educação médica - primaram pelo insucesso.

Igualmente, Chaves e Rosas ao ressaltar a pouca atenção dada à assistência primária no curso de graduação-que contrasta com a atenção privilegiada em relação às ações curativas prestadas nos hospitais de níveis secundário e terciário ­ entendem que os currículos do curso médico não prepararam apropriadamente os recém-formados para sua prática, especialmente no campo da atenção primária. Têm-se constituído nos hospitais universitários o campo de prática preferencial do ensino médico, embora, ainda distante, da realidade circundante. Em tais instituições, os ambulatórios raramente servem como locais para o ensino clínico, ocorrendo este, preponderantemente, nas enfermarias, as quais, por sua vez, internam pacientes graves e que geralmente requerem tecnologia sofisticada para o diagnóstico. Há uma ênfase dominante no estabelecimento de diagnósticos e tratamentos de doenças, em detrimento de ações de prevenção, promoção e cuidados em saúde; uma preocupação excessiva com doenças complexas, curas e alta tecnologia.

Assim, afirmam os autores, tanto estudantes quanto médicos em treinamento pós-graduado, em geral "não se defrontam com a maioria dos problemas de saúde das populações, porque estes são vistos, sobretudo, em unidades de saúde localizadas na comunidade"88. Chaves M, Rosa AR (orgs.). A Educação Médica nas Américas; o desafio dos anos 90. São Paulo: Cortez; 1990., nas quais predominam as ações de assistência primária à saúde. É fundamental, pois, que sejam revistas as decisões sobre os locais mais adequados ao ensino clínico, tendo em vista a necessidade de se adquirir conhecimentos e habilidades à assistência de pacientes extra-hospitalares. Os hospitais, isoladamente, não propiciam um campo suficiente de treinamento ao aluno, estando centrado nas enfermarias, na prática médica focada na alta tecnologia e nos custos elevados.

Argumentando que a melhor maneira de se adquirir conhecimentos, habilidades e atitudes seria exercitando ações que exijam tais elementos, Chaves e Rosa88. Chaves M, Rosa AR (orgs.). A Educação Médica nas Américas; o desafio dos anos 90. São Paulo: Cortez; 1990. postulam que “A estratégia educacional deve ser o treinamento em serviço", e que tal treinamento em unidades de saúde deva ser implementado o mais precocemente possível, colocando, desde o início do curso, o aluno na vida profissional e em contato permanente com o professor.

Segundo Fraga1515. Fraga CF. Ensino Médico: bases e diretrizes para sua reformulação. Rev Bras Educ Méd 1986;10(2)., a articulação dos setores de formação de recursos humanos e de prestação de serviços, no Brasil, tem sido proposta desde 1974, ano da publicação do "documento n° 2 - Ensino Médico e Instituições de Saúde - da Comissão de Ensino Médico do MEC". Tal órgão preconiza que a formação do médico deve, obrigatoriamente, participar dos trabalhos de unidades de saúde. Em 15 de julho de 1975, a lei n° 6.229 dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Saúde, destacando o papel central da integração docente-assistencial e estabelecendo o funcionamento dos hospitais universitários, baseado em critérios pautados nas condições de saúde reais da comunidade. Fraga define a "regionalização docente-assistencial" como "uma rede sistemática e racionalizada das unidades de saúde, que, conservando suas atribuições, se coordenam em tomo de objetivos assistenciais e de ensino", e acrescenta que a não-articulação observada entre os sistemas de educação e de saúde faz com que a formação de recursos humanos se mantenha indefinida1515. Fraga CF. Ensino Médico: bases e diretrizes para sua reformulação. Rev Bras Educ Méd 1986;10(2)..

Em suma, a adequação da formação e capacitação de recursos humanos, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, para os novos serviços que se apresentam, deve contemplar metas da escola médica. No entanto, como afirma Almeida22. Almeida MJ. Educação Médica e Saúde : Possibilidades de Mudança. Londrina: Ed. UEL, ABEM; 1999., ainda hoje "há clara sinalização de que o setor educaciona1, as universidades em particular, continuam desvinculados da reorganização dos serviços, da redefinição das práticas de atenção e dos processos de reforma". Ainda nos anos 70, denunciava-se a inexistência de uma política de preparação de mão-de-obra para um setor de saúde carente, agravado pela inadequação da mentalidade adquirida pelos profissionais de saúde - incutida pelo sistema educacional-, mentalidade esta que pouco se modificou ao longo dos anos acerca de seu papel social, gerando grandes dificuldades para os dirigentes dos serviços de saúde44. Braga E. Planejamento de saúde e integração docente­assistencial: algumas considerações. Rev Adm Pública 1977; 11(3)..

Toma-se evidente que as propostas de mudanças encontram resistências à sua efetivação. Embora formuladas há cerca de mais de trinta anos, as propostas de integração docente- assistencial e modificações do currículo médico visando à integração das disciplinas não têm tido sucesso. Para muitos dos "resistentes", a pesquisa e o desenvolvimento da ciência médica estariam prejudicados pelo "desvio de tempo e energia dos professores de medicina para o serviço, deixando de expor os estudantes às idéias mais avançadas sobre os mecanismos básicos da doença"88. Chaves M, Rosa AR (orgs.). A Educação Médica nas Américas; o desafio dos anos 90. São Paulo: Cortez; 1990.. Para outros, tentativas de mudanças curriculares com tal enfoque assistencial contrariariam a "qualidade científica da educação médica". Segundo Fraga1515. Fraga CF. Ensino Médico: bases e diretrizes para sua reformulação. Rev Bras Educ Méd 1986;10(2)., para muitos profes­sores, a articulação entre o ensino e o serviço representa o afastamento da escola médica "do que consideram sua principal tarefa: a pesquisa e o desenvolvimento da ciência médica", e ainda, implicaria uma provável queda da qualidade da assistência, considerando-se "as missões acadêmicas e sociais inconciliáveis".

Nesse contexto, Cordeiro e Quadra1010. Cordeiro HA, Quadra AA.O feitiço das reformas curriculares no Ensino Médico. Rev Bras Educ Méd 1978; 2(2). descrevem tentativas, todas insatisfatórias, de se implementarem reformas nas escolas médicas da América Latina, atendendo às características da medicina extra-hospitalar. Assim, são propostos os programas de Medicina Preventiva, Medicina Familiar, aspectos preventivos e sociais da Medicina, Medicina Comunitária e projetos de integração docente-assistencial. Em relação ao insucesso das tentativas, afirma o autor: "têm sido privilegiadas as explicações simplistas que atribuem o ônus do insucesso das reformas à inércia do pessoal docente, indiferença ou rebeldia estudantis, conservadorismo dos dirigentes, descaso dos administradores, falta de aparelhagem"1010. Cordeiro HA, Quadra AA.O feitiço das reformas curriculares no Ensino Médico. Rev Bras Educ Méd 1978; 2(2).. Para Cordeiro e Quadra, a integração docente-assistencial seria a proposta que conseguiria mais adeptos entre as diferentes facções dos diferentes projetos de escola médica. Apenas, segundo os autores, entre os médicos favoráveis à prática médica autônoma, dominante no período anterior ao desenvolvimento previdenciário, tal proposta não seria bem recebida, argumentando-se para tanto que a integração docente-assistencial massificaria o ensino, sobrecarregaria os docentes com atividades assistenciais e impediria “a seleção de casos ilustrativos para as demonstrações de ‘beira de leito’”.1010. Cordeiro HA, Quadra AA.O feitiço das reformas curriculares no Ensino Médico. Rev Bras Educ Méd 1978; 2(2).

Tendo em vista a necessidade de se estar permanentemente vinculando a formação profissional e ao mundo do trabalho, há um consenso no sentido de se questionar a utilização de campos de prática, que serão o contato do estudante com o ambiente profissional, de forma tardia e geralmente em serviços de alta complexidade, tais como os hospitais universitário2121. Pierantoni CR, Ribeiro ECO. A importância do processo de Educação permanente na formação do médico: o docente como inovador /mediador/indutor de condições de auto-aprendizagem. In: Arruda BKG (org.). A educação profissional em saúde e a realidade social. Recife (PE): Instituto Materno Infantil de Pernambuco; 2001.. Assim "os modelos curriculares vigentes, salvo exceções, não prevêem em suas estruturas contatos do aluno com o mundo do trabalho a ser realizado no campo faturo de atuação profissional, em seus diferentes níveis de complexidade", de forma que à formação médica impõem-se reflexões e planejamentos que considerem a articulação ensino-trabalho como eixo metodológico2121. Pierantoni CR, Ribeiro ECO. A importância do processo de Educação permanente na formação do médico: o docente como inovador /mediador/indutor de condições de auto-aprendizagem. In: Arruda BKG (org.). A educação profissional em saúde e a realidade social. Recife (PE): Instituto Materno Infantil de Pernambuco; 2001..

A ESCOLA MÉDICA E AS PROPOSTAS DE NOVOS CENÁRIOS

As escolas médicas brasileiras, por sua vez, entre as inúmeras respostas as quais são chamadas a apresentar, mediante as importantes transformações da profissão e trabalho médico, e da implantação do Sistema Único de Saúde, vêem-se forçadas a participar das discussões em tomo de um novo modelo de atenção à saúde da população.

Nesse sentido, órgãos como a ABEM (Associação Brasileira de Escolas Médicas) e o CFM (Conselho Federal de Medicina) se organizaram com o objetivo de avaliar o ensino médico no Brasil, sendo formada uma expressiva comissão (a CINAEM - Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) visando basicamente à melhoria do ensino médico e o aperfeiçoamento do sistema de saúde.1 1 A CINAEM compões se de 11 entidades da área médica: Academia Nacional de Medicina (ANM), Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), Associação Médica Brasileira (AMB), Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior/Sindicato Nacional (ANDES/SN), Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), Conselho Federal de Medicina (CFM), Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM) e Federação Nacional dos Médicos (FENAM). Este trabalho - o projeto CINAEM - desenvolveu-se em várias etapas a partir de 1991. Como um dos princípios de desenvolvimento da docência nas escolas médicas do projeto, recomenda-se uma atuação prática em serviços e/ou comunidade, desde o início do curso em todas as atividades docentes, o que toma as políticas de diversificação de cenários centrais para a proposta. A CINAEM, ao elaborar suas diretrizes e políticas de profissionalização da docência médica, define claramente as referências à integração ensino-serviço. Nestas "diretrizes técnico-políticas de integração ensino-serviço" propõem-se políticas de integração com os serviços de saúde e de parceria com o SUS, desenvolvendo-se atividades de ensino médico nos serviços de atendimento do Sistema Público de Saúde e credenciados. Propõe-se, inclusive, que profissionais de saúde da rede de serviços sejam credenciados como preceptores e tutores de ensino.

A par de toda a discussão em tomo das necessidades de transformações no ensino médico, finalmente o presidente da entidade federal, responsável pelas deliberações do setor - a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES/CNE), divulga uma "Minuta do Anteprojeto das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina", em 1999, norteando a organização curricular das Instituições brasileiras de Ensino Superior. Tais diretrizes definem princípios, fundamentos, objetivos, competências e conteúdos da formação médica. Neste documento, obviamente, não poderiam estar ausentes referências quanto à integração ensino-serviço-comunidade e à ênfase para que a aprendizagem seja baseada na prática. Ao perfil do formando em medicina deve ser incluída a compreensão e a intervenção nas necessidades de indivíduos e comunidades em "situação social especifica". Mais claramente, um artigo dispõe que "as unidades de ensino-aprendizagem devem contemplar diferentes cenários, permitindo ao aluno conhecer ativamente situações variadas de viver a vida" (Art.10°). O artigo seguinte recomenda o início do contato do aluno com os serviços; seus usuários e trabalhadores desde o início da formação, "proporcionando ao aluno lidar com problemas reais". Coroando as recomendações, o art. 12º estabelece que "A integração ensino-serviço deverá vincular a formação médico-acadêmica à realidade do SUS". Ou seja, desde cedo no curso de medicina o aluno deve frequentar diferentes cenários que atendam, no mínimo, quesitos para uma formação integral, nos diversos níveis de assistência, e ambientes de possível atuação profissional do médico (para além desse mínimo, pode-se, então, pensar em outras "situações variadas de viver a vida").

Em 2001, a Comissão da CES/CNE resolve recomendar a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais, entre outra, do Curso de Graduação de Medicina, após analisar as propostas encaminhadas pelo MEC juntamente com outros documentos (Constituição Federal de 1988, leis, pareceres, planos, relatórios, etc., documentos da OPAS, OMS, entre outras entidades). As Diretrizes, juntamente com projeto pedagógico próprio, orientariam as escolas médicas quanto ao perfil acadêmico e profissional do formando. Endossando o conteúdo do anteprojeto no tocante à diversificação de cenário as Diretrizes recomendam, também, a aquisição de conhecimentos, habilidade e competências fora do ambiente escolar, fortalecendo a articulação da teoria com a prática em, por exemplo, estágios e atividades de extensão. Compondo a estrutura do curso de graduação em Medicina, destacamos a recomendação quanto à inserção precoce em atividades práticas "relevantes para a sua futura vida profissional" e quanto a utilização de “diferentes cenários de ensino-aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional99. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Orientação para as diretrizes curriculares nos cursos de graduação. Brasília (DF): CNE; 1997.. Endossa-se, portanto, a recomendação de que a integração ensino-serviço se desenvolva de forma a vincular a formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS. Novamente, associa-se a proposta de uma formação médica mais adequada e de melhor qualidade à atuação na rede de saúde hierarquizada do SUS.

Paralelamente às iniciativas da CINAEM - de cuja comissão faz parte o Ministério da Educação - o Ministério da. Saúde, evidenciando a necessidade atual de ações das diversas esferas governamentais superiores quanto à formação profissional, e tendo em vista sua política de saúde quanto a um modelo assistencial alinhado com os princípios do SUS, vem propor mudanças no ensino médico. Em âmbito nacional, reafirma-se a estratégia Saúde da Família como eixo estruturante da organização dos serviços da rede pública do pais, esperando-se importantes transformações das práticas em saúde. Nesse sentido, as esferas governamentais e instituições de ensino têm despendido esforços visando suprir a insuficiência de recursos humanos preparados para atuar no Programa de Saúde da Família do Ministério da Saúde, o qual se apresenta propondo mudanças estruturais no setor saúde.

Tendo em vista a necessidade de se implementar uma lítica de formação e capacitação permanente de recursos manos adequados para atender as demandas do Programa Saúde da Família, o Ministério da Saúde investe no desenvolvimento dos Polos de Capacitação, Formação e Educação Continuada em Saúde da Família. Tal concepção propõe a articulação entre os serviços de saúde e instituições de ensino, esperando-se que se promovam mudanças nos cursos de graduação e implantação de programas de pós-graduação, contas a qualificar profissionais com um perfil adequado.

Baseado em princípios inscritos no regimento legal do Sistema Único de Saúde, destacando-se a universalidade, a equilidade, a integralidade, a descentralização, a hierarquização e a participação da comunidade; o Programa de Saúde da Família propõe a reorientação do modelo assistencial vigente. A partir unidade básica de Saúde da Família - focada como a porta entrada do sistema - busca-se uma nova dinâmica na estruturação dos serviços de saúde, estabelecendo relações entre os diversos níveis de complexidade de assistência e a comunidade. Como postulados da atuação das equipes de Saúde da Família, segundo a Coordenação de Atenção Básica/Ministério da Saúde, temos, em suma: a adscrição de famílias em área geográfica especifica; multiprofissionalidade da equipe e interdisciplinaridade; ações continuadas envolvendo indivíduos, suas famílias e comunidades; inserção hierarquizada no sistema de saúde1919. Brasil. Ministério da Saúde, DAB/SPS. Programa Saúde da Família. Informes Técnicos Institucionais. Revista Saúde Pública, 2000; 34(3).. Espera-se que, por ser um projeto estruturante, acabe provocando uma transformação interna do sistema, organizando as ações e serviços de saúde como um todo. Espera-se, sobretudo, que sejam geradas novas práticas de saúde. Para tanto, impõe-se a necessidade de novos profissionais com visão diferenciada da tradicionalmente desenvolvida nas instituições de ensino em saúde.

Assim sendo, tal modelo de atenção à saúde, estruturado à partir basicamente de uma unidade básica (inserida num sistema de saúde hierarquizado) e a comunidade de sua área de abrangência, configura-se como cenário importante para os alunos no sentido da apreensão de conteúdos e habilidades, próprios da prática médica, relacionados com a atenção primária à saúde, centrada em comunidades e suas famílias. Com uma concepção semelhante, desenvolve-se na faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Londrina, desde 1992, um projeto de ensino denominado "PEPPIN - Integrando Ensino, Serviço e Comunidade"2020. Nunes EFPA, Silva VLM, Sakai MH. PEEPIN-PIM: práticas interdisciplinares e multiprofissionais; interação ensino-serviço-comunidade; Manual do Instrutor. Londrina: Ed UEL; 2001.. Nesta experiência, o ensino encontra-se fundamentado na comunidade e suas características específicas, e é desenvolvido, integrado ao sistema de saúde. Como objetivo geral, tal projeto propõe "colocar o aluno precocemente em contato com atividades de atenção à saúde na comunidade2020. Nunes EFPA, Silva VLM, Sakai MH. PEEPIN-PIM: práticas interdisciplinares e multiprofissionais; interação ensino-serviço-comunidade; Manual do Instrutor. Londrina: Ed UEL; 2001..

O compromisso das instituições universitárias para com as comunidades de sua área encontra, assim, espaço privilegiado de expressão e interações. Estreitam-se, portanto, os desejáveis laços de parceria entre a Universidade, os serviços de saúde e a comunidade.

No atual contexto de implantação e consolidação do SUS no país, quando vemos que a formação de recursos humanos em saúde para o setor ainda representa um impasse na direção do modelo assistencial que se quer adotar, as propostas de diversificação de cenários de ensino-aprendizagem vêm se destacando de forma crescente no âmbito das escolas médicas, configurando-se corno estratégia indutora de importantes mudanças no processo de formação profissional nesse sentido1313. Feuerwerker L, et al. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg Saúde para Debate 2000; (22).. Tais propostas, atualmente, além do desenvolvimento do desejável papel social das universidades na produção e utilização de conhecimentos, contribuiriam para a formação de profissionais com perfis apropriados ao país. Mais que isso, movimento em direção à formação de profissionais adequados às necessidades sociais e à prestação de serviços oportu­nos e de qualidade, toma-se uma questão de sobrevivência das universidades1313. Feuerwerker L, et al. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg Saúde para Debate 2000; (22)..

NOVOS CENÁRIOS PARA A FORMAÇÃO MÉDICA E A INTEGRAÇÃO ENSINO-SERVIÇO

Feuerwerker et al.1313. Feuerwerker L, et al. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg Saúde para Debate 2000; (22). argumentam que a diversificação de cenários tem, como um dos objetivos fundamentais, o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem na realidade social dos serviços de saúde e da comunidade. Esse último elemento - isto é, o envolvimento com comunidades - por si só, já se diferencia e evidencia a supremacia da proposta contida na diversificação de cenários em relação às propostas pela IDA (Integração Docente Assistencial).

Realmente, conforme Cordeiro1111. Cordeiro HA. As faculdades devem estar abertas para o trabalho com o SUS. Boletim da ABEM 2001; (4)., nas primeiras propostas de integração com o serviço, a comunidade "era vista como um laboratório", sem realmente incorporar os alunos, engajando-os em processos reais de trabalho. O movimento de medicina comunitária do ensino médico em certa época, entretanto, recebeu críticas e resistências por parte dos alunos à medida que era compreendido como proposta de exposição a situações de pobreza social.

Identificando a necessidade de se trabalhar com os cenários de aprendizagem de forma permanentemente dinâmica e em construção, ao se tratar de atuação em situações reais e a partir dos problemas identificados, Feuerwerker define a categoria "Cenários de Aprendizagem" como "um conceito ampla, que diz respeito não somente ao local onde se realizam as práticas, mas também aos sujeitos nelas envolvidos, à natureza e conteúdo do que se faz, etc."1313. Feuerwerker L, et al. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg Saúde para Debate 2000; (22).. Neste conceito estariam incluídos aspectos pedagógicos, morais e éticos os quais conformar-se­iam na interação entre os agentes, e também os relacionados aos saberes e práticas, devendo-se ter sempre presentes reinterpretações do processo saúde-doença, à luz da dinâmica social.

Ao considerar os cenários de aprendizagem como espaços a serem construídos por estudantes e docentes ao se incorporarem na produção de serviços de saúde e na comunidade, surgem oportunidades constantes de se vivenciarem embates de interesses e escolhas. Tal processo constitui um importante celeiro para transformações políticas de saúde e de formação, a partir do desenvolvimento de uma interpretação crítica do sistema de saúde.

Pretende-se, sobretudo, que tais cenários não reproduzam as práticas e atitudes tradicionais do hospital universitário e dos centros de saúde-escola em tais locais, ao mesmo tempo em que também se pretende não descaracterizá-los em sua natureza, sendo que:

"num contraponto às práticas tradicionais (... ) essas práticas nos 'Cenários de Aprendizagem' enfatizam a promoção e a proteção da saúde, considerando processos sociais vinculados a saúde, os modos de viver e de trabalhar peculiares aos territórios, bem como a atuação sobre os problemas concretos de saúde - tais como danos, riscos, ameaças de risco e seus fatores condicionante e determinantes - e sobre os modos como a sociedade os enfrenta" 13 13. Feuerwerker L, et al. Diversificação de cenários de ensino e trabalho sobre necessidades/problemas da comunidade. Divulg Saúde para Debate 2000; (22). .

Nessa linha, Cordeiro1111. Cordeiro HA. As faculdades devem estar abertas para o trabalho com o SUS. Boletim da ABEM 2001; (4). destaca a articulação do processo de trabalho como elemento renovador no processo de cons­trução do conhecimento em saúde, a partir da integração ensino-serviço. O autor propõe, desde cedo, na formação, a participação de estudantes no processo de trabalho em saúde, em cenários em que possam conhecer modelos de organização da assistência e se envolver com atividades de promoção de saúde e prevenção, como a melhor forma de se compreender e aprender o papel social da medicina, e afirma: "a idéia não é só colocar em contato para observar, é inserir o estudante em todos os conflitos da formação do médico e a prática de saúde, conflitos de decisões, diagnósticos, com a situação social dos pacientes".

Neste processo de integração com as escolas, o SUS tem papel fundamental como cenário, através da rede de unidades de saúde - as unidades básicas de saúde e os hospitais distritais e estaduais - e suas práticas de reabilitação, recuperação e de saúde coletiva. A diversificação de cenários, além do tradicional hospital e suas enfermarias, igualmente a distribuição da atuação do aluno em comunidades, ambulatórios e unidades básicas, também aproximaria melhor a formação médica da tomada de decisões baseadas nas prioridades de saúde.

Na América Latina, já em 1994, vemos a Organização Panamericana de Saúde e a Federação Panamericana de Associações de Faculdades (Escolas) de Medicina (FEPAPEM), preconizarem - como importante eixo educacional - um ensino médico próximo à sociedade, no sentido de superar suas limitações. Práticas de extensão universitária, articulando ensino e pesquisa, igualmente proporcionam o contato de professores e alunos com realidades sociais. Além de articular o ensino e a pesquisa, a teoria/prática em atividades ligadas ao ambiente social e aos aspectos da realidade, a extensão envolve a participação da comunidade no trabalho universitário.

De acordo com a concepção de Extensão Universitária, vista no 1° Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, em 1987,

"este fluxo, que estabelece a troca de saberes sistematizados - acadêmico e popular, terá como consequência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e regional; e a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade" 11 11. Cordeiro HA. As faculdades devem estar abertas para o trabalho com o SUS. Boletim da ABEM 2001; (4). .

O resultado das atividades da Universidade, tanto da extensão quanto das pesquisas e do ensino, encontra, na extensão, importante oportunidade de poder ser disponibilizado para a sociedade. Conforme Malheiros e Guimarães1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3)., em relação ao currículo, a extensão é a função universitária que melhor articula o compromisso do estudante da área de saúde com a comunidade, promovendo um ambiente de aprendizado adequado.

As atividades em Extensão proporcionariam um melhor desenvolvimento do relacionamento e comunicação entre a equipe de saúde e desta com a comunidade, possibilitando ao acadêmico "modular de forma mais efetiva seu estudo, redimensionando a relevância de determinados conteúdos curriculares, e adquirir a gama de experiências práticas que os hospitais universitários não podem proporcianar"1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3)..

Além disso, ao permitir aos alunos ampliar suas experiências práticas, a extensão preencheria a demanda dos acadêmicos por estágios extracurriculares, agora com melhores perspectivas de desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem, pois tais estágios se dão, em geral, de forma inadequada e sem supervisão docente1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3).), (2323. Rego STA. O processo de socialização profissional na medicina.In: Machado MH (org.). Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1995.. Para os autores, o envolvimento do estudante na extensão promoveria um sentimento de "valorização pessoal e profissional" ao ampliar o poder de participação do estudante em atividades práticas, representando, desde cedo, uma entrada no mercado de trabalho1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3)..

O ensino médico, enfim, seria grandemente beneficiado em qualidade se as parcerias de trabalhos entre a Universidade e as comunidades, bem como instituições diversas, tais como unidades de saúde, empresas, escolas, etc., se realizassem através da Extensão Universitária.

SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

Nesta linha, os cenários de escolas apresentam-se como importantes espaços de desenvolvimento de ações que articulam os serviços de saúde, a Universidade e o sistema públi­co (ou não) escolar. Num processo de elaboração de estratégias que integram os campos da saúde e da educação, Cyrino1212. Cyrino EG, Pereira MLT. Reflexões sobre urna proposta de integração saúde-escola: o projeto saúde e educação de Botucatu, São Paulo. Cad. Saúde Pública1999; 15 (sup.2): 39-44., a partir do atendimento à saúde da criança em idade escolar, descreve experiência na qual, ao mesmo tempo em que, através de estágios, atende à formação de recursos humanos nas áreas de saúde e educação, também trabalha com professores de escolas públicas questões dos campos da saúde e da educação quanto à abordagem de problemas apresentados pelas crianças em fase de escolarização.

Há uma preocupação dos agentes, no sentido de que a experiência não seja, como outros, um programa de Saúde Escolar do tipo assistencialista, fragmentando atividades em assistências odontológica, oftalmológica ou psicológica, mas sim, que se trabalhe com uma visão ampliada de saúde. A equipe é composta de profissionais das áreas de educação e saúde, de diversas instituições: Secretaria Municipal de Saúde e Meio Ambiente de Botucatu, a Faculdade de Medicina de Botucatu/Departamento de Saúde Pública, Departamento de Educação do IB /UNESP e Centro de Saúde Escola da UNESP, Secretaria de Saúde e Secretaria da Educação da Prefeitura Municipal de Botucatu; a linha de trabalho desenvolve-se com enfoque maior na compreensão, orientação e ação quanto ao acesso saúde-doença e seus determinantes.

Conforme o relato, houve uma efetiva integração da equipe com as escolas, surgindo novas demandas em projetos de extensão universitária voltados para uma atuação pedagógica nos campos da educação e da saúde. Visa-se, ao final, "formar profissionais críticos, capazes de perceber a complexidade dos problemas da criança em processo de escolarização e o papel da equipe interdisciplinar no trabalho com o escolar"1212. Cyrino EG, Pereira MLT. Reflexões sobre urna proposta de integração saúde-escola: o projeto saúde e educação de Botucatu, São Paulo. Cad. Saúde Pública1999; 15 (sup.2): 39-44.. Uma outra experiência, integrando o ensino com saúde escolar, é relatada em um trabalho desenvolvido pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo1818. Mascaretti LAS. O ensino de saúde escolar no Centro de Saúde Escola "Prof. Samuel B. Pessoa" da Faculdade de Medicina da USP - Departamento de Pediatria. Pediatria (São Paulo) 1997 19(4): 234-240.. Embora não se trabalhe com o cenário das escolas propriamente dito, crianças em idade escolar (de 6 a 12 anos) são atendidas em um ambulatório do Centro de Saúde Escola, da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, onde alunos de diversos períodos do curso de Medicina, inclusive residentes, exercem atividades práticas em Pediatria Preventiva e Social.

O programa (para os residentes), calcado em roteiro de anamnese, exame físico e condutas basicamente tradicionais, visa a dar ao pediatra uma "boa noção" do desenvolvimento geral da criança desta faixa etária. A compreensão do papel de uma unidade básica de saúde como porta de entrada de uma rede hierarquizada e a execução de atividades de atenção primária à saúde, tornam estas unidades da rede pública, cenários privilegiados para o ensino médico adequado às ne­cessidades do SUS.

Como atividade de extensão universitária, também envolvendo escolas como cenário de atuação extramuros, temos o programa de Extensão "Escola Cidadã" - parceria UNI­RIO e a Secretaria de Educação, Cultura e Desporto do município de Queimados, Baixada Fluminense1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3).. Esse programa visa a um trabalho interdisciplinar com o primeiro grau da rede de ensino - através do fomento a ações de Ensino, Pesquisa e Extensão - além de partir do pressuposto que a formação acadêmica deve estar vinculada à realidade social. Tais atividades, conforme os autores, devem se desenvolver a partir das disciplinas curriculares.

Nessa experiência, uma equipe da área de saúde composta por acadêmicos e professores dos cursos de medicina, enfermagem, nutrição, biologia e biomedicina desenvolveu um trabalho em uma escola municipal, composto de atividades, desde exames clínicos e coproparasitológicos até dinâmicas de grupo em DSTs, sexualidade, nutrição, etc. Segundo os autores, é preciso questionar o ato de "dar informação", não se reduzindo o problema à falta de conhecimento técnico-higiênico, por exemplo, de forma que as relações entre a universidade e a comunidade não se estabeleçam. "de forma critica, repetitiva e pretensamente não ideológica - de um saber pré-fabricado que nega suas bases dialéticas indispensáveis a qualquer trabalho comunitário que não se preterida assistencialista ou menos ainda paternalista"1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3)..

Malheiros e Guimarães referem que as atividades, inseridas na proposta de Extensão universitária, pretendem contribuir para a reforma curricular do curso de medicina da instituição, baseando-se em diretrizes do Plano Nacional de Extensão Universitária1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3)..

Uma outra experiência de trabalho extramuros à Universidade, dessa vez envolvendo serviços da rede básica de saúde, nos é relatada por Garcia et al. em um projeto pedagógico do Departamento de Medicina Social e Preventiva da PUC­Campinas, com alunos do quinto ano do curso de medicina. Estes são distribuídos por Centros de Saúde da rede municipal, onde há profissionais assistenciais contratados pela Universidade1616. Garcia MAA et al. O aluno de Medicina em serviços docente-assistenciais da Rede básica. Rev Bras Educ Med 1998; 22 (2/3).. Outros cursos, tais como fisioterapia, nutrição, ciências farmacêuticas, terapia ocupacional, enfermagem e psicologia também participam dos trabalhos nas unidades, com seus alunos e docentes.

O objetivo da disciplina, conforme os autores, é a "experimentação de todas as atividades próprias ao profissional médico neste nível de atenção" (ambulatório, visitas domiciliares, grupos, vigilância epidemiológica, etc...), em suma, atividades de promoção, prevenção e tratamento próprias do nível primário de atenção à saúde. Este trabalho relata a percepção dos alunos acerca do vivenciado nos Centros de Saúde. Segundo os autores, em geral, a avaliação foi de superação das expectativas por parte dos acadêmicos, pois o trabalho diferenciou-se daquele único até então conhecido - a prática hospitalar. O trabalho em equipe multiprofissional também foi referido como que contribuindo para a boa avaliação dos alunos. As atividades que permitiram atuação com maior autonomia foram as mais valorizadas pelos alunos entrevistados. Um ponto observado trata da relação médico-paciente, a qual, conforme Garcia, ocorre nestes espaços de forma mais adequada, com maior disponibilidade de tempo para se ouvir, conversar, e com a incorporação das dimensões social e psicológica.

Os autores referiram como mais proveitoso o trabalho com enfoque no atendimento clinico enquanto estratégia de ensino, ou seja, "os conteúdos que de alguma forma tinham relação com o acompanhamento clínico, pois assim puderam visualizar me­lhor a aplicação dos conhecimentos e práticas a serem experimentados em seu exercício futuro como médicos"1616. Garcia MAA et al. O aluno de Medicina em serviços docente-assistenciais da Rede básica. Rev Bras Educ Med 1998; 22 (2/3)..

Nossa experiência junto à UNIGRANRIO, no município de Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro, nos permite trazer algumas questões que podem contribuir para as Escolas Médicas que estejam planejando e/ ou desenvolvendo atividades em cenários da rede de saúde pública.

A partir de um convênio firmado entre a Universidade e a Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias, adequando-se às atuais diretrizes curriculares, a Escola de Medicina vem implementando experiências curriculares de integração ensino-serviço em um Centro de Saúde municipal vinculado ao SUS, visando, basicamente, à inserção dos estudantes em atividades preventivas e de promoção da saúde. O Centro Municipal de Saúde de Caxias, dentre as unidades municipais, é aquela que oferece a maior parte dos progra­mas preconizados pelo Ministério da Saúde, o que o toma um campo privilegiado de integração ensino-serviço.

Uma experiência implementada junto ao 4° período do curso centrou-se no campo da relação entre médicos, usuários, famílias, profissionais da equipe de saúde, pretendendo-se que os alunos entrassem em contato com indivíduos que procuram assistência em diferentes setores da unidade de saúde da rede municipal. Parte do trabalho desenvolveu-se voltado para treinamento de habilidades de comunicação através de entrevistas realizadas pelos alunos com usuários do serviço, observadas diretamente por um colega e/ou um preceptor; outra parte desenvolveu-se ao introduzir o aluno, diretamente nas diversas rotinas e fluxos, como observador dos programas de Saúde Pública (Programas de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente; DST / AIDS; Tuberculose; Hanseníase; Hipertensão Arterial; Diabetes; Saúde Mental; Imunização) em desenvolvimento na unidade, possibilitando-lhe participar, e melhor compreender, a organização de um sistema hierarquizado de saúde, os mecanismos de referência-contra-referência, etc. Grupos de alunos se or­ganizaram em duplas para atuarem da seguinte forma: duas duplas frequentaram um mesmo setor (programa de saúde) enquanto outra dupla entrevistou um usuário do serviço, e ainda uma outra dupla observou e/ou participou das atividades internas do setor; depois revezaram-se. Durante as en­trevistas, um aluno observava o outro, revezando os papéis na semana seguinte. O docente-preceptor assistia, a cada vez, a entrevista de uma dupla. Ao final das entrevistas, as duplas e o preceptor reuniam-se para os comentários, as autocríticas, a crítica dos colegas que observaram a atividade e o comentário do docente sobre aquilo a que assistiu.

A análise da percepção do estudante quanto às experiências de integração ensino-serviço na unidade de saúde, nos parece relevante, considerando-se a necessidade de repensar a ética neste novo contexto de integração. Pudemos, ao longo do trabalho, observar as interações e atitudes as quais emergiram do contato entre professores, alunos, profissionais de saúde e usuários dos serviços.

Nas avaliações das experiências, tomando-se por base categorias de análise tais como: a receptividade da rede; ou seja, o ponto de vista percebido pelos alunos em relação às interações estabelecidas entre eles, os profissionais de saúde e usuários; em relação ao espaço físico do serviço; o "choque" cultural suscitado pelas diferenças sociais, comportamentais e de valores em geral, tanto em relação aos profissionais quanto aos usuários; a relevância da atividade na formação profissional e a autopercepção quanto à atividade, percebemos que todos estes elementos constituem-se centrais para o trabalho de integração ensino-serviço.

Outra experiência desenvolvida na unidade foi uma atividade integrada ao serviço, dessa vez envolvendo diretamente gestores e docentes das áreas básica e clínica em atividades interdisciplinares. Tratou-se, mais especificamente, de uma ação planejada de forma integrada com a gestão municipal de saúde, com profissionais da UNIGRANRIO e da Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias. Este projeto visou a atender às demandas da SMS/DC, ao mesmo tempo em que aos objetivos educacionais do Curso de Medicina, promovendo contato dos alunos com serviços, profissionais de saúde e usuários. As atividades desenvolvidas foram relativas ao Projeto HIPERDIA, programa do MS para atenção à hipertensão arterial e às diabetes mellitus, com atuação na promoção da saúde e prevenção de tais agravos. Docentes das áreas básica e clínica participaram do programa promovendo integração interdisciplinar. Objetivou-se promover ações de interação entre o ensino, extensão e assistência, vivenciando-se práticas de Atenção Básica à Saúde/SUS, em cenário extramuros à Universidade, inserindo o aluno, desde o início, em atividades práticas que o colocassem em contato com problemas e necessidades da saúde. O programa foi conjugado com a disciplina de Farmacologia II, 3° período, Instituto de Biociências, cujo conteúdo relaciona-se ao Projeto HIPERDIA. Grupos de 2 alunos colheram os dados através de entrevista individual com os usuários utilizando a ficha de cadastro HIPER­EllA. As atividades foram supervisionadas pela enfermeira responsável pelo turno. Como avaliação, o grupo compôs e apresentou em sala de aula, a história de um paciente.

A par das recomendações e diretrizes preconizadas pelos órgãos oficiais, as quais estabelecem que práticas de saúde devem ser interinstitucionalmente planejadas e implantadas, e serem desenvolvidas logo no início do curso, pode-se, de forma original - considerando-se as dificuldades relativas à (in)flexibilidade quanto a mudanças curriculares a curto prazo -integrar atividades extramuros às disciplinas já existentes no currículo médico.

Uma outra experiência centrou-se em atividades práticas ligadas à disciplina de Saúde Coletiva, destacando-se, no trabalho desenvolvido, o envolvimento interdisciplinar proporcionado pela integração de diferentes disciplinas. A partir do segundo semestre de 2001, docentes e alunos do 6°, 7° e 8° períodos vêm desenvolvendo atividades assistenciais no CMS, alguns programas selecionados; considerando-se sua correlação e interação com algumas disciplinas, quais sejam, respectivamente: Programa de Tuberculose; de Hanseníase; e de Hipertensão Arterial e de Diabetes, respectivamente. O planejamento e implementação destas atividades desenvolveram­se em parceria entre docentes e coordenadores de programas da Secretaria Municipal de Saúde, seguindo-se protocolos preconizados pelo Ministério da Saúde. Todas as atividades são supervisionadas diretamente por docentes da Faculdade.

Integrada ao atendimento ambulatorial nos citados programas, desenvolve-se a prática da disciplina de Saúde Coletiva, junto às atividades supervisionadas pelos docentes dos respectivos ambulatórios, de forma interdisciplinar e integrada. Os alunos, em grupos de 10, são subdivididos nas diferentes atividades dentro de cada programa, organizando-se um esquema de rodízio. O trabalho de campo consiste basicamente de estudos epidemiológicos a partir de dados e informações geradas no programa frequentado, de forma a levar o aluno a desenvolver atividades no campo da metodologia científica e possibilitando-lhe a participação na produção de conhecimentos.

Avaliando-se as experiências sob o ponto de vista da interação entre os agentes envolvidos, em geral a relação estabelecida entre alunos, docentes, profissionais de saúde e usuários apresenta pontos de conflito, os quais devem ser analisados mais proximamente e bastante valorizados, no sentido de estarem sendo contornados de modo a permitir uma atuação mais harmoniosa. Assim, por exemplo, há profissionais que se sentem pouco à vontade em trabalhar junto aos acadêmicos, ou mesmo que se julgam "fiscalizados" por eles e pelos docentes, em sua prática diária; argumentam, muitas vezes, que "não são pagos" para tal trabalho extra - o de integrar acadêmicos em sua rotina profissional. Muitos alunos, por outro lado, adotam atitudes de superioridade em relação ao seu "saber" acadêmico. Os alunos frequentemente mostram insegurança e estranheza ao realizar atividades fora do espaço universitário. Identifica-se, em geral, uma desvalorização das experiências de integração comunitária e na rede, estas não sendo vistas como relevantes à formação médica.

Tendo em vista os diversos relatos de experiências de integração entre instituições, alinhamo-nos com Campos no sen­tido de que "Os desafios da formação médica estão, portanto, ligados aos desafios da assistência. O segredo para uma formação médica adequada estaria guardado junto com o segredo dos modos como se poderia reformar a clínica e a saúde pública"66. Campos GWS. Educação médica, hospitais universitários e o Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública 1999; 15(1): 187-193..

Em suma, nós, escolas médicas vemo-nos, hoje, diante de um impasse - e somos avaliados pelo nosso desempenho em relação ao mesmo - o qual nos impele a buscar espaços de integração com serviços de saúde e comunidades, visando-se a uma formação profissional mais adequada às necessidades sociais; porém, tanto no âmbito das Universidades quanto no dos serviços, deparamo-nos com as limitações e resistências em relação à adesão dos agentes envolvidos nesse processo. Feuerwerker bem nos dá a direção1414. Feuerwerker L. Estratégias para a mudança da formação dos profissionais de saúde. Cadernos CE 2001; 3(4).:

"a abertura de espaços políticos e de políticas favoráveis às mudanças não vão acontecer espontaneamente. Elas serão necessariamente uma construção social, envolvendo a participação de atores sociais relevantes em cada momento".

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

Embora estejamos nos referindo a "inovações"2 2 Tradicionalmente, a categoria “inovação” está vinculada à noção de conhecimento moderno embora atualmente, as proposições de estudiosos quanto à conceituação de invocação apontam no sentido de se romper com a inspiração científica moderna no desenvolvimento de experiências inovadoras (CNHA, Maria Isabela da). curricu­lares, pudemos verificar, ao longo deste texto, que tais propostas e atividades de integração de professores e alunos do curso de medicina, em ambientes extra-hospitalares, estão na agenda das escolas médicas há pelos menos 40 anos. Todavia, exatamente porque esta agenda não se cumpre de forma satisfatória, isto é, as experiências extramuros geralmente ou não ocorrem, ou se desenvolvem de forma pontual e isolada, é que este tema torna-se recorrente e atual no âmbito do ensino médico.

O movimento de mudança da formação de profissionais de saúde no país, como se quer fazer acontecer deve, necessariamente, passar por uma nova concepção dos órgãos gestores da área de saúde. Tal concepção implica compartilhar responsabilidades quanto à formação de recursos humanos em saúde, os quais, ao final, serão os futuros profissionais, em potencial, exatamente na rede de serviços vinculada às esferas gestoras. Mais especificamente, devem ser atreladas às diretrizes, normas e rotinas dos serviços, as orientações pertinentes ao espaço a ser compartilhado com recursos humanos em formação.

Como visto, as escolas médicas, no sentido de se alinharem com as propostas em voga quanto às orientações em relação ao ensino médico, necessitam estar se (re)organizando para incorporarem, efetivamente, em seu currículo, cenários ou­tros que aquele prioritariamente hospitalar, sob o risco de ficarem defasadas no que concerne às tendências de inovações curriculares. E mais, articulada com a rede pública de serviços de saúde e comunidades.

Nessa linha, a maioria dos órgãos reguladores e formuladores de diretrizes e políticas em relação ao ensino médico é unânime em atrelar a escola aos serviços, inclusive para a liberação de novas faculdades de medicina3 3 “Requisitos mínimos para a criação de um curso de graduação em medicina”. 33. Associação Médica Brasileira. Ensino Médico. Documento I- Requisitos para a criação de cursos de graduação de Medicina; documento II - Propostas para os cursos de graduação de Medicina. Curitiba: AMB; 1990.), (99. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Orientação para as diretrizes curriculares nos cursos de graduação. Brasília (DF): CNE; 1997.. É, portanto, uma questão de "sobrevivência institucional".

Considerando-se as experiências já em desenvolvimento, podemos tecer alguns pontos de vista que podem ser úteis ao mostrarem elementos que contribuam para reflexões no campo da integração da escola médica em diferentes cenários. Tendo em vista os diversos agentes geralmente implicados em tais propostas - alunos, professores, profissionais de saúde e usuários - esta interação envolve relações intersubjetivas, com diversidade de comportamentos, crenças e culturas individuais, coletivas e institucionais, tomando-se premente a inserção destas questões no currículo médico. Há a necessidade de se construírem relações baseadas numa ética que considere diferenças sociais, culturais e comportamentais entre os indivíduos das diferentes instituições.

Em relação às atividades extramuros, um ponto central para as diretrizes das escolas médicas trata da resistência de alunos (e professores também) a determinadas propostas. Tocando o cerne do sistema de valores da profissão médica, as propostas que visam ao deslocamento do eixo hospital/atenção individual/ especialização geram conflitos e resistências à sua efetivação, à medida que atingem o status profissional e a representação perante si e a sociedade.

Assim sendo, propostas tais como as centradas em ambiente ambulatorial ou unidades extra-hospitalares, práticas generalistas, medicina familiar, trabalho em equipe multidisciplinar (onde decisões devam ser compartilhadas) são entendidas, sob o ponto de vista do reconhecimento social, de, prestígio e do valor profissional, como menos prestigiosas, ameaçando, assim, a autonomia profissional, o que gera conflitos e inseguranças.

Segundo Rego, inicia-se na escola médica um processo de socialização do estudante no ambiente escolar, através da transmissão de conhecimentos, hábitos, atitudes e valores os quais são incorporados pelos estudantes. Assim, estes aprendem através de modelos, assimilando os exemplos e padrões observados2323. Rego STA. O processo de socialização profissional na medicina.In: Machado MH (org.). Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1995..

Posto isto, reforçamos que, como já preconizado há muito, atividades extramuros, tanto na comunidade como na rede de saúde, devem ser inseridas curricularmente desde os períodos iniciais do curso de medicina. Pensamos, nesse ponto, que quanto mais cedo tais atividades forem abordadas, haverá mais chances de que os valores tradicionais próprios da profissão médica - os quais acirram resistências por parte dos estudantes e que são adquiridos no decorrer do curso - não se cristalizem.

Pautando-nos nas experiências referidas, pensamos que os conteúdos e habilidades a serem incorporados no processo de ensino-aprendizagem, nos tipos de cenários relatados, não devam concentrar-se em reproduzir a hegemonia do modelo biomédico e a visão anátomo-fisio-patológica do processo saúde-doença. Estes, conforme os anseios dos movimentos de transformação do ensino médico até então expostos, poderiam estar sendo questionados em um cenário rico no que tange ao desenvolvimento de ações do âmbito da promoção da saúde e prevenção de doenças.

Não se pode deixar de pensar, conforme sugere Malheiros e Guimarães em relação aos projetos de Extensão universitária, que diferentes cenários disponíveis para atuação de acadêmicos podem vir a atender o desejo dos mesmos que procuram atividades extracurriculares1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3).. Sabe-se que tais atividades são consideradas já tradicionais e utilizadas pelos alunos "de forma sistemática"2525. Sayd JD. A escola médica e seus implícitos sobre a morte, Rev Bras Educ Méd 1993; 17(3).. Como afirma Fraga1515. Fraga CF. Ensino Médico: bases e diretrizes para sua reformulação. Rev Bras Educ Méd 1986;10(2).:

"os estudantes muitas vezes procuram fora da escola, não só adquirir a experiência prática, limitada por um ensino demasiado teórico, como também conhecer a utilização de métodos complementares mais diferenciados, que não lhes são acessíveis nos cursos regulares".

Sob a ótica do mundo do trabalho, pensamos que a ma­neira como o aluno de medicina compõe o seu currículo paralelo relaciona-se com suas futuras escolhas profissionais, e, portanto, o currículo oficial, visto ser único e homogêneo para todos os estudantes durante quase todo o curso, não é satisfatório no sentido de atender às suas especificidades e anseios próprios neste campo. Para Rego(22), sobretudo, os estágios extracurriculares seriam valorizados pelo acadêmico ao permitir o desenvolvimento da auto-imagem de médico e o ''fazer­se médico". A partir dessa compreensão, as escolas médicas poderiam melhor explorar em seu planejamento curricular, os espaços que oferecessem aos estudantes oportunidades de estarem atuando em atividades práticas, extramuros, com a vantagem de contarem com supervisão adequada e uma programação definida.

Nessa linha, afirma Malheiros e Guimarães1717. Malheiros R, Guimarães RGM. Extensão universitária e formação médica: uma análise da experiência dos bolsistas no programa "Escola Cidadã". Rev Bras Educ Méd 1998; 22 (2/3).:

"Os estudantes de Medicina, oriundos, em sua maioria, da classe média, frequentemente trazem consigo um desinteresse frente às disciplinas de cunho social e humanístico, como Epidemiologia, Saneamento, Saúde Pública, Sociologia e Psicologia, num processo de negação da realidade do país, trocando a Medicina eminentemente social por uma Medicina dita moderna, tecnicista, que é 'comprada' equivocadamente como mais apta a atender às necessidades de sua própria classe - uma minoria social- distanciando-se da realidade da maioria social".

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    Tradicionalmente, a categoria “inovação” está vinculada à noção de conhecimento moderno embora atualmente, as proposições de estudiosos quanto à conceituação de invocação apontam no sentido de se romper com a inspiração científica moderna no desenvolvimento de experiências inovadoras (CNHA, Maria Isabela da).
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    “Requisitos mínimos para a criação de um curso de graduação em medicina”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2004

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2003
  • Revisado
    07 Jun 2003
  • Aceito
    10 Out 2003
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