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Relato de uma experiência em ensino - aprendizagem

Sumário:

É descrita uma experiência de ensino-aprendizagem desenvolvida na Disciplina de Gastroenterologia, para alunos do 3.o ano de graduação médica.

É salientada a importância da definição operacional dos objetivos a serem alcançados, o contato direto entre professor-aluno, a proposição de atividades variadas, “feed-backs” constantes e a informação precisa sobre os critérios de avaliação.

1 - INTRODUÇÃO

Este artigo resume parte de nossa experiência de cerca de 10 anos no trato com alunos do curso de Graduação Médica, inicialmente como professor e posteriormente também como orientador da Secção de Ensino da Disciplina de Gastroenterologia, do Departamento de Medicina Interna da Fundação Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre.

Neste período, temos procurado lembrar que ensinar é, segundo Juracy Marques, “Sobretudo planejar e propor situações de aprendizagem válidas no contexto sócio-psicológico em que elas têm lugar”.11. MARQUES, J. C. - Ensinar não é transmitir. Porto Alegre, Globo, 1968.

Nosso trabalho desenvolve-se no ensino de clínica gastroenterológica. Como acreditamos que as suas diretrizes possam ser aplicadas no ensino de qualquer área clínica, achamos oportuno publicá-las.

A experiência de ensino-aprendizagem por nós adotada tem como base, em resumo, orientar o trabalho do professor e do aluno através da definição clara dos objetivos ou desempenhos a alcançar, a preocupação com a existência do contato direto entre o aluno e paciente, o estreito relacionamento professor-aluno, as proposições de atividades e experiências variadas, “feed-back” constantes para alunos e professores e, finalmente, informações precisas sobre os critérios de avaliação.

Neste trabalho é descrito e analisado o Plano de Ensino que adotamos, bem como discutidos seus resultados e expectativas futuras.

2 - DESCRIÇÃO

2.1 - Características Gerais

O corpo docente da Disciplina de Gastroenterologia consta de um Professor Titular, um Professor Adjunto, cinco Professores-Assistentes e quatro Professores Estagiários.

A população alvo é de aproximadamente 40-45 alunos do 3.o ano de graduação. O estágio dura 4 meses e as atividades didáticas o de 4 horas diárias, de 2ª às 6ªs-feiras.

O ensino é ministrado na Enfermaria 42 da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (Serviço do Prof. Jorge Pereira Lima) onde há condições de serem hospitalizadas 20 pacientes do sexo feminino.

No início do estágio os alunos recebem, por escrito, um organograma. Nele estão descritas as principais características do Serviço, os objetivos gerais e específicos que se pretendem alcançar, os critérios de avaliação, as referências bibliográficas e avisos de ordem geral. Há também um encontro em que os professores são apresentados aos alunos e no qual informações adicionais são dadas e esclarecidas dúvidas.

2.2 - Atividades didáticas

As atividades didáticas se dividem em 2 grandes níveis: atividades práticas e atividades teóricas (fig. 1).

2.2.1. Atividades práticas - desenvolvem-se das 8 às 10h. Os alunos são distribuídos nos 20 leitos que compõem o Serviço e têm suas atividades coordenadas por um instrutor, que se responsabiliza por 5 leitos e 10 alunos (em média) com os quais se encontra durante 1h30min, 3 vezes por semana. Desde a sua chegada à Enfermaria, os alunos ficam responsáveis diretamente pelo paciente e devem fazer a anamnese, exame físico, evolução, providenciar a organização do protuário, os exames, etc. Inicialmente os instrutores fornecem as informações pertinentes para realização da anamnese e demonstram como fazer exame físico. Posteriormente os alunos, baseados nestes informes e seguindo um modelo próprio anexado em cada prontuário, começam a executar as tarefas. Na seqüência, os instrutores redirecionam o comportamento do aluno, retomam os assuntos que não foram bem entendidos e os alunos refazem, tantas vezes quantas forem necessárias, a anamnese e o exame físico. Também com o ensino da evolução do paciente seguimos este esquema de emissão do comportamento e correção ou redirecionamento. Mais tarde, os casos começam a ser discutidos de uma maneira mais global e o aluno começa a ver o paciente como um todo, abordando-se todos os aspectos pertinentes (propedêutica, terapêutica, etc.).

Nos dias em que os alunos não se reúnem com os instrutores o tempo livre é usado para realização de várias tarefas (entrevistas com pacientes, feitura do exame físico com auxílio dos residentes e doutorandos, etc.).

Nos dias em que há reunião com instrutores, estes chegam à enfermaria 30 minutos após os alunos, permitindo assim que estes realizem, sozinhos, a evolução de seus pacientes e se informem, com seus colegas, da evolução dos demais pacientes do grupo.

Para reforçar os conteúdos os alunos apresentam, por escrito, em 7 dias a partir da hospitalização dos pacientes, sob sua responsabilidade direta, um trabalho de revisão, sobre as hipóteses diagnósticas feitas na admissão.

Além destas atividades, há encontros não sistemáticos de professores-assistentes com alunos, na Enfermaria. Isto possibilita aos alunos observarem outros tipos de comportamento médico, enfoques diferentes do mesmo conteúdo, etc.

2.2.2. Atividades teóricas - são realizadas 3 vezes por semana das 10h30min às 12h. A técnica empregada varia com o assunto a ser abordado (aulas expositivas, seminários, discussões clínicas, painéis, mesas redondas, etc.).

A disciplina afixa mensalmente o programa a ser desenvolvido e informa sobre referências bibliográficas adicionais, referentes as aulas do mês. Informa também como serão desenvolvidos os seminários, mesas redondas, etc.

Após cada 3 ou 4 aulas, é feito um teste escrito, de múltipla escolha, sobre a matéria abordada nas aulas precedentes. No dia subseqüente, os instrutores analisam o teste com seus alunos, propiciando assim a retomada de aspectos que não ficaram claros.

A seleção do conteúdo leva em consideração as situações mais freqüentes na clínica gastroenterológica. A ênfase no entanto tem sido dada a como proceder face a um paciente, com determinado quadro clínico, dor abdominal, p. ex., mais do que a temas específicos, como úlcera péptica, já que estes são mais facilmente encontrados na literatura indicada.

2.3 - Avaliação

Os alunos são avaliados através de:

  1. conceitos (peso 4)

  2. verificações mensais (peso 2)

  3. exames finais escrito (peso 1), oral/prático (peso 2)

  4. realização de monografia (peso 1)

a) Conceitos: são fornecidos mensalmente de acordo com regras estabelecidas e nas quais a Disciplina descreve as habilidades e conteúdos a serem atingidos pelos alunos nas suas tarefas de Enfermaria (consta do organograma distribuído no início do estágio). As notas, antes de afixadas, são analisadas em conjunto por todos os instrutores.

No dia subseqüente à sua publicação os instrutores se reúnem com seus alunos e discutem o desempenho do grupo e as notas são criticadas. O grupo tem ampla liberdade para abordar qualquer assunto, que achar pertinente.

b) Verificações mensais: abordam o conteúdo do mês e constam de dissertações ou testes de múltipla escolha.

c) Exames finais: escrito - abordam toda a matéria do estágio. São, no geral, dissertações.

Oral/prático - os alunos recebem por sorteio um leito (que não o seu) e têm 30 minutos para fazer a história/exame físico do paciente ali internado. Após, são entrevistados por dois instrutores que discutem aspectos práticos e de doutrina referentes ao paciente examinado.

d) Monografia: os alunos são informados, no início do estágio de como realizar uma monografia, abordando qualquer aspecto de gastroenterologia, segundo as normas da ABNT. Com esta tarefa os alunos são introduzidos à pesquisa bibliográfica.

2.4 - Recuperação

Os alunos que não atingem a nota mínima para aprovação participam, durante o mês de janeiro, de um estágio de recuperação, que segue o mesmo plano didático do semestre curricular. Ao final do estágio, há nova entrevista, exame oral/prático e prova escrita.

2.5 - Canais de Comunicação

  1. reuniões mensais: entre os instrutores e seus alunos, para avaliação das atividades do grupo

  2. caixa de sugestões

  3. horário de consultas: semanalmente há um horário estabelecido em que o responsável pela Secção de Ensino fica a disposição dos alunos para ouvir as reclamações e/ou sugestões, propor soluções para problemas que ocorrem durante o estágio, etc.

  4. questionário: a cada 2 meses os alunos recebem um questionário no qual são solicitados avaliar, por escrito, o desempenho, o nível de ensino/aprendizagem, as dificuldades para consecução dos objetivos, etc.

3 - ANÁLISE DO PLANO DE ENSINO

O Plano de Ensino por nós adotado baseia-se em seis idéias principais:

  1. definição clara dos objetivos a serem alcança dos, ou seja, os desempenhos que se espera sejam evidenciados pelos alunos e professores;

  2. contato direto aluno-paciente;

  3. estreito relacionamento professor-aluno;

  4. proposição de atividades e experiências variadas;

  5. “feed-backs”, constantes, para alunos e professores;

  6. informação precisa, aos alunos, de que maneiras serão avaliados.

As razões que nos levaram a adotar estes critérios são, basicamente, as seguintes:

1. a definição clara dos objetivos, descrevendo o comportamento final ou de saída, permite que o estudante organize, ele próprio, as atividades de aprendizagem, envolvendo-se mais afetivamente no processo e desenvolvendo autonomia cognitiva e auto-aprendizagem22. ___________- Paradigma para análise do ensino. Porto Alegre, Globo, 1976.), (33. SALDANHA, L. E. e cols. - Planejamento e organização do ensino. Porto Alegre, Globo/MEC, 1974.;

2. o contato direto do aluno, com pacientes, propiciando que aquele atue como “médico”, é uma maneira eficaz de desenvolver no aluno condições de manejar adequadamente, os pacientes, incluindo aí todos os aspectos da clínica médica (relação médico-paciente, realização de anamnese, exame físico, etc.). Para que este contato seja eficiente, o aluno deverá ter a possibilidade de, sob a orientação de um instrutor, ficar responsável por um ou mais pacientes, atendi­ dos em regime ambulatorial e/ou hospitalar;

3. os instrutores, tendo a seu encargo um número reduzido de alunos para as atividades práticas, podem atender mais completamente ao aluno, e criar no grupo um ambiente de camaradagem o que facilita, em muito, as situações de ensino-aprendizagem;

4. a proposição de experiências variadas objetiva oferecer ao aluno situações que se assemelham à sua condição de futuro profissional e que permitam a ele envolver-se na ação, modificando, de forma mais integrada, o seu comportamento;

5. o estabelecimento de situações que propiciem “feed-backs” constantes, ao grupo de professores-alunos possibilita que a trajetória deste grupo seja permanentemente corrigida, tendo em vista os objetivos que se pretende alcançar. Há um estímulo para o desenvolvimento da crítica e auto-crítica;

6. quando os alunos são informados previamente de quais os critérios que serão utilizados em sua avaliação, a ansiedade tende a diminuir e eles podem com antecedência, tomar atitudes que lhes permitam obter melhores desempenhos. A gratificação, através de melhores notas, pode servir de estímulo a manter um alto padrão de desempenho.

4 - RESULTADOS

Torna-se bastante difícil expormos estatisticamente os resultados obtidos, Baseados, porém, em nossa observação e na opinião dos professores e alunos, o sistema de trabalho que adotamos é muito bem aceito pela maioria dos participantes.

Em relação aos estudantes pudemos observar que à medida em que fomos nos tornando mais claros, precisos e fornecendo todos os informes necessários (formas de avaliação, peso das diversas tarefas para cálculo da média final, tipos de provas, bibliografias, alterações do programa, descrições prévias das atividades­seminários, simpósios, mesas redondas, p. ex., a aprendizagem se tornou mais fácil e o nosso trabalho mais gratificante, pois os alunos demonstraram mais satisfação em trabalhar em um sistema aberto, conhecendo as “regras do jogo”.

Temos observado, porém, que os alunos têm uma certa dificuldade em prescindir do professor. Nos dias em que a disciplina não prevê assessoramento pelos instrutores, aproximadamente 50% dos alunos abandonam a Enfermaria, após o término de suas tarefas mínimas. Uma das possíveis explicações para esta atitude é de que, sendo, no geral, longa pelas condições de infra-estrutura, a permanência dos pacientes no hospital diminui interesse dos alunos no atendimento dos pacientes. Raros alunos, porém, procuram informar-se de/ou examinar pacientes que não aqueles do seu grupo, o que poderiam fazer nestes horários.

Temos também observado que no início os alunos não dão opiniões, no que diz respeito ao funcionamento do serviço, comportamento dos professores, etc. Acreditamos que isto se deve a que este hábito não lhes é estimulado, pois, ao final do estágio são capazes de fazer sugestões bastante pertinentes, as quais, sempre que possível, são incorporadas ao Plano de Ensino.

No que diz respeito à relação médico­paciente, os alunos têm conseguido, de um modo geral desenvolvê-la a contento. Por serem diretamente responsáveis por um paciente, dão a este bastante atenção e o tratam com afeto. Os pacientes não desconhecem que alguns de seus “médicos” são alunos mas os consideram, discutem seus problemas e se sentem gratificados pela atenção que recebem. Não é raro que, ao receberem alta, dêem presentes aos alunos ou voltem para visitá-los.

Um outro aspecto que gostaríamos de ressaltar é de que o conhecimento prévio dos pesos que são utilizados na consecução da média final não parece ter diminuído o empenho dos alunos em atividades cujo pesos são menores, para o cálculo da nota final, como, por exemplo, a realização de monografias.

Em relação aos professores, constatamos de um modo geral um grande envolvimento com as tarefas de ensino. Acreditamos que isto se deva em parte ao fato de que a maior parte das resoluções adotadas pela disciplina no que diz respeito à metodologia de ensino provenha de reuniões semanais de planejamento. Nestes encontros as opiniões são livremente emitidas, discutidas e finalmente, se for consenso geral, adotadas. Com esta atitude, há uma idéia formada de trabalho coletivo. Especificamente com as tarefas práticas de enfermaria, há um alto grau de envolvimento dó professor no processo de ensino-aprendizagem. Isto é propiciado pelo fato de que, sendo os grupos pequenos, os instrutores podem atender aos alunos quase que em nível individual. Além disto, eles sentem-se altamente estimulados ao observarem o crescimento de seus alunos.

5 - COMENTÁRIOS FINAIS

Atualmente nossa meta mais imediata é darmos condições aos alunos de participarem do serviço ambulatorial, atendendo pacientes de ambos os sexos, já que atualmente só atendem pacientes hospitalizados. Na verdade, o atendimento ambulatorial deveria ser um dos principais tipos de treinamento pois ele é uma das características mais marcantes da atividade do médico clínico. Não dispomos, no momento, de condições materiais adequadas para este tipo de tarefa.

Referências Bibliográficas

  • 1
    MARQUES, J. C. - Ensinar não é transmitir Porto Alegre, Globo, 1968.
  • 2
    ___________- Paradigma para análise do ensino Porto Alegre, Globo, 1976.
  • 3
    SALDANHA, L. E. e cols. - Planejamento e organização do ensino. Porto Alegre, Globo/MEC, 1974.

Fig. 1
DINÂMICA DO PROCESSO ENSINO - APRENDIZAGEM NA EXPERIÊNCIA EM CLÍNICA GAASTROENTEROLÓGICA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1980
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