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Educação conformada: a política pública de educação no Brasil (1930-1945)

RESENHAS

Clarice Nunes

Professora Titular (aposentada) de História da Educação (UFF).Pesquisadora Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (UFF).

Professora do Curso de Mestrado da Universidade Estácio de Sá.

ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Educação conformada: a política pública de educação no Brasil (1930-1945). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2000.

Este livro é o resultado da dissertação de mestrado que o autor defendeu no programa de pós-graduação em ciência política do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 1990. O tema escolhido foi inspirado pela sua participação no movimento sindical dos docentes dos estabelecimentos particulares de ensino superior, nos quais exerceu durante vários anos sua vida profissional, estabelecimentos esses que, na quase totalidade, surgiram a partir das escolas secundárias criadas entre as décadas de 1930 e 1940 nas principais cidades brasileiras.

Foi dentro do movimento sindical que travei, pela primeira vez, contato com o autor. Nessa ocasião, também exercia a docência em escola superior da rede privada e, como ele, participava com empenho tanto das assembléias promovidas pelo Sindicato dos Professores das Escolas Particulares do Rio de Janeiro quanto da associação docente fundada no meu local de trabalho. Desde o final da década de setenta até meados da década de oitenta, o movimento docente das escolas superiores na cidade do Rio de Janeiro conheceu momentos memoráveis de mobilização, tanto no sindicato como no espaço que a sua militância gerou através da Associação Nacional dos Docentes de Ensino Superior. Esta associação, em seus momentos iniciais, foi marcada pela ampla inserção dos professores das instituições de ensino privadas, boa parte deles posteriormente absorvidos pelas instituições públicas, por meio de concursos.

Foi o espanto ante a realidade do ensino privado superior, no sentido aristotélico do termo, que levou o autor a perceber o crescimento das escolas dessa rede a partir do respaldo institucional e financeiro concedido pelo governo, via certos privilégios, em especial no âmbito federal. A ambigüidade dessas instituições, que advogavam seu "caráter público", embora mantivessem uma gerência empresarial, tem sua raiz na gênese do empresariado da educação, gênese essa que Marlos Bessa Mendes da Rocha apresenta em seu livro, procurando avaliar a relação histórica desse segmento com o Estado e, dessa forma, estabelecendo a ligação com suas inquietações iniciais.

O autor optou pela manutenção do trabalho nos termos em que foi defendido até porque, depois de uma década, como argumenta na apresentação, ele não alteraria de modo substantivo as concepções que aí defende. Em sua trajetória, como assinala, aprofundou as concepções teóricas que fundamentaram sua investigação. Se fosse realizar alguma modificação precisaria, como afirma, certas análises. É o caso do que denomina "padrão de cidadania educacional" e que contemporaneamente chamaria de "campo de cultura política educacional", o que, em sua perspectiva, tornaria mais clara a conexão da análise institucional com o pensamento educacional dos atores sociais.

Sob o ângulo da ciência política, o autor revê neste livro um período no qual foram construídos os recursos de modernização do Estado e da sociedade por meio da educação enquanto política setorial do Estado Nacional. Esse momento histórico é crucial para o entendimento de alguns dos mais sérios problemas contemporâneos da educação no país, como, por exemplo, a relação entre e o público e o privado, tema sempre presente nas análises de diversos autores importantes da área.

Tal revisão é realizada por meio da discussão com algumas abordagens relativas à cidadania e de um diálogo crítico com certas tendências explicativas ainda muito comuns em livros de fundamentos da educação utilizados por alunos e professores dos cursos de Pedagogia em nosso país, que, assumindo um viés exclusivamente econômico ou sociológico, tornam-se incapazes de evidenciar as velhas e novas alianças da política estatal com efeitos perniciosos ou afirmativos à efetivação de uma educação e sociedade democráticas. Dessa forma, o autor relê o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que estará, em breve, completando setenta anos, e a atuação dos educadores renovadores à luz de uma política de educação voltada para a formação do cidadão e não sob a perspectiva técnico-pedagógica, recorrente entre os nossos historiadores da educação.

Um ponto importante da sua investigação, após o estudo da educação na constituinte de 1933/1934, é mostrar que a política educacional do Estado Novo, no ensino básico, tem seu fundamento político estabelecido pela dimensão do direito público de educação constituído nos primeiros cinco anos da década de trinta, até porque os sujeitos sociais civis, transfigurados em agentes estatais, continuaram participando da formulação e decisão das políticas públicas, o que fez com que esta expressasse elementos de modernidade (como a preocupação com a universalização do ensino primário, por exemplo) somados a um lado tradicionalista, explícito pela ambigüidade na definição de quem educa. Essa tensão entre o moderno e o arcaico resulta numa igualização de direitos entre o ensino privado e o ensino público, com fortes conseqüências na política do ensino secundário.

À luz dessa perspectiva, certas iniciativas de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde são reavaliadas. Um episódio que contribui para essa revisão, como nos mostra o autor, é o do processo de gestação da Lei Orgânica do Ensino Primário, um dos aspectos mais significativos para compreender os rearranjos da política do ministério Capanema e entender porque ele não teve, com relação ao ensino primário, o mesmo êxito que obteve com a Lei Orgânica do Ensino Secundário, escrita por seu próprio punho, e destinada às elites.

Os argumentos de Rocha vão desenhando, através da análise dos trabalhos da Comissão Nacional do Ensino Primário, novo cenário para a política educacional do Estado Novo com relação a esse nível de ensino, evidenciando que ela não foi resultado de puro arbítrio do regime ditatorial. Destacam-se as atuações de Nóbrega da Cunha e de Lourenço Filho, então diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), ambos componentes da comissão, e uma interessante apresentação do processo de elaboração da Lei Orgânica do Ensino Primário, que foi discutida por meio de um método de consulta seletivo mas abrangente. O processo de debate interno vai mostrando as mudanças políticas no Estado autoritário e a permanência de questões historicamente constituídas em período anterior. Vai revelando também a sensibilidade do ministro Capanema para o novo momento político em que o Estado Novo aproxima-se das forças aliadas na Segunda Guerra Mundial, acarretando a predominância, dentro do governo, das forças mais comprometidas com a redemocratização. Ele não mais desejará, como mostra o autor, estabelecer a unanimidade sobre uma lei orgânica, mas se restringirá à tentativa de obter o consenso sobre algumas questões relativas ao financiamento do ensino primário, à ordenação curricular, à distinção entre ensino rural e urbano e à carreira do magistério.

O valor dessa análise, e o que a distingue das análises recorrentes, é mostrar a convivência entre valores e ações modernas e arcaicas dentro do Estado e, portanto, o seu caráter contraditório, ressignificando tanto a relação entre a política voltada para o ensino primário e o ensino secundário, quanto a ação dos diversos atores políticos envolvidos, o que enriquece e, sobretudo, matiza a compreensão da política educacional e da história da educação do regime republicano na época focalizada. Dessa forma, sua apresentação da política do ensino secundário, que se afirma pela expansão do ensino privado de nível médio, nas décadas de 1930 e 1940, ganha um contorno mais amplo. Não se trata apenas de uma resposta ao crescimento da demanda decorrente da industrialização e urbanização do país, como estudos clássicos nos fizeram crer, mas também encarna uma política de equivalência entre o ensino público e o ensino privado.

Com argumentos claros, consistentes e apoiados em fontes de acervos documentais importantes, o autor faz explodir os limites estreitos com que os resultados da política educacional estadonovista são apreciados, sobretudo no que diz respeito à tendência de dualizar as posições existentes, entre os estatizantes e os privatizantes, o que acaba, segundo ele, ocultando aspectos fundamentais dos atores políticos em ação nesse período (renovadores, católicos, empresariado etc.). Levanta hipóteses instigantes e procura responder por que foram feitas concessões ao ensino privado. Uma de suas conclusões mais pertinentes é a que salienta a dupla faceta do caráter público do ensino privado, iluminada pela análise histórica empreendida, e que lhe permite afirmar que a política pública para este ensino, ao longo dos governos que se seguiram ao Estado Novo, consideraram-no público para efeito de financiamento e privado para efeito de intervenção em sua gestão, o que evidencia o reconhecimento, nesse caso, do seu caráter empresarial.

O amadurecimento da reflexão, impulsionado pela experiência militante do autor na área de educacional, torna esta publicação um trabalho de indiscutível qualidade acadêmica, motivo pelo qual recomendo vivamente a sua leitura. Trata-se de contribuição de fundamental importância para professores, estudantes, pesquisadores e todos aqueles que assumem o compromisso com uma educação pública de qualidade para todos os brasileiros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2001
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