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Pandemia, desigualdade e pobreza nas regiões metropolitanas brasileiras1 1 Agradecemos ao CNPq pelas duas bolsas de produtividade em pesquisa e pela verba conferida através do edital Universal 2021. Somos gratos à PORTICUS, que financiou parte da pesquisa através da RedODSAL. A pesquisa também se beneficiou do trabalho do IBGE e do DataZoom. Agradecemos aos pareceristas adhoc da RBCS pelos questionamentos e sugestões que nos ajudaram a aprimorar o presente artigo. Como de praxe, as possíveis falhas e limitações são inteiramente de responsabilidade dos autores.

Pandemic, inequality and poverty in Brazilian metropolitan regions

Resumo

O artigo avalia o comportamento da desigualdade de renda e da pobreza no Brasil metropolitano durante a pandemia de Covid-19. O objetivo principal é analisar o papel desempenhado, entre 2019 e 2021, pelas políticas federais de transferência de renda – em especial o Auxílio Emergencial - no que diz respeito às variações no nível de desigualdade e de pobreza nas metrópoles brasileiras. Os dados são provenientes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc – IBGE), em sua divulgação anual, e compreendem as vinte e duas principais regiões metropolitanas do país. Através de técnicas de decomposição, os resultados evidenciam em que medida as variações no rendimento do trabalho e nas políticas de transferência de renda explicam a evolução das desigualdades e da pobreza no período da pandemia.

Palavras-chave:
pandemia; desigualdades; pobreza; auxílio emergencial; regiões metropolitanas

Abstract

The article evaluates the evolution of income inequality and poverty in metropolitan Brazil during the Covid-19 pandemic. The main objective is to analyze the role played, between 2019 and 2021, by federal cash transfer policies – specially the Emergency Aid - with regard to variations in the level of inequality and poverty in the Brazilian metropolitan areas. The data source is the National Household Sample Survey (PNADc – IBGE), annual released, and comprise the twenty-two main metropolitan regions of the country. Through decomposition techniques, the results show the extent to which variations in labor income and cash transfer policies explain the evolution of inequalities and poverty during the pandemic period.

Keywords:
pandemic; inequalities; poverty; emergency aid; metropolitan regions

Introdução

O efeito de pandemias sobre desigualdades e pobreza tem sido objeto de uma ampla gama de estudos, e o interesse no tema ganhou fôlego na esteira da pandemia de Covid-19 (Stantcheva, 2022STANTCHEVA, Stefanie. (2022), “Inequalities in the pandemic”. Economic Policy, 37, 109:5-41. DOI: 10.1093/epolic/eiac006.
https://doi.org/10.1093/epolic/eiac006...
; Hoffmann e Jesus, 2022HOFFMANN, Rodolfo; JESUS, Josimar Gonçalves de. (2022), “A Relevância do Auxílio Emergencial na Redução da Desigualdade em 2020”. Revista Brasileira de Economia Social e do Trabalho, 4, e022001:1-23. DOI: 10.20396/rbest.v4i00.16072.
https://doi.org/10.20396/rbest.v4i00.160...
). O presente artigo tem como objetivo principal examinar o comportamento da desigualdade de renda e da pobreza no Brasil metropolitano entre os anos de 2019 e 2021. Mais especificamente, analisamos o papel desempenhado pelas políticas federais de transferência de renda, em especial o Auxílio Emergencial, em relação às variações no nível de desigualdade e de pobreza nas metrópoles brasileiras durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19.

No Brasil, em 2021, 39,3% da população vivia em áreas urbano-metropolitanas, de acordo com a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em termos absolutos, aquela cifra correspondia a 83,5 milhões de pessoas morando em alguma das vinte e duas regiões assim classificadas pelo IBGE.2 2 Manaus, Belém, Macapá, Grande São Luís, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Belo Horizonte, Grande Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vale do Rio Cuiabá, Goiânia, Distrito Federal e Grande Teresina. A renda média nessas regiões era, naquele ano, de R$ 1.698, o que ultrapassava com folga os valores médios encontrados no restante do Brasil urbano (R$ 1.247) ou nas áreas rurais do país (R$ 685). Tamanha disparidade reflete o importante papel econômico e social dessas regiões, que concentram grande parte dos setores mais avançados da economia nacional.

Não obstante, é também nessas regiões que se reúnem muitos dos desafios enfrentados atualmente pela sociedade brasileira no que tange à consolidação e universalização da cidadania (Ribeiro, 2022RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (2022), Reforma Urbana e Direito à Cidade: questões, desafios e caminhos. Rio de Janeiro, Letra Capital. ). De acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial (BM), 31,4% da população residente nas regiões metropolitanas, ou 26,2 milhões de pessoas, encontram-se em situação de pobreza, e 6,9%, ou 5,7 milhões, em situação de extrema pobreza. E, como sabemos, ao longo das últimas décadas esse vem se tornando um fenômeno cada vez mais metropolitano (Rocha, 2003ROCHA, Sonia. (2003), Pobreza no Brasil: afinal, de que se trata? Rio de Janeiro, FGV. ), de modo que hoje 33,4% das pessoas em situação de pobreza e 29,8% daquelas em situação de extrema pobreza vivem em regiões metropolitanas.

Na raiz desse problema, entre suas principais causas, temos um nível de desigualdades assaz elevado (Barros et al., 2000BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. (2000), “Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15, 42:123-142. DOI: 10.1590/S0102-69092000000100009.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200000...
; Barbosa et al., 2020BARBOSA, Rogério Jerônimo; FERREIRA DE SOUZA, Pedro Herculano Guimarães; SOARES, Sergei Suarez Dilon. (2020), “Distribuição de Renda nos Anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza”. Texto Para Discussão (IPEA), 2610:1-45.). Se, no âmbito nacional, o coeficiente de Gini3 3 O coeficiente de Gini varia entre 0 e 1, de modo que quanto mais alto o valor, maior a desigualdade. ficava em 0,544 no ano de 2021, no conjunto das regiões metropolitanas ele chegava a 0,565, o que é significativamente mais alto que o Gini de 0,500 então encontrado no restante das áreas urbanas (não metropolitanas) do país. Com efeito, nossas metrópoles expressam claramente um traço fundamental da sociedade brasileira, qual seja, um processo de modernização que incorpora, atualiza e produz elevadas disparidades econômicas e enraizadas hierarquias sociais (Souza, 2003SOUZA, Jessé. (2003), A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora UFMG. ; Arretche, 2015ARRETCHE, Marta. (2015), Trajetórias da desigualdade: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos. São Paulo, UNESP. ). Como consequência, em algumas das áreas mais modernas e avançadas do país temos os maiores níveis de desigualdade de rendimentos.

Se, por um lado, os dados apontados nos parágrafos acima traduzem uma tendência histórica, por outro refletem também um evento pontual, mas de grande impacto, ocorrido entre 2020 e 2021: a pandemia da Covid-19 e a crise econômica dela resultante. Decorrente da disseminação do novo coronavírus (Sars-Cov-2) a partir do segundo semestre de 2019, a Covid-19 foi declarada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. No Brasil, os primeiros casos foram detectados em fevereiro de 2020, e hoje4 4 Consulta feita em 16 de fevereiro de 2023 na plataforma do Ministério da Saúde. se acumulam 36,9 milhões de casos confirmados, com 697.894 óbitos. Os picos de notificações e óbitos no Brasil ocorreram, principalmente, entre junho de 2020 e julho de 2021, com uma nova onda no início de 2022 – decorrente da variante Ômicron.5 5 A vacinação contra a Covid-19 no Brasil teve início em janeiro de 2021.

A resposta à crise sanitária foi altamente desarticulada no país, de modo que governos estaduais e prefeituras foram os principais responsáveis por, de maneira pouco integrada, adotar medidas de distanciamento social. O resultado, como se sabe, foi a combinação de uma dramática crise sanitária com uma aguda crise econômica e social (Ribeiro et al., 2022RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; NORONHA, José Carvalho de; RODRIGUES, Juciano Martins; OLIVEIRA, Ricardo Antunes Dantas de. (2022), Metrópole e Pandemia: presente e futuro. Rio de Janeiro, Letra Capital. ). O Produto Interno Bruto (PIB) do país teve forte queda de 8,7% no segundo trimestre de 2020, após ter caído 2,2% no primeiro. A taxa de desocupação, por sua vez, subiu de 12,4% no primeiro trimestre de 2020, para 14,9% no mesmo trimestre do ano seguinte. Somando-se a isso, a inflação acumulada entre maio de 2020 e junho de 2022 foi de mais de 20%, de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).6 6 Todas as cifras mencionadas neste parágrafo têm como fonte o IBGE.

O Auxílio Emergencial

Como resposta à crise social provocada pela pandemia, houve significativos incrementos nas políticas de transferência de renda no país, com destaque para a implementação do Auxílio Emergencial (AE).

Proposto por iniciativa do Congresso Nacional e instituído a partir da Lei n.º 13.982/2020, o AE previa o pagamento de três parcelas de R$ 600, tendo sido posteriormente prorrogado por mais dois meses, totalizando cinco parcelas com o valor inicialmente estabelecido. Em setembro de 2020, foi anunciado o pagamento de mais quatro parcelas adicionais, até o final daquele ano, mas no valor de R$ 300. O AE era destinado a adultos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados. Para recebê-lo, era necessário que a renda familiar mensal por pessoa não ultrapassasse meio salário mínimo, ou que a renda familiar total fosse de até três salários mínimos. Havia um limite de duas cotas por família, com a mulher provedora de família monoparental tendo direito a receber as duas.

No ano de 2020, o AE chegou a mais de 68 milhões de beneficiários, o que superava em muito o número de contemplados do principal programa de transferência condicionada de renda do país, o Bolsa Família (BF), que contava com 14 milhões de famílias favorecidas no início de 2020 e tinha um benefício médio de R$ 189. A partir do segundo trimestre de 2020, muitos dos atendidos pelo BF passaram a receber o AE, de modo que, em grande medida, o segundo se sobrepôs ao primeiro.

Entre janeiro e março de 2021, entretanto, ainda sob fortes efeitos da pandemia de Covid-19 no mercado de trabalho, o pagamento do AE foi interrompido. As famílias que eram beneficiárias do BF voltaram automaticamente para aquele programa, e as demais ficaram sem acesso ao AE ou ao BF. Em abril de 2021, o AE voltou a ser pago (Medida Provisória n.º 1.039, de 18.03.2021), mas com valor muito inferior – R$ 150 para pessoas que moravam sozinhas, R$ 375 para mulheres responsáveis por famílias monoparentais e R$ 250 para famílias compostas por mais de uma pessoa – e cobertura bem menor, alcançando aproximadamente 39 milhões de famílias.

Com o fim do AE em outubro de 2021, o governo federal modificou o BF para criar o chamado Auxílio Brasil (AB). Em sua concepção inicial, o programa era bastante semelhante ao BF, com um pequeno incremento no valor do benefício, além de incluir mais três modalidades de bônus. O AB começou a ser pago em novembro de 2021, com um valor médio de R$ 224 para aproximadamente 14,5 milhões de famílias. Já em dezembro de 2021, o valor da segunda parcela do AB foi de R$ 400, garantido pela aprovação da PEC 46/2021.

Resumindo, até o primeiro trimestre de 2020 o principal programa de transferência de renda era o BF. A partir de abril de 2020, como resposta à crise provocada pela Covid-19, se inicia o pagamento do AE, primeiro no valor de R$ 600, e depois no valor de R$ 300. No início de 2021, o pagamento do AE é interrompido, retornando apenas em abril daquele ano, com cobertura reduzida e benefício de valor inferior. Em novembro de 2021, é feito o pagamento da primeira parcela do AB, e em dezembro da segunda parcela – já no valor de R$ 400.

Questões, métodos e fonte de dados

Diante do contexto acima esboçado, neste artigo pretendemos fornecer respostas às seguintes questões:

  1. Qual foi o efeito da crise provocada pela pandemia de Covid-19 sobre a desigualdade de renda e a pobreza no Brasil metropolitano?

  2. Em que medida os programas de transferência de renda, em especial o AE, foram capazes de amortecer os efeitos da crise sobre a desigualdade e a pobreza nas metrópoles?

  3. Em que medida as variações nos valores e cobertura dos programas de transferência de renda, em especial o AE, foram responsáveis pelo aumento da desigualdade e da pobreza em 2021?

O efeito de pandemias sobre a desigualdade de renda e a pobreza é incerto. Parte da bibliografia sustenta que grandes pandemias, como a Peste Negra ou a Gripe Espanhola, ao reduzir a oferta de mão de obra, contribuíram para a diminuição das desigualdades (Sayed e Peng, 2021SAYED, Adham; PENG, Bin. (2021), “Pandemics and Income Inequality: a historical review”. SN Bus Econ, 1, 54:1-17. DOI: 10.1007/s43546-021-00059-4.
https://doi.org/10.1007/s43546-021-00059...
; Alfani e Murphy, 2017ALFANI, Guido; MURPHY, Tommy. (2017), “Plague and lethal epidemics in the pre-industrial world”. Journal of economic History, 77, 1:314-343. DOI: 10.1017/S0022050717000092.
https://doi.org/10.1017/S002205071700009...
; Milanovik, 2016MILANOVIK, Branko. (2016), “Income inequality is cyclical”. Nature, 537, 7221:479-482. DOI: 10.1038/537479ª.
https://doi.org/10.1038/537479ª...
; Scheidel, 2017SCHEIDEL, Walter. (2017), The Great Leveler. Princeton, Princeton University Press, 2017.). Outros estudos, no entanto, sugerem que pandemias e/ou epidemias como as de SARS,7 7 Síndrome respiratória aguda grave. H1N1, MERS,8 8 Síndrome respiratória do Oriente Médio. Ebola e Zika teriam contribuído para um significativo aumento das desigualdades (Galletta e Giommoni, 2022GALLETTA, Sergio; GIOMMONI, Tommaso. (2022), “The Effect of the 1918 Influenza Pandemic on Income Inequality: evidence from Italy”. The Review of Economics and Statistics, 104, 1:187-203. DOI: 10.1162/rest_a_01075.
https://doi.org/10.1162/rest_a_01075...
; Furceri et al., 2022FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D.; PIZZUTO, Pietro. (2022), “Will COVID-19 Have Long-Lasting Effects on Inquality? Evidence from Past Pandemics.” The Journal of Economic Inequality, 20:811-839. DOI: 10.1007/s10888-022-09540-y.
https://doi.org/10.1007/s10888-022-09540...
; Das et al., 2021DAS, Pinaki; BISAI, Santanu; GHOSH, Sudeshna. (2021), “Impact of pandemics on income inequality: lessons from the past”. International Review of Applied Economics, 35, 6:832-850. DOI: 10.1080/02692171.2021.1921712.
https://doi.org/10.1080/02692171.2021.19...
). Isso porque, resumidamente, as necessárias medidas de contenção do vírus impactaram a demanda por trabalho mais do que a mortalidade provocada pelo mesmo impactou sua oferta. A relação entre pandemias e desigualdade de renda, portanto, depende das particularidades de cada episódio.

Ao mesmo tempo, a literatura supracitada também enfatiza o importante papel das políticas públicas na contenção dos resultados socioeconômicos negativos decorrentes de pandemias. No caso da Covid-19, por exemplo, já sabemos que em parte dos países desenvolvidos as políticas emergenciais foram capazes de, ao menos no curto prazo, mais do que compensar as perdas provocadas pela pandemia entre os mais pobres (Stantcheva, 2022STANTCHEVA, Stefanie. (2022), “Inequalities in the pandemic”. Economic Policy, 37, 109:5-41. DOI: 10.1093/epolic/eiac006.
https://doi.org/10.1093/epolic/eiac006...
). Cabe, portanto, investigar mais a fundo qual teria sido o peso da principal política emergencial adotada no Brasil naquele período (Prates e Barbosa, 2020PRATES, Ian; BARBOSA, Rogério J. (2020), Boletim 14: Covid-19: políticas públicas e as respostas da sociedade. Disponível em <https://redepesquisasolidaria.org/wp-content/uploads/2020/07/boletimpps_14_3julho.pdf>, consultado em 19/07/2023.
https://redepesquisasolidaria.org/wp-con...
).

A fim de responder às perguntas acima colocadas, faremos uso dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), do IBGE, em sua publicação anual referente aos anos de 2012 até 2021, com foco no período 2019-2021.9 9 Para o ano de 2019, utilizamos os dados acumulados na primeira visita, enquanto, para os anos de 2020 e 2021, foram utilizados os dados acumulados na quinta visita (sendo estes os únicos disponíveis no período da pandemia). O recorte geográfico abrange as vinte e duas áreas metropolitanas citadas anteriormente, e todas as análises se constroem a partir da renda mensal domiciliar per capita (habitual de todos os trabalhos e efetiva de outras fontes), excluindo o rendimento das pessoas cuja condição na unidade domiciliar fosse de pensionista, empregado doméstico ou parente de empregado doméstico. Todos os valores foram deflacionados para preços médios do último período (2021), a partir de deflatores específicos para cada Unidade da Federação, fornecidos pelo próprio IBGE junto à PNADc e tendo como base o IPCA.

Ao realizar esta análise, esperamos contribuir para aprofundar a compreensão de um fenômeno sobre o qual já temos nos debruçado há alguns anos (Salata e Ribeiro, 2020SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2020), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 1ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. , 2022SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2022), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 9ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. , 2023SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2023), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 13ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. ). Portanto, neste artigo buscamos oferecer um exame mais completo e detalhado do que aqueles já apresentados nas inúmeras publicações anteriores do Boletim – Desigualdade nas Metrópoles.10 10 O Boletim – Desigualdade nas Metrópoles é produto de uma parceria entre o PUCRS Data Social, o INCT Observatório das Metrópoles e a RedODSAL. Para todos os números, acessar <https://www.pucrs.br/datasocial/boletim-desigualdades-nas-metropoles/>.

Desigualdade de renda

Ao longo dos últimos anos, conforme podemos observar na Figura 1, houve importantes variações no rendimento médio em nossas metrópoles, sendo possível identificar quatro períodos distintos.

FIGURA 1
- Média da Renda Domiciliar Per Capita – Regiões Metropolitanas, 2012-2021

O primeiro, entre 2012 e 2014, é, na verdade, o final de um ciclo mais longo, com duração de aproximadamente dez anos, durante o qual verificamos aumento da renda, redução das desigualdades e diminuição da pobreza (Barros et al., 2010BARROS, Ricardo; DE CARVALHO, Mirela; FRANCO, Samuel; MENDONÇA, Rosane. (2010), “Determinantes da Queda na Desigualdade de Rena no Brasil”. Texto para Discussão, 1460:1-52.). O segundo, entre 2014 e 2017, é um período de crise, no qual a renda média cai, permanece em um patamar mais baixo e sua distribuição se torna mais desigual (Barbosa et al., 2020BARBOSA, Rogério Jerônimo; FERREIRA DE SOUZA, Pedro Herculano Guimarães; SOARES, Sergei Suarez Dilon. (2020), “Distribuição de Renda nos Anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza”. Texto Para Discussão (IPEA), 2610:1-45.). O terceiro período, por sua vez, entre 2017 e 2019, é de recuperação da renda média, ainda que este crescimento não tenha sido acompanhado de redistribuição (Salata e Ribeiro, 2022SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2022), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 9ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. ). Finalmente, o quarto e último período – nosso foco neste artigo –, entre 2019 e 2021, é de acentuada redução do rendimento: em apenas dois anos, a média de rendimentos despencou 12,8%. Claramente, tamanha queda é resultante da crise provocada pela pandemia de Covid-19.

Como esperado, no entanto, os diferentes estratos sociais não foram afetados da mesma maneira pela redução de rendimentos, o que pode ser observado nas curvas de incidência presentes na Figura 2 e na Figura 3. Nelas, separamos os moradores das regiões metropolitanas em vinte estratos, de acordo com sua posição na distribuição de rendimentos, da mais baixa (mais à esquerda) à mais alta (mais à direita), e calculamos a variação de sua renda no primeiro e no segundo anos da pandemia. Curvas de incidência inclinadas para baixo indicam cenários mais positivos para os mais pobres, enquanto curvas de incidência inclinadas para cima expressam contextos mais positivos para os mais ricos. Valores acima de zero exprimem ganhos de renda, e valores abaixo de zero refletem perdas.

FIGURA 2
- Variação da Média de Renda entre 2019 e 2020, por Vintis de Renda – Regiões Metropolitanas (%)
FIGURA 3
- Variação da Média de Renda entre 2020 e 2021, por Vintis de Renda – Regiões Metropolitanas (%)

No primeiro ano da pandemia (Figura 2) a perda de renda entre os 5% mais pobres foi de 24,3%. Mas esse valor sobe rapidamente já no segundo vintil - para o qual a queda foi de 3,2% -, e chega a ser positivo no quarto vintil. A partir daí, a tendência é declinante, chegando a -8,3% no vintil mais rico. Ou seja, os severamente pobres perderam muito, mas o restante da base da pirâmide sofreu uma queda de renda proporcionalmente menor que a encontrada entre os estratos mais abastados.

No segundo ano da pandemia (Figura 3), entretanto, o resultado é distinto. Em que pese o estrato mais pobre continuar sendo aquele com a maior redução de renda – que se torna ainda mais acentuada (-29,9%) –, a curva tem clara inclinação positiva. Em geral, quanto mais rico o estrato, menor tende a ser a queda de renda, a despeito de todos terem perdido naquele período. Por exemplo, se entre o vintil número 5 a queda foi de 14,6%, para o vintil número 15 ela foi de 5,1%.

Tendo em vista as curvas de incidência, é de se esperar que tenha havido importantes variações na desigualdade de renda naquele período. Uma maneira de analisar esse fenômeno é através da comparação das curvas de Lorenz – que vinculam a população relativa (eixo horizontal) com a fração de renda acumulada (eixo vertical) – relativas à distribuição de renda em dois momentos distintos. A Figura 4 traz os gráficos da diferença de Lorenz entre 2019 e 2020, 2020 e 2021 e 2019 e 2021.

FIGURA 4
- Análise de Dominância de Lorenz – Regiões Metropolitanas

Valores positivos indicam que a fração de renda acumulada em determinado ponto da distribuição é maior no período posterior do que no período anterior, enquanto valores negativos indicam que é menor. Quando uma distribuição possui dominância (de Lorenz) sobre a outra, os valores são todos positivos ou negativos, ou seja, a curva não cruza a linha do valor zero. Nestes casos, podemos afirmar categoricamente que uma distribuição é mais ou menos desigual que a outra. Caso contrário – quando não há dominância de Lorenz –, é possível encontrar medidas que discordem quanto ao aumento ou à redução da desigualdade.

Na comparação de 2020 com 2019 vemos que quase todos os pontos da curva são positivos, o que indicaria uma redução da desigualdade naquele período. No entanto, entre os primeiros percentis, verificamos um momento em que a curva assume valores negativos, sugerindo que algumas medidas talvez não apontem queda da desigualdade no primeiro ano da pandemia. Já entre 2020 e 2021, temos dominância de Lorenz, dado que todos os valores são negativos. Desse modo, todas as medidas tradicionais de desigualdade irão indicar aumento no segundo ano da pandemia. Por fim, no período de dois anos (2019-2021) temos um amálgama dos dois gráficos anteriores, sem que haja dominância de Lorenz.

Ou seja, enquanto a elevação da desigualdade entre 2020 e 2021 é inequívoca e independe da medida utilizada, o mesmo não é verdade para o primeiro ano da pandemia e nem para o período inteiro de dois anos. Quase todas as medidas de desigualdade presentes na Tabela1, no entanto, convergem para o mesmo diagnóstico: houve redução em 2020 e aumento da desigualdade em 2021, com saldo de elevação também para o período como um todo.11 11 Pra maiores detalhes sobre essas medidas, assim como para suas fórmulas matemáticas, consultar os anexos de Barbosa et al. (2020).

TABELA 1
- Indicadores de Desigualdade para a Renda Domiciliar Per Capita – Regiões Metropolitanas, 2019-2021

O coeficiente de Gini, a mais conhecida medida sintética de desigualdade, aponta queda de 1,28% no primeiro ano da pandemia, e aumento de 1,8% no segundo. Indicadores menos estáveis que o Gini, e mais sensíveis à desigualdade entre os extremos da distribuição, no entanto, sugerem movimentos ainda mais acentuados. A razão entre o percentil 90 e o percentil 10, por exemplo, indica redução de 3,73% no primeiro ano, e aumento de 14% no segundo. A Razão de Palma, por sua vez, que nada mais é que a razão entre a fração de renda apropriada pelos 10% mais ricos sobre aquela apropriada pelos 40% mais pobres, sugere redução de 5,1% da desigualdade entre 2019 e 2020, e aumento de 8,5% entre 2020 e 2021.

Portanto, a evolução da desigualdade de rendimentos nas metrópoles no período da pandemia de Covid-19, entre 2019 e 2021, é mais complexa do que um observador descuidado poderia supor. No primeiro ano da pandemia chegamos mesmo a ter redução da desigualdade. Contudo, esta foi suplantada no ano seguinte. Na próxima seção, buscamos explicar estes movimentos.

Decomposição do Gini

A desigualdade na distribuição da renda domiciliar total – analisada na seção anterior – pode ser decomposta de acordo com as diferentes fontes de rendimento. Desse modo, é possível saber o quanto cada fonte de renda contribui – positiva ou negativamente – para a desigualdade verificada em determinado ano.12 12 Para tanto, as técnicas de decomposição conformam as ferramentas estatísticas mais apropriadas. Selecionamos os procedimentos que, até onde sabemos, são os mais atuais para o exercício de tais decomposições. Todas as rotinas aqui utilizadas são amplamente conhecidas na literatura. Com este intuito, classificamos as fontes de renda em oito categorias, conforme a Tabela 2.13 13 Como o Auxílio Emergencial se sobrepôs ao Bolsa Família, e dado que a base da PNAD não nos permite identificar os domicílios que recebiam o BF e passaram a receber o AE, optamos por agregar ambas as fontes de renda em uma única categoria.

TABELA 2
- Decomposição do Coeficiente de Gini por Fontes de Rendimento – Regiões Metropolitanas, 2019-2021
Conforme López-Feldman (2006), aLÓPEZ-FELDMAN, Alejandro. (2006), “Decomposing inequality and obtaining marginal effects”. The Stata Journal, 6, 1:106-111. DOI: 10.1177/1536867X0600600107.
https://doi.org/10.1177/1536867X06006001...
contribuição de cada fonte de renda (K) para a desigualdade na renda total depende: a) da participação daquela fonte de renda na renda total (SK); b) da distribuição daquela fonte de renda (GK); e c) da correlação entre aquela fonte de renda e a distribuição da renda total (RK). Assim, o coeficiente de Gini para a renda total pode ser representado como
G = K = 1 K S k G k R k

E a contribuição do componente K para a desigualdade na renda total pode, portanto, ser calculado a partir da multiplicação SkGkRk, conforme pode ser verificado na Tabela 3, onde trazemos os principais resultados da decomposição da desigualdade por fontes de renda para os anos de 2019, 2020 e 2021.

TABELA 3
- Decomposição do Coeficiente de Gini por Fontes de Rendimento – Regiões Metropolitanas, 2019-2021

Como esperado, a renda do trabalho é a que mais contribui para a desigualdade, dada sua grande participação no orçamento dos domicílios, seu grau de concentração e sua correlação positiva com a distribuição da renda total. Sua contribuição para o coeficiente de Gini foi de +0,422 em 2019, +0,441 em 2020 e +0,442 em 2021. Com efeito, os dados da Tabela 3 mostram que a crise provocada pela pandemia tornou a distribuição da renda do trabalho ainda mais concentrada, exercendo uma pressão maior sobre o Gini, tanto em 2020, quanto em 2021.

O segundo fator que mais puxa a desigualdade para cima são as aposentadorias, com contribuições de +0,105 em 2019, +0,094 em 2020 e +0,097 em 2021. Por outro lado, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os demais programas de transferência de renda são os únicos componentes que contribuem para uma distribuição de renda menos desigual, ainda que esta contribuição seja muito tímida em função, principalmente, da baixa participação deles no orçamento dos domicílios.

Os dados, porém, revelam uma variação muito importante na participação da renda dos programas de transferência, que representava 0,4% do volume total de rendimentos em 2019, subindo para 3,5% em 2020 e recuando para 1,1% em 2021. Como consequência, a contribuição deste componente para o coeficiente de Gini varia de -0,002 em 2019 para -0,006 em 2020, e retrocede para -0,004 em 2021.

Ou seja, a Tabela 3 traz indícios de que o aumento do volume de recursos destinados aos programas de transferência de renda, que em grande medida se deve à implementação do AE,14 14 Apesar de na variável V5003A2 os rendimentos do AE estarem diluídos em meio aos rendimentos de outros programas sociais, sem que seja possível distingui-lo com maior precisão, os dados sugerem forte predominância do AE a partir de 2020. contribuiu para a queda da desigualdade em 2020 e, em menor medida, em 2021. Uma maneira mais precisa de mensurar esse efeito sobre a variação da desigualdade, no entanto, é por meio de uma decomposição dinâmica do coeficiente de Gini por fontes de renda (Soares, 2006SOARES, Sergei Suarez Dillon. (2006), “Análise de bem-estar e decomposição por fatores da queda na desigualdade entre 1995 e 2004”. Econômica, 8, 1:83-115. DOI: 10.22409/reuff.v8i1.34915.
https://doi.org/10.22409/reuff.v8i1.3491...
; Hoffmann, 2006HOFFMANN, Rodolfo. (2006), “Transferências de renda e a redução da desigualdade no Brasil e cinco regiões entre 1997 e 2004.” Econômica, 8, 1:55-81. DOI: 10.22409/reuff.v8i1.34916.
https://doi.org/10.22409/reuff.v8i1.3491...
), dada por:

Δ G = K = 1 K S k ¯ Δ C k + C k ¯ G ¯ Δ S k

Enquanto o primeiro termo,15 15 Na fórmula, Ck é o coeficiente de concentração da fonte de renda K, dado por GkRk. mais à esquerda, se refere ao efeito provocado por alterações na concentração da fonte K sobre o Gini (efeito concentração), o segundo expressa o resultado de mudanças na participação da fonte K sobre aquele coeficiente (efeito composição). Somados, os termos representam o efeito total da fonte K sobre variações no coeficiente de Gini entre dois períodos.

A Figura 5 traz os resultados dessa decomposição para o período 2019-2020, e a Figura 6 para o intervalo 2020-2021. Nelas, as barras à direita expressam efeitos de elevação sobre o Gini, enquanto as barras à esquerda representam efeitos de redução.

FIGURA 5
- Decomposição Dinâmica da Variação do Coeficiente de Gini por Fontes de Rendimento – Regiões Metropolitanas, 2019-2020
FIGURA 6
- Decomposição Dinâmica da Variação do Coeficiente de Gini por Fontes de Rendimento – Regiões Metropolitanas, 2020-2021

Entre 2019 e 2020, conforme expresso na Figura 5, a redução da desigualdade se deu, em grande medida, como consequência de um efeito de composição dos programas de transferência de renda. Ou seja, o aumento do volume desses recursos, cuja participação na renda total passou de 0,4% para 3,5%, foi o principal fator responsável por puxar o coeficiente de Gini para baixo.

De todo modo, também é interessante perceber que, ao mesmo tempo em que o aumento do volume de recursos dos programas de transferência de renda trazia a desigualdade para baixo, seu efeito de concentração a puxava para cima – mesmo que com intensidade bem menor. Isso muito possivelmente reflete uma piora da focalização desses programas naquele período, que pode ser bem observada na Figura 7, onde temos as curvas de concentração do rendimento proveniente de programas de transferência de renda.16 16 A curva de concentração é um gráfico de frações de uma distribuição acumulada em relação a frações de outra distribuição acumulada (Medeiros, 2012). Nesse caso, temos a distribuição da renda de programas de transferência em relação à renda total.

FIGURA 7
- Curva de Concentração do Rendimento Proveniente dos Programas de Transferência de Renda – Regiões Metropolitanas, 2019-2021

Nas curvas de concentração, pontos acima da linha de igualdade (45º) indicam distribuição progressiva. Como esperado, esse é o caso para os rendimentos dos programas de transferência de renda. No entanto, também é perceptível que o grau de progressividade varia substantivamente entre 2019, 2020 e 2021. Entre 2019 e 2020, ou seja, na transição do BF para o AE – que se fez presente em grande parte de 2020 –, é claramente visível que a distribuição se torna muito menos focalizada. Se, por um lado, o AE aumentou a participação dos programas de transferência de renda no orçamento dos domicílios, por outro, ele se mostrou um programa muito menos focalizado que o BF. De todo modo, como vimos na Figura 5, felizmente essa perda de focalização não foi suficiente para compensar o efeito de composição.

O efeito de redução das desigualdades provocado pelo aumento do volume de recursos dos programas de transferência de renda se contrapunha ao efeito ocasionado pela maior concentração da renda do trabalho, que forçava um incremento da desigualdade. Entre 2019 e 2020, o coeficiente de Gini da renda domiciliar per capita apenas do trabalho subiu de 0,619 para 0,647, o que torna evidente que o choque provocado pela pandemia no mercado de trabalho foi sentido de maneira muito mais dramática pelas famílias de renda mais baixa (Salata e Ribeiro, 2020SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2020), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 1ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. ; Neri, 2020NERI, Marcelo. (2020), Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro: desigualdades, ingredientes trabalhistas e o papel da jornada. Rio de Janeiro, FGV Social. ).

Entre 2020 e 2021, entretanto, os fatores que explicam a variação do Gini – agora em viés de alta – mudam bastante (Figura 6). Por um lado, após um grande choque até o terceiro trimestre de 2020, a renda do trabalho dos mais pobres inicia um processo de recuperação (Salata e Ribeiro, 2022SALATA, Andre; RIBEIRO, Marcelo. (2022), Boletim – Desigualdade nas Metrópoles. 9ª edição, Rio Grande do Sul, Observatório das Metrópoles. ). Como consequência, entre 2020 e 2021, o componente de concentração da renda do trabalho passa a forçar a redução do coeficiente de Gini.

Em compensação, os programas de transferência de renda tornam a exercer influência no sentido de elevar as desigualdades entre 2020 e 2021. E isso se deve inteiramente à redução da participação dos rendimentos dessa fonte no orçamento dos domicílios (efeito composição). Em grande medida, então, o aumento da desigualdade em 2021 pode ser atribuído à interrupção do pagamento do AE no início daquele ano e, também, à subsequente redução de seu valor e cobertura. Ao mesmo tempo, houve uma significativa melhora na focalização daquele programa – como pode ser visto na Figura 7 – o que suavizou parcialmente seu efeito sobre a elevação das desigualdades.

Portanto, entre 2019 e 2020, apesar de uma piora na focalização, o aumento do volume de recursos destinados aos programas de transferência de renda – em grande medida resultante da implementação do AE – foi o principal fator responsável pela redução das desigualdades em nossas metrópoles. No entanto, entre 2020 e 2021, com a decisão do governo federal de interromper o pagamento do AE por três meses, e a posterior redução de sua cobertura e valores, aquele mesmo fator foi responsável pelo significativo aumento das desigualdades verificado no período.

Pandemia e pobreza nas metrópoles

De modo genérico, a pobreza pode ser definida como a situação na qual as necessidades de uma parcela da população não são atendidas satisfatoriamente. Como consequência, entende-se que aquela parcela da população que se encontra abaixo da linha de pobreza não possui os meios necessários para operar adequadamente na comunidade em que habita (Rocha, 2003ROCHA, Sonia. (2003), Pobreza no Brasil: afinal, de que se trata? Rio de Janeiro, FGV. ). Em países como o Brasil, a pobreza deve ser encarada como uma das consequências mais visíveis da desigualdade, impedindo a participação plena de ampla parcela da população na sociedade (Barros et al., 2000BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. (2000), “Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15, 42:123-142. DOI: 10.1590/S0102-69092000000100009.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200000...
).

Há inúmeras maneiras de se conceituar e operacionalizar a ideia de pobreza (Ravallion, 2016RAVALLION, Martin. (2016), The Economics of Poverty: history, measurement, and policy. Oxford, Oxford University Press.). Nesta seção, faremos uso de quatro linhas absolutas de pobreza e extrema pobreza monetárias,17 17 O conceito de pobreza absoluta se encontra associado ao não atendimento de necessidades consideradas fundamentais em um determinado contexto sócio-histórico. Em sociedades modernas, altamente mercantilizadas e monetizadas, o conceito de pobreza é normalmente operacionalizado através dos rendimentos. Para uma exposição mais detalhada, ver Rocha (2003). quais sejam, a primeira linha do programa Auxílio Brasil (AB), no valor de R$ 105,00 per capita,18 18 Tendo como referência os valores encontrados em janeiro de 2023. a partir de agora chamada de AB1; a segunda linha do programa Auxílio Brasil, no valor de R$ 210,00 per capita, a partir de agora chamada de AB2; a linha de pobreza indicada pelo Banco Mundial (BM) para países de renda baixa, no valor de R$ 182,81 per capita, a partir de agora chamada de BM1; e a linha de pobreza indicada para países de renda médio-alta pelo Banco Mundial, no valor de R$ 582,46 per capita, a partir de agora chamada de BM2.19 19 Para o acompanhamento da pobreza global, as Nações Unidas e o Banco Mundial estabelecem a chamada Linha de Pobreza Internacional (LPI) em US$ 2,15. Já para os países de renda média-alta – como o Brasil – o BM sugere a linha no valor de US$ 6,85 (World Bank, 2020). Para utilizarmos as linhas do BM, os valores foram primeiro convertidos em reais (R$) a partir da Paridade de Poder de Compra (PPC) de 2017; posteriormente foram mensalizados e, então, deflacionados para valores médios de 2021, por meio do IPCA.

Na Figura 8, observamos a taxa de pobreza nas regiões metropolitanas de acordo com cada uma dessas quatro linhas, entre 2019 e 2021. O primeiro ponto a se observar é o percentual elevado de pessoas em condição de pobreza, em especial quando utilizamos linhas menos austeras, como a BM2. A partir dela, constatamos que em 2021 nada menos do que 31,4% dos moradores de nossas metrópoles, que reúnem algumas das áreas mais ricas do país, poderiam ser considerados pobres. E, de acordo com a BM1, quase 7% dos habitantes das regiões metropolitanas brasileiras em 2021 seriam considerados pobres em qualquer local do planeta.

FIGURA 8
- Taxas de Pobreza Monetária (P0) – Regiões Metropolitanas, 2019-2021 (%)

Em relação à evolução dessas taxas ao longo do período analisado, o padrão é o mesmo para todas as quatro linhas utilizadas: leve aumento entre 2019 e 2020 – com exceção de AB1, para a qual o aumento foi um pouco mais acentuado –, e elevação substantiva do nível de pobreza entre 2020 e 2021. Como pode ser observado na quarta coluna da Tabela 4, entre 2019 e 2020 não houve, para nenhuma linha utilizada, aumento maior que 0,4 pontos percentuais (p.p.) na taxa de pobreza. Já entre 2020 e 2021, conforme consta na quinta coluna, essa variação chegou a 4,6 p.p. para a BM2. Em termos absolutos, foi um salto de 22,2 milhões para 26,2 milhões de pessoas abaixo daquela linha em apenas um ano.

TABELA 4
- Indicadores de Pobreza Monetária– Regiões Metropolitanas, 2019-2021

As demais medidas presentes na Tabela 4 acompanham esses movimentos mais gerais. Vemos, através do hiato médio padronizado,20 20 O hiato médio padronizado pode ser lido como a distância média da renda dos pobres em relação à própria linha de pobreza. que no período houve não apenas aumento da incidência da pobreza, mas também de sua intensidade. Ou seja, houve aumento do número de pobres e, além disso, os pobres tenderam a ficar ainda mais pobres, em especial no período 2020-2021. E, como consequência do aumento da incidência e da intensidade da pobreza, houve forte elevação também do hiato agregado,21 21 O hiato agregado é uma medida de quanta renda (em R$) seria necessário para eliminar a pobreza num cenário hipotético de transferências com identificação perfeita, totalmente focalizadas e sem custos operacionais. que para a linha de pobreza mais baixa (AB1), por exemplo, salta de 168 para 259,5 milhões de reais.

As oscilações observadas nas taxas de pobreza, com forte tendência de alta entre 2019 e 2021, podem ser decompostas a partir das fontes de rendimento. Para tanto, aplicamos uma técnica de decomposição elaborada por Barros et al. (2006)BARROS, Ricardo Paes de; CARVALHO, Mirela de; FRANCO, Samuel; MENDONÇA, Rosane Silva Pinto de. (2006). “Uma Análise das principais causas da queda recente na desigualdade de renda brasileira”. Texto para Discussão (IPEA), 1203:1-29. e aprimorada por Azevedo et al. (2013)AZEVEDO, João Pedro; INCHAUSTE, Gabriela; OLIVIERI, Sergio; SAAVEDRA, Jaime; WINKLER, Henan. (2013). “Is Labor Income Responsible for Poverty Reduction? A decomposition approach”. World Bank Policy Research Working Paper, 6414:1-38. , que permite matematicamente separar o quanto cada fonte de rendimento é responsável pela variação da incidência da pobreza entre dois pontos no tempo. Sendo 𝜗 a taxa de pobreza, ela pode ser tomada como uma função de densidade acumulada (F) da renda domiciliar per capita (Ypc), que, por sua vez, dependeria de cada um dos fatores de renda, como segue: 22 22 Separaremos as fontes de renda nos mesmos oito fatores utilizados para a decomposição do coeficiente de Gini (Tabela 2).

ϑ = F ( Y p c y i T r a b . , y i Pr o g . T r a n s f . Re n d a , y i B P C , y i I N S S , y i S e g . D e s . , y i P e n s ã o , y i A l u g u e l , y i O u t r o s )

O exercício estatístico realizado por esta decomposição consiste, então, em substituir os valores de cada uma das fontes de renda, em um dado período, por aquele correspondente no período anterior/posterior.23 23 Levando em consideração o seu valor médio em quantis correspondentes. Dessa maneira é possível isolar a contribuição marginal de cada fator para a variação total da incidência da pobreza em um dado período, conforme exposto graficamente nas Figuras 9 e 10.24 24 Dado que o resultado de cada exercício contrafactual depende da ordem em que eles são executados, segue-se a estratégia da decomposição de Shapley (Shorrocks, 2013).

FIGURA 9
- Decomposição da Variação nas Taxas de Pobreza – Regiões Metropolitanas, 2019-2020
FIGURA 10
- Decomposição da Variação nas Taxas de Pobreza – Regiões Metropolitanas, 2020-2021

A Figura 9 traz os resultados desse exercício para o período 2019-2020, e a Figura 10 para o período 2020-2021. Para esse procedimento, selecionamos as duas linhas de pobreza do BM, a primeira representando linhas mais austeras, e a segunda linhas mais elevadas. A partir de agora, a fim de facilitar a exposição dos dados, nos referiremos à BM1 como linha de extrema pobreza e à BM2 como linha de pobreza. Nos gráficos, barras para cima significam contribuição para o aumento das taxas de pobreza, enquanto barras para baixo expressam contribuição para a redução das mesmas.

No período 2019-2020, como vimos, a extrema pobreza cresceu 0,32 p.p., e a pobreza 0,33 p.p. Essa relativa estabilidade na incidência da pobreza, no entanto, em meio ao primeiro ano da pandemia, só foi possível em função das mudanças ocorridas nos programas de transferência de renda – como pode ser visto na Figura 9. Enquanto a renda do trabalho puxava a taxa de extrema pobreza em 2,2 p.p. e a de pobreza em 3,2 p.p. para cima, os programas de transferência de renda as puxavam para baixo. Assim, não fossem as mudanças adotadas nos programas de transferência de renda, as taxas de extrema pobreza e de pobreza teriam crescido 2,1 e 4,3 pontos percentuais a mais, respectivamente, entre 2019 e 2020.

No período 2020-2021 o cenário é bastante distinto, com aumento de 1,9 p.p. na extrema pobreza, e de 4,6 p.p. na incidência da pobreza. E, como pode ser verificado na Figura 10, essa grande mudança ante a dinâmica encontrada no primeiro ano da pandemia (Figura 9), se deve basicamente às variações nos programas de transferência de renda – que, como vimos, em 2021 foram reduzidos em termos de cobertura e valores pagos. Como resultado, ao contrário do que ocorrera no período 2019-2020, entre 2020 e 2021 tais variações nos programas de transferência de renda contribuíram para o aumento das taxas de extrema pobreza (em 1,8 p.p.) e de pobreza (em 3,4 p.p.). Em vez de exercer força contrária à das variações na renda do trabalho – que continuaram, mesmo que em menor medida, a puxar a incidência da (extrema) pobreza para cima –, as alterações nos rendimentos dos programas de transferência de renda atuaram na mesma direção, tornando-se o principal fator explicativo do aumento da pobreza e da extrema pobreza no segundo ano da pandemia.

Buscando avaliar de modo mais direto o peso das variações nas políticas de transferência de renda sobre as taxas de pobreza e extrema pobreza, realizamos algumas simulações. O primeiro passo foi criar uma variável de renda domiciliar per capita que excluísse os rendimentos provenientes de programas de transferência de renda.25 25 Variáveis V5002A2 e V5003A3 nas bases de dados da PNADc 2019-2021. Em seguida, calculamos novamente as taxas de pobreza e extrema pobreza a partir dessa nova variável, em cada um dos anos aqui analisados. Por fim, comparamos essas taxas – calculadas a partir de uma situação hipotética onde não haveria rendimentos provenientes de programas de transferência de renda – com as taxas factuais. Os resultados desse exercício estão expostos na Figura 11.

FIGURA 11
- Variação nas Taxas de Pobreza, com e sem Auxílios – Regiões Metropolitanas, 2019-2021 (%)

Como esperado, na situação hipotética de os domicílios não contarem com o auxílio dos programas de transferência de renda, as taxas de pobreza e extrema pobreza subiriam significativamente. O mais interessante aqui, no entanto, é perceber o quanto essa distância entre as taxas reais e simuladas varia no decorrer dos períodos analisados, o que nos indica o tamanho da diferença feita pelos programas de transferência de renda em um dado período. Nesse sentido, fica muito evidente como em 2020, ano em que o AE atingia o maior valor e cobertura, cresce muito o efeito dos programas de transferência de renda no combate à pobreza e à extrema pobreza. Não fossem eles, a taxa de extrema pobreza teria chegado a 9,1%, e a de pobreza a 32,8% dos moradores das regiões metropolitanas do país. Em vez disso, ficaram em 4,9% e 26,7%, respectivamente.

Em 2021, no entanto, a altura das barras claras e escuras volta a se aproximar, indicando uma redução do efeito das políticas de transferência de renda no combate à pobreza. Dada a interrupção do pagamento do AE no primeiro trimestre, e seu posterior retorno com valores reduzidos e cobertura menor, tal resultado seria esperado. Os auxílios que, em 2020, faziam a taxa de pobreza e extrema pobreza recuarem 6,03 p.p. e 4.17 p.p., respectivamente, em 2021, passam a reduzi-las em somente 1,65 p.p. e 1,79 p.p. Logo, fica evidente como as variações nas políticas sociais formam elemento fundamental para explicar as oscilações nas taxas de pobreza em nossas metrópoles no período da pandemia.

Conclusões

Pandemias não afetam todos os estratos sociais da mesma maneira ou com igual intensidade, seja em razão de seu impacto diferencial em termos de mortalidade, dos efeitos das medidas de contenção do vírus sobre a demanda por trabalho mais ou menos qualificado, ou em função de políticas públicas adotadas em um período de excepcionalidade e direcionadas aos setores mais vulneráveis da população (Das et al., 2021DAS, Pinaki; BISAI, Santanu; GHOSH, Sudeshna. (2021), “Impact of pandemics on income inequality: lessons from the past”. International Review of Applied Economics, 35, 6:832-850. DOI: 10.1080/02692171.2021.1921712.
https://doi.org/10.1080/02692171.2021.19...
). Dependendo desse balanço de forças, a história mostra que pandemias podem contribuir tanto para elevar quanto para reduzir a desigualdade de rendimentos (Sayed e Peng, 2021SAYED, Adham; PENG, Bin. (2021), “Pandemics and Income Inequality: a historical review”. SN Bus Econ, 1, 54:1-17. DOI: 10.1007/s43546-021-00059-4.
https://doi.org/10.1007/s43546-021-00059...
). Neste trabalho, concentramo-nos nos efeitos da pandemia de Covid-19 sobre a distribuição de renda e sobre a pobreza monetária nas regiões metropolitanas brasileiras – que, a despeito de concentrarem os setores mais modernos da economia nacional, historicamente, caracterizam-se por um elevado nível de desigualdades e pobreza. Para tanto, utilizamos dados da PNADc-IBGE, coletados entre os anos de 2019 e 2021.

Os resultados alcançados podem ser resumidos em três pontos principais, destacados nos parágrafos abaixo.

Primeiro, a evolução tanto da desigualdade quanto da pobreza no período analisado está longe de ser uniforme. Entre 2019 e 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19 no Brasil, observamos clara redução da desigualdade e uma variação discreta – ainda que positiva – da taxa de pobreza. No segundo ano da pandemia, no entanto, entre 2020 e 2021, o quadro muda bastante, com tendência de aumento significativo tanto da desigualdade, quanto da pobreza monetária. Tamanha mudança de rota, em um espaço tão curto de tempo, pode ser explicada pelo jogo de forças acima mencionado.

Em vista disso, o segundo ponto a ser destacado é o papel da renda auferida no mercado de trabalho na explicação das variações aludidas no parágrafo anterior. Entre o primeiro e o terceiro trimestres de 2020, logo no início da pandemia de Covid-19 no Brasil, a média da renda domiciliar per capita do trabalho caiu 7,5% nas regiões metropolitanas brasileiras, indo de R$ 1.631,50 para R$ 1.509,73. Mas essa queda não foi sentida da mesma forma por todos os estratos sociais. Entre os 40% mais pobres, por exemplo, a redução foi de 34,4%; já entre os 10% mais ricos a redução foi de 2,5% no mesmo período.

Em outras palavras, as necessárias medidas de contenção do vírus prejudicaram principalmente os trabalhadores concentrados na base da distribuição de renda: informais, no setor de serviços e com baixa escolaridade. Enquanto isso, a mão de obra mais qualificada não apenas estava protegida no setor formal da economia, como também pôde, em muitos casos, transferir sua ocupação para o modo remoto. Como consequência, a piora da distribuição da renda do trabalho foi o principal fator responsável pelo aumento da desigualdade e da (extrema) pobreza no período, como pôde ser verificado na Figura 5 e na Figura 9. Fenômeno semelhante ocorrera em pandemias anteriores em outros países, como as de H1N1, SARS e MERS (Furceri, et al., 2022FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D.; PIZZUTO, Pietro. (2022), “Will COVID-19 Have Long-Lasting Effects on Inquality? Evidence from Past Pandemics.” The Journal of Economic Inequality, 20:811-839. DOI: 10.1007/s10888-022-09540-y.
https://doi.org/10.1007/s10888-022-09540...
).

O terceiro ponto a ser destacado, entretanto, é que houve um importante contraponto à tendência de concentração da renda do trabalho: um substantivo aumento do volume de recursos direcionado às políticas de transferência de renda, em especial ao Auxílio Emergencial. Se, entre 2019 e 2020, a piora da concentração da renda do trabalho puxou o coeficiente de Gini para cima, o aumento do montante de rendimentos provenientes do Bolsa Família/Auxílio Emergencial26 26 Além de outros programas estaduais e/ou municipais de peso significativamente menor. o puxou para baixo, fazendo um importante contrapeso que resultou na melhora da distribuição de rendimentos naquele período (Figura 5) e, também, na contenção do aumento da pobreza (Figuras 9 e 11).

Em compensação, dada a decisão do governo federal de interromper o pagamento do AE no primeiro trimestre de 2021, retornando posteriormente com valores e cobertura menores, no segundo ano da pandemia as variações nas políticas de transferência de renda se constituíram no principal fator puxando a desigualdade e a pobreza para cima, como pôde ser atestado nas Figuras 6 e 10. Desse modo, a experiência brasileira corrobora resultados de pesquisas internacionais que mostram que a ação do poder público, através de medidas emergenciais de proteção aos mais pobres, é elemento central a fim de predizer as consequências socioeconômicas de pandemias (Stantcheva, 2022STANTCHEVA, Stefanie. (2022), “Inequalities in the pandemic”. Economic Policy, 37, 109:5-41. DOI: 10.1093/epolic/eiac006.
https://doi.org/10.1093/epolic/eiac006...
) – assim como anteriormente sugerido por Hoffmann e Jesus (2022)HOFFMANN, Rodolfo; JESUS, Josimar Gonçalves de. (2022), “A Relevância do Auxílio Emergencial na Redução da Desigualdade em 2020”. Revista Brasileira de Economia Social e do Trabalho, 4, e022001:1-23. DOI: 10.20396/rbest.v4i00.16072.
https://doi.org/10.20396/rbest.v4i00.160...
e Prates e Barbosa (2020)PRATES, Ian; BARBOSA, Rogério J. (2020), Boletim 14: Covid-19: políticas públicas e as respostas da sociedade. Disponível em <https://redepesquisasolidaria.org/wp-content/uploads/2020/07/boletimpps_14_3julho.pdf>, consultado em 19/07/2023.
https://redepesquisasolidaria.org/wp-con...
.

É importante mencionar, porém, que a análise aqui empreendida se limita aos efeitos de curto prazo da pandemia de Covid-19 sobre a desigualdade de rendimentos e a pobreza monetária nas regiões metropolitanas brasileiras. Novas análises serão necessárias para conhecer as marcar deixadas pela pandemia no médio e no longo prazo. Seja pela experiência prolongada de desemprego entre muitos trabalhadores de baixa qualificação, seja pelo impulso que a pandemia deu ao trabalho remoto – em geral restrito aos trabalhadores mais qualificados –, é possível que as consequências sociais da pandemia se façam sentir por muito tempo.

Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que, apesar de tudo, a pandemia parece ter conferido maior fôlego às políticas sociais, em especial às de transferência condicionada de renda. Não à toa, tais políticas ganharam maior centralidade no debate público, e há claramente em curso um movimento de elevação dos valores pagos pelo principal programa federal de transferência de renda, que voltou a se chamar Bolsa Família (Medida Provisória n.º 1.164, de 02.03.2023). E, como vimos, essas políticas desempenham papel fundamental no combate às desigualdades e à pobreza em nossas metrópoles.

Novamente, então, um vetor de forças definirá qual será o impacto da pandemia, no médio e no longo prazo, sobre a possibilidade de enfrentarmos alguns dos enormes desafios que se colocam em nossas regiões metropolitanas para a consolidação da cidadania entre importantes parcelas da população.

  • 1
    Agradecemos ao CNPq pelas duas bolsas de produtividade em pesquisa e pela verba conferida através do edital Universal 2021. Somos gratos à PORTICUS, que financiou parte da pesquisa através da RedODSAL. A pesquisa também se beneficiou do trabalho do IBGE e do DataZoom. Agradecemos aos pareceristas adhoc da RBCS pelos questionamentos e sugestões que nos ajudaram a aprimorar o presente artigo. Como de praxe, as possíveis falhas e limitações são inteiramente de responsabilidade dos autores.
  • 2
    Manaus, Belém, Macapá, Grande São Luís, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Belo Horizonte, Grande Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vale do Rio Cuiabá, Goiânia, Distrito Federal e Grande Teresina.
  • 3
    O coeficiente de Gini varia entre 0 e 1, de modo que quanto mais alto o valor, maior a desigualdade.
  • 4
    Consulta feita em 16 de fevereiro de 2023 na plataforma do Ministério da Saúde.
  • 5
    A vacinação contra a Covid-19 no Brasil teve início em janeiro de 2021.
  • 6
    Todas as cifras mencionadas neste parágrafo têm como fonte o IBGE.
  • 7
    Síndrome respiratória aguda grave.
  • 8
    Síndrome respiratória do Oriente Médio.
  • 9
    Para o ano de 2019, utilizamos os dados acumulados na primeira visita, enquanto, para os anos de 2020 e 2021, foram utilizados os dados acumulados na quinta visita (sendo estes os únicos disponíveis no período da pandemia).
  • 10
    O Boletim – Desigualdade nas Metrópoles é produto de uma parceria entre o PUCRS Data Social, o INCT Observatório das Metrópoles e a RedODSAL. Para todos os números, acessar <https://www.pucrs.br/datasocial/boletim-desigualdades-nas-metropoles/>.
  • 11
    Pra maiores detalhes sobre essas medidas, assim como para suas fórmulas matemáticas, consultar os anexos de Barbosa et al. (2020)BARBOSA, Rogério Jerônimo; FERREIRA DE SOUZA, Pedro Herculano Guimarães; SOARES, Sergei Suarez Dilon. (2020), “Distribuição de Renda nos Anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza”. Texto Para Discussão (IPEA), 2610:1-45..
  • 12
    Para tanto, as técnicas de decomposição conformam as ferramentas estatísticas mais apropriadas. Selecionamos os procedimentos que, até onde sabemos, são os mais atuais para o exercício de tais decomposições. Todas as rotinas aqui utilizadas são amplamente conhecidas na literatura.
  • 13
    Como o Auxílio Emergencial se sobrepôs ao Bolsa Família, e dado que a base da PNAD não nos permite identificar os domicílios que recebiam o BF e passaram a receber o AE, optamos por agregar ambas as fontes de renda em uma única categoria.
  • 14
    Apesar de na variável V5003A2 os rendimentos do AE estarem diluídos em meio aos rendimentos de outros programas sociais, sem que seja possível distingui-lo com maior precisão, os dados sugerem forte predominância do AE a partir de 2020.
  • 15
    Na fórmula, Ck é o coeficiente de concentração da fonte de renda K, dado por GkRk.
  • 16
    A curva de concentração é um gráfico de frações de uma distribuição acumulada em relação a frações de outra distribuição acumulada (Medeiros, 2012MEDEIROS, Marcelo. (2012), Medidas de Desigualdade e Pobreza. Brasília, Editora Universidade de Brasília. ). Nesse caso, temos a distribuição da renda de programas de transferência em relação à renda total.
  • 17
    O conceito de pobreza absoluta se encontra associado ao não atendimento de necessidades consideradas fundamentais em um determinado contexto sócio-histórico. Em sociedades modernas, altamente mercantilizadas e monetizadas, o conceito de pobreza é normalmente operacionalizado através dos rendimentos. Para uma exposição mais detalhada, ver Rocha (2003).
  • 18
    Tendo como referência os valores encontrados em janeiro de 2023.
  • 19
    Para o acompanhamento da pobreza global, as Nações Unidas e o Banco Mundial estabelecem a chamada Linha de Pobreza Internacional (LPI) em US$ 2,15. Já para os países de renda média-alta – como o Brasil – o BM sugere a linha no valor de US$ 6,85 (World Bank, 2020WORLD BANK. (2020), Poverty and Shared Prosperity 2020: Reversals of Fortune. Washington D.C, World Bank.). Para utilizarmos as linhas do BM, os valores foram primeiro convertidos em reais (R$) a partir da Paridade de Poder de Compra (PPC) de 2017; posteriormente foram mensalizados e, então, deflacionados para valores médios de 2021, por meio do IPCA.
  • 20
    O hiato médio padronizado pode ser lido como a distância média da renda dos pobres em relação à própria linha de pobreza.
  • 21
    O hiato agregado é uma medida de quanta renda (em R$) seria necessário para eliminar a pobreza num cenário hipotético de transferências com identificação perfeita, totalmente focalizadas e sem custos operacionais.
  • 22
    Separaremos as fontes de renda nos mesmos oito fatores utilizados para a decomposição do coeficiente de Gini (Tabela 2).
  • 23
    Levando em consideração o seu valor médio em quantis correspondentes.
  • 24
    Dado que o resultado de cada exercício contrafactual depende da ordem em que eles são executados, segue-se a estratégia da decomposição de Shapley (Shorrocks, 2013SHORROCKS, Anthony. (2013), “Decomposition procedures for distributional analysis: a unified framework based on the Shapley value”. Journal of Economic Inequality, 11:99-126. DOI: 10.1007/s10888-011-9214-z.
    https://doi.org/10.1007/s10888-011-9214-...
    ).
  • 25
    Variáveis V5002A2 e V5003A3 nas bases de dados da PNADc 2019-2021.
  • 26
    Além de outros programas estaduais e/ou municipais de peso significativamente menor.
  • DOI: 10.1590/3811025/2023

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    05 Ago 2023
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