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Política local e coordenação intrapartidária nas dobradas eleitorais paulistanas

Local politics and intraparty coordination in the electoral dobradas in São Paulo

Resumos

Resumo

Pesquisas tem apontado para a transferência de votos de políticos locais para aqueles concorrendo a cargos estaduais e nacionais. Alguns estudos supõem que o clientelismo explicaria o efeito observado, enquanto outros atribuem a transferência aos partidos, que promoveriam coordenação interna institucionalmente. Em ambos os casos, a inferência tem sido destacadamente dedutiva, carecendo de exame dos mecanismos concretos em operação na articulação intrapartidária em eleições. Nesse artigo, analisamos as práticas e relações constitutivas da mobilização política eleitoral de um vereador em São Paulo em duas eleições (2018 e 2020). Partindo de detalhado levantamento de campo com entrevistas e observação etnográfica das práticas dos candidatos e seus operadores em amplo espectro político, mostramos o papel central da política local na coordenação intrapartidária. Mandatos, brokers e redes de mobilização geram coordenação por meio de estruturas de vínculos que conectam atores localmente, ao mesmo tempo que ligam o sistema político verticalmente pelas chamadas dobradas eleitorais, gerando coordenação partidária e eleitoral. Mostramos como a operação da política local cria incentivos e trocas políticas de apoio eleitoral baseados em relações pessoais, mas mediadas pelas estruturas de médio alcance de mandatos e redes. Embora essas sejam influenciadas pelas estruturas partidárias, não são por elas sobredeterminadas.

Palavras-chave:
eleições; política local; coordenação intrapartidária; dobradas eleitorais; São Paulo


Abstract

Scholars have increasingly pointed out the transference of votes from local politicians to those running for state and national offices, based on two sorts of explanations. Some authors assume that clientelism explains the observed effects, while others sustain that the internal coordination of parties leads to them. In both cases, such inferences has been mainly deductive and fail to examine the mechanisms at work in intra-party interplay during election periods. In this article, we explore this issue by analyzing the practices and relationships of a network of electoral political mobilization of one city councilor from São Paulo during two election periods (2018 and 2020). Departing from detailed field interviews and participant observation of the practices of candidates and their brokers, we portrait how local politics plays a central role in intra-party dynamic. ‘Mandates’, brokers and networks of political mobilization provide coordination through structures of ties that connect actors locally and at the same time link them vertically inside the political system, generating political and electoral coordination. We show how the operation of local politics creates political incentives and exchanges of electoral support based on personal relationships, but which mediated by the mid-level structures of mandates and networks. Although these are influenced by party structures, are not overdetermined by them.

Keywords:
Elections; local politics; intra-party coordination; electoral alignments; São Paulo


Introdução

Como se dá a coordenação interna aos partidos durante eleições proporcionais e qual é o papel da política local nessa coordenação? Partindo de informações qualitativas de eleições em São Paulo, mostramos como mandatos, operadores políticos e redes de mobilização local enraizadas no território geram um processo de coordenação intrapartidária por meio de estruturas de vínculos que conectam atores localmente, ao mesmo tempo que ligam o sistema político verticalmente pelas chamadas dobradas eleitorais.

Na literatura especializada, nem sempre o termo coordenação tem recebido definição precisa. Ora parece denotar o efeito de regras eleitorais e de macro instituições (federalismo, presidencialismo etc.) ou da estrutura decisória interna aos partidos sobre o alinhamento de candidaturas e partidos; ora diz respeito à própria ação de coordenar por parte de lideranças partidárias. Todas essas alternativas são válidas e corretas do ponto de vista linguístico, que guarda para o substantivo “coordenação”, tanto a ação como o efeito de coordenar, assim como a própria relação produzida e o processo por meio do qual unidades estão dispostas e relacionadas. No entanto, quando os sentidos não são explicitados, por vezes podem surgir confusões analíticas, inclusive entre o que é efeito e o que é causa. Nesse artigo, entendemos coordenação como o processo pelo qual alinhamentos são construídos. Analisaremos, assim, o processo de formação de dobradas eleitorais pela dimensão relacional, sendo essa uma contribuição inovadora à literatura, que tende a enfocar primordialmente os aspectos formais que levam ao efeito coordenação.

Da forma como utilizamos o termo, coordenação política intrapartidária em dobradas eleitorais de candidatos proporcionais se refere ao processo pelo qual são produzidos os alinhamentos de candidaturas. Esses alinhamentos se apoiam em conjuntos de relações entre atores, construídas de baixo para cima a partir da operação da política local, em que se dá a mobilização política nos territórios da cidade.

Substancial parcela da ciência política considera que a política local não tem importância significativa, ou tem relevância apenas local (Judd, 2005JUDD, Dennis. (2005). Everything is Always Going to Hell. Urban Affairs Review, 41, 2: 119-131.). Estudos de dois fenômenos representariam exceções a isso - o chamado reverse coattail (Ames, 1994AMES, Barry. (1994), “The Reverse Coattails Effect: Local Party Organization in the 1989 Brazilian Presidential Election”. American Political Science Review, 88, 1: 95-111.; Samuels, 2000SAMUELS, David. (2000), “The gubernatorial coattails effect: federalism and congressional elections in Brazil”. The Journal of Politics, 62, 1: 240-253.), que descreve os efeitos de níveis locais sobre resultados eleitorais de outros níveis, e o clientelismo, que mesmo em suas versões mais precisas (Stokes et al., 2013STOKES, Susan; DUNNING, Tad; NAZARENO, Marcelo; BRUSCO, Valeria. (2013), Brokers, Voters, and Clientelism - the Puzzle of Distributive Politics. Nova Iorque: Cambridge University Press.), é considerado como um conjunto de práticas locais que desorganizaria/deturpariam a representação política. Esse se articularia com o comportamento personalista e distributivista dos políticos (Ames, 1994AMES, Barry. (1994), “The Reverse Coattails Effect: Local Party Organization in the 1989 Brazilian Presidential Election”. American Political Science Review, 88, 1: 95-111.), esgarçando a coordenação partidária, mesmo que já se tenha demonstrado que tal efeito é matizado pelas estruturas partidárias e por aspectos institucionais (Avelino et al., 2012AVELINO, George; BIDERMAN, Ciro; BARONE, Leonardo. (2012), “Articulações Intrapartidárias e Desempenho Eleitoral no Brasil”. Dados, 55, 4: 987-1013.).

Sem querer negar os fenômenos analisados por essa literatura, esse artigo sustenta a importância da política local e seus vínculos na coordenação intrapartidária, inclusive vertical, por meio das práticas e relações cotidianas de mobilização territorial para a organização de eleições e governos. Para melhor entendimento do fenômeno, deslocamos o foco tanto do voto pessoal e das motivações individuais, como dos aspectos legais que organizam eleições e partidos para os detalhes da mobilização política em sua própria escala de operação. Isso porque embora os cargos em disputa em cada eleição digam respeito a diferentes escalas de poder, os votos sempre se localizam no território, organizando o sistema a partir dos níveis mais locais da federação. A máxima norte-americana de que “all politics is local” resume a percepção de que mesmo a eleição presidencial, ao fim e ao cabo, se ancora e depende das escalas mais desagregadas dos sistemas políticos. Os detalhes da mobilização política local nos levam a compreender a existência e a importância de mandatos, estruturas intermediárias, que conectam pessoas e partidos.

Neste artigo, exploramos o fenômeno pela análise do mandato e da rede de mobilização política eleitoral de um vereador em São Paulo em duas eleições subsequentes (municipal e estadual/nacional), partindo de detalhado levantamento de campo com entrevistas e observação participante sobre vínculos e práticas dos candidatos e seus operadores/apoiadores (Hoyler, 2022HOYLER, Telma. (2022), Representação política e conexão territorial: uma etnografia de vereadores e brokers em São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Exatamente porque o voto pessoal existe, mas está imerso em estruturas relacionais locais de disputa e cooperação política, a estrutura de vínculos e a dinâmica dos mandatos e das redes geram coordenação, inclusive vertical. Tais relações costuram grupos políticos internos aos partidos em mandatos, além de acordos políticos entre candidatos e/ou parlamentares que por vezes se convertem nas chamadas dobradas eleitorais. Essa prática conecta candidaturas com diferentes níveis de formalização ao longo de campanhas eleitorais, envolvendo graus diferenciados de compartilhamento de materiais, pessoal e estruturas de campanha por candidatos a deputado estadual e federal, por exemplo. Como veremos, as dobradas envolvem centralmente acordos políticos entre representantes e candidatos das eleições municipais e das eleições nacionais/estaduais (e vice-versa), apesar de serem deslocadas no tempo.

Duas dimensões especificam os contornos da generalização dos resultados apresentados neste artigo. O primeiro é o tamanho da mobilização requerida, em termos de população e de território. A importância do que analisamos aqui cresce com o aumento da escala requerida para o funcionamento de um dado contexto político, sendo muito menos relevante em cidades pequenas. Isso não quer dizer que o fenômeno não ocorra ou se organize de forma radicalmente diferente em cidades menores, mas que nestes locais a mobilização política apresenta muito menor complexidade. Sem querer adiantar o argumento, o caso da cidade de São Paulo (o maior distrito eleitoral brasileiro em tamanho e complexidade) inclui um conjunto de atores - prefeitos, vereadores, operadores políticos (macrobrokers e microbrokers) - que pode não estar todo presente em escalas menores. Em pequenas cidades, para indicar o outro caso extremo, as atividades dos microbrokers paulistanos podem estar sendo performadas pelos próprios prefeitos e, em cidades de porte médio, pelos vereadores. Entretanto, é lógico considerar que as práticas políticas discutidas nesse artigo também se apresentam de forma similar ali, sendo o sistema político organizado de forma fractal em escalas superpostas. Portanto, embora o caso de São Paulo não seja de forma nenhuma representativo do Brasil em escala e complexidade, contém os atores, práticas e relações da mobilização política territorial presentes nas demais cidades brasileiras, sendo, desse ponto de vista, um caso de complexidade máxima do sistema.

A segunda dimensão diz respeito ao grau em que o acesso a políticas, serviços e às instituições em geral depende de mediação política. Assim como no caso da escala, essa dimensão é contínua, variando entre dois polos que podem ser pensados como ideais-tipo, tendo em um extremo sistemas políticos marcados por intenso clientelismo e, no outro, formas despersonalizadas e não mediada de acesso ao Estado. Há razões para defender que o caso brasileiro se localize em ponto intermediário entre patronagem e universalização, em especial frente ao avanço das políticas sociais e urbanas ocorrido desde a redemocratização.

Cabe ainda uma advertência metodológica que na verdade decorre de um aprendizado empírico: partimos da ambição de mapear a totalidade das dobradas eleitorais de um partido em duas eleições federais e estaduais, objetivando investigar sistematicamente a estrutura das alianças no tempo. Entretanto, o fenômeno se mostrou muito mais dinâmico e informal do que imaginávamos, tornando impossível capturá-lo por técnicas tradicionais quantitativas de levantamentos de dados. As entrevistas iniciais revelaram que coordenadores de campanha e políticos em si, quando muito, lembravam das suas dobradas principais, aquelas que se repetem por vínculos de amizade e afinidade entre políticos, por exemplo, mas não das (muitas) alianças pontuais em variados territórios da cidade. Exigiria um esforço enorme, muito maior em termos de tempo e de recursos que dispunhamos, portanto, gerar um banco de dados sistemático e significativo das dobradas eleitorais, mesmo que para um conjunto limitado de parlamentares.

Levando isso em conta, bem como as perguntas que a literatura ainda se faz sobre o funcionamento da coordenação partidária, decidimos inverter a lógica do desenho de pesquisa. Na impossibilidade de mapear o fenômeno sistematicamente a partir da esfera institucional, exploramos qualitativamente a mobilização política de um vereador em um dado território, observando o fenômeno enquanto este se desdobrava, expandindo o foco para novos atores e interlocutores com uma estratégia de bola de neve. Isso nos permitiu ter acesso à totalidade da estrutura de mobilização desse parlamentar em grau de detalhe impossível de acessar com um estudo quantitativo sistemático. Na verdade, a pesquisa que deu origem a esse artigo (Hoyler, 2022HOYLER, Telma. (2022), Representação política e conexão territorial: uma etnografia de vereadores e brokers em São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.) levantou as estruturas de mobilização política de dois vereadores de partidos distintos (e distantes) ideologicamente, obtendo basicamente os mesmos tipos de atores, práticas e relações. Embora com isso não possamos afirmar que os padrões discutidos aqui são plenamente generalizáveis, certamente nos ajudam a compreender melhor o sistema político brasileiro.

O artigo é dividido em quatros partes além dessa introdução e da conclusão. A seguir, discutimos as principais explicações para a coordenação partidária entre eleições, assim como definimos pontos de vista conceituais importantes. A segunda seção inicia nossa teorização alternativa sobre o fenômeno, apresentando o conceito (nativo) de mandato, além de especificar tipos de brokers, seus cálculos e relações com representantes. A terceira seção define e analisa a rede de mobilização política local e seus tipos de vínculo a partir das dobradas eleitorais de 2018. Na quarta seção investigamos a dinâmica da mobilização do mandato e da rede a partir de histórias e episódios envolvendo candidatos e representantes a cargos de vários níveis, assim como brokers e eleições. A análise se centra principalmente na eleição de 2018, acrescentando informações da eleição de 2020 para refletir sobre suas transformações. A conclusão, ao final, sumariza os padrões mais gerais extraídos das redes, em diálogo com a literatura que trata do tema.

Explicações existentes para a coordenação intrapartidária em eleições

Independente de aceitarmos a predominância causal de estruturas partidárias, de incentivos institucionais ou do personalismo em estratégias eleitorais, parece consenso que o arranjo federativo brasileiro dificulta que partidos se coordenem internamente. A questão está na raiz de alguns dos debates cruciais da literatura de política comparada (Mainwaring, 1999MAINWARING, Scott. (1999), Rethinking Party Systems in the Third Wave of Democratization: The Case of Brazil. Stanford, Stanford University Press.; Carey e Shugart, 1995CAREY, John; SHUGART, Matthew. (1995), “Incentives to cultivate a personal vote: A rank ordering of electoral formulas”. Electoral Studies, 14, 4: 417-439. ISSN 02613794. DOI: 10.1016/0261-3794(94)00035-2.
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), e é central para entendermos o funcionamento do sistema político brasileiro por várias razões.

Em primeiro lugar, apesar da organização dos partidos brasileiros contar com uma estrutura de convenções, direções e instâncias federais e estaduais, é relativamente descentralizada a partir da operação por diretórios municipais ou comissões provisórias (Ribeiro, 2013RIBEIRO, Pedro. (2013). Organização e poder nos partidos brasileiros: uma análise dos estatutos. Revista Brasileira de Ciência Política, 10, 225-265.; Guarnieri, 2011GUARNIERI, Fernando. (2011), A Força dos Partidos Fracos. Dados, 54, 1: 235-258.). Com isso, alianças inter ou intrapartidárias não se repetem necessariamente nos estados e municípios. Diretórios municipais podem, por exemplo, se rebelar contra decisões de outros níveis do partido levando à não replicação local de alianças que ocorrem no nível nacional, como ocorre com frequência. Um segundo fator que dificulta a articulação intrapartidária é o estatuto soberano do nível municipal em nossa federação. Prefeitos têm autoridade sobre políticas públicas e os municípios são lugar importantes de disputa política (Arretche, 2010ARRETCHE, Marta. (2010), “Federalismo e Igualdade Territorial: Uma Contradição em Termos?”. Dados, 53, 3: 587-620.). Um terceiro fator é a adoção de lista aberta em eleições proporcionais em distritos de grande magnitude para os cargos do Legislativo. Deixando de lado por um instante as derivações dedutivas que parte da literatura do distributivismo faz dessas regras, é certo que induzem componentes personalistas às disputas partidárias, gerando competição entre candidatos de um mesmo partido, fator conhecido na literatura como voto pessoal (Carey e Shugart, 1995CAREY, John; SHUGART, Matthew. (1995), “Incentives to cultivate a personal vote: A rank ordering of electoral formulas”. Electoral Studies, 14, 4: 417-439. ISSN 02613794. DOI: 10.1016/0261-3794(94)00035-2.
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; Mainwaring, 1999MAINWARING, Scott. (1999), Rethinking Party Systems in the Third Wave of Democratization: The Case of Brazil. Stanford, Stanford University Press.).

Decorreria do voto pessoal a baixa lealdade partidária entre candidatos, e sobretudo entre lideranças municipais e candidatos a outros níveis do mesmo partido, enfraquecendo ou mesmo anulando a capacidade de transferência dos partidos entre níveis da federação, os denominados coattail e reverse coattail effects. O primeiro pode ser entendido como a capacidade de um candidato de mais alto nível transferir votos para seus companheiros de partido concorrendo a cargos mais abaixo, enquanto o segundo diz respeito ao efeito inverso, isto é, à transferência de votos de baixo para cima. Entretanto, estudos têm progressivamente mostrado a existência de tais efeitos, sugerindo que mesmo que o voto pessoal seja relevante, não age sozinho e de forma predominante.

Em um dos primeiros estudos a esse respeito, Ames (1994)AMES, Barry. (1994), “The Reverse Coattails Effect: Local Party Organization in the 1989 Brazilian Presidential Election”. American Political Science Review, 88, 1: 95-111., ao examinar a correlação entre a filiação do prefeito e o desempenho de candidatos na eleição presidencial de 1989, encontrou que candidatos à presidência tiveram desempenho superior nos municípios nos quais seu partido governava, o chamado “coattail reverso”. Examinando dados das eleições no Brasil nos períodos democráticos (1945-64; 1989-98), Samuels (2000)SAMUELS, David. (2000), “The gubernatorial coattails effect: federalism and congressional elections in Brazil”. The Journal of Politics, 62, 1: 240-253. também defendeu evidências de efeito reverso, cuja influência fluiria dos governadores para o nível nacional. Carneiro e Almeida (2008CARNEIRO, Leandro; ALMEIDA, Maria Hermínia. (2008), “Definindo a Arena Política Local: Sistemas Partidários Municipais na Federação Brasileira”. Dados, 51, 2: 403-432.) avançaram neste problema ao demonstrar que há correlação entre a votação dos partidos para diferentes níveis, sendo a votação para governador a variável que tem maior efeito sobre votações para deputado federal e estadual, e a votação para prefeito a de maior influência para vereadores. Avelino et al. (2012)AVELINO, George; BIDERMAN, Ciro; BARONE, Leonardo. (2012), “Articulações Intrapartidárias e Desempenho Eleitoral no Brasil”. Dados, 55, 4: 987-1013. também identificaram a vantagem que partidos tiveram ao eleger prefeitos em 2008 para as eleições proporcionais estaduais de 2010. Barone (2014)BARONE, Leonardo. (2014), Eleições, Partidos e Política Orçamentária no Brasil: explorando os efeitos das eleições locais na política nacional. Tese de doutorado. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo., por fim, encontrou o mesmo efeito dos partidos dos prefeitos em outros níveis, avançando metodologicamente para isolar o efeito partidário de outros fatores, como o sucesso do prefeito ao longo do mandato.

Diferentemente da política norte-americana (Ferejohn e Calvert, 1984FEREJOHN, John; CALVERT, Randall. (1984), “Presidential Coattails in Historical Perspective”. American Journal of Political Science, 20, 1: 127-146.; Golder, 2006GOLDER, Matt. (2006), “Presidential coattails and legislative fragmentation”. American Journal of Political Sciences, 50, 1: 34-28.), não estão ainda muito claros os mecanismos em operação no sistema brasileiro. As interpretações, entretanto, convergem para duas explicações.

De um lado, autores têm atribuído aos partidos a articulação interna que levaria aos resultados observados. Nesse caso, a inferência é muitas vezes dedutiva. Ao salientar a habilidade dos partidos de organizar esforços eleitorais não somente nas eleições de um mesmo nível, mas entre diferentes níveis, Carneiro e Almeida (2008)CARNEIRO, Leandro; ALMEIDA, Maria Hermínia. (2008), “Definindo a Arena Política Local: Sistemas Partidários Municipais na Federação Brasileira”. Dados, 51, 2: 403-432. sugerem que isso seria fruto da capacidade de articulação entre os níveis de organização partidária. Formulação semelhante é feita por Avelino et al. (2012, pAVELINO, George; BIDERMAN, Ciro; BARONE, Leonardo. (2012), “Articulações Intrapartidárias e Desempenho Eleitoral no Brasil”. Dados, 55, 4: 987-1013.. 988), embora de forma algo tautológica: “Se não existir articulação intrapartidária não haveria motivo para um prefeito eleito por partido cooperar sistematicamente com os candidatos do seu partido nas eleições que ocorrem dois anos depois dele ser eleito”. Alguns autores (Souza, 2020SOUZA, Fabiana. (2020), Organização Partidária e Coordenação eleitoral no Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Mesquita, 2013MESQUITA, Lara. (2013), Partidos e coligações: Uma análise exploratória da coordenação partidária em eleições simultâneas. Paper apresentado no 37º Encontro Anual da ANPOCS, Águas de Lindóia, 23 a 27 de setembro de 2013.) chegam ainda a tratar indistintamente de “articulação” e “coordenação” intrapartidária. O uso do termo coordenação, ainda mais do que “articulação”, raramente vem acompanhado do significado que se atribui a ele, por vezes aludindo à existência de um planejamento prévio das instâncias decisórias dos partidos sobre os alinhamentos das campanhas e mesmo dos candidatos, por vezes ao próprio efeito observado.

Independente do termo que se utilize e apesar do crescente interesse por temas como coordenação territorial e congruência entre sistema nacional e subnacional dos partidos (Falleti, 2010FALLETI, Tulia. (2010), Decentralization and Subnational Politics in Latin America. New York: Cambridge University Press.; Freidenberg e Suaréz-Cao, 2014FREIDENBERG, Flavia; SUÁREZ-CAO, Julieta. (2014), Territorio y poder: nuevos actores y competencia política en los sistemas de partidos multinivel en América Latina. Salamanca: Universidad de Salamanca.; Suárez-Cao et al., 2017SUÁREZ-CAO, Julieta; BATTLE, Margarita; WILLS-OTERO, Laura. (2017), “El auge de los estudios sobre la política subnacional latinoamericana”. Colombia Internacional, 90: 15-34.; Wills-Otero, 2016WILLS-OTERO, Laura. (2016), “The Electoral Performance of Latin American Traditional Parties, 1978-2006: Does the Internal Structure Matter?”. Party Politics, 22, 6: 758-772.), sabemos ainda pouco sobre o que produz organização multinível intrapartidária (Ribeiro e Fabre, 2019RIBEIRO, Pedro; FABRE, Elodie. (2019), “Multilevel party organizations in a fragmented presidential system: The case of Brazil”. Regional & Federal Studies, 30, 4: 525-555. DOI: 10.1080/13597566.2019.1591375.
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). Talvez continue válida a afirmação de Levitsky (2001)LEVITSKY, Steven. (2001), “Inside the Black Box: Recent Studies of Latin American Party Organizations”. Studies in Comparative International Development, 36: 92-110. de que organizações partidárias na América Latina continuam sendo “caixas pretas”. Hoje sabemos mais sobre estratégias intrapartidárias para seleção e alinhamento de candidatos em eleições majoritárias (Ribeiro e Borges, 2019RIBEIRO, Pedro; BORGES, André. (2019), “The populist challenge: Multi-level electoral coordination in Brazil’s 2018 elections”. Regional & Federal Studies, 30, 3: 363-386. DOI: 10.1080/13597566.2019.1694005
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; Ribeiro e Fabre, 2019RIBEIRO, Pedro; FABRE, Elodie. (2019), “Multilevel party organizations in a fragmented presidential system: The case of Brazil”. Regional & Federal Studies, 30, 4: 525-555. DOI: 10.1080/13597566.2019.1591375.
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; Souza, 2020SOUZA, Fabiana. (2020), Organização Partidária e Coordenação eleitoral no Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.), assim como o efeito da coordenação partidária em torno da disputa presidencial sobre o desempenho das legendas nas eleições para a Câmara dos Deputados (Alves, 2019ALVES, Vinicius. (2019), Comportamento Eleitoral, Coordenação Partidária E Efeito Coattails No Brasil: Como As Eleições Para O Executivo Influenciam O Voto Para Deputado Federal? Tese de doutorado. Universidade de Brasília, Brasília.). Com o intuito de contribuir com essa agenda de pesquisa, partindo do ponto de vista da sociologia relacional, esse artigo procura compreender como se produz conexão vertical intrapartidária em eleições proporcionais no sistema brasileiro e introduz nas análises uma estrutura de médio alcance entre pessoas e partidos, que são os mandatos.

De outro lado do debate, autores deduzem que redes clientelistas ligando máquinas políticas locais às nacionais explicariam o efeito observado. O clientelismo foi classicamente pensado como a permanência de formas de representação antigas, pré-modernas e pré-democráticas nas formações políticas contemporâneas (Scott, 1977SCOTT, James. (1977), “Patron-client politics and political change in Southeast Asia”, in G. Schmidt & S. Landé (org.), Friends, followers, and factions: A reader in political clientelism, Berkeley: University of California Press.; Graziano, 1976GRAZIANO, Luigi. (1976), “A Conceptual Framework for the Study of Clientelistic Behavior”. European Journal of Political Research, 4, 2: 149-174.), que no Brasil ganhavam o nome de “voto de cabresto”. A ideia sobrevive nos pressupostos de uma parte do debate contemporâneo (Nichter, 2018NICHTER, Simeon. (2018), Votes for Survival. Cambridge University Press.), frequentemente com escorregamentos entre categorias analíticas e interpretações normativas.

Para Ames (1994)AMES, Barry. (1994), “The Reverse Coattails Effect: Local Party Organization in the 1989 Brazilian Presidential Election”. American Political Science Review, 88, 1: 95-111., organizações políticas locais se juntam a classe, raça e religião para explicar os resultados eleitorais em nações em desenvolvimento como as da América Latina. O autor explicitamente diferencia o esforço de lideranças políticas de entregar votos às lideranças de sua preferência, dos laços afetivos vinculando cidadãos a suas comunidades.1 1 “By the term local political organization, I refer not to the affective ties linking citizens with their communities but, instead, to the efforts of a community´s political leaders to deliver blocs of votes to candidates the leadership prefers” (Ames, 1994, p. 95) O autor menciona estudos sobre clientelismo no México e na Venezuela para evidenciar o fenômeno e deduz que se essas organizações são importantes, elas devem afetar o resultado eleitoral supranacional. De modo similar, Samuels (2000)SAMUELS, David. (2000), “The gubernatorial coattails effect: federalism and congressional elections in Brazil”. The Journal of Politics, 62, 1: 240-253. atribui aos governadores, que segundo o autor são políticos centrais para o efeito de reverse coattail, a mobilização que a redes clientelistas trariam para a disputa eleitoral. Ainda que seja parte da explicação central, o clientelismo aparece citado pelos autores de forma meramente alusiva e dedutiva. É verdade que esses estudos se posicionam em outra escala e não se preocupam em desvendar a construção dos vínculos em questão, mas pulam rápido demais para concluir sobre os efeitos de tais práticas na representação política democrática.

Tentando avançar decupando os vários implícitos presentes nos debates sobre o tema, autores como Kitschelt e Wilkinson (2007)KITSCHELT, Herbet; WILKINSON, Stephen. (2007), Patrons, clients, and policies: Patterns of democratic accountability and political competition. Nova Iorque: Cambridge University Press. e Stokes et al. (2013)STOKES, Susan; DUNNING, Tad; NAZARENO, Marcelo; BRUSCO, Valeria. (2013), Brokers, Voters, and Clientelism - the Puzzle of Distributive Politics. Nova Iorque: Cambridge University Press. delimitaram melhor o conceito de clientelismo como troca política contingente de votos por serviços (e políticas públicas) em que eleitores/clientes estão submetidos a alguma forma de monitoramento pelo qual poderiam ser identificados e punidos. Os principais problemas da aplicação contemporânea do conceito dizem respeito à expansão do acesso a políticas sob o signo da cidadania com escassa ou nenhuma mediação, assim como as enormes dificuldades de monitoramento colocadas por contextos urbanos democráticos de massa. A resposta da literatura a tais problemas tem sido investir analiticamente do papel dos brokers, tanto em formas variadas e mais sutis de monitoramento, como na mediação que realizam no acesso a políticas, embora um certo viés normativo ainda persista.

Outros estudos têm avançado na direção de melhor compreender a natureza dessas relações em estudos sobre a América Latina (Ayuero, 2000AYUERO, Javier. (2000), Poor People's Politics. Peronist Survival Networks and the Legacy of Evita. Durham: Duke University Press.; Rivadulla, 2012RIVADULLA, María. (2012), “Clientelism or Something Else? Squatter Politics in Montevideo”. Latin America Politics and Society, 54, 1: 37-63.), Índia (Auerbach, 2019AUERBACH, Adam. (2019), Demanding Development: The Politics of Public Goods Provision in India's Urban Slums. Cambridge: Cambridge University Press.) e o Brasil. A ideia preconcebida de “patrão” dá lugar à operação concreta da política por atores inseridos em tramas de relações sociais e institucionais, notadamente vereadores e suas atividades para além da produção legislativa (Kuschnir, 2000KUSCHNIR, Karina. (2000), Eleições e Representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/NUAP.; Rocha e Silva, 2017ROCHA, Marta da; SILVA, Bruno. (2017), “O poder de indicar: Preferências legislativas de vereadores mineiros”. Cadernos Adenauer, 18, 2: 185-208.; D’Ávila et al., 2014D’ÁVILA, Paulo; CERQUEIRA LIMA, Paulo; JORGE, Vladimyr. (2014), “Indicação e intermediação de interesses: uma análise da conexão eleitoral na cidade do Rio de Janeiro, 2001-2004”. Revista de Sociologia e Política, 22, 49: 39-60.), em transações que também envolvem ganhos de poder simbólico e estrutural (Borges, 2021BORGES, Mariana. (2021), Weapons of Clients: Why do Voters Support Bad patrons? Ethnographic Evidence from Rural Brazil. Oxford: University of Oxford.). Apesar disso, mesmo essa literatura recente pouco conecta as práticas e relações analisadas localmente com o funcionamento do sistema político como um todo.

Como veremos mais adiante, os deslocamentos operados por essa literatura recente são promissores. Entretanto, quanto mais os debates avançam, mais se distanciam do que se poderia chamar precisamente de clientelismo, dados a baixa contingência dos serviços e políticas, as grandes dificuldades de monitoramento, o baixo controle dos políticos sobre os brokers, bem como a variedade desses últimos e suas práticas. Defendemos que parece ser mais interessante construir um ponto de vista de médio alcance focado nos padrões de mobilização política, suas práticas, e relações com as estruturas partidárias e os territórios da cidade. O esforço desenvolvido a seguir aproxima essas dimensões.

Observando o fenômeno por outro ângulo: a rede territorial de mobilização

Como vimos, há incentivos ao voto pessoal, e a estrutura institucional brasileira induz ainda mais variação nas formas que partidos se organizam internamente (Ribeiro e Fabre, 2019RIBEIRO, Pedro; FABRE, Elodie. (2019), “Multilevel party organizations in a fragmented presidential system: The case of Brazil”. Regional & Federal Studies, 30, 4: 525-555. DOI: 10.1080/13597566.2019.1591375.
https://doi.org/10.1080/13597566.2019.15...
). Os resultados empíricos, entretanto, sugerem a existência de coordenação, inclusive vertical. O que pode explicá-la?

Sustentamos que a coordenação eleitoral em eleições proporcionais ocorre internamente aos partidos por meio de redes políticas multinível enraizadas na mobilização política territorial realizada por políticos locais, seus mandatos e associados. As conexões entre níveis são realizadas pelo pertencimento a grupos políticos internos aos partidos, assim como por alianças que ultrapassam suas fronteiras. Em ambos os casos, essas conexões se materializam nas chamadas dobradas eleitorais, conectando candidatos (e representantes) de diferentes níveis, em graus variados de formalização. Através dessas parcerias, muitas delas informais e efêmeras, candidatos dividem custos, além de organizar e compartilhar equipes e material de campanha. Os conjuntos de tais parcerias constituem redes de mobilização política que ligam candidatos, grupos políticos, e mesmo partidos.

Nessas redes operam atores - vereadores e brokers - que as literaturas sobre coordenação partidária e eleições têm largamente negligenciado, exceto pelos debates sobre clientelismo. Entretanto, dado o viés normativo destes últimos, mesmo suas análises mais sofisticadas acabam por predefinir as práticas de tais atores, ao invés de analisá-los como parte central de estruturas de mobilização política de médio alcance.

Como já comentado, os papéis desses atores variam segundo o contexto, embora todos os municípios tenham Câmaras Municipais e vereadores no Brasil. Em municípios menores, vereadores, e até mesmo prefeitos, podem desempenhar funções de brokerage. Em grandes cidades, seja pela alta taxa de representação por vereador (aprox. 160.000 eleitores por vereador em São Paulo) ou pela complexidade das dinâmicas de governança das políticas urbanas (Marques, 2017MARQUES, Eduardo. (2017). Em Busca de Um Objeto Esquecido: A política e as políticas do urbano no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32, 95: 1-18.), vereadores atuam necessariamente a partir uma rede capilarizada de mobilização territorial baseada em brokers (assessores formalmente contratados ou não). Aqui, contudo, eles assumem uma conotação meramente analítica, afastando o sentido normativamente negativo a eles associado pela literatura sobre clientelismo. Ao contrário do que sustenta tal literatura, a atuação legislativa é complementada (e não oposta) à territorial, e ocorre de maneira sistemática durante todo o período de incumbência, e não apenas no momento eleitoral. A partir da extensa pesquisa qualitativa que deu origem a esse artigo, podemos dizer que esse é um fenômeno geral, presente em vários partidos políticos do espectro ideológico. São exceções a isso os políticos cujos mandatos se estruturam principal ou exclusivamente a partir de mídias sociais no espaço virtual.

Para compreendermos a inserção e atuação de vereadores e brokers, assim como suas relações com territórios e partidos, devemos começar pelas lógicas de gabinetes e mandatos parlamentares. Os primeiros são institucionalmente definidos e designam a estrutura formal de recrutamento e remuneração de assessores pela Câmara Municipal. Os segundos dizem respeito a uma categoria nativa, dos próprios atores no campo, que assim designam, com pequenas variações de interpretação, o grupo político de apoio ao vereador. Este, embora englobe e seja em parte sustentado a partir do gabinete, é maior do que aquele e opera com transferências informais de recursos. É possível, inclusive, que um mandato se mantenha sem gabinete, quando um incumbente não se reelege, como veremos mais adiante. Os recursos para sustentar mandatos provêm das verbas dos gabinetes, por meio das quais cada parlamentar pode contratar certo número de assessores (alguns dos quais operarão como brokers), mas sobretudo da operação informal conhecida como rachadinha, pela qual assessores formalizados entregam parte do salário para outros não oficialmente contratados. Isso permite multiplicar o número de assessores oficiais em muitos outros, mas obviamente pode também representar uma forma de enriquecimento ilícito para o parlamentar e seus operadores, quando recursos são desviados para o próprio parlamentar ou seus proxis. Os recursos são também provenientes da formação de caixas-dois alimentadas por estratégias diversas, desde corrupção de capitais do urbano interessados em leis específicas, até o limite tênue entre contribuições involuntárias e “vaquinhas” de assessores a partir de seus salários. Todas essas práticas são ilegais, mas são também amplamente difundidas nos partidos, e em muitos dos casos não visam o enriquecimento ilícito do parlamentar.2 2 Desde 2018, as rachadinhas têm recebido ampla atenção da mídia em função da investigação dos esquemas de corrupção da família Bolsonaro, em especial do senador Flávio e do vereador Carlos, mas também o próprio presidente enquanto deputado. Nesse caso, há indícios de lavagem de dinheiro e organização criminosa pelo qual os políticos contratavam funcionários fantasmas e usavam o valor de suas remunerações em benefício próprio. Esses casos têm reforçado a associação da prática a corrupção sistemática. Contudo, nem sempre esse é o caso, e para entendermos a operação de mandatos políticos é preciso separar a prática de devolução de uma parte do salário dos assessores em si, do seu uso. Isso porque rachadinhas são generalizadas, em especial em grandes cidades, onde os políticos necessitam de amplas redes territoriais de mobilização política.

A estrutura de brokerage é composta pelo que Hoyler (2022)HOYLER, Telma. (2022), Representação política e conexão territorial: uma etnografia de vereadores e brokers em São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. denomina macro e microbrokers, distintos pelos tipos de vínculos com o mandato e pelo tamanho de suas influências sobre votos. Enquanto assessor é uma posição formal na Câmara Municipal e, portanto, uma categoria de ordem empírica, macro e micro são categorias analíticas e indicam funções na estrutura. Tomando os vereadores como pontos de partida, macrobrokers estão ligados diretamente a eles, sendo microbrokers ligados por laços secundários. Como se trata de uma classificação de posições relacionais, a escala importa. Assim, do ponto de vista de deputados federais ou estaduais com quem vereadores fazem dobradas eleitorais, vereadores operam como macrobrokers e seu mandato reúne o conjunto de microbrokers. Para facilitar a leitura, contudo, fixaremos ao longo do artigo os termos macro e microbrokers para nomear as equipes de vereadores.

Essa relação vertical tem sido analisada colocando prefeitos em destaque, ao serem apontados como “cabos eleitorais” de deputados (Fisch, 2019FISCH, Arthur. (2019), The cost of elections: articles on the campaign expenditure for federal representatives in Brazil. Tese de doutorado. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.; Barone, 2014BARONE, Leonardo. (2014), Eleições, Partidos e Política Orçamentária no Brasil: explorando os efeitos das eleições locais na política nacional. Tese de doutorado. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo.). O termo cabo eleitoral, contudo, ajuda pouco a entender posições nessa estrutura e carrega uma conotação pejorativa ligada à noção de clientelismo, além de sugerir um caráter efêmero. No mundo da política, ele é frequentemente designa quem “só entrega panfleto” e não está comprometido com o mandato, nem possui vínculos significativos que possam se converter em votos. Apesar da instabilidade e imprecisão conceitual, a referência a prefeitos como cabos eleitorais tenta indicá-los como brokers, definição relacional que pode ser aplicada para analisar o grupo político que orbita em torno do prefeito e ajuda a conectar os territórios habitados pelos eleitores às eleições nacionais.

Embora tenhamos optado por manter constante a terminologia, essas relações costuram vários níveis de forma dinâmica. Enquanto macrobrokers, de modo geral, objetivam tornar-se vereadores, microbrokers, conforme fazem crescer sua influência no território,3 3 O mesmo raciocínio de ascensão na carreira pela expansão do território de apoio e das redes de mobilização abaixo de si pode ser aplicada para prefeitos que querem virar governadores, deputados ou senadores. podem cercar-se de outros microbrokers de influência ainda mais localizada e almejar se tornarem macrobrokers, preferencialmente remunerados oficialmente em um gabinete. Em todos os casos, a lógica da carreira ascendente se dá aumentando o território (de relações e físico) de influência. Ao ascenderem, obtém recursos mais amplos para remunerar pessoas ligadas a eles nessas cadeias de vínculos políticos.

As campanhas eleitorais são eventos centrais para fortalecer essas estruturas, por alguns motivos: (1) fazem crescer a quantidade de vínculos; (2) injetam recursos de campanha no grupo político; (3) permitem testar os vínculos atualmente existentes e (4) formam e/ou fortalecem alianças que aumentam seu tamanho nas eleições municipais e oferecem alguma segurança de cargos em mandatos, no caso de derrota. O suposto de uma parte da literatura de que não há incentivos para o nível local colaborar em eleições de outras instâncias federativas desconhece e não leva em conta a operação dessa estrutura.

Há fortes motivos para brokers e vereadores se empenharem (intensamente) nas campanhas de deputados. A campanha eleitoral de deputados aumenta e fortalece os vínculos territoriais de vereadores e brokers porque brokers tornam-se coordenadores regionais de campanha e microbrokers coordenam equipes localizadas, compostas por pessoas já conhecidas e outras que os conhecidos vão trazendo como numa bola de neve. Cabe a essas equipes as ações de divulgação cotidiana, como entrega de materiais informativos, santinhos, disparo de mensagens via Whatsapp de promoção de candidaturas etc. A contratação dessas equipes aproxima e mobiliza pessoas com os quais macro e microbrokers não tiveram oportunidade de estreitar laços ao longo do mandato e injeta uma quantidade significativa de recursos,4 4 O cálculo médio com o qual os vereadores trabalharam na última eleição municipal em SP é de R$ 100 de custo por voto, incluindo a impressão de material e contratação de pessoal. Considerando a média de 30 mil votos que tendia a fazer um vereador eleito pela fórmula anterior ao fim das coligações para cargos proporcionais, estamos falando da movimentação de 3 milhões de reais por campanha por vereador. o que é um incentivo em si. Como veremos, as razões pelas quais cada broker decide entrar em uma campanha, e não em outra, incluem a confiança em quem convida. O vínculo de confiança, inclusive, atenua a tensão sempre presente em quem faz campanha, dado o risco de não receber pelo trabalho após a eleição, em especial no caso de derrota do candidato ou candidata. A confiança usualmente é proporcional ao tempo de trabalho conjunto já realizado, à presença de relações de amizade e ao pertencimento ao mesmo grupo político no interior do partido.

As campanhas de deputados federais e estaduais funcionam para vereadores e brokers como testes porque, no âmbito das variáveis que conseguem controlar, o resultado eleitoral é para eles uma função da injeção de recursos na rede de vínculos existente. Importa ao vereador saber quantos votos um macrobroker traz em determinada zona eleitoral porque isso tende a posicionar o broker e o território com maior ou menor primazia na disputa pelos recursos na eleição municipal subsequente. De forma análoga, o macrobroker consegue mapear quem “veio junto” na campanha, de modo a decidir onde intensificar o trabalho e onde não vale a pena investir esforços nos próximos anos. Uma parte do monitoramento buscado pela literatura se associa a esses cálculos, mas como microbrokers e eleitores não são distinguidos, o monitoramento dos microbrokers enquanto contratados para um trabalho é tratado de forma análoga ao que “patrões” teriam com eleitores. A complexificação dessa estrutura sugere que, se houver monitoramento, ele acontece de forma muito mais sutil, indireta e incompleta do que a literatura sobre clientelismo supõe.

No caso dos vereadores, interessa colocar sua equipe à disposição de campanhas de deputados pela expectativa de acessos facilitados a outros níveis, pelos acordos de troca de apoio ou votos na eleição seguinte (inclusive dobradas), quando deputados retribuem “emprestando” sua rede de brokerage, assim como pela construção de vínculos que permitam apoios mútuos em caso de derrotas eleitorais, alocando seus principais brokers em gabinetes de deputados.

As dobradas em eleições proporcionais e a estrutura relacional de mobilização política

A partir de informações de entrevistas em profundidade e de observação participante, descrevemos e analisamos a partir de agora a rede de mobilização política de um vereador de um dado partido em um de seus principais territórios no que diz respeito às dobradas eleitorais da eleição de 2018, e suas transformações na eleição de 2020. A rede articula vínculos locais (embora não necessariamente clientelistas) com vínculos partidários (embora não necessariamente em coordenação de instâncias decisórias).

Duas importantes advertências: a rede não corresponde à rede completa de mobilização do partido (pois havia vários outros candidatos nesse território), desse político (pois ele mantinha outras redes locais similares a essa em outros territórios), nem desse território (pois também havia ali outros partidos, candidatos e brokers). Entretanto, a delimitação dos vínculos, sua estrutura e mobilização nos permite descrever analiticamente elementos centrais tanto da mobilização político-eleitoral quanto do efeito de coordenação intrapartidária em eleições proporcionais, perspectiva pouco presente na literatura. Os resultados problematizam as relações entre candidatos de escalas distintas (e, secundariamente, entre partidos), o papel dos brokers, e mais amplamente a categoria clientelismo, recentemente retomada pela literatura.

Os dados têm origem em pesquisa mais ampla (Hoyler, 2022HOYLER, Telma. (2022), Representação política e conexão territorial: uma etnografia de vereadores e brokers em São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.), na qual acompanhamos durante três anos o cotidiano de dois mandatos parlamentares (de partidos ideologicamente distantes, mas ambos bastante centrais na política local) a partir de um de seus brokers, além de realizarmos entrevistas em profundidade com 42 (quarenta e duas) pessoas de diferentes partidos, sendo 7 (sete) vereadores, 18 (dezoito) outros brokers, 4 (quatro) chefes de gabinete de vereadores, 2 (dois) deputados estaduais, 1 (um) deputado federal, 6 (seis) burocratas e 4 (quatro) ex-secretários municipais. A escolha dos entrevistados seguiu procedimentos de bola de neve, reproduzindo um quadro abrangente dos fenômenos observados e triangulando informações. Essa ampla pesquisa qualitativa permitiu identificar, estruturalmente, como mandatos parlamentares, gabinetes e partidos se relacionam. Um desses mandatos parlamentares acompanhados de perto e enfocado nesse partido pertence ao “partido A”, de grande importância no cenário federal e da cidade de São Paulo. Nos termos descritos pela literatura, trata-se de um partido centralizado com autonomia crescente das instancias locais (Souza, 2020SOUZA, Fabiana. (2020), Organização Partidária e Coordenação eleitoral no Brasil. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.; Ribeiro, 2013RIBEIRO, Pedro. (2013). Organização e poder nos partidos brasileiros: uma análise dos estatutos. Revista Brasileira de Ciência Política, 10, 225-265.). Todos os nomes foram ocultados ou modificados para preservar a identidade das fontes, considerando o caráter sensível de algumas informações.

Os vínculos da rede foram mapeados partindo do vereador Travassos, e seguindo as alianças e conflitos de mobilização política eleitoral indicados pelos atores entrevistados e observados. Como em toda rede, apareceram no mapeamento vínculos periféricos no próprio território e em outros territórios da cidade, cujas histórias apenas foram perseguidas caso importassem à compreensão da delimitação da rede em questão. Na rede de 2018 apareceram três candidatos ao cargo de deputado federal, três ao cargo de deputado estadual, dois vereadores e seus macro e microbrokers, considerando as duas eleições analisadas. Dada a reciprocidade das práticas de apoio político, os vínculos foram todos considerados como recíprocos.

Podemos considerar que por meio dos vínculos se fazem trocas que envolvem a circulação de recursos financeiros/pessoal de campanha, e votos. No entanto, o conteúdo do que é trocado varia conforme a direção do vínculo. A Figura 1 (abaixo) esquematiza o conteúdo das trocas entre diferentes atores em cada tipo de eleição.

Figura 1
- A Troca de Voto e Dinheiro em Eleições Municipais, Estaduais e Federais

Os vínculos entre microbrokers e macrobrokers conduzem votos do primeiro ao segundo, e recursos em sentido contrário. O mesmo padrão se repete entre macrobrokers e vereadores, e entre aqueles poucos macrobrokers que se vinculam diretamente com deputados. Quando a aliança é construída na base por macrobrokers, em geral o que é trocado é voto, mesmo que com uma dimensão intertemporal: em uma eleição federal um vereador apoia um deputado, retornando o apoio em dois anos. Entre políticos, o conteúdo do que é trocado depende dos acordos específicos. Em eleições federais e municipais, políticos podem trocar votos por recursos para remunerar a rede de mobilização que um político de um nível empresta a outro (portanto sobem votos mobilizados pelo vereador e descem recursos do deputado, por exemplo). Entretanto, também podem ocorrer trocas de votos sem trocas de recursos, para cumprimento de alianças passadas ou criando expectativas futuras. Quem paga a equipe de vereadores para fazer campanha de deputados em geral é o deputado, mas quando a eleição é municipal, diversas vezes são também os deputados que indiretamente ajudam vereadores ao remunerar seus operadores políticos para fazerem campanha local, ainda que isso não fique explícito nas prestações de conta oficiais de campanha. Existe, em geral, assimetria entre os recursos disponíveis para vereadores e deputados no momento eleitoral, o que se deve a acordos internos aos partidos sobre a distribuição de recursos, mas também às diferentes capacidades de mobilizar recursos de caixa-dois nos níveis municipal, estadual e federal.

O sociograma a seguir (Figura 2) representa a estrutura de mobilização política analisada. Considerando a baixa complexidade do padrão relacional, optamos por não realizar uma análise de redes formalizada baseada em indicadores. A apresentação do sociograma é, portanto, ilustrativa e visa organizar a compreensão da estrutura relacional de apoios investigada.

Figura 2
- Sociograma Rede De Mobilização Política Do Vereador Travassos Do Partido “A” Em Certo Território, 2018

A rede inclui 106 nós, sendo 73 microbrokers, 27 macrobrokers, 8 candidatos, conectados por 220 vínculos, todos considerados recíprocos. Na representação do sociograma, os nós representam, respectivamente: azul claro - microbrokers; laranja - macrobrokers; vermelho - vereadores; azuis - deputados estaduais; e verdes - deputados federais. Os nós também estão etiquetados como mb (microbroker), MB (macrobroker), V (vereador) DE (deputado estadual), DF (deputado federal). No caso de representantes, as cores indicam candidatos ao cargo naquela eleição ou incumbentes naquele momento quando se tratar de outro nível, por exemplo: vereadores em 2018 são incumbentes enquanto os indicados como deputados disputam o cargo (embora muitos sejam também incumbentes). Em 2020 isso se inverte. Como podemos ver, há nitidamente duas regiões distintas da rede com atividade mais intensa (marcadas com elipses tracejadas): a região acima, à esquerda, e a região abaixo, à direta, ambas conectadas pelo pertencimento do DE Arnaldo e do DF Campos a ambas.

Representantes eleitos - vereadores e deputados - se relacionam diretamente, mas é a partir deles que se conectam macrobrokers, que por sua vez se ligam a microbrokers. Apenas em dois casos há conexões diretas entre macrobrokers, e não há nenhum vínculo entre microbrokers. As maiores quantidades de conexões diretas (chamadas tecnicamente de graus) envolvem um deputado federal e dois deputados estaduais (ambos com 7 vínculos), seguidos do próprio Travassos (6 vínculos). Quatro macrobrokers são compartilhados por mais de um candidato, sendo dois deles por vínculos indiretos e dois de forma direta. O número de microbrokers vinculados a cada macrobroker varia bastante, desde um único em vários casos, até 8 e 16 nos macrobrokers de maior capacidade de mobilização da rede. Como já citado, esses tramos da rede crescem com o tempo de incumbência, com o trabalho de mobilização do macrobroker e com os recursos disponíveis. Estão representadas 10 dobradas, 3 entre deputados estaduais e vereadores, duas entre deputados federais e vereadores e 5 entre deputados federais e estaduais. O candidato a deputado estadual Arnaldo é quem aparece em maior número de dobradas (4), sendo duas com deputados federais e duas com vereadores (que disputam entre si cargo nessa eleição).

A mobilização do mandato e da rede

A configuração de estruturas relacionais em si pouco nos informa sobre a dinâmica concreta da política local. Como tais estruturas relacionais foram construídas e são mobilizada nas eleições e durante governos, como se relacionam com mandatos (e partidos) e como se transformam? Para entendermos não apenas a estrutura, mas também a dinâmica da rede e a mobilização de seus vínculos, é preciso acompanhar o desenrolar da política em si. Para tal, narramos ao longo desta seção histórias sobre eventos políticos colhidas em campo. Elas indicam como vereadores e brokers de vários tipos realizam a mobilização política por práticas nos territórios durante eleições e governos, e como a rede é continuamente transformada pela dinâmica da própria política local. Alguns personagens já aparecem identificados no sociograma anterior e outros são localizados nos detalhes do sociograma explorados a seguir.

a. As alianças eleitorais e os territórios

Eram nove da manhã de um domingo chuvoso de julho, aquecido apenas pelos preparativos da campanha eleitoral de 2018. Um total de 245 pessoas se reunia no pátio da escola de um bairro periférico para ouvir o que tinham a dizer os cinco homens e uma mulher alinhados no palco. Estavam posicionados, da esquerda para direita, o deputado federal (DF) e pré-candidato à reeleição Campos, o pré-candidato a deputado estadual (DE) Flores, o vereador (V) Travassos e três brokers: Matheus, dona Célia e Júlio. Júlio é macrobroker (MB) do vereador Travassos, enquanto Matheus e dona Célia são microbrokers (mb) ligados ao vereador por meio de Júlio.

Júlio (MB), responsável por organizar o evento, abriu a reunião elencando as melhorias trazidas à região e resumiu a trajetória de criação de vínculos com os moradores de bairros adjacentes ao seu, explicando aquela escola tão cheia: “Devido a esse trabalho que nós vínhamos fazendo, nós fomos convidados por várias outras comunidades pra estender esse trabalho pra outros bairros” (Júlio, observação participante em julho de 2018).5 5 Autorização concedida pelo entrevistado para divulgação de depoimentos para fins acadêmicos.

Ao longo dos aproximadamente 20 minutos em que discursou, Júlio distribuiu os créditos e as responsabilidades, sempre relacionadas às atribuições de cada nível de governo, passando pelo prefeito e pelo governador e pelos candidatos para quem fazia a presente campanha. Mais importante, conectou a necessidade de representação do bairro com políticas públicas, e delimitou seu grupo político e a rede de apoios ao bairro e suas causas:

Está aqui o deputado Campos, que defende o povo lá no Congresso Nacional. Também no plano estadual, nós precisamos eleger quem tem comprometimento com nossas causas. Nós estamos aqui do lado da represa. É nosso principal manancial e se nós não tivermos ações efetivas de sustentabilidade pra garantir água pras gerações futuras, estaremos com o futuro comprometido (...) Então nós precisamos eleger deputados estatuais como o Flores (...) E, com relação à questão municipal, temos aqui o companheiro Travassos, eu sou colaborador do gabinete dele. Na última reunião que ele veio aqui, nós conseguimos algumas coisas, as quais eu vou discorrer agora (...) (Júlio, observação participante em julho de 2018).6 6 Idem.

Colocando-se como “colaborador” de Travassos (V) e relembrando o que “nós conseguimos”, Júlio reafirmava que pertencia àquela comunidade e lutava por ela, ao passo que Travassos (V) e os deputados vinham de fora, mas eram bem-vindos porque estavam comprometidos com suas causas. Isso valorizava sua posição de intermediação ao mesmo tempo em que justificava e legitimava a atuação dos candidatos ali.

Em seguida, Júlio (MB) passou a palavra para Matheus (mb) e dona Célia (mb). Observar o que se desenrolou ali era como estar diante da abertura de uma matrioska (a tradicional boneca russa). Os microbrokers falaram de sua confiança no trabalho do macrobroker; o macrobroker apresentou um quadro geral, mas centrou foco no vereador ao discorrer as ações do mandato de Travassos (V). O vereador, por sua vez, introduziu os deputados como defensores das causas do bairro e como legítimos destinatários da confiança (e do apoio) dos eleitores. Estabelecia-se, assim, uma conexão entre bairros localizados na periferia sul da cidade de São Paulo e o Congresso Nacional.

Portanto, embora candidatos possam todos partir de lógicas personalistas (inclusive induzidas pelo sistema eleitoral), operam no interior de estruturas relacionais desse tipo, embricadas às estruturas partidárias, que contribuem para o que observamos como efeito de coordenação intrapartidária em eleições. Para compreender esse efeito no nível partidário, é preciso incluir mandatos na análise. Essas estruturas intermediárias operam mediando indivíduos e partidos, bem como nos níveis federal, estadual e municipal, fazendo as alianças eleitorais chegarem nos potenciais eleitores localizados em territórios. No momento eleitoral, os incentivos acima descritos colocam mandatos como estrutura estratégica central. Na impossibilidade de um alinhamento, ocorrem rupturas no interior de mandatos, como veremos adiante (seção d), o que apenas os reforça como pontos obrigatórios de passagem.

b. Macrobrokers e mandatos na construção de alianças

Entretanto, o que leva um vereador a apoiar deputados, e por que apoiar Campos (DF) e Flores (DE), e não outros candidatos? Em outras palavras, como e por que são estabelecidas essas alianças? A seguinte história nos ajuda e entender a formação de alianças.

No início dos anos 2000, o mesmo Júlio da história anterior trabalhava com Silas em uma companhia de ônibus, respectivamente como motorista e cobrador. A amizade se intensificou quando participaram de uma chapa para disputar o sindicato dos condutores, mas perderam a disputa e foram demitidos da viação. Precisando de emprego, Júlio e Silas foram convidados, por meio de um conhecido em comum, para participar do mandato do um vereador para quem já tinham feito campanha como microbrokers.7 7 Esse vereador não está representado do sociograma pois isso ocorreu antes da campanha de 2018. Dessa história restou o vínculo entre Júlio e Silas, que nos ajuda a entender a dobrada eleitoral entre Travassos (V) e deputados em 2018. Permaneceram nesse mandato até 2012, quando esse vereador perdeu a eleição. Para acomodar seus principais brokers após a derrota eleitoral, o ex-vereador recorreu a colegas do partido em busca de cargos e repasses financeiros que pudessem manter próximos os principais membros do seu mandato, prática muito comum nos mais variados partidos, o que aparece com frequência nas entrevistas. É de Júlio uma fala bastante ilustrativa do que a pesquisa identificou de maneira generalizada também em outros partidos:

Os deputados e os vereadores eles se potencializam, um ajuda o outro. Se o cara perdeu eleição ele vai ficar pelo menos dois anos sem mandato, mas se ele tem um potencial, tem uma estrutura, os deputados estadual e federal vão ajudando. Obviamente que você não vai ter as mesmas condições que você teria com o mandato seu, mas geralmente os parlamentares te disponibilizam a estrutura mínima e você mantem ali uma estrutura mínima e vai tocando. (Julio em entrevista, dezembro de 2018).8 8 Autorização concedida pelo entrevistado para divulgação de depoimentos para fins acadêmicos.

E foi assim que Silas (MB) foi trabalhar no mandato de Flores, que era então vereador e aparece no sociograma como candidato a deputado estadual em 2018. Enquanto Silas (MB), trabalhando para Flores, assumiu um cargo na subprefeitura local, Júlio (MB) seguiu com o vereador para quem trabalhava, embora não mais vinculado a um gabinete. Para sustentar Júlio (MB), esse vereador recorreu a repasses financeiros informais provenientes de um deputado federal do partido, mas como broker sem mandato, Júlio dispunha de pouquíssimos recursos para fazer política. Não conseguia emendas para o território em que atua nem dispunha de um canal aberto com o Executivo, exceto por Silas, de quem passou a depender para conseguir trazer políticas e melhorias para a região. Alguns anos depois, o quadro se inverteu: Flores não foi reeleito vereador e Silas perdeu o cargo, ao passo que Júlio passou a integrar o mandato de Travassos. Em 2018, quando apareceu a chance de retribuir ao amigo a ajuda que recebeu durante aquele difícil período pessoal e de atuação política, Júlio não aceitou fazer campanha para o candidato a deputado estadual Arnaldo, embora Travassos (V) o tenha apoiado como dobrada prioritária em toda cidade. Decidiu fazer campanha para Flores, com quem o amigo Silas continuaria trabalhando, se eleito.

Esse apoio eleitoral construído desde baixo, ou seja, entre macrobrokers, foi aceito por Travassos (V) porque, segundo o vereador, “não dá pra obrigar assessor a fazer campanha pra alguém que ele não quer, que ele não vai fazer direito”. Quando se trata de um político que o vereador faz questão de apoiar, a aliança na eleição funciona melhor se é colocada desde o começo da contratação do broker. Esse é o caso da relação entre Travassos e Campos (que aparece logo abaixo de Travassos no sociograma), que há mais de uma década se consideram “um único mandato”. Nos termos do vereador, “os assessores de um são do outro também”. Essa pareceria estável, que atravessa eleições, fortalece ambas as candidaturas, mas é uma situação muito difícil de alcançar. “É um sonho”, nas palavras de um outro vereador entrevistado [Partido B, maio de 2019].

Flores e Travassos, embora não participem do mesmo grupo político dentro do partido, aceitaram o acordo construído desde baixo por Silas e Júlio porque houve a promessa de troca de apoio na eleição seguinte: em 2020, Silas prometeu 3 mil votos para Travassos, valor equivalente ao que Júlio havia prometido em 2018 para Flores. “Prometer voto”, um termo nativo, significa o total de pessoas que o macrobroker estima conseguir mobilizar e influenciar direta ou indiretamente (via microbrokers). Com base nessa estimativa são feitos os acordos. Ocorre que, paralelamente, em 2018, Flores e o então macrobroker (que operava em outra região) Rubens trocaram 10 mil votos:9 9 A quantidade de 10 mil votos é surpreendente e se explica pela capacidade de mobilização desse macrobroker, que atingiu tal patamar que conseguiria, como de fato fez, se candidatar a vereador. Rubens apoiaria Flores com 10 mil votos em 2018 e Flores retribuiria nas eleições municipais de 2020, quando o macrobroker Rubens se candidataria ao cargo de vereador. Flores cumpriu parcialmente o acordo, apoiando em 2020 apenas a Rubens em toda a cidade, exceto nos territórios em que Silas e Júlio haviam fechado acordo com o mandato de Travassos. Findada a eleição municipal de 2020, como Rubens não se elegeu por poucos votos, bem menos do que Silas e Júlio poderiam ter oferecido a ele, criou-se “um mal-estar” entre Rubens e Flores que, se não fosse resolvido, tenderia a dificultar a formação de uma aliança nas próximas eleições, apesar de serem do mesmo grupo político no partido.

A Figura 3, a seguir, destaca (como zoom) no sociograma de 2018 as dobradas que o vereador Travassos apoiou, assim como a relação entre Júlio com Silas (acima, à esquerda), que densifica o vínculo entre Travassos (V) e Flores (DE) desde baixo.

Figura 3
- Apoios Eleitorais A Partir De Travassos (zoom do sociograma de 2018)

O aspecto que queremos destacar aqui é que conexões (políticas, mas também pessoais) entre macrobrokers fazem parte da explicação de como são construídos os apoios eleitorais entre candidatos. Nem sempre elas são construídas pelos próprios candidatos, o que complexifica explicações para o efeito de coordenação observado. Antes do efeito coordenação intra-partidária, existe uma coordenação intra-mandatos e inter-mandatos. A troca pactuada por Silas (MB) e Júlio (MB) precisou primeiramente ser validada pelos mandatos a que pertencem para ter efeito da interação entre eles.

c. Os apoios podem ser múltiplos

A existência de vários vínculos entre candidatos no sociograma já nos sugere que apoios podem ser múltiplos. Continuar a acompanhar o mesmo macrobroker nos ajuda a especificar essa dimensão.

A autonomia de Júlio para decidir quem apoiaria na sua região não prejudicou as dobradas prioritárias em outras áreas, preservando o apoio de Travassos a Arnaldo (DE) e a Campos (DF) a partir da atuação de outros brokers em outros territórios. Quando a dobrada é prioritária, ela recebe mais recursos de campanha e material comum a ambos os candidatos, incluindo por vezes também uma foto do vereador. Em alguns casos, até mesmo o macrobroker consegue a impressão de um material de campanha com o seu rosto estampado junto aos candidatos que ele apoia. Isso tem um impacto importante, pois o eleitor localizado na base dessas redes de mobilização conhece o broker, mas não o deputado federal.

Os candidatos a deputado estadual e federal, além de evidentemente terem apoios de outros mandatos em outras cidades do estado, contam também com múltiplas dobradas em uma mesma cidade. Da mesma forma que um vereador pode apoiar diferentes deputados federais e estaduais, também os deputados estaduais são apoiados por vários vereadores e deputados federais e esses, por vários estaduais e vereadores, como mostram os recortes do sociograma seguir, em que Campos (DF), além de apoiar Arnaldo (DE) também apoia Nélio (DE), como mostra a Figura 4.

Figura 4
- Dobradas do DF Campos com dois DE e um V (zoom do sociograma de 2018)

Nélio (DE), por outro lado, faz dobradas com Campos, além de Ludmila (DF) e Romero (DF), como mostra a Figura 5. As explicações dessas dobradas serão apresentadas a seguir.

Figura 5
- Dobradas do deputado estadual Nélio com três deputados federais (zoom do sociograma de 2018)

d. Ruptura e formação de novos apoios

Uma forma importante de transformação das redes (e dos mandatos) se associa a rupturas de apoios, assim como à construção de novos acordos.

Arnaldo, candidato a deputado estadual que não foi apoiado por Travassos (V) na região em que Júlio (MB) preferiu, junto ao amigo Silas (MB) apoiar Flores (DE), conseguiu fechar parceria com o vereador Ricardo, concorrente de Travassos naquela região. Em troca, Arnaldo (DE) apoiaria a candidatura à reeleição de Ricardo (V) na eleição de 2020. Para deputado federal, Arnaldo fez aliança com Romero (DF), que também se beneficiou dos vínculos do vereador com o território.

Os candidatos Romero (DF) e Arnaldo (DE) esperavam aproveitar essa parceria estabelecida com Ricardo (V) nesse território para replicar a aliança em outra região da cidade, onde o vereador também tem vínculos. Borges (MB), contudo, um broker até então do mandato de Ricardo e bastante influente nessa outra região, não aceitou fazer campanha para Arnaldo (DE) em função de um desentendimento antigo, embora aceitasse trabalhar na campanha para Romero (DF). Em consonância com esse caso, entrevistas apontam que rupturas raramente acontecem de um momento para outro, mas derivam de desgastes acumulados no tempo que acabam por aflorar. Isso gerou uma ruptura de Borges (MB) com o vereador Ricardo, que fazia questão da dobrada com Arnaldo (DE), não apenas para reciprocar apoio em sua campanha em 2020, como por promessas de remuneração a outros brokers, dando como certa a reeleição do deputado.

A partir desse momento, Borges (MB) passou a operar nas eleições sem estar atrelado a um mandato específico, confiante em sua capacidade de entregar votos pela quantidade de microbrokers vinculados a ele, capacidade reconhecida por políticos do partido A. Como também mostra a Figura 6, Romero (DF) aproveitou o contato que havia estabelecido com Borges (MB) para seguir com a aliança na região mesmo sem Arnaldo (DE). Para aproveitar o potencial dessa aliança - que envolvia impressão e divulgação de materiais de campanha conjuntas -, Borges (MB) propôs a Romero (DF) uma dobrada com Nélio (DE), aproveitando que Emília, sua irmã, já trabalhava no mandato de Nélio.

Figura 6
- Ruptura e Formação de Novos Apoios (zoom do sociograma de 2018)

Emília e Borges fazem parcerias entre si, mas nunca tiveram cargos no mesmo mandato. No momento eleitoral, decidem quem vão apoiar por convicções ideológicas e expectativas futuras. Para que não disputem entre si, procuram apoiar os mesmos candidatos. Em 2018, contudo, Emília queria fazer campanha para uma candidata mulher, e não aceitou fazer campanha para Romero (DF). Assim, acabou sendo a responsável pela construção da dobrada de Nélio (DE) com a então vereadora e candidata a deputada federal Ludmila.

A ruptura entre Borges e Ricardo é indicada com um “x”, e o vínculo entre Borges e Emília aparece destacado por uma estrela na Figura 6.

Em conjunto com a história da relação entre os macrobrokers Júlio e Silas e decisões diretamente dos políticos, podemos identificar a ocorrência de dois padrões de formação de dobradas. No primeiro caso, a dobrada eleitoral se forma pela troca de apoio entre dois macrobrokers na base, em que o primeiro MB não apoia diretamente o candidato do segundo MB, mas o apoia por meio deste e o apoio é aceito pelos políticos. Neste caso, temos a representação visual de um quadrilátero MB-DE-V-MB (Figura 7).

Figura 7
- Padrão De Relação Quadrilátero (zoom do sociograma de 2018)

O segundo padrão ocorre quando o macrobroker é responsável pela aliança política diretamente com o candidato. Essa situação pode ser ilustrada com a história do MB Borges que, ao ter rompido com o vereador, decide o deputado que vai apoiar de maneira desvinculada a um mandato. Nesse caso, aliou-se à Emília e, em conjunto, os dois MB apoiaram o mesmo candidato, formando uma tríade MB-DE-DF (Figura 8). Como em termos relacionais vereadores podem operar como macrobrokers de deputados, também se verificam tríades nos casos em que não há interferência dos operadores políticos mais localizados, fechando tríades Vereador-Deputado Estadual-Deputado Federal.

Figura 8
- Padrão De Tríade (zoom do sociograma de 2018)

e. As derrotas eleitorais e a movimentação de brokers

Por fim, outra fonte regular de transformação das redes de mobilização é a movimentação de brokers causada por derrotas eleitorais, levando ao desmonte de gabinetes e à redução do acesso a recursos, embora não necessariamente à desmobilização de mandatos.

Nélio não foi reeleito como deputado em 2018. Com isso, Emília (MB) perdeu o cargo no legislativo estadual, mas, pelo apoio que ofereceu na campanha, ganhou um cargo no gabinete de Ludmila (V), que também não se elegeu para deputada federal, mas voltou para a Câmara Municipal. Nesse cargo, Emília participa concomitantemente de dois mandatos, já que também foi acordado que ela deve levar o nome de Nélio (DE) em suas ações territoriais para aumentar as chances de Nélio na eleição subsequente. Quando Nélio não se reelegeu, também Joca, um macrobroker com expressiva influência, perdeu seu cargo. Em troca da aliança feita em 2018 com Nélio (então DE), Romero (DF) tratou de cuidar da alocação de Joca, e para isso cobrou o favor de Ricardo (V), a quem havia apoiado. Joca passou a integrar seu mandato até 2020. Após a eleição de 2020, Ricardo não se reelegeu naquele pleito e Joca ingressou no mandato de Romero, mas já fora do nosso período.

A Figura 9 representa o conjunto das alianças na eleição de 2020, quando o circuito de apoios e relações se reconfigurou levemente. À esquerda, Rubens, que era um macrobroker em 2018, aparece em 2020 com candidato ao cargo de vereador, apoiado por Flores, agora eleito deputado estadual. Além de apoiar Rubens, Flores (DE) retribuiu o apoio de Travassos na região em que Júlio e Silas costuraram o acordo em 2018. Campos e Arnaldo retribuíram o apoio de Travassos e o apoiaram em 2020; Arnaldo apoiou também Ricardo (V), que passou a contar com Joca (MB), que veio do mandato de Nélio. Borges (MB) mais uma vez decidiu sozinho quem apoiar e apoiou Rubens, convencendo a Romero (DF) a também o apoiar em retribuição ao apoio que o próprio Borges lhe deu em 2018. Ludmila, à direita e abaixo, que não se elegeu deputada federal em 2018, aparece em 2020 como candidata à reeleição como vereadora.

Figura 9
- Vínculos em 2020

À guisa de conclusão

Este artigo analisou a estrutura de mobilização política local do vereador Travassos partindo de certo território da cidade de São Paulo a partir de suas dobradas nas eleições de 2018 e 2020. A partir de dados de pesquisa etnográfica e de entrevistas de profundidade, analisamos as estruturas de médio alcance construídas por seu mandato, seus brokers e sua rede de mobilização política no território, além de trazer narrativas de eventos que explicam a formação dos vínculos e a construção desta rede. A identificação de tal rede, conectando territórios específicos da cidade com campanhas a cargos de vários níveis de poder é, em si, um primeiro achado importante: mesmo a eleição nacional, ao fim e ao cabo, se ancora e depende das escalas mais desagregadas do sistema político. A partir da ampla pesquisa que deu origem a esse artigo podemos afirmar que tal achado tem validade geral para mandatos estaduais ou federais de base territorial (em oposição àqueles organizados principalmente a partir da influência em mídias sociais virtuais). Isso reforça a urgência de integrar escalas locais no centro das análises políticas no país.

Além disso, vários elementos centrais para compreender a coordenação partidária e a mobilização política afloram da análise da rede e seus vínculos. Primeiramente, o suposto de uma parte da literatura de que não há incentivos para o nível local colaborar em eleições de outras escalas evidencia o desconhecimento sobre a operação das estruturas concretas de mobilização política. Como vimos, brokers e vereadores se empenham nas campanhas de deputados porque estes são eventos centrais para: fazer crescer seus vínculos, injetar recursos de campanha no grupo político, testar os vínculos existentes e formar ou fortalecer alianças em eleições municipais que ofereçam segurança de posições remuneradas em mandatos, em caso de derrota eleitoral.

A pesquisa também mostra como as relações pessoais são centrais na construção de apoios eleitorais, mas não de forma dissociada de dimensões institucionais, ou mesmo de estruturas partidárias. Mandatos dialogam densamente com grupos políticos do partido e com gabinetes, embora não se confundam com eles. Essas camadas se adicionam e embricam na construção da estrutura local de mobilização, mas não a sobredeterminam. Mesmo em uma rede de mobilização localizada, observamos alianças que cruzaram fronteiras de pertencimento a grupos políticos intrapartidários, costuradas diretamente por macrobrokers. Estes pertencem a grupos e mandatos, mas seu cotidiano se situa entre as questões partidárias e o cotidiano do território, o que os leva a transitar com maior liberdade para criar alianças desde baixo que podem, inclusive, transformar os próprios grupos internos aos partidos ao longo do tempo. O que observamos como efeito da coordenação partidária não acontece por imposição hierárquica de lideranças partidárias, do deputado para vereadores ou mesmo do vereador para o broker. As alianças eleitorais que resultam em dobradas, embora realizadas no escopo partidário, são resultantes de relações construídas no tempo e espaço de forma dinâmica, incluindo rupturas ou novos contatos.

Vimos também que as relações entre vereadores e brokers são assimétricas, mas os últimos dispõem de recursos de poder significativos e não são inteiramente subordinados aos primeiros. Como em jogos sucessivos, as decisões tomadas nas campanhas interferem na construção de mandatos futuros e nos territórios em que os políticos têm penetração, inclusive pela circulação de macrobrokers entre mandatos. Alianças, assim como derrotas, produzem recomposições de mandatos e realocação de brokers, com intensa disputa pelos que mobilizam territórios mais extensos. Ao se movimentarem entre mandatos, brokers carregam consigo seus vínculos no território e mudam a configuração dos mandatos desde baixo, com efeitos sobre eleições posteriores, e sobre a coordenação interna ao partido.

Observar a questão sobre como se produz coordenação pelo ponto de vista dos processos relacionais operados por mandatos parlamentares adiciona um novo ângulo às explicações que têm sido oferecidas sobre como se produz congruência entre os sistemas nacionais e subnacionais dos partidos. Esperamos com isso contribuir para abrir a “caixa-preta” dos partidos.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Marta Mendes da Rocha, Lucas Gelape e a pareceristas anônimos da revista por comentários a versões anteriores do artigo, sendo o resultado final de nossa inteira responsabilidade. Agradecemos também à Fapesp pelo financiamento da pesquisa no Centro de Estudos da Metrópole pelo programa Cepid (2013/07616-7).

  • 1
    “By the term local political organization, I refer not to the affective ties linking citizens with their communities but, instead, to the efforts of a community´s political leaders to deliver blocs of votes to candidates the leadership prefers” (Ames, 1994, pAMES, Barry. (1994), “The Reverse Coattails Effect: Local Party Organization in the 1989 Brazilian Presidential Election”. American Political Science Review, 88, 1: 95-111.. 95)
  • 2
    Desde 2018, as rachadinhas têm recebido ampla atenção da mídia em função da investigação dos esquemas de corrupção da família Bolsonaro, em especial do senador Flávio e do vereador Carlos, mas também o próprio presidente enquanto deputado. Nesse caso, há indícios de lavagem de dinheiro e organização criminosa pelo qual os políticos contratavam funcionários fantasmas e usavam o valor de suas remunerações em benefício próprio. Esses casos têm reforçado a associação da prática a corrupção sistemática. Contudo, nem sempre esse é o caso, e para entendermos a operação de mandatos políticos é preciso separar a prática de devolução de uma parte do salário dos assessores em si, do seu uso. Isso porque rachadinhas são generalizadas, em especial em grandes cidades, onde os políticos necessitam de amplas redes territoriais de mobilização política.
  • 3
    O mesmo raciocínio de ascensão na carreira pela expansão do território de apoio e das redes de mobilização abaixo de si pode ser aplicada para prefeitos que querem virar governadores, deputados ou senadores.
  • 4
    O cálculo médio com o qual os vereadores trabalharam na última eleição municipal em SP é de R$ 100 de custo por voto, incluindo a impressão de material e contratação de pessoal. Considerando a média de 30 mil votos que tendia a fazer um vereador eleito pela fórmula anterior ao fim das coligações para cargos proporcionais, estamos falando da movimentação de 3 milhões de reais por campanha por vereador.
  • 5
    Autorização concedida pelo entrevistado para divulgação de depoimentos para fins acadêmicos.
  • 6
    Idem.
  • 7
    Esse vereador não está representado do sociograma pois isso ocorreu antes da campanha de 2018. Dessa história restou o vínculo entre Júlio e Silas, que nos ajuda a entender a dobrada eleitoral entre Travassos (V) e deputados em 2018.
  • 8
    Autorização concedida pelo entrevistado para divulgação de depoimentos para fins acadêmicos.
  • 9
    A quantidade de 10 mil votos é surpreendente e se explica pela capacidade de mobilização desse macrobroker, que atingiu tal patamar que conseguiria, como de fato fez, se candidatar a vereador.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2021
  • Aceito
    03 Out 2022
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