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Epistemologia das ciências humanas: (Tomo I: Positivismo e hermenêutica: Durkheim e Weber)

RESENHAS

Uma leitura filosófica de Durkheim e Weber

Alexandre Braga Massella

Ivan Domingues, Epistemologia das ciências humanas (Tomo I: Positivismo e hermenêutica: Durkheim e Weber). São Paulo, Edições Loyola, 2004. 671 páginas.

Reflexões acerca do estatuto das ciências humanas, dos pressupostos lógicos e epistemológicos que as orientam não são relevantes apenas para os filósofos da ciência. De fato, questões sobre a natureza das ciências humanas parecem inevitáveis se partirmos do razoável pressuposto de que há modos alternativos de enfrentar uma série de problemas. Por exemplo, a ciência social compartilha formas de explicação ou metas cognitivas com as ciências naturais, se é que podemos falar destas como um todo homogêneo? Podemos atribuir autonomia explicativa às instituições quando se trata de explicar as ações humanas, ou qualquer correlação que envolva fenômenos sociais deve ser, de alguma forma, inteligível à luz das crenças e dos objetivos dos indivíduos? Ignorar essas questões significa, na prática, delegar a outros a decisão a respeito das opções envolvidas. Além disso, os vários modos alternativos de se praticar a ciência social ainda estão bastante vinculados à tradição filosófica, recorrendo muitas vezes a esta como forma de se justificar e se legitimar. É claro que o praticante, o cientista dedicado a um programa de pesquisa empírica, não pode investir todo o seu tempo a tais controvérsias metodológicas. Espera-se dele, porém, que saiba definir racionalmente sua posição no debate e exemplificar a fertilidade desta com as pesquisas empíricas que realiza. A relevância da epistemologia em particular pode ser formulada de maneira simples: se as ciências sociais pretendem proporcionar um conhecimento científico da realidade, elas não podem negligenciar a questão sobre o que é afinal este conhecimento.

O livro de Ivan Domingues1 1 Resultado da tese de habilitação para professor titular apresentada pelo autor no Departamento de Filosofia da UFMG em 2002. pode ser inserido neste âmbito de problemas. Trata-se de uma obra de filosofia ou, mais precisamente, de "epistemologia aplicada", inspirada na escola francesa de G. Bachelard e G. Canguilhem. Sua intenção não é meramente exegética: a reconstrução dos textos dos dois autores mais enfatizados, E. Durkheim e M. Weber, é orientada por determinados problemas, pela tentativa de extrair dos autores as soluções e explicitar certas lacunas de seus pensamentos.

A mesma pergunta é dirigida aos autores: como pensam a questão da fundação das ciências humanas. A resposta não seria a mesma, e Domingues procura, assim, fixar os "parâmetros epistemológicos" que permitiriam dar conta tanto da unidade de meta (fundar as ciências humanas) como da diversidade dos métodos empregados. Haveria diferentes formas de racionalidade nas ciências humanas, o que permitiria traçar uma tipologia das formas de racionalidade, segundo as modalidades de tratar a "diferença e a diversidade do social" (p. 22): em Durkheim, teríamos um pensamento que tende para as dicotomias; em Weber, um pensamento que combina dualidades com esquemas triádicos. Mas não se pense que o autor impõe esses esquemas de forma rígida às obras que analisa, nem que tome as dicotomias como algo que definiria a essência do pensamento. De fato, trata-se mais de uma orientação inicial, cujo poder analítico reside principalmente na exploração das decisões metateóricas alternativas envolvidas no uso das dicotomias. Por exemplo, é preciso decidir entre a natureza contínua ou descontínua do espaço das relações em que as categorias dicotômicas se inscrevem, sobre a natureza das relações entre os pólos (contraditórios ou complementares), ou, ainda, sobre o caráter dinâmico ou estático das dicotomias. São essas decisões, e a enumeração acima não é exaustiva, que Domingues explora em suas análises. Assim, se as dicotomias abundam no pensamento de Durkheim, Domingues assinala como não é homogêneo o modo pelo qual são operadas. Há dicotomias que são pares complementares, como as noções de regulação e integração, há outras que são contraditórias e opostas, como a dos tipos de suicídio altruísta e egoísta e há ainda dualidades em meio às quais se inserem formas de transição e tipos mistos, como as noções de suicídio ego-anômico ou anômico-altruísta. Talvez valesse a pena aqui prolongar a análise e, valendo-se do inventário das dicotomias efetuado pelo autor, discriminar os diferentes níveis de abstração em que essas se inserem ou os diferentes papéis teóricos e metateóricos que desempenham no pensamento de Durkheim. O autor aponta para esse tipo de análise ao sugerir que a noção durkheimiana de homo duplex representa uma "teoria metafísica da natureza humana" que não se integra com as dualidades fundadoras presentes em O suicídio. Mas parece interessar mais a Domingues a pergunta pela dualidade fundamental da teoria social de Durkheim. A resposta que encontra são as várias dicotomias empregadas por Durkheim em obras como A divisão do trabalho social (solidariedade mecânica/solidariedade orgânica), O suicídio (integração/regulação) e As formas elementares da vida religiosa (sagrado/profano). Com efeito, e esta é provavelmente a raiz da dificuldade de distinguirmos uma dualidade fundadora em seu pensamento, Durkheim associava o trabalho teórico à pesquisa empírica de um problema determinado, evitando especulações no vazio e tentando se afastar assim da filosofia social e de sua busca por noções fundamentais que tudo explicariam.

No caso de Weber, também teríamos, além das dualidades, a incorporação de formas mistas e de tríades, divisões que o autor exemplifica com as noções que Weber elabora em sua sociologia da religião. Mas, diferentemente de Durkheim, os elos intermediários entre as noções dicotômicas não são considerados por Weber como casos especiais. Tratar-se-ia de uma diferença de "índole ou de temperamento", assim formulada pelo autor: Durkheim estaria mais próximo de uma visão "holística e reconciliada da sociedade", ao passo que Weber endossaria uma "visão fragmentada e tensionalizada" (p. 590).

Indicamos a seguir os temas que, além da tipologia das formas de racionalidade, orientam sua investigação. Em primeiro lugar, o chamado "argumento do criador do conhecimento", segundo o qual "do real só podemos conhecer efetivamente aquilo que nós mesmos criamos" (p. 34). Esse argumento seria o "núcleo duro" da teoria do conhecimento, dando lugar a uma epistemologia construtivista moderna, com suas variantes instrumentalista, operacionalista, pragmatista e realista, sucintamente caracterizadas pelo autor. Nas ciências humanas, todas essas posições teriam sido acolhidas, com exceção do instrumentalismo e do operacionalismo.2 2 Seria preciso lembrar, entretanto, da forte influência que o operacionalismo exerceu na psicologia comportamental, além da obra de G. A. Lundberg no âmbito da sociologia. O problema e o paradoxo de uma epistemologia construtivista, que enfatiza o papel do sujeito do conhecimento e de suas categorias mentais, são bem conhecidos dos filósofos: se nosso aparato conceitual determina tudo o que observamos, então a observação não proporciona uma instância de controle independente, com a qual confrontamos nossas crenças; se, por outro lado, renunciarmos à tese de que os conceitos determinam a observação, então o que observamos passa a ser algo não conceituado, isto é, sem forma e não descrito, sendo assim novamente incapaz de fornecer qualquer teste para nossas crenças.3 3 Este problema foi analisado por I. Scheffler, Science and subjectivity, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1982. O autor poderia, neste passo, explorar a distinção que Durkheim estabelece, em As regras do método sociológico, entre sensação subjetiva e sensação objetiva. Trata-se de uma distinção epistemológica que tenta livrar a noção de sensação (objetiva) das possíveis conotações psicológicas que a vinculariam a determinados órgãos dos sentidos. Domingues prefere, porém, ressaltar a tese filosófica mais geral acerca da "estrutura invencivelmente circular do processo cognitivo".

Em segundo lugar, há o parâmetro fornecido pela noção de paradigmas ou modelos. Em Durkheim, por exemplo, o paradigma (entendido como "segmento do real que aloja o princípio das coisas ou o ente tido como a realidade por excelência", p. 52) seria o organismo, que proporcionaria ao sociólogo "tudo o de que ele precisa para levar a cabo suas investigações": o objeto, o método de observação objetiva, as categorias de grupo, de função e de causação e a regra metodológica de afastar as idéias prévias e tomar os fatos sociais como coisas (p. 64). Domingues tende a considerar esta instância do paradigma como determinante ou como logicamente anterior em relação a outras instâncias (teoria, métodos e técnicas). Ao que parece, é como se tudo pudesse ser dela deduzido e esses níveis não desfrutassem de uma relativa independência. Cabe lembrar porém que, na história da sociologia, decisões relativas a um determinado nível podem ser compatíveis com diferentes posições assumidas em outros níveis: modelos funcionais, por exemplo, são empregados tanto por marxistas como por teóricos de índole conservadora. Convém ressaltar também que Durkheim impunha limites estritos à analogia entre sociedade e organismo: "Reconhecemos de boa vontade que a sociedade é um tipo de organismo; mas não vemos como este aforismo funda a ciência. Se entendermos, com isso, que uma nação é composta por elementos coordenados e subordinados uns aos outros, não fazemos mais do repetir um verdadeiro truísmo. Se quisermos, com isso, dizer que o estudo da vida individual é uma excelente preparação ao estudo da vida social, estaremos dando um bom conselho para os futuros sociólogos. Mas se formos além, se considerarmos a sociologia uma nova aplicação dos princípíos biológicos [...], então estaremos impondo a esta ciência condições que acabarão por tornar mais lento o seu progresso".4 4 E. Durkheim, "Organisation et vie du corps social selon Schaeffle", em V. Karady (org.), Durkheim – textes: éléments d'une théorie sociale, Paris, Minuit, 1973.

Em terceiro lugar, há o parâmetro constituído pelas categorias de descrição, explicação e interpretação. Neste ponto, o autor avança a hipótese de que o esvaziamento dos paradigmas clássicos nas ciências humanas passa por esse tripé metodológico (p. 19).

Por fim, o autor introduz o parâmetro da objetividade, o último elemento que caracteriza as formas de racionalidade e as estratégias discursivas.

Esses elementos fornecem as coordenadas para a análise das obras de Durkheim e Weber. Em relação a Durkheim, Domingues concentra seu estudo nas obras O suicídio e As formas elementares da vida religiosa, por considerar que A divisão do trabalho social tem uma "densidade científica" menor no interior da obra durkheimiana e que As regras do método sociológico "não legislam nem recobrem as soluções epistemológicas encontradas por Durkheim tanto no Suicídio como nas Formas" (p. 201). De Weber, o autor privilegia os textos metodológicos e a sociologia da religião.

Sua análise não é apenas reconstrutiva, mas também crítica, chegando por vezes a avaliações contundentes. Assim, após apresentar as teses de Durkheim em O suicídio, Domingues considera que "a impressão que resta é que o sociólogo passa ao largo da coisa (o suicídio) e fica girando em torno do fenômeno, comparando, medindo, correlacionando, e que o essencial não é respondido: por que afinal alguém se suicida?" (p. 242).

Vale notar que o autor não se limita ao âmbito propriamente epistemológico na análise dos autores. Ao discutir o problema da base empírica de O suicídio, Domingues desloca o seu foco de análise, isto é, ele não enfatiza tanto as questões especificamente epistemológicas, como a do tipo de dado que Durkheim privilegia e quais as razões que esse autor alega para deixar de lado os relatos ou as motivações apresentadas pelos suicidas. O epistemólogo certamente teria o que dizer para nos esclarecer acerca da natureza da base empírica selecionada por Durkheim: por que as taxas estatísticas, mais do que os relatos deixados pelo suicida e interpretados pelos que o cercava, têm aos olhos do sociólogo um valor de conhecimento? É verdade que o autor aponta o privilégio concedido por Durkheim às formas objetivadas dos fenômenos sociais. A matriz positivista do pensamento de Durkheim "leva-o não só a recorrer aos dados da observação e da experiência para catalogar o suicídio, como também a tabelas ou quadros estatísticos, tanto para 'objetivar' o fenômeno como para 'mostrar' a verdade dele". Mas a análise de Domingues, quanto a este aspecto, não explora as ressalvas de Durkheim às noções do senso comum relativas à motivação da ação. Em compensação, ganhamos um balanço crítico cuidadoso dos comentadores que apontam supostas falhas substantivas na base empírica de O suicídio.

Um dos parâmetros que orientam sua análise e que nos parece o mais rico é o "tripé metodológico" constituído pela descrição, explicação e interpretação (compreensão).

A descrição envolve "recortes, seleções e abstrações do real", organizando a base empírica. No plano da ação social, além dos aspectos objetivos dos comportamentos dos homens, a descrição deverá incidir sobre um "conjunto de elementos subjetivos, tais como as intenções, os sentimentos, a consciência, os valores e os fins visados pelos agentes". As descrições devem ser orientadas por hipóteses a respeito do sentido dos acontecimentos históricos ou das ações.

A explicação indaga como os fenômenos se comportam, "à luz de uma origem, de uma estrutura ou de um fim". O autor chama sempre a atenção para a integração dos níveis de análise: assim, uma mesma base factual seria compatível com mais de uma explicação causal, ficando a escolha da causa a depender de um contexto mais amplo, que se decidiria em outro nível de análise. Esse contexto seria da ordem da interpretação, e, portanto, da teoria, que introduz hipóteses, modelos e postulações de sentido. A interpretação estaria mais "descolada" do empírico, inserindo-se num nível teórico ou até mesmo "subjetivo" e voltando-se para o significado dos fenômenos – o modo pelo qual nós os significamos, bem como a forma pela qual eles nos "interpelam ou nos afetam". Mas, na avaliação de Domingues, quando as ciências humanas se puseram a investigar a questão do sentido mediante métodos empíricos, o resultado foi uma "embrulhada sem fim entre os fatos e as significações" (p. 125).

Descrição, explicação e interpretação se confundem, desafiando as tentativas de distinção e separação e gerando a necessidade de articulá-las e correlacioná-las (p. 129). Para Domingues, o elemento interpretativo, entendido como o esforço de elucidação do sentido, é o que teria maiores chances de desempenhar um papel preponderante no método.

Vejamos como, segundo o autor, Durkheim teria articulado, em O suicídio, a descrição, a interpretação e a explicação. Junto com a descrição vem a definição: haveria uma operação conceitual, com seus engajamentos teóricos, do lado da definição, e uma operação empírica, baseada nas notas de observação, do lado da descrição (p. 224). É interessante notar que, para Domingues, Durkheim introduz a definição sociológica do suicídio após excluir os fatores que a literatura normalmente atribuía ao suicídio, como o clima, as raças e as doenças mentais. A definição que Durkheim oferece na Introdução, antes de qualquer outro procedimento comparativo envolvendo as taxas de suicídio, seria provisória e, segundo Domingues, insatisfatória na avaliação do próprio Durkheim "por mais de uma razão". Durkheim, porém, segundo lemos na Introdução de O suicídio, defende sua definição argumentando que ela teria um rendimento teórico ao aproximar fatos de devoção e coragem a atos de imprudência ou simples negligência. Este detalhe poderia ser melhor explorado, tanto mais que Domingues é particularmente atento à carga teórica que informa a observação e aos procedimentos conceituais e dialéticos empregados por Durkheim. Também no caso das formas elementares da vida religiosa, Domingues reduz a definição de religião dada por Durkheim a um procedimento meramente nominal (p. 275), em que o termo "religião" é trocado pelo termo "sagrado", aparentemente sem ganho de conhecimento. Seria pertinente levar em conta aqui a análise de F. A. Isambert,5 5 F. A. Isambert, "L'élaboration de la notion du sacré dans l'école durkheimienne". Archives de Sciences Sociales des Religions, 42, 1976. que compara a definição de religião dada por Durkheim em As formas elementares com uma definição anterior elaborada pelo mesmo autor em um artigo para o L'Année Sociologique. A definição dada em As formas elementares refletiria um possível progresso no conhecimento do fenômeno religioso, graças ao enriquecimento da noção de sagrado proporcionado pelos trabalhos de H. Hubert e M. Mauss. Uma vez mostrada, por Hubert e Mauss, a pertinência do conceito de sagrado para dar conta das características rituais do sacrifício, uma definição de religião que recorresse a este conceito poderia ser introduzida com ganho de conhecimento.

Ultrapassada a etapa descritiva, da qual a tipologia classificatória dos quatro tipos de suicídio fariam parte, Durkheim introduziria os esquemas explicativos. Domingues parece identificá-los com as correlações estatísticas estabelecidas por Durkheim, que envolvem variáveis como estado civil, credo religioso, idade ou local de residência. A explicação seria de natureza "operacional, empírica e concreta" (p. 270). Não vemos muito bem como esta etapa vai além da tipologia classificatória, já que os tipos de suicídio são constituídos justamente após o estabelecimento das proposições empíricas.

O momento interpretativo, por fim, se dá quando Durkheim propõe o sistema de forças integrativas e regulativas como causas do suicídio. Neste passo, Durkheim passaria da ordem do visível para a do invisível (p. 233): a interpretação é de ordem "teórica, transempírica e abstrata" (p. 270). A idéia de Durkheim seria a de que "o terreno das causas e das leis é o domínio do invisível, devendo o cientista esforçar-se por descobrir e mostrar o laço que une o invisível ao visível, mediante meios muitas vezes indiretos". Domingues comenta que Durkheim nunca explicitou esta idéia. No entanto, um início de formulação pode ser encontrado em certas passagens da obra do sociólogo: em As regras do método sociológico, por exemplo, lemos que o conhecimento das coisas "passa progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e mais profundos"; no artigo "Representações individuais e representações coletivas", há uma formulação ainda mais explícita.6 6 A formulação é a seguinte: "embora um fenômeno não seja claramente representável ao espírito, não se tem o direito de negá-lo, desde que se manifeste por efeitos definidos, estes representáveis e que servem de indícios para aqueles. Nós o imaginamos então, não por ele próprio, mas em função desses efeitos que o caracterizam. Aliás, não há ciência que não seja obrigada a usar tal artifício para atingir as coisas de que cogita. Ela vai de fora para dentro, de manifestações exteriores e imediatamente sensíveis às características internas que tais manifestações revelam" (E. Durkheim, "Representações individuais e representações coletivas", em Sociologia e filosofia, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1970, p. 33). Esses reparos que propomos não atingem porém a tese mais forte de Domingues, a saber, a de que haveria um procedimento em três etapas – descrição, explicação e interpretação – operando no estudo de Durkheim. Mas talvez a distinção entre a explicação e a interpretação pudesse ser traçada de outra forma, explorando-se o modo pelo qual Durkheim tenta especificar como o individualismo desmesurado pode gerar o suicídio. É neste momento que são inseridos os elos de significação, e o meio social surge como o núcleo que confere sentido à vida do indivíduo adulto e civilizado. É claro que a questão é controversa, e Domingues endossa a posição, bastante razoável como interpretação do pensamento durkheimiano, de que o modo pelo qual a sociedade determina os comportamentos seria por meio de sentimentos e motivações psíquicas e não por meio de forças morais (p. 238).

Em Weber, Domingues ressalta que a descrição, ou a base observacional, além de ser "seletiva, perspectivística e incompleta" é bastante variada quanto às fontes e à escala. E, mais importante, a descrição já está informada pela meta cognitiva de captar o sentido da ação, sentido que seria da ordem do inobservável e cuja captação dependeria, portanto, de "postulações teóricas e inferências indiretas". A explicação assume a forma de conexões causais, que não teriam uma direção única determinada por um fator social privilegiado, funcionais e teleológicas (que seria um tipo de causalidade reabilitada por Weber). No caso da causalidade histórica, o autor ressalta que as hipóteses contrafactuais são decisivas no método weberiano. A interpretação, muitas vezes identificada por Weber com a compreensão, restitui o sentido das ações e das relações sociais, incorporando elementos normativos: haveria um hiato entre a decifração do sentido e a explicação e a observação dos fatos. Esses três planos estariam de tal forma articulados que, nas palavras de Domingues, "descrever já é interpretar, do mesmo modo que interpretar é descrever, nem mais nem menos que explicar e interpretar é descrever, e vice-versa" (p. 416). Neste ponto o autor considera necessário ir além da tarefa exegética de interpretar os textos de Weber, apontando que há uma instância abrangente, a compreensão, que, além de recobrir e articular todos os passos do método weberiano, seria a única responsável pela especificidade das ciências humanas (p. 519). A idéia de Domingues parece ser a de que a interpretação, isto é, o trabalho de elucidação do sentido da ação, deve ser orientado por uma teoria da ordem da compreensão (p. 416): ressalta-se assim que o trabalho de descrição, explicação e interpretação é orientado por uma teoria. Caberia indagar porém se a explicação causal e a interpretação dos sentidos da ação não são, para Weber, dois modos paralelos de explicação e em que condições um pode servir de apoio ao outro.

O livro de Domingues contém outros temas que mereceriam uma consideração mais detalhada, como a questão da verdade, do lugar conferido ao sujeito do conhecimento por Durkheim e Weber e das relações entre a moral e a ciência. O leitor encontrará em várias passagens amplos vôos panorâmicos pela história da filosofia, ao final dos quais são introduzidas e ponderadas as concepções dos autores tratados. Há ainda uma tese mais ambiciosa relativa ao tipo de conhecimento instaurado pelas ciências humanas: um conhecimento objetivo da realidade histórico-social, que tende a instalar os fenômenos sociais como um conjunto de formas objetivadas. A contraparte desse privilégio teria sido a "condenação das vias introspeccionistas e de toda consideração acerca de aspectos ou fatores subjetivos, como os sentimentos, as volições, as idealizações e os valores, tidos como indignos da ciência". No plano epistemológico, o resultado disso foi "o esquecimento dos princípios e meios de objetivação, resultantes do trabalho do pensamento e dependentes do sujeito" (p. 23). A solução, sugerida na conclusão do livro, seria reconhecer a "dupla dependência do conhecimento do sujeito e do objeto, o objeto pivoteado pelo real e arrancando o sujeito de si mesmo, o sujeito pivoteado pelo eu e mergulhando o objeto dentro de si mesmo ou na consciência de si" (p. 650). O tema deverá ser aprofundado no segundo tomo prometido pelo autor, dedicado às obras de Marx e Lévi-Strauss.

Notas

ALEXANDRE BRAGA MASSELLA é doutor em sociologia pela universidade de São Paulo.

  • 1
    Resultado da tese de habilitação para professor titular apresentada pelo autor no Departamento de Filosofia da UFMG em 2002.
  • 2
    Seria preciso lembrar, entretanto, da forte influência que o operacionalismo exerceu na psicologia comportamental, além da obra de G. A. Lundberg no âmbito da sociologia.
  • 3
    Este problema foi analisado por I. Scheffler,
    Science and subjectivity, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1982.
  • 4
    E. Durkheim, "Organisation et vie du corps social selon Schaeffle", em V. Karady (org.),
    Durkheim – textes: éléments d'une théorie sociale, Paris, Minuit, 1973.
  • 5
    F. A. Isambert, "L'élaboration de la notion du sacré dans l'école durkheimienne".
    Archives de Sciences Sociales des Religions, 42, 1976.
  • 6
    A formulação é a seguinte: "embora um fenômeno não seja claramente representável ao espírito, não se tem o direito de negá-lo, desde que se manifeste por efeitos definidos, estes representáveis e que servem de indícios para aqueles. Nós o imaginamos então, não por ele próprio, mas em função desses efeitos que o caracterizam. Aliás, não há ciência que não seja obrigada a usar tal artifício para atingir as coisas de que cogita. Ela vai de fora para dentro, de manifestações exteriores e imediatamente sensíveis às características internas que tais manifestações revelam" (E. Durkheim, "Representações individuais e representações coletivas", em
    Sociologia e filosofia, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1970, p. 33).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2005
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