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Âmbitos interacionais e seus diferentes contratos comunicativos: contribuições para a agenda relacional no estudo de movimentos sociais

Interactional Loci and their Different Communicative Contracts: Contributions to the Agenda of Relational Approaches to the Study of Social Movements

Resumo

Enfoques relacionais estão no coração do debate contemporâneo sobre diversas modalidades de engajamento cívico. Seja na agenda de estudos sobre confronto político ou nos estudos sobre instituições participativas, tornou-se comum a defesa de abordagens relacionais que permitam compreender as complexas dinâmicas da participação política em sua processualidade. Este artigo contribui para esta agenda. A partir da contextualização de algumas das bases da virada relacional ao longo século XX, e enfocando, sobretudo, a centralidade da linguagem para estas abordagens, o texto avança na proposição do conceito de âmbitos interacionais como um operador interessante para análises empíricas. Ainda que a noção dialogue fortemente com a ideia de arenas, ela salienta elementos linguageiros da relação ao trazer para frente a ideia de contratos comunicativos.

Palavras-chave:
Âmbitos Interacionais; Contratos Comunicativos; Abordagem Relacional; Movimentos Sociais

Abstract

Relational approaches lie at the heart of the contemporary debate on various forms of civic engagement. Whether in the agenda of studies on contentious politics or in the realm of participatory institutions, the advocacy for relational approaches that enable the comprehension of the intricate dynamics of political participation in its procedural nature has become commonplace. This article contributes to this agenda. Beginning with a contextualization of some of the foundational aspects of the relational turn throughout the 20th century, with a primary focus on the centrality of language for these approaches, the text advances by introducing the concept of interactional loci as a fruitful tool for empirical analyses. Despite the overlaps with the idea of arenas, the notion emphasizes linguistic elements of relationships by foregrounding the concept of communicative contracts.

Keywords:
Interactional Loci; Communicative Contracts; Relational Approaches; Social Movements

1. Introdução1 1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na AT de Participação Política do 13º. Encontro da ABCP, realizada na UFG entre 19 e 23 de setembro de 2022. Sou grato aos participantes do evento pelas contribuições e comentários. Também sou grato a Rousiley Maia e a Vera França pelas discussões ao longo de muitos anos. Agradeço, ainda, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (código 001), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 309154/2020-0) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) (CSA - PPM-00284-17) pelo apoio de pesquisa.

A defesa de perspectivas relacionais está no cerne de múltiplas frentes das Ciências Sociais contemporâneas. Nas subáreas de pesquisas focadas em engajamento cívico, participação política e movimentos sociais não é diferente, pois há uma defesa geral de perspectivas que centram mais atenção em relações do que em atores isolados. Ainda que a Ciência Política abrace um pouco tardiamente os paradigmas relacionais, sua base é relativamente antiga, derivando, em grande medida, das viradas linguísticas processadas ao longo ao século XX e que abriram diversos veios de investigação focados na centralidade de fenômenos linguísticos para a compreensão de relações sociais (Hirschkop, 2019HIRSCHKOP, Ken. (2019),Linguistic turns, 1890-1950: writing on language as social theory / Ken Hirschkop. Oxford, Oxford University Press.). Ao chamar a atenção para a enunciação como prática situada, a virada linguística permitiu pensar a configuração relacional de diversos fenômenos, compreendendo que os entes que configuram processos sociopolíticos não podem ser estudados isoladamente, visto serem configurados em interação.

Se a Ciência Política hodierna salienta, em grande medida, a relevância de abordagens relacionais, um tratamento mais denso da própria linguagem ainda carece de aprofundamento. No Brasil, conceitos como o de campos estratégicos, arenas, repertórios de interação, contramovimentos, encaixes institucionais e sistemas deliberativos têm desempenhado papel fundamental no avanço de abordagens mais relacionais, embora não avancem muito na exploração das implicações da virada linguística para a compreensão de fenômenos sociopolíticos. Este artigo contribui para esta literatura, propondo a noção de âmbitos interacionais como operador analítico capaz de permitir uma ampla gama de estudos de base relacional que sejam atentos a tais implicações. Argumento que tal noção é melhor do que as de campos, arenas e esferas, além de permitir refinamentos em aplicações da noção de repertórios de interação, por um conjunto de razões teóricas e de foco. Transdisciplinar em sua origem, o artigo bebe de contribuições dos estudos de linguagem, da comunicação e da sociologia para avançar uma agenda da Ciência Política contemporânea que busca enquadramentos conceituais para a construção de desenhos de pesquisa mais aptos a uma compreensão relacional da participação política.

Além desta introdução e das considerações finais, o texto está dividido em duas outras partes. Na primeira delas, a seção 2, apresento o conceito de âmbitos interacionais em diálogo com os conceitos de interação, discurso e contratos comunicativos. Argumento que a investigação de interações situadas permite trabalhar relacionalmente uma ampla gama de fatores, entendendo suas articulações a partir da premissa da precedência da relação sobre seus termos. Na segunda parte, seção 3, reflito sobre as implicações desta perspectiva, argumentando porque ela é útil e para quê pode ser usada. Em cada ponto de justificativa trabalhado nesta segunda parte, faço ilustrações a partir de trabalhos anteriormente desenvolvidos, buscando dar mais concretude aos argumentos.

2. Os âmbitos interacionais e suas bases conceituais

A ideia de âmbitos interacionais diz de contextos em que atores se colocam em interação. Tais contextos dizem de situações (no sentido amplo do termo) que ancoram e balizam dinâmicas interacionais nela processadas. Trata-se, pois, de instâncias que abarcam diferentes modalidades interativas, delineando parâmetros e padrões que as norteiam.

Para entender a noção, é preciso, antes de tudo, compreender o conceito de interação que está em sua base. Quando falamos de interação, não temos em mente apenas a situação de interatividade, em que um sujeito responde, de forma clara, explícita e direta, aos estímulos provenientes de outro ator social, seja ela em contextos de copresença ou de interatividade diferida. Defendemos uma ideia mais geral de interação, cujas bases se encontram na sociologia de Simmel, que a define como uma “ação mutuamente determinada” (Simmel, 1983, pSIMMEL, Georg. (1983), “Superordenação e subordinação / O efeito da subordinação sob o princípio das relações entre superiores e subordinados / A natureza sociológica do conflito / A competição”, in: E. Moraes Filho. (org.), Georg Simmel: sociologia. São Paulo, Ática.. 109). Em termos Weberianos, estamos preocupados com os comportamentos reciprocamente referidos que são atravessados por uma orientação mútua. Guiada por expectativas partilhadas, a interação não é uma junção de polos, mas um agir em conjunto, no qual sujeitos modelam uma resultante de modo partilhado.

É nesse sentido, e como tematizaram autores de diferentes linhagens teóricas, que entendemos as interações como um tipo de relação que precede seus termos (Certeau, 1994CERTEAU, Michel de. (1994), A invenção do Cotidiano. 9a edição, Petrópolis, Vozes.; Laclau e Mouffe, 2001LACLAU, Ernesto.; MOUFFE, Chantal. (2001), Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London, New York, Verso; Markell, 2003MARKELL, Patchen. (2003), Bound by recognition. Princeton, Princeton University Press.). Ao produzir e encarnar uma articulação entre elementos que se ligam, a interação é coproduzida por entes que se afetam e se modificam na própria relação. Portanto, como problematizava Louis Quéré (1991)QUÉRÉ, Louis. (1991), “D’um modèle épistemologique de la communication à um modèle praxéologique”. Réseaux, 46/47. Tradução mimeografada de Vera Lígia Westin e Lúcia Lamounier, não se deve tomar os sujeitos, suas intenções e a substância da relação como integralmente existentes a priori.

Dentre os vários tipos de interação, encontram-se as interações comunicativas, marcadas pela “presença do ‘um’ e do ‘outro’ em condições particulares – que é a construção de mensagens, a edificação de linguagens que vão exprimir e materializar simbolicamente o ‘estar junto a’” (França, 1995, pFRANÇA, Vera. (1995), “Comunicação e sociabilidade: o jornalismo mais além da informação”, GERAES, 47, 36-41.. 38). As interações comunicativas expressam um tipo de relação que é corporificada pela linguagem e que se encontra imersa em contextos sociohistóricos e culturais. Como destaca Quéré, a comunicação se faz no intercâmbio social, que “é interação entre sujeitos mediada pelo simbólico” (Quéré, 1982, pQUÉRÉ, Louis. (1982), Des miroirs équivoques: aux origines de la communication moderne. Paris, Aubier Montaigne.. 29).2 2 Traduzido pelo autor. Ela é uma ação conjunta entre integrantes de uma comunidade de linguagem e de ação (Quéré, 1991QUÉRÉ, Louis. (1991), “D’um modèle épistemologique de la communication à um modèle praxéologique”. Réseaux, 46/47. Tradução mimeografada de Vera Lígia Westin e Lúcia Lamounier).

É justamente por isso que esta definição não se limita à copresença ou à ideia de uma interatividade direta. A interação simbolicamente mediada pode ser diferida e difusa, se distendendo no tempo e no espaço, e se atualizando quando a intersubjetividade que atravessa os parceiros da interação é materializada (Braga, 2006BRAGA, José Luiz. (2006), A sociedade enfrenta sua mídia – dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo, Paulus.; Duarte, 2003DUARTE, Eduardo. (2003), “Por uma epistemologia da comunicação”, in M.I.V. Lopes. (org.), Epistemologia da comunicação. São Paulo, Loyola.). A interação produtora de comum emerge como o resultado de várias trocas que se atravessam, sendo que tanto os interlocutores como o contexto desempenham papeis fundamentais (Ferrara, 2003FERRARA, Lucrecia. (2003), “Epistemologia da comunicação: além do sujeito e aquém do objeto”, in M.I.V. Lopes. (org.), Epistemologia da comunicação. São Paulo, Loyola.; Charaudeau, 2006CHARAUDEAU, Patrick. (2006), Discurso das mídias. São Paulo, Contexto.). O central é perceber que os interlocutores estão enredados em uma teia de relações que não começa nem termina com o enunciado (França, 2006FRANÇA, Vera. (2006), “Sujeito da comunicação, sujeitos em comunicação”, in C. Guimarães; V. França. (org.), Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte, Autêntica.). É a enunciação, como prática situada, que dá carne à interação, afetando os termos que se colocam em relação.

A ideia de âmbitos interacionais parte desses pressupostos e aponta para a relevância do contexto na conformação da interação. Ainda que o contexto não tenha o poder de determinar a interação comunicativa, ele é muito relevante. O contexto emoldura e possibilita a partilha de subjetividades e as emergências dela decorrentes. Ele fornece parâmetros que moldam e possibilitam o estabelecimento da relação. A perspectiva evidencia que a interação social só se realiza em ato, sendo que a situação é um elemento estruturante desse ato.

A preocupação em entender a interação dentro de seu contexto remonta a várias correntes de estudo que se aproximam em virtude de suas orientações pragmatistas. Poderíamos citar, aqui, os estudos de Gabriel Tarde (1992)TARDE, Gabriel. (1992), A opinião das massas. São Paulo, Martins Fontes. sobre as conversações; a insistência de Mead (1934)MEAD, George Herbert. (1934), Mind Self and Society from the Standpoint of a Social Behaviorist. Chicago, University of Chicago. na necessidade de situar a interação em uma cadeia de relações sociais, atentando para as regras e expectativas que as regem; as análises psicológicas de Watzlawick et al. (1967)WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. (1967), Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo, Cultrix., que buscavam compreender as causas de distúrbios psíquicos a partir da atenção ao contexto de um comportamento; e o empenho de Garfinkel (1967)GARFINKEL, Harold. (1967),Studies in ethnomethodology.New Jersey, Prentice Hall. em evidenciar como o contexto interativo molda as manifestações simbólicas.

O trabalho de Erving Goffman, em particular, oferece especial contribuição nesse sentido. Herdeiro da Escola de Chicago e em diálogo com os pesquisadores de Palo Alto, Goffman se voltou ao estudo das interações sociais de um modo contextualizado, buscando captar a ordem da interação; ou seja, os padrões, regras e procedimentos que conduzem as ações reciprocamente referenciadas (Goffman, 1999GOFFMAN, Erving. (1999), Os momentos e os seus homens. Lisboa, Relógio d´Água Editores.). Esteja ele preocupado com a apresentação do self na vida cotidiana (Goffman, 1996GOFFMAN, Erving. (1996), A representação do eu na vida cotidiana. 7a edição, Petrópolis, Vozes.), com as práticas e adaptações secundárias de internos de instituições totais (Goffman, 2003GOFFMAN, Erving. (2003), Manicômios, prisões e conventos. 7a edição, São Paulo, Perspectiva.), ou com as interações mais corriqueiras e ordinárias (Goffman, 1986GOFFMAN, Erving. (1986), Frame analysis: an essay on the organization of experience. York, The Mapple Press.), há sempre uma busca pelos parâmetros que regem a interação social.

Nesta perspectiva, os atores sociais não são inteiramente livres para escolher conscientemente seus comportamentos. Se não se pode negligenciar a importância da agência dos atores sociais, é preciso perceber que ela ganha corpo em determinadas situações que estabelecem balizas e parâmetros, por serem atravessadas por acordos prévios e intersubjetivos. Está claro que a situação é atualizada, encarnada e construída pelos próprios atores que a interpretam por meio da seleção de quadros interpretativos que a dotam de sentido. No entanto, a existência de acordos prévios faz com que o próprio contexto convoque alguns enquadramentos primários, que são geralmente aplicados de modo imediato e natural. A situação convoca atores a agirem de certas formas, tendo em vista o histórico internalizado de interações anteriores e as affordances estruturadas por determinados contextos. A definição da situação é feita pelos participantes, mas embora não seja puramente inventada por eles. O contexto da interação oferece pistas fundamentais para que os indivíduos possam enquadrá-la.3 3 Para Goffman (1986), a ideia de frame se refere às estruturas que organizam a percepção da realidade e a ação dos sujeitos no mundo. Os interlocutores estão ligados por padrões interpretativos e expectativas recíprocas socialmente partilhados.

O trabalho de Mead (1934)MEAD, George Herbert. (1934), Mind Self and Society from the Standpoint of a Social Behaviorist. Chicago, University of Chicago., que é base do próprio Goffman, é fundamental para entender esta dinâmica da interação situada, que é estruturante da sociedade. Mead aprofundou a dimensão relacional para entender como os gestos significantes corporificam uma triangulação que liga não apenas os indivíduos diretamente envolvidos na interação, mas também a sociedade de forma mais ampla por meio da internalização do Outro Generalizado. Interações sociais são sempre marcadas por valores, expectativas e adaptações diante da antecipação de consequências, funcionando como espaços privilegiados para a compreensão do cruzamento de diversos fatores que atuam na própria construção dos sujeitos e na atualização das relações sociais. Ao chamar a atenção para esta dinâmica construtiva da interação, Mead viabiliza o questionamento de concepções linearizadas que tomam os entes relacionados como prontos e negligenciam a mediação situada na própria interação.

Louis Quéré mobiliza esse olhar pragmatista para questionar concepções representacionistas da linguagem e também a compartimentalização da interação simbólica em uma decupagem que isola seus elementos constitutivos (sujeitos, mensagem, canal, códigos etc.). O enfoque praxiológico de Quéré (1991)QUÉRÉ, Louis. (1991), “D’um modèle épistemologique de la communication à um modèle praxéologique”. Réseaux, 46/47. Tradução mimeografada de Vera Lígia Westin e Lúcia Lamounier ressalta a importância de pensar relacionalmente, visto que tais elementos não existem isoladamente. A comunicação não é uma transmissão de conteúdo, mas uma “‘atividade organizante’ conjugada dos atores sociais, pela qual um mundo comum, um ‘espaço público’, um campo prático, um sentido compartilhado de uma realidade comum são continuamente modelados e mantidos como condição e resultado da ação” (Quéré, 1991, pQUÉRÉ, Louis. (1991), “D’um modèle épistemologique de la communication à um modèle praxéologique”. Réseaux, 46/47. Tradução mimeografada de Vera Lígia Westin e Lúcia Lamounier. 2-3). A comunicação não é, pois, uma transmissão de mensagens, nem se restringe ao uso de palavras, mas é uma prática de criação de comum.

Essas ideias são muito importantes para entender o que aqui chamamos de âmbitos interacionais. A noção ajuda a pensar relacionalmente o modo como situações concretas funcionam como uma espécie de hub em que diversos fatores se encontram e se influenciam adaptativamente para produzir resultados. Âmbitos interacionais são instâncias de mediação em que termos em relação se transformam e se afetam (Martín-Barbero, 2006MARTÍN-BARBERO, Jesús (2006), Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 4a edição, Rio de Janeiro, Editora UFRJ.). Isso não implica em nenhuma forma de ingenuidade, aquiescência ou acomodação política. Quando saliento o primado da interação, não tenho em mente uma relação necessariamente aberta, altruísta ou destituída de assimetria. Interação não significa apaziguamento de conflito e de diferença ou horizontalidade, mas tão somente a percepção de que a associação é incontornável e definidora dos termos que se ligam, como há muito defendeu Dewey (1954)DEWEY, John. (1954), The public and its problems. Chicago, The Swallon Press..

O último passo conceitual que necessitamos para compreender a noção vem da sociosemiolinguística, defendida por Patrick Charaudeau (1996CHARAUDEAU, Patrick. (1996). “Para uma nova análise do discurso”, in A.D. Carneiro. (org.), O discurso da mídia. Rio de Janeiro, Oficina do autor.; 2006CHARAUDEAU, Patrick. (2006), Discurso das mídias. São Paulo, Contexto.) em oposição à linguística hard, aquela exclusivamente preocupada com aspectos textuais. Para Charaudeau, é fundamental compreender que o discurso tem um componente linguístico e um situacional, que “são simultaneamente autônomos, em sua origem, e interdependentes em seu efeito” (Charaudeau, 1996, pCHARAUDEAU, Patrick. (1996). “Para uma nova análise do discurso”, in A.D. Carneiro. (org.), O discurso da mídia. Rio de Janeiro, Oficina do autor.. 6).

Dessa forma, o contexto em que se inscreve uma interação não é apenas um pano de fundo, uma espécie de cenário ou um canal de trânsito de mensagens. O contexto, que se transforma em situação a partir da ação dos atores mutuamente referenciados, é constitutivo do discurso. Ele baliza as ações dos atores e os ajuda a dar sentido à relação em processo. Essa atenção à situação se manifesta claramente em suas discussões sobre a noção de contratos comunicativos, a qual diz da existência de pactos tácitos que regem as interações linguisticamente mediadas, regulando as expectativas recíprocas dos sujeitos comunicantes. Trata-se de regulações, convenções e normas que possibilitam e, em alguma medida, estruturam a interlocução. É exatamente por isso que o pesquisador chama a atenção para um conjunto de dados situacionais que são fundamentais no delineamento de um contrato, como o dispositivo ou ambiência da interação, a identidade dos interlocutores, a finalidade do intercâmbio linguageiro e o domínio do saber de que se trata (Charaudeau, 2006CHARAUDEAU, Patrick. (2006), Discurso das mídias. São Paulo, Contexto.). Ainda que esses elementos não pré-definam os sempre dinâmicos contratos (Maingueneau, 1996MAINGUENEAU, Dominique. (1996), Pragmática para o discurso literário. São Paulo, Martins Fontes.), eles impõem algumas restrições e convocam certas convenções que atravessam a enunciação.

A noção de contratos comunicativos ajuda a entender a utilidade do conceito aqui proposto de âmbitos interacionais. Estas instâncias discursivas configuram situações que balizam as interações ali processadas, embora não destituam os atores de agência. Âmbitos interacionais diversos condicionam e norteiam tipos de interações passíveis de ocorrência, por meio de suas affordances, configurações e regras formais e informais. Cabe aos atores, contudo, a apropriação de tais âmbitos e a atualização de seus contratos, havendo maior ou menor grau de liberdade em diferentes âmbitos.

3. Âmbitos interacionais para quê?

Apresentadas as bases que lastreiam a noção de âmbitos interacionais e delineados seus contornos mínimos, se faz, agora, necessário um segundo passo argumentativo que busca responder à seguinte questão: mas para quê serve o conceito em questão? Qual a sua utilidade? Nas subseções abaixo, busco apresentar um conjunto de aspectos que indicam um potencial valor heurístico e metodológico da noção.

3.1. A multifuncionalidade metodológica

O primeiro aspecto a ser enfatizado sobre a noção de âmbitos interacionais é sua utilidade na operacionalização de um amplo leque de fenômenos, bem como a possibilidade de compreensão de tais fenômenos em diversos níveis. Ao convocar o olhar para a centralidade do relacional, o conceito permite ver a natureza interacional de muitas unidades de análise frequentemente trabalhadas de forma monolítica. Âmbitos são instâncias, não necessariamente físicas, que balizam relações, sendo possível olhar para uma diversidade dessas instâncias na compreensão dos fenômenos.

Tome-se, por exemplo, um estudo sobre um dado movimento social. É possível estudar âmbitos interacionais em que tal movimento interage com diferentes facetas do Estado, adquirindo configurações e estratégias próprias. Também é possível observar âmbitos de interação de tal movimento com outros movimentos, contramovimentos e atores que disputam recursos. É possível, ainda, investigar o próprio movimento como âmbito interacional em que diversos fluxos heterogêneos se encontram e se sobrepõem. O fundamental não é o ponto de entrada como totalizador de um conhecimento, mas a percepção de que esse ponto, em qualquer que seja o nível analítico, precisa ser pensado relacionalmente. É absolutamente inviável investigar todas as interações estruturadoras de qualquer fenômeno social. O essencial é compreender que recortes específicos fazem parte de tramas relacionais mais amplas, adotando um olhar apto a compreender os desdobramentos e linhas de força de relações que se estendem para além do recorte em questão.

Ainda no que concerne às contribuições metodológicas do conceito, vale destacar que ele permite olhar para diferentes tipos de âmbitos, buscando entender os formatos relacionais que são induzidos por eles. É possível olhar para instâncias de copresença, instâncias diferidas no tempo, ou instâncias espalhadas espacialmente. Há instâncias concretas e localizadas, ao passo que outras são mais etéreas ou abstratas. A questão central é pensar: (1) que relações atravessam a configuração deste âmbito específico?; e (2) que características deste âmbito ajudam a entender as relações aí estabelecidas?

Um exemplo pode tornar as coisas mais concretas aqui. Para tanto, recorro ao próprio estudo em que formulei a proposta de âmbitos interacionais pela primeira vez (Mendonça, 2009MENDONÇA, Ricardo Fabrino. (2009), Reconhecimento e Deliberação: a luta das pessoas atingidas pela hanseníase m diferentes âmbitos interacionais. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.). À época, procurava compreender como se estruturam as reivindicações públicas de pessoas atingidas pela hanseníase. Doença milenar e estigmatizante, a hanseníase gerou o encarceramento massivo e o isolamento compulsório de centenas de milhares de indivíduos ao longo da história. Curável desde os anos 1940, a enfermidade afetou a vida de pessoas que foram sistematicamente atravessadas por práticas de desrespeito e tortura, que vão da violência física à realização de experimentos, passando pela perda de liberdades e da condição de cidadania, bem como pelo esfacelamento de laços afetivos e familiares. No Brasil, a história dessas pessoas é marcada não apenas pela luta para a reabertura dos antigos hospitais colônia e contra o estigma, mas, também, pelo direito de seguirem suas vidas nos espaços a que foram conduzidas em nome da saúde pública e também pelo direito à indenizações e pensões.

O projeto de pesquisa em questão buscava investigar três âmbitos interacionais: (1) espaços de conversação em antigos hospitais colônia; (2) um jornal editado pelo Movimento de Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) por duas décadas; e (3) matérias publicadas na grande mídia sobre hanseníase. Cada âmbito tem características e regras interacionais muito peculiares. No primeiro deles, esperava observar, em conversas informais em situação de copresença, as formas como as pessoas que se conheciam tematizavam experiências de sofrimento e desrespeito vividas cotidianamente. No segundo âmbito, me debrucei sobre a tentativa de um movimento organizar e sistematizar demandas, construindo argumentos que permitiam a mobilização interna e a vocalização externa. Pensar uma publicação de um movimento social como âmbito interacional significa entendê-la não como uma voz única e intencional, mas como uma construção que é profundamente atravessada pelas características do meio e também, como sempre, pelas audiências projetadas. Ao projetar a interlocução interna, o movimento constrói reivindicações de representação inscritas nesta expressão. Por fim, no terceiro âmbito, busquei a forma como o tema da hanseníase ganhava visibilidade em arenas mais visíveis. Com vozes não centralmente controladas pelo movimento e interagindo com um público mais amplo, o texto do jornal abarca uma confluência de interesses, enquadramentos e perspectivas. Hipoteticamente, meu interesse era buscar aí a forma como as vozes de pessoas atingidas pela hanseníase eram mobilizadas pelos jornalistas para a construção de argumentos que fariam sentido para um público mais amplo.

Metodologicamente, a noção de âmbitos interacionais me permitiu pensar as características próprias que balizam as interações processadas em diferentes situações, contemplando não apenas as intenções, mas as audiências e as condições de produção e de recepção a atravessar os discursos. Há contratos comunicativos diferentes em cada uma dessas instâncias, o que molda, sem determinar, comportamentos, gramáticas, regras interacionais, expectativas e audiências projetadas. O estudo em questão procurou não apenas cartografar relações no interior de cada âmbito, mas entender como a articulação entre âmbitos poderia, hipoteticamente, abarcar um processo mais amplo de generalização de questões, capaz de tematizar problemas públicos. Isto porque fenômenos complexos atravessam contextos distintos e essas múltiplas mediações têm consequências mais amplas do que aquelas observadas em cada âmbito.4 4 Quando se pensa, por exemplo, todo o debate contemporâneo acerca da ideia de sistemas deliberativos, ele se ancora fundamentalmente na ideia de processos distendidos que necessitam de características de diferentes contextos (Maia et al., 2023; Bächtiger e Parkinson, 2019; Parkinson e Mansbridge, 2012; Elstub et al., 2018).

3.2. O primado do relacional

O segundo aspecto a ser enfatizado é que a noção de âmbitos interacionais é profunda e inerentemente relacional. Trata-se de um conceito que enfatiza que os fenômenos só podem ser estudados relacionalmente porque os entes que o constituem inexistem fora da articulação que os liga. Com isso, o conceito deixa clara a natureza dinâmica dos elementos em interação, não entendendo ser possível concebê-los isoladamente.

Ao fazê-lo, o conceito reenquadra o foco de análise necessária ao estudo de fenômenos sociopolíticos. Não se trata de estudar como atores específicos, e existentes a priori, se colocam em relação, mas de entender como tramas relacionais, que ganham concretude em espaços e tempos específicos, ajudam a entender esses próprios atores, suas contingências, tensões e transformações. Nega-se, assim, e de saída, o individualismo metodológico, bem como sua expressão coletivizada. O foco não está nos cálculos singulares de atores (individuais ou coletivos) para estabelecer relações com outros atores (individuais ou coletivos) em certas arenas, mas na compreensão de como dinâmicas relacionais materializadas em certos espaços permitem compreender como atores (individuais ou coletivos) se configuram e agem.

Mais uma vez, um exemplo concreto pode ajudar a clarear esta questão. Em estudo recente, busquei compreender os protestos de 2013 no Brasil. Dentre as questões de pesquisa que me motivavam, estava a compreensão da construção de algum senso de identidade e coletividade naquele fenômeno caótico e heterogêneo. No entanto, diferentemente de pesquisadoras e pesquisadores que tentaram explicar os protestos a partir de sua composição (Singer, 2014SINGER, André. (2014), “Rebellion in Brazil”. New Left Review, 85:19-37.; Alonso e Mische, 2017ALONSO, Angela; MISCHE, Ann. (2017), “Changing repertoires and partisan ambivalence in the new Brazilian protests”. Bulletin of Latin American Research, 36, 2:144-159. DOI: 10.1111/blar.12470.
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), procurei pensá-los como um âmbito interacional que viabilizava a própria conformação de identidades e agências (Mendonça e Bustamante, 2020; Mendonça et al., 2019MENDONÇA, Ricardo Fabrino; ERCAN, Selen; OZGUC, Umut; REIS, Stephanie; SIMÕES, Paula Guimarães. (2019), “Protests as Events: The Symbolic Struggles in 2013 Demonstrations in Turkey and Brazil”. Revista de Sociologia e Política, 27, 69, e001. DOI: https://doi.org/10.1590/1678987319276901.
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; Marques e Mendonça, 2018MARQUES, Angela Cristina Salgueiro; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. (2018), “A política como (des)construção de sujeitos: desencaixes e rearticulações identitárias em protestos multitudinários contemporâneos”. Galáxia, 37:41-54. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-2554133855.
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). Nesse sentido, é possível compreender o papel transformador das próprias relações ali estabelecidas, o deslocamento dos atores e a reconfiguração de identificações, sem assumir que o evento em si é nada mais do que um encontro do que já existe.

Alonso e Mische (2017)ALONSO, Angela; MISCHE, Ann. (2017), “Changing repertoires and partisan ambivalence in the new Brazilian protests”. Bulletin of Latin American Research, 36, 2:144-159. DOI: 10.1111/blar.12470.
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, por exemplo, explicam 2013 como uma sobreposição de repertórios patrióticos, nacionalistas e socialistas, enquanto eu busco entender como as relações viabilizadas por tal instância de protesto possibilitaram o surgimento de algo distinto, com a apropriação de práticas típicas de grupos autonomistas, por atores com diferentes posições políticas, mas que se compuseram como coletivo efêmero e heterogêneo no início das jornadas (Mendonça, 2017MENDONÇA, Ricardo Fabrino. (2017), “Singularidade e identidade nas manifestações de 2013”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 66:130-159. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i66p130-159.
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).

Está claro que há ampla literatura buscando chamar a atenção para o devir identitário em tramas relacionais (Asenbaum, 2021ASENBAUM, Hans. (2021). “The politics of becoming: Disidentification as radical democratic practice”.European Journal of Social Theory, 24, 1:86-104. DOI:10.1177/1368431020935781.
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; Laclau e Mouffe, 2001LACLAU, Ernesto.; MOUFFE, Chantal. (2001), Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London, New York, Verso; Markell, 2003MARKELL, Patchen. (2003), Bound by recognition. Princeton, Princeton University Press.; Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques. (1995), La Mésentente: politique et philosophie. Paris, Galilée.). Tais discussões evidenciam que os atores não pré-existem aos conflitos em que se inserem, mas são transformados por eles. Ao propor a noção de âmbitos interacionais, não temos, portanto, e obviamente, nenhuma presunção em reivindicar uma inovação conceitual na compreensão dos deslizamentos identitários a configurar conflitos. Entendemos, contudo, que tal noção funciona como operador metodológico a enfatizar a necessidade de pensar primeiro, e, antes de tudo, na dimensão situada e interacional dos elementos que compõem fenômenos sociais. A noção está assentada no primado do relacional e, assim, questiona visões fixas e estanques dos elementos sociológicos a estruturar processos sociais.

3.3. O reconhecimento da centralidade da linguagem

O terceiro elemento a indicar a proficuidade da noção de âmbitos interacionais é o reconhecimento da absoluta centralidade da linguagem para o estudo de relações sociais. Não é obra do acaso que as abordagens relacionais nas Ciências Sociais sejam fruto direto da virada linguística. A partir do reconhecimento da linguagem como prática mediadora de relações, ela se torna objeto privilegiado de observação das maneiras por meio das quais tais elos se tornam observáveis.

Importante deixar claro, aqui, que não entendemos por linguagem apenas o uso gramaticalizado de palavras. Operamos com uma concepção ampliada que pensa gestos significantes em diversos formatos e com múltiplas dimensões (Mendonça et al., 2022MENDONÇA, Ricardo Fabrino.; ERCAN, Selen.; ASENBAUM, Hans. (2022), “More than Words: A Multidimensional Approach to Deliberative Democracy”. Political Studies, 70, 1:153-172. DOI: https://doi.org/10.1177/0032321720950561.
https://doi.org/10.1177/0032321720950561...
). A linguagem inclui dimensões verbais e extra-verbais de expressão, que se entrelaçam de formas complexas. Ademais, ela deve ser pensada como prática, que envolve formas de agência. Por meio da linguagem fazemos coisas, como há muito discutiu Austin (1962) e aAUSTIN, John Langshaw. (1962),How to Do Things with Words. Cambridge, Harvard University Press. linhagem pragmática dele derivada. Tais coisas são sempre construídas relacionalmente, na medida em que a linguagem é sempre uma “uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (Bakhtin, 1979, pBAKHTIN, Michail. (1979), Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo, Hucitec.. 113).

É justamente por isso que o estudo da linguagem não pode se centrar apenas em intenções ou sentimentos individualizados de quem realiza o ato de enunciação. Os interlocutores projetados pelos enunciadores, assim como as audiências concretas que efetivamente lidam com a enunciação, devem ser pensados como fatores a atravessar a enunciação. A produção de gestos significantes nunca é um ato isolado, mas uma prática necessariamente relacional.

Ao focar nas interações comunicativas, a noção de âmbitos interacionais enfoca a corporificação situada de relações sociais. Ao fazê-lo, traz para o cerne do debate a importância de se considerar audiências projetadas e efetivas nas dinâmicas interativas que conformam processos de produção simbólica (Charaudeau, 2006CHARAUDEAU, Patrick. (2006), Discurso das mídias. São Paulo, Contexto.). É num complexo jogo de cruzamentos que a linguagem toma forma, e o conceito de âmbitos interacionais permite à investigadora atentar para tais dinâmicas, mesmo que estudando um de seus fragmentos.

Como nas seções anteriores, algumas ilustrações podem ajudar a pensar esta questão de forma mais concreta. A primeira delas aparece em pesquisa que buscou entender discursos proferidos por deputados estaduais na tribuna do plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (Barreto e Mendonça, 2019BARRETO, Rachel; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. (2019), “Multilayered Representation: Taking Multiple Discursive Addressings Seriously in Politics”, Representation, 55, 3:285-301. DOI: 10.1080/00344893.2019.1679238.
https://doi.org/10.1080/00344893.2019.16...
). A partir da perspectiva construtivista de representação (Saward, 2010SAWARD, Michael. (2010), The Representative Claim. Oxford, Oxford University Press.), o trabalho buscava compreender processos discursivos de reivindicação de representatividade em um âmbito interacional que é marcado pelo atravessamento de múltiplas audiências. Televisionados nos canais institucionais da casa parlamentar, recortados em fragmentos compartilháveis em redes sociais e diretamente ouvidos por outros deputados presentes, os discursos proferidos na tribuna endereçam, simultaneamente, diversas audiências. Investigar tais discursos e suas reivindicações de representação requer compreender esses vários endereçamentos simultâneos. Nesse sentido, a noção de âmbitos interacionais chama a atenção para dimensões relacionais e acionais da linguagem, para além dos tradicionais estudos de análise de conteúdo que reduzem discursos a pacotes de conteúdos formulados por agentes estrategicamente orientados. O conceito de âmbitos interacionais permite ir além das intenções e estratégias individuais para compreender como discursos são produtos relacionais e situados. As deputadas e deputados que enunciam proferimentos naquele âmbito, o fazem em interação com muitos outros atores e de acordo com as gramáticas e regras que balizam as estratégias ali construídas. Nesse âmbito de diversos níveis, realizam-se vários endereçamentos que permitem pensar mais complexamente as reivindicações de representação.

Outro estudo que convém mencionar aqui enfocou a prática cotidiana de envio de memes de bom dia pelo WhatsApp no Brasil (Mendonça e Chagas, 2021MENDONÇA, Ricardo Fabrino; CHAGAS, Viktor. (2021), Bom Dia! A frenética política apolítica dos Memes de WhatsApp. 9ª Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política, em formato remoto, 24 a 28 de maio.). Entendendo o WhatsApp como um âmbito interacional marcado por certas affordances que balizam as interações ali estabelecidas, procuramos entender memes para além da dimensão de conteúdo, mas como atos de enunciação em certo contexto. O WhatsApp é uma plataforma essencialmente marcada pela interface simples e amigável que permite compartilhamentos rápidos em redes semiprivadas, que não são totalmente visíveis nem rastreáveis. A lógica da plataforma estimula certa sensação de anonimato. Ademais, expressões fortemente marcadas por dimensões extra-verbais são amplamente compartilhadas entre redes diversas, com destaque para memes, stickers e GIFs. Por fim, há de se salientar como esse âmbito interacional é marcado por lógicas tribalistas/comunitaristas, fomentando a agregação em grupos diversos sobre tópicos variados.

Grupos de família, de condomínio, de trabalho, de membros de uma mesma igreja, de fãs de uma celebridade, de torcedores de um clube, de pais e mães de escola, de ex-colegas de colégio, de compradores de produtos orgânicos, de ciclistas de fim de semana ou de venda de produtos usados de bebês são alguns exemplos das muitas comunidades que podem ocupar o dia a dia de sujeitos num interminável fluxo de mensagens (Mendonça e Chagas, 2021, pMENDONÇA, Ricardo Fabrino; CHAGAS, Viktor. (2021), Bom Dia! A frenética política apolítica dos Memes de WhatsApp. 9ª Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política, em formato remoto, 24 a 28 de maio.. 7)

Assim sendo, centenas de milhares de pessoas compartilham, diariamente, memes de Bom Dia, alimentando redes inorgânicas de comunicação e difundindo estéticas e ideias profundamente marcadas pelo nacionalismo, pela religiosidade e pela meritocracia de autoajuda. Tais mensagens nutrem a exposição inadvertida a enquadramentos que podem ser mobilizados politicamente, abastecendo (todos os dias e sem interrupções) redes comunicacionais profundamente capilarizadas. Pesquisando memes de Bom Dia enviados em grupos bolsonaristas, pudemos observar como esse âmbito interacional baliza certos tipos de enunciação que ajudam a dotar de sentido uma prática tão inocente quanto saudar familiares cotidianamente.

3.4. Comparação com conceitos semelhantes

O quarto elemento a indicar a proficuidade da noção de âmbitos interacionais deriva da sua comparação a conceitos correlatos, voltados a salientar a dimensão relacional de fenômenos sociais. Há pelo menos três conceitos muito usados com propósitos similares.

O primeiro deles é o de campo, delineado por Bourdieu, mas amplamente trabalhado e adaptado nas Ciências Sociais. A noção de campo serve para delimitar espaços estruturados, relativamente autônomos de práticas que orientam as ações e conflitos entre atores na busca por capital – de diferentes tipos (Bourdieu, 2005BOURDIEU, Pierre. (2005), “The political field, the social science field, and the journalistic field”, in R. Benson; E. Neveu. (org.), Bourdieu and the journalistic field. Cambridge, Polity Press.). Campos têm gramáticas próprias, atores específicos e lógicas particulares, balizando as relações estratégicas entre os atores na competição por posições na hierarquia daquele espaço. Trata-se de microcosmos no espaço social, que estruturam competições com lógicas próprias.

Uma derivação da noção ganhou destaque na última década ao propor o conceito de campos de ação estratégica (Fligstein e McAdam, 2012FLIGSTEIN, Neil; MCADAM, Doug. (2012), A theory of fields. New York, Oxford University Press.) como matriz para entender fenômenos sociais, sendo particularmente mobilizados por estudos na subárea de movimentos sociais. A matriz parte dos elementos definidores da ideia de campo, mas tenta chamar mais a atenção para a interação entre campos, além das interações internas a cada campo. Além disso, salienta a organização de formas de cooperação e redes de apoio entre incumbentes (que ocupam posições hierarquicamente superiores) e desafiadores (que buscam desafiar as regras forjadas para assegurar o poder dos outros). Há, assim, relações de cooperação e de confronto atravessando os campos estratégicos de ação.

Em que se pese a riqueza e a influência da noção de campo, bem como a multiplicidade de interpretações e aplicações da mesma, ela sofre de alguns problemas. O primeiro deles é a visão por demais estruturada que, frequentemente, não dá conta de perceber agência na construção das relações que moldam os atores retroativamente. Além disso, mesmo que haja movimentos para pensar as relações entre campos, a leitura moldada pelo conceito tende a ser compartimentada, tendo dificuldades para a compreensão dos atravessamentos, sobreposições e tensões entre campos, algo para o qual Lahire (2002)LAHIRE, Bernard. (2002), “Campo, fuera de campo e contracampo”, Colección Pedagógica Universitaria, 37-38:1-37. Disponível em https://biblat.unam.mx/pt/revista/coleccion-pedagogica-universitaria/articulo/campo-fuera-de-campo-contracampo, consultado em 17/10/2023.
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chamou atenção. O foco na disputa por capitais também tende a negligenciar outras formas de sociabilidade e relação, reduzindo a existência humana à competição no interior de microcosmos. Por fim, há de se salientar a visão limitada de Bourdieu (2002)BOURDIEU, Pierre. (2002), O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. sobre a linguagem, que atravessa as operacionalizações do conceito. Bourdieu entende a linguagem como uma espécie de tradução da posição – de classe – ocupada pelo sujeito na sociedade, mediando a competição por capital simbólico.

A noção de âmbitos interacionais oferece um operador mais micro para estudar relações entre sujeitos, sem cair na tentação de estruturá-las de saída ou de dirigir o olhar apenas para a competição entre incumbentes e desafiadores na estruturação das regras de competição por capitais. Ademais, a noção parte de uma conceituação mais complexa de linguagem, para entendê-la como entrelugar acional que permite aos atores estabelecerem relações. É nesse sentido que o foco na linguagem pode ajudar a entender relações forjando os entes relacionados, mais do que a disputa relacional entre posições pré-configuradas.

O segundo conceito para o qual gostaria de chamar a atenção, me parece mais promissor. Trata-se da noção de arenas, tal como explorada por Jasper (2014)JASPER, James. (2014), “Playing the Game”, in J.M. Jasper; J.W. Duyvendak. (org.), Players and Arenas. Amsterdam: Amsterdam University Press..

Uma arena é um conjunto de regras e recursos que permitem ou encorajam certos tipos de interações a prosseguir com algo em jogo. Os jogadores dentro de uma arena monitoram as ações uns dos outros, embora essa capacidade nem sempre seja distribuída igualmente. Os jogadores podem desempenhar diferentes papeis na mesma arena (como jogadores ativos, jogadores reservas, árbitros, assistentes e gerentes, audiências, gerentes de bastidores), regidos por diferentes regras e normas. Alguns movimentos estratégicos são feitos claramente dentro das regras do jogo, outros são feitos para mudar, ignorar ou distorcer essas regras (Jasper, 2014, pJASPER, James. (2014), “Playing the Game”, in J.M. Jasper; J.W. Duyvendak. (org.), Players and Arenas. Amsterdam: Amsterdam University Press.. 14).5 5 traduzido pelo autor.

O conceito de arenas tem a vantagem de combinar a atenção à agência dos atores com o reconhecimento de regras e recursos que balizam suas ações. Ademais, o conceito oferece uma plasticidade maior à analista do que o conceito de campo, permitindo a operacionalização em um conjunto diverso e mais amplo de contextos. Ressalte-se, ainda, sua maior dinamicidade para captar vários tipos de interação. Arenas não são estudadas apenas como espaços estruturados de posição em que atores competem por capitais.

Apesar de todos esses elementos que se alinham ao intuito da proposição do conceito de âmbitos interacionais, a noção de arenas peca em dois sentidos. Em primeiro lugar, ela toma as arenas como espaços de interação de atores estabelecidos, sem ressaltar a forma como a relação precede seus termos. Arenas são instâncias de encontro de players, nos termos de Jasper, e não os espaços em que tais players se constroem na relação com outros players a partir de certas regras. Em segundo lugar, a noção de arenas, embora dialogando com ideias pragmatistas, dá pouco peso à linguagem e à pragmática da comunicação. Entendemos, assim, que a noção de âmbitos interacionais aprofunda na compreensão da linguagem e dos contratos comunicativos, dando um passo adicional àquele que embasa o uso da ideia de arenas.

Isto nos leva ao terceiro conceito a ser explorado. Nos debates processados no interior da literatura deliberacionista, é recorrente se referir a esferas discursivas para analisar a possibilidade de sistemas deliberativos (Hendriks, 2006HENDRIKS, Carolyn. (2006), “Integrated Deliberation: Reconciling Civil Society's Dual Role in Deliberative Democracy”. Political Studies, 54, 3:486-508. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1467-9248.2006.00612.x.
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, Parkinson e Mansbridge, 2012PARKINSON, John.; MANSBRIDGE, Jane. (2012), Deliberative Systems Deliberative Democracy at the Large Scale. Cambridge, Cambridge University Press.). Esferas discursivas são fóruns em que os atores apresentam suas posições e promovem seus discursos. Elas são lugares que oferecem diferentes tipos de contribuições a sistemas deliberativos, podendo ser sequenciadas (Goodin, 2008GOODIN, Robert. (2008), Innovating Democracy: democratic theory and practice after the deliberative turn. Cambridge, Cambridge University Press.) ou articuladas para que conteúdos possam ser “transmitidos” de uma esfera para outra (Boswell et al., 2016BOSWELL, John; HENDRIKS, Carolyn; ERCAN, Selen. (2016), “Message received? Examining transmission in deliberative systems”,Critical Policy Studies, 10, 3:263-283. DOI: https://doi.org/10.1080/19460171.2016.1188712.
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). Frequentemente, contudo, não fica claro como estas esferas são constitutivas dos discursos ali veiculados e dos atores que os formulam. Deliberacionistas, curiosamente, tendem a trabalhar pouco a dimensão constitutiva da linguagem e, frequentemente, negligenciam o papel das audiências na prática de enunciação (Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, Norman. (2001), Discurso e mudança social. Brasília, Editora UnB.; Bakhtin, 1979BAKHTIN, Michail. (1979), Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo, Hucitec.). O resultado, uma vez mais, é uma leitura pobre da dimensão linguageira da política, reduzindo o estudo à observação de temas e argumentos transpostos de uma esfera a outra.

A definição de âmbitos interacionais destaca que esses são instâncias marcadas por certos padrões, que guiam a interação ao mesmo tempo em que são atualizados por ela. Justamente por isso, a noção complexifica a percepção das relações não apenas entre os entes (atores), práticas, discursos e affordances mediados pelo âmbito interacional, mas também entre âmbitos interacionais. Discursos não são simplesmente transmitidos de uma esfera a outra como pacotes de conteúdos em busca de audiências mais amplas, mas são reconfigurados em âmbitos distintos que operam com balizas diferentes.

Dito isto, cabe-me um último movimento nesta seção. Entendemos que o conceito de âmbitos interacionais também pode trazer contribuições à reflexão enformada por uma das noções mais mobilizadas para pensar a dinâmica relacional entre Estado e sociedade civil na Ciência Política brasileira. Refiro-me, aqui, ao conceito de repertórios de interação, proposto por Abers et al., (2014)ABERS, Rebecca; SERAFIM, Lizandra; TATAGIBA, Luciana. (2014), “Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula”. Dados, 57, 2:325-357. DOI: https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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. Adaptado da noção de repertórios de confronto, desenvolvida por Charles Tilly (1995), oTILLY, Charles. (1995), “Contentious repertoires in Great Britain, 1758-1834”, in M. Traugott. (org.), Repertoires and cycles of collective action. Durham, Duke University Press. conceito tem sido amplamente empregado para discutir várias possibilidades de interação entre agentes do Estado e movimentos sociais.

Abers et al., (2014)ABERS, Rebecca; SERAFIM, Lizandra; TATAGIBA, Luciana. (2014), “Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula”. Dados, 57, 2:325-357. DOI: https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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assinalam a existência de, ao menos, quatro rotinas comuns de interação entre Estado e sociedade no Brasil, a saber: (1) protestos e ação direta; (2) participação institucionalizada; (3) política de proximidade; e (4) ocupação de cargos na burocracia. As autoras empregam esta tipologia para estudar três setores de políticas no governo Lula (desenvolvimento agrário, política urbana e segurança pública), salientando diferentes combinações de repertórios. “Entender a construção concreta de novas rotinas de conflito, negociação e participação, requer examinar como as redes que obtiveram acesso ao Estado em momentos particulares trabalharam com práticas históricas de interação Estado-sociedade em cada área da política” (Abers et al., 2014, pABERS, Rebecca; SERAFIM, Lizandra; TATAGIBA, Luciana. (2014), “Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula”. Dados, 57, 2:325-357. DOI: https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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. 348).

A ideia de repertórios de interação chama a atenção, assim, não apenas para as várias formas pelas quais atores da sociedade civil interagem com facetas do Estado, mas também para o modo como essas formas são historicamente construídas, articulando agência e estrutura em um modelo analítico sensível aos constrangimentos contextuais, mas também à agência dos atores. O conceito tem dificuldade em captar, todavia, a maneira como as escolhas feitas pelos atores não são constrangidas apenas por fatores históricos, mas por balizas interacionais que são atualizadas nos âmbitos em que a interface entre Estado e sociedade efetivamente se concretizam. Âmbitos são permeados por affordances que são atualizadas por práticas encarnadas. Ademais, a mobilização da ideia de repertórios diz pouco sobre a forma como públicos e audiências (os endereçados) são parte constitutiva das ações, das performances e dos atores que agem. Isto porque a ideia coloca pouco peso na construção discursiva da cena comum que liga e desloca os atores. Assim, e uma vez mais, tem-se o foco em relações de entes que parecem pré-configurados e que fazem suas escolhas táticas para estabelecer tal relação, deixando em segundo plano a premissa relacional de que a relação precede seus termos.

É nesse sentido que o conceito de âmbitos interacionais pode trazer contribuições ao estudo de repertórios de interação. Compreender como atores constroem, de forma situada, relações sociais em uma dinâmica que os articula, pode ajudar a entender como repertórios se configuram e se atualizam ao longo de processos em que atores se constroem e se deslocam no interior de quadros e gramáticas interacionais. Era exatamente esse ponto que Dewey (1954)DEWEY, John. (1954), The public and its problems. Chicago, The Swallon Press. tinha em mente ao definir tanto o Estado quanto os públicos como construções dinâmicas e relacionais. E, não por acaso, Dewey colocava tanto peso no papel da comunicação para entender a dinâmica de construção da cena comum, que nutria a transformação continuada desses entes. Públicos são efêmeros em Dewey, porque se refazem e se deslocam nos âmbitos interacionais que ajudam a construir, mas que os constrangem com suas balizas, regras, lógicas, affordances e contratos. O Estado, com sua institucionalidade e sua necessidade de permanência, também tem um quê de efemeridade, visto se manifestar, se expressar e se refazer na interação com públicos que se movem. A interação é, necessariamente, deslocadora, porque ela precede seus termos.

4. Considerações finais

Este artigo apresentou a noção de âmbitos interacionais como um operador conceitual e metodológico para a compreensão relacional de fenômenos políticos. Procurando contribuir para a crescente atenção a enfoques relacionais no campo de estudos sobre participação política, ele faz um retorno às premissas pragmatistas da virada linguística para delinear a ideia de âmbitos interacionais, como esferas situadas de interação, balizadas por gramáticas e contratos comunicativos, que ajudam a dotar de sentido as relações ali estabelecidas. Compreender os contextos interacionais é algo de suma relevância para que se entendam as relações ali estabelecidas e os discursos ali estruturados.

Na sequência, o artigo argumentou quais seriam os benefícios de emprego do conceito. Defendeu-se, em primeiro lugar, que sua multifuncionalidade metodológica permite atenção a diferentes fenômenos e contextos, bem como à interação entre diferentes contextos de relações na produção de consequências agregadas. Como conceito abstrato e metafórico, âmbitos não se resumem a contextos espaciais, mas dizem de gramáticas e lógicas que atravessam interações de formas diversas. Em segundo lugar, argumentou-se que o conceito de âmbitos interacionais é inerentemente marcado pelo primado do relacional, partindo da análise da relação para pensar entes, em vez de partir dos entes para pensar suas relações. A terceira contribuição salientada tem a ver com a centralidade da linguagem – concebida de forma ampla – no estabelecimento de relações sociais, chamando a atenção para as mediações simbólicas a atravessar a tessitura de comuns e para o modo como interlocutores se atravessam nas práticas de enunciação. Para expor mais concretamente cada uma destas contribuições, o artigo buscou exemplos de investigações anteriores, ilustrando as implicações de um olhar relacional marcado pela ideia de âmbitos interacionais.

Por fim, buscou-se cotejar o conceito com noções semelhantes, muito empregadas em trabalhos da Ciência Política que são atentos à dimensão relacional dos fenômenos: campo, arenas e esferas discursivas. Entende-se que o conceito de âmbitos interacionais resguarda as ricas contribuições de tais conceitos, sem cair em algumas de suas restrições. Argumentou-se, ainda, que ele pode trazer contribuições às pesquisas voltadas a pensar repertórios de interação entre Estado e Sociedade, dialogando harmonicamente com suas premissas conceituais, mas chamando a atenção para pontos que não têm sido muito explorados na compreensão de dinâmicas relacionais entre agentes estatais e atores da sociedade civil, e que ajudam a entender a conformação de tais repertórios.

Não se deseja, contudo, defender a noção de âmbitos interacionais como panaceia para todas as dificuldades inerentes à realização de análises relacionais. É extremamente complicado estudar fenômenos relacionalmente e há diversos métodos, técnicas e conceitos necessários para explorar a multidimensionalidade das relações a permear fenômenos sociopolíticos. Propõe-se que o conceito de âmbito seja um dos operadores a ser considerado na densa caixa de ferramentas necessárias para captar a contingência dinâmica do relacional.

  • 1
    Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na AT de Participação Política do 13º. Encontro da ABCP, realizada na UFG entre 19 e 23 de setembro de 2022. Sou grato aos participantes do evento pelas contribuições e comentários. Também sou grato a Rousiley Maia e a Vera França pelas discussões ao longo de muitos anos. Agradeço, ainda, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (código 001), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 309154/2020-0) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) (CSA - PPM-00284-17) pelo apoio de pesquisa.
  • 2
    Traduzido pelo autor.
  • 3
    Para Goffman (1986), aGOFFMAN, Erving. (1986), Frame analysis: an essay on the organization of experience. York, The Mapple Press. ideia de frame se refere às estruturas que organizam a percepção da realidade e a ação dos sujeitos no mundo. Os interlocutores estão ligados por padrões interpretativos e expectativas recíprocas socialmente partilhados.
  • 4
    Quando se pensa, por exemplo, todo o debate contemporâneo acerca da ideia de sistemas deliberativos, ele se ancora fundamentalmente na ideia de processos distendidos que necessitam de características de diferentes contextos (Maia et al., 2023MAIA, Rousiley; HAUBER, Gabriela; CHOUCAIR, Tariq. (2023), The Deliberative System and Inter-Connected Media in Times of Uncertainty. Londres, Palgrave Macmillan; Bächtiger e Parkinson, 2019BÄCHTIGER, Andre; PARKINSON, John. (2019), Mapping and measuring deliberation: towards a new deliberative quality. Oxford, Oxford University Press.; Parkinson e Mansbridge, 2012PARKINSON, John.; MANSBRIDGE, Jane. (2012), Deliberative Systems Deliberative Democracy at the Large Scale. Cambridge, Cambridge University Press.; Elstub et al., 2018ELSTUB, Stephen; ERCAN, Selen.; MENDONÇA, Ricardo Fabrino. (2018), Deliberative Systems in Theory and Practice. New York, Routledge.).
  • 5
    traduzido pelo autor.
  • DOI: 10.1590/3811035/2023.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2022
  • Aceito
    26 Set 2023
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