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DOLCE FARMEME: a retórica da brincadeira política

DOLCE FARMEME: the rhetoric of political play

Abstracts

Resumo

Este artigo se propõe a discutir como a brincadeira política pode ser lida como uma estratégia retórica, apresentada em defesa de posições reacionárias expressadas publicamente por atores políticos do campo conservador. O texto divide-se em três momentos: no primeiro deles, relativiza-se a posição de alguns autores, segundo a qual a brincadeira seria um repertório tipicamente empreendido por grupos reprimidos. A seguir, recupera-se o debate do campo de estudos críticos do humor, a respeito de piadas racistas e misóginas. Por fim, propõe-se a brincadeira como uma tese adicional às retóricas da intransigência, conforme formuladas por Hirschman.

Palavras-chave:
Brincadeira política; Humor e política; Retórica reacionária; Extrema-direita; Bolsonaro


Abstract

This article aims to discuss how political play can serve as a rhetorical strategy, presented in defense of reactionary positions publicly expressed by political actors from the conservative field. The argument is divided into three stages: in the first one, the assumption that play could represent a repertoire typically used by repressed groups is confronted. Next, the article reviews the debate from critical humor studies regarding racist and misogynistic jokes. Finally, play is proposed as an additional thesis to the rhetoric of reaction, as formulated by Hirschman.

Keywords:
Political play; Humor and politics; Reactionary rhetoric; Far-right; Bolsonaro


1. Farmeme

Considere o texto do seguinte tweet de Eduardo Bolsonaro, publicado no dia 19 de dezembro de 2019: “Será que sou um criminoso por esse humor político? Nunca imaginei que fosse falar isso, mas: seja resistência, faça memes!” O que se segue é uma fotomontagem com a imagem da deputada Joice Hasselmann em dois momentos, fazendo escárnio de seu ganho de peso.

A desavença pública entre Hasselmann e o terceiro filho do presidente Jair Bolsonaro ganhou uma sequência de outras postagens misóginas a título de piada. Em outro tweet, de 17 de dezembro de 2019, Eduardo Bolsonaro diz ainda: “Os memes são a maior ameaça à democracia. [...] Seria essa simples e fofa foto um afronte à democracia? Bom dia a todos! #farmeme”. A hashtag #farmeme já havia sido adotada pelo deputado entre setembro e outubro do mesmo ano. Ele dizia então, “Pare de fazer memes. Meme é crime. Memes matam...”, ou aconselhava, “O que a gente tem que fazer agora? FARMEME!”1 1 Os tweets podem ser acessados, respectivamente, a partir dos seguintes links: <https://twitter.com/bolsonarosp/status/1207779503294025728>, <https://twitter.com/bolsonarosp/status/1206916051193217025>, <https://twitter.com/bolsonaroSP/status/1187762400117903361> e <https://twitter.com/bolsonarosp/status/1178634938809233413>. Acesso: 22/02/2020.

O objetivo deste artigo não é discutir o papel dos memes de internet no ambiente democrático, nem argumentando favoravelmente à sua relevância discursiva, nem diminuindo sua eficácia, apresentando-os como mero produto do entretenimento. Este debate, ao que tudo indica, já foi superado (CHAGAS, 2020CHAGAS, Viktor. (2020), A cultura dos memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital. Salvador: EdUFBA.; MINA, 2019MINA, An Xiao. (2019), Memes to movements. Nova Iorque: Beacon Press.; DENISOVA, 2019DENISOVA, Anastasia. (2019), Internet memes and society. Nova Iorque: Routledge.; SHIFMAN, 2014SHIFMAN, Limor. (2014), Memes in digital culture. Cambridge: MIT Press.).

O farmeme, por outro lado, não se trata de uma prática que se limite às circunscrições da internet. A expressão é uma corruptela idiocultural provavelmente primeiro proferida em um vídeo do canal de YouTube Brasileirinhos, intitulado “esporro do palhaço”, e publicado originalmente em 18 de maio de 2018.2 2 Disponível em: <http://youtu.be/UwzIdWPk5iQ>. Acesso: 22/02/2020. No vídeo, o âncora do canal, fantasiado de clown, incentiva a audiência a zombar de adversários:

“Mermão, não é nem para bater nesses caras. Se depender de mim, não toca nem em um fio de cabelo dos barbudinhos. Deixa nego gritar, chamar de fascista. [...] Os caras viraram feminista, comunista, essas porras, porque não tiveram a devida atenção em casa. Deixa os caras com essa natureza amarga. [...] Mas... O que nós devemos fazer agora? Memes! Farmeme! Zoa. Os caras saem na rua, vocês vão lá zoar para caralho. [...] Zoa até esses caras até terem vergonha, [...] ficar escondido. [...] Eles só têm a autoimagem reforçada pelo grupo. Eles só têm a vaidade. [...] Cara, eles se levam a sério. [...] Eles estão dentro do teatro e não conseguem sair. Esqueceram que é retórica, foram absorvidos pela retórica. Estão presos dentro da retórica. Isso é uma forma de doideira. Então, mané, não é para bater nesses caras. Se o cara te chamar de fascista, chama de fascista de volta, vai queimar o fuzil [sic] do cara, ele não espera por isso. Eles vão ficar loucos. Todo mundo é fascista, ninguém é fascista, o xingamento se desgasta!”

Como palavra de ordem, farmeme passou a ser entoado por diferentes milícias digitais e grupos conservadores, como forma de aclarar um repertório de ação baseado na brincadeira e no deboche. Mas o caráter ativista do farmeme é lastreado por uma retórica que o precede e vem sendo rotineiramente empregada por representantes de órgãos públicos e autoridades políticas brasileiras nos últimos meses. Por exemplo, em setembro de 2018, durante a campanha eleitoral para a presidência, Jair Bolsonaro foi filmado empunhando um tripé de câmera, simulando um fuzil e disparando aos microfones: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre!”, uma referência à militância do Partido dos Trabalhadores (PT). Questionado na Justiça, o então candidato minimizou: “foi uma brincadeira, como sempre”.3 3 Ver: <https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-diz-que-ameaca-de-assassinatos-foi-brincadeira>. Acesso: 22/02/2020. A mesma justificação foi utilizada em entrevista à Rádio Jovem Pan, em outubro de 2018, quando perguntado sobre a afirmação de que havia tido quatro filhos homens e uma menina, esta última, resultado de uma “fraquejada”. Bolsonaro então disse se tratar de uma “brincadeira que homem faz”, e seguiu afirmando que “Não faço mais esse tipo de brincadeira. Levam para a maldade, como se eu fosse um inimigo das mulheres”.4 4 Ver: <https://www.opovo.com.br/noticias/politica/2018/10/brincadeira-que-homem-faz-diz-bolsonaro-sobre-filha-fraquejada.html>. Acesso: 22/02/2020. Declarações semelhantes foram dadas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, e outros agentes públicos. O recurso à brincadeira foi também dispensado pela desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em janeiro de 2019, após sugerir, em um post no Facebook, o assassinato do então deputado Jean Wyllys como uma “execução profilática”. Tendo ganhado repercussão, a fala foi prontamente corrigida como uma “brincadeira”, com uma explicação adicional: “a esquerda é dona de um mau humor profundo”.5 5 Ver: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-25/sugestao-executar-jean-wyllys-foi-brincadeira-desembargadora>. Acesso: 22/02/2020.

A brincadeira tem se configurado em uma retórica intransigente (HIRSCHMAN, 2019HIRSCHMAN, Albert O. (2019), A retórica da intransigência. São Paulo: Companhia das Letras.), apresentada em defesa mormente de posições reacionárias proferidas publicamente por atores políticos do campo conservador. “Era apenas uma brincadeira” tornou-se uma resposta recorrente para questionamentos sobre os limites das ações e falas de autoridades, a respeito de opiniões antidemocráticas direcionadas a grupos minoritários ou indivíduos específicos, em função de contrastes ideológicos, e na direção da afirmação de estereótipos e estruturas de dominação manifestas no âmbito do cotidiano. Este artigo pretende explorar a tese incutida nesta justificação como uma expressão retórica, com significado político evidentemente reacionário, e que se apropria da ambivalência (PHILLIPS e MILNER, 2017PHILLIPS, Whitney; MILNER, Ryan. (2017), The ambivalent internet. Cambridge: Polity Press.) e do aspecto intersubjetivo do humor (FINE, 1983FINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag.). O argumento divide-se em três momentos distintos. No primeiro deles, procura-se discutir como a brincadeira caracteriza simultaneamente uma retórica e uma ação performática, com vistas à proposição de ajustes políticos a partir de constrangimentos institucionais (BENNETT, 1979BENNETT, W. Lance. (1979), “When politics becomes play”. Political Behavior, 1, 4.). A seguir, discute-se o aspecto metacomunicativo da brincadeira, isto é, o conjunto de níveis de abstração demandados interpretativamente por aqueles que brincam, de modo a manterem-se cientes do enquadramento que se lhes compete (BATESON, 1972BATESON, Gregory. (1972), “A theory of play and fantasy”. In: BATESON, G. Steps to an ecology of mind. Nova Iorque: Ballantine.). Em um terceiro momento, reflete-se sobre a condição ocupada pela brincadeira no espectro político. Muito se tem argumentado recentemente a respeito de um cenário de reacionarismo exacerbado, descrito por alguns autores como um backlash cultural (INGLEHART e NORRIS, 2016INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa. (2016), “2016 Trump, Brexit, and the rise of populism: economic have-nots and cultural backlash”. HKS Working Paper No. RWP16-026, julho de 2016.). No entanto, mais estudos são necessários para se compreender como estes atores têm se apropriado da retórica da brincadeira para constituir uma comunidade de apoiadores às suas ideias. Embora ao longo de todo o artigo, ele seja cotejado de exemplos circunspectos à atual conjuntura nacional, tais episódios têm menos um caráter de levantamento sistemático de casos em que a retórica da brincadeira foi empregada como justificação para malfeitos ou proferimentos de caráter autoritário, do que uma intenção de realçar características comuns a esses usos recursivos. Mas em que se fundamenta a tese da tolerância e da normalização da brincadeira? Por que a brincadeira não é, afinal, apenas uma brincadeira? A avaliação que aqui se pretende fazer não diz respeito à natureza linguística ou discursiva dessas falas, mas aos desdobramentos simbólicos e interacionais que lhes atravessam. A ênfase desta investigação, portanto, recai sobre as relações sociais entre os sujeitos envolvidos na brincadeira, as regras contextuais em que ela está baseada e o humor idiocultural que a inspira.

2. O esporro do palhaço

O “esporro do palhaço”, segundo o qual as esquerdas não sabem brincar, segue em sentido contrário à origem do debate sobre os usos políticos da brincadeira. Na literatura, desde a carnavalização, de Bakhtin ([1965] 1987)BAKHTIN, Mikhail. (1987), A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec., seguida pelo Grande Massacre dos Gatos, de Darnton (1984), aDARNTON, Robert. (1984), O grande massacre de gatos. São Paulo: Paz e Terra. brincadeira é subsequentemente explorada como uma tática subversiva ou uma circunstância em que as classes populares são autorizadas a caçoar das elites. É, assim, uma forma de resistência, mas também de negociação e desobediência. E seria comumente empregada pelos setores progressistas, face aos anseios populares. Como foi então que a direita aprendeu a brincar? A chave para compreender o “palhaço” está no instante seguinte de seu discurso, quando ele dá pistas de que a sátira deve ser empreendida como retórica.

Ao passo que a brincadeira é geralmente descrita como uma atividade autotélica (PIAGET, 1975PIAGET, Jean. (1975), A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar.), em oposição a um entendimento anterior de que ela poderia constituir-se como mero exercício sensório-motor, afetivo ou intelectivo (GROOS, 1901GROOS, Karl. (1901), The play of man. Nova Iorque: D. Appleton and Company.), a retórica da brincadeira desenvolve-se frequentemente em uma dimensão pragmática, com implicações políticas sobre os que dela tomam parte. É, então, importante diferenciar a brincadeira em sua expressão descompromissada da brincadeira política.

A conceituação de brincadeira política (political play) é herdada de W. Lance Bennett (1979)BENNETT, W. Lance. (1979), “When politics becomes play”. Political Behavior, 1, 4., que a define como a forma de brincadeira social mais dramática e que reserva mais consequências. Segundo o cientista político, ela ocorre quando expressões de significado privado são atribuídas a ações públicas, e incide sobre um questionamento à autoridade e às relações de poder como fontes de alienação. Ela se propõe a operar mudanças sociais, através da interpretação da realidade em representações absorventes. Bennett se utiliza essencialmente de duas matrizes teóricas distintas para construir sua definição. A primeira delas se reporta às viradas linguística e cultural. Desse paradigma teórico, o pesquisador se apropria da noção de jogo absorvente (deep play), que Geertz ([1978] 1981)GEERTZ, Clifford. (1981), A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. constrói, para chamar a atenção para como a brincadeira deve ser tratada como uma experiência interpretativa, isto é, uma realidade simbólica e meta-social, que não apenas explica, mas redefine e transforma a realidade. Paralelamente, Bennett incorpora também o paradigma construtivista e evoca Piaget (1975)PIAGET, Jean. (1975), A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar. para sustentar que a brincadeira pressupõe uma operação de assimilação de um estado de coisas, que não é apenas um processo de aprendizagem, mas de construção ativa da realidade. De acordo ainda com a conceituação seminal do autor (BENNETT, 1979BENNETT, W. Lance. (1979), “When politics becomes play”. Political Behavior, 1, 4.), a brincadeira se afirma como uma atividade cooperativa, centrada em torno de símbolos comuns de autoridade, que são, por seu turno, transformados em objeto de sátira. Ela tende a envolver comportamentos reconhecidamente familiares, generativos e imitativos, que são imediatamente lidos como metáforas ou personificações; e, por isso, permite um alto grau de expressão privada de sentimentos, dando vazão à performatização de temas dramáticos, que confrontam a autoridade do Estado ou de instituições consolidadas. Não obstante, ela ocorre em cenários sociais em que as liberdades individuais sofrem algum tipo de restrição, e é, desse modo, descrita como um expediente largamente adotado por grupos reprimidos ou marginais. É nesse ponto, precisamente, que se encontram as primeiras críticas a respeito do conceito cunhado por Bennett, pois o autor não investe sua discussão de uma abordagem crítica, em que a brincadeira pode, ela própria, ser cooptada pelas instâncias de poder constituídas.

Vale dizer, diferentes esforços teóricos e empíricos relacionam a noção de brincadeira à prática política (STREET et al.; 2012STREET, John; INTHORN, Sanna; SCOTT, Martin. (2012), “Playing at politics? Popular culture as political engagement”. Parliamentary Affairs, 65.; CAPLAN e BOYD 2018CAPLAN, Robyn; boyd, danah. (2018), “Who’s playing who? Media manipulation in an Era of Trump”. In: BOCZKOWSKI, P.; PAPACHARISSI, Z. Trump and the media. Cambridge: MIT Press.). Poucos ou nenhum deles, talvez, tenha empreendido uma reflexão aprofundada como a agenda de pesquisa proposta por Bennett, cujo objetivo notadamente era o de refletir acerca das ações performáticas desempenhadas por manifestantes do movimento dos direitos civis norte-americano. Na concepção de brincadeira de Bennett, seria possível enquadrar o protesto dos atletas Tommie Smith e John Carlos fazendo, no pódio, a saudação dos Panteras Negras, durante uma cerimônia de premiação nas Olimpíadas da Cidade do México, em 1968. Similarmente, os protestos que seguiram o mote flower power, cunhado pelo poeta beat Allen Ginsberg, e que consistiam em uma ação simbólica em que manifestantes entregavam flores a integrantes das forças armadas ou policiais, como crítica, em particular, à Guerra do Vietnã, e ao belicismo, em geral, também poderiam perfeitamente ser lidas como brincadeiras políticas. Bennett (1979)BENNETT, W. Lance. (1979), “When politics becomes play”. Political Behavior, 1, 4. não esconde o entusiasmo com este tipo de espetáculo midiatizado e descreve a brincadeira política como um conflito pelo controle da cena. A categoria, contudo, é abandonada, logo após o texto que lhe confere contornos mais precisos. Apesar de o interesse do pesquisador seguir até recentemente (BENNETT e SEGERBERG, 2012BENNETT, W. Lance; SEGERBERG, Alexandra. (2012), “The logic of connective action: digital media and the personalization of contentious politics”. Information, Communication & Society, 15, 5. DOI: 10.1080/1369118X.2012.670661.
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; BENNETT, 2008BENNETT, W. Lance. (2008), “Changing citizenship in the digital age”. In: BENNET, W. L. Civic life online: learning how digital media can engage youth. Cambridge: MIT Press.) conectado às dinâmicas de ação coletiva e mobilização social, não há registro de recuperação da noção de brincadeira para os estudos de comunicação política.

A aparente orfandade reflete uma guinada nos estudos sobre sociologia do jornalismo e enquadramento noticioso (BENNETT e ENTMAN, 2000BENNETT, W. Lance; ENTMAN, Robert. (2000), Mediated politics. Cambridge: Cambridge University Press.), que tiveram forte impulso ao longo dos anos 1980 e 1990, em decorrência, em certa medida, do clima de incertezas na geopolítica internacional, das crescentes transformações por que atravessou a sociedade em função de mudanças no panorama econômico e tecno-midiático, e, no âmbito acadêmico, da predominância alcançada pelos estudos que se apoiaram, mais uma vez, nas viradas linguística e construtivista desde então (MENDONÇA, 2016MENDONÇA, Ricardo F. (2016), “Antes de Habermas, para além de Habermas: uma abordagem pragmatista da democracia deliberativa”. Sociedade e Estado, 31, 3. DOI: 10.1590/S0102-69922016.00030009.
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; REZENDE, 2018REZENDE, Debora. (2018), “Representação política: a virada construtivista e o paradox entre criação e autonomia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33, 97. DOI: 10.1590/339705/2018.
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). Muito embora, diferentes autores tenham se ocupado de discutir a noção de brincadeira em outros campos com algum sucesso (CAILLOIS, 2017CAILLOIS, Roger. (2017), Os jogos e os homens. Petrópolis: Vozes.; SCHECHNER, 2012SCHECHNER, Richard. (2012), “Jogo”. In: LIGIÉRO, Z. Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad.), não há relato, até recentemente, de que a brincadeira tenha sido compreendida como ação de protesto, sustentada pela exortação à performance coletiva e à politização dos indivíduos participantes.

Nos últimos anos, porém, um crescente corpo de estudos sobre o ativismo digital, com base na crítica ao chamado ativismo de sofá (slacktivism) e em investigações sobre a cultura troll, tem ganhado notoriedade (CHRISTENSEN, 2011CHRISTENSEN, Henrik S. (2011), “Political activities on the internet: slacktivism or political participation by other means?” First Monday, 16, 2.; VIE, 2014VIE, Stephanie. (2014), “In defense of ‘slacktivism’: the Human Rights Campaign Facebook logo as digital activism”. First Monday, 19, 4. DOI: 10.5210/fm.v19i4.4961.
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). Nele, destaca-se, por exemplo, a herança dos estudos de Schechner (2012)SCHECHNER, Richard. (2012), “Jogo”. In: LIGIÉRO, Z. Performance e antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad. sobre a liminalidade nos rituais performáticos, cujo resultado é a desorientação e a ambiguidade, para a compreensão do que Phillips e Milner (2017)PHILLIPS, Whitney; MILNER, Ryan. (2017), The ambivalent internet. Cambridge: Polity Press. passam a denominar de ambivalência, isto é, a condição segundo a qual é virtualmente impossível determinar se um comportamento específico representa um ataque antagonístico ou uma brincadeira. A ambivalência, argumentam os autores, é a base da cultura digital, de modo que a distinção entre o que é uma piada e o que é algo mais sério tem dificultado a compreensão de jornalistas e cidadãos comuns em episódios como o planejamento de massacres escolares, atentados e ações extremistas.6 6 A brincadeira pode ser entendida como atividade de natureza lúdica, que incorpora ou não o humor. A piada é uma ação enunciativa que tem como finalidade o riso. Neste artigo, os termos poderão ser empregados intercaladamente, levando em consideração o contexto específico a que o presente estudo se refere. Este tipo de ocorrência está geralmente atrelado a uma dinâmica que opera através de ciclos de amplificação, um modelo teórico cunhado por Phillips (2018PHILLIPS, Whitney. (2018), The oxygen of amplification. Nova Iorque: Data & Society.; 2012PHILLIPS, Whitney. (2012), “The house that Fox built: Anonymous, spectacle, and cycles of amplification”. Television & New Media, 14, 6.), para dar conta de uma espiral de midiatização, em que os meios de comunicação se veem reféns de seu comportamento habitual em coberturas noticiosas, e terminam por conferir exatamente a visibilidade pretendida pelos agressores ao tratar do caso. Dar ou não atenção, tratar com seriedade ou como galhofa são indícios de que a ambivalência é marca distintiva desses acontecimentos. Mais do que isso: essa característica deixa claro que a participação da audiência é, como na política de modo geral (STREET, 1997STREET, John. (1997), Politics & popular culture. Philadelphia: Temple University Press.), um ingrediente fundamental da brincadeira (McLEOD, 2014McLEOD, Kembrew. (2014), Pranksters: making mischief in the modern world. Nova Iorque: NYU Press.). Da queima de sutiãs em protesto contra o Miss America, em 1968, às ações anticonsumistas de cultural jamming promovidas pela organização Adbusters, fundada em 1989, o political pranking (McLEOD, 2014McLEOD, Kembrew. (2014), Pranksters: making mischief in the modern world. Nova Iorque: NYU Press.) se tornou uma marca de movimentos progressistas.

A falha no diagnóstico sobre os efeitos da crise política por que diferentes países, sobretudo do Ocidente, têm atravessado, reside, em parte, na desatenção às formas de brincadeira política próprias das culturas reacionárias. A compreensão de que o humor e a brincadeira podem servir não apenas para reforçar estereótipos de dominação cultural, mas também para a disseminação de um estado de pânico moral (KUIPERS, 2006KUIPERS, Giselinde. (2006), “The social construction of digital danger: debating, defusing and inflating the moral dangers of online humor and pornography in the Netherlands and the United States”. New Media & Society, 8, 3.) é basilar para o reconhecimento de que as elites também brincam. Embora possa parecer um lugar-comum, esta perspectiva foi historicamente negligenciada pelo debate acadêmico em torno do conceito de brincadeira política.

Só há bem pouco tempo, por exemplo, no Brasil, ganhou os holofotes da mídia e, por conseguinte, dos pesquisadores, ainda que sob alguma controvérsia, a autoproclamada conversão de movimentos reacionários em uma “direita transante” (SANTOS e CHAGAS, 2019SANTOS, João Guilherme Bastos; CHAGAS, Viktor. (2019), “Direita transante: enquadramentos pessoais e agenda ultraliberal do MBL 2019”. Matrizes, 12, 3. DOI: 10.11606/issn.1982-8160.v12i3p189-214.
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), por meio do emprego de uma agenda definitivamente populista e uma crítica satírica e transgressora ao papel das esquerdas. Autores como Angela Nagle (2017)NAGLE, Angela. (2017), Kill all normies. Londres: Zero Books. argumentam que a negociação com a transgressão moral foi, desde sempre, uma tática empregada por grupos progressistas, como o movimento feminista, muito embora esses grupos enfrentem dificuldade de justificar suas ações a uma opinião pública que cobra deles coerência em relação à defesa da pauta liberal. Manifestações particularmente agressivas como as performadas por grupos como Femen ou os black blocs, por exemplo, tendem a gerar impressões negativas e contraproducentes. Entretanto, o argumento de Nagle se esvazia ao tratar grupos reprimidos e marginalizados com as mesmas expectativas que instituições e grupos de elite. Nesse sentido, a leitura de Phillips (2015)PHILLIPS, Whitney. (2015), This is why I can’t have nice things. Cambridge: MIT Press., Coleman (2012)COLEMAN, Gabriella. (2012), “Phreaks, hackers, and trolls”. In: MANDIBERG, M. The social media reader. Nova Iorque: NYU Press. e outros autores ganha mais proeminência, pois evidencia o corte racial e de gênero do que se costuma denominar de cultura troll. Phillips, por exemplo, ressalta a necessidade de observarmos esses atores sob as lentes de uma ética que problematiza as relações entre público e privado, e naturaliza uma abordagem cínica sobre a política. A autora sugere, em ensaio recente (PHILLIPS, 2020PHILLIPS, Whitney. (2020), “It Wasn’t Just the Trolls: Early Internet Culture, ‘Fun,’ and the Fires of Exclusionary Laughter”. Social Media+Society, 5, 3. DOI: 10.1177/2056305119849493.
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), que um exame de consciência a permitiu perceber que a “risada excludente” (exclusionary laughter), a sátira desumanizadora, a misoginia online, a homofobia e o racismo são um aspecto intrínseco ao que se costuma designar por cultura de internet. “O que a cultura da internet fez, nas periferias e no mainstream, foi manter essa supremacia branca, violenta e pervasiva disfarçada de piada” (PHILLIPS, 2020, pPHILLIPS, Whitney. (2020), “It Wasn’t Just the Trolls: Early Internet Culture, ‘Fun,’ and the Fires of Exclusionary Laughter”. Social Media+Society, 5, 3. DOI: 10.1177/2056305119849493.
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. 4). A conclusão surpreendentemente óbvia é de que, embora não se olhasse para a brincadeira perpetrada por setores reacionários com a devida atenção, ela, de certa forma, sempre guiou expectativas morais e ajudou a construir retoricamente as estruturas de dominação em que a sociedade contemporânea está imersa. O que o “esporro do palhaço” deixa claro é que a função da piada é, muitas vezes, a de gerar um ambiente de tolerância e conformidade.

3. Uma brincadeira de profundo mau gosto

Durante uma palestra para convidados, no dia 5 de setembro de 2019, o Ministro da Economia do Governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, foi indagado a respeito dos avanços realizados pela atual gestão. Ele respondeu dizendo que via progresso em várias frentes, mas que a reação da opinião pública geralmente recaía sobre as declarações de agentes governamentais:7 7 O depoimento de Paulo Guedes está disponível em https://glo.bo/32guVhr, consultado em 22/02/2020.

“ah, [...] xingaram a mulher do Macron, chamaram a mulher de feia. [Ora,] Macron falou que estão botando fogo na floresta brasileira, e o presidente devolveu, [dizendo] que a mulher dele é feia [...]. Tudo bem, é divertido, não tem problema nenhum. É tudo normal e é tudo verdade. O presidente falou mesmo, e é verdade mesmo, a mulher é feia”.

Em seguida, diante de queixas oriundas de diferentes setores, nacionais e internacionais, Guedes retratou-se por meio de uma nota oficial, afirmando que suas declarações haviam sido retiradas de contexto. No dia seguinte, voltou ao tema e disse lamentar o ocorrido, classificando o ato de “uma brincadeira de profundo mau gosto”.

Precisamente um mês antes de Paulo Guedes ofender a primeira-dama francesa Brigitte Macron, no dia 5 de agosto, o próprio presidente Jair Bolsonaro, em visita oficial ao estado da Bahia, queixou-se da reação popular a uma fala sua, em reunião privada com governadores, quando dirigiu-se ao Ministro da Casa Civil reservadamente e falou “Daqueles governadores ‘de paraíba’, o pior é o do Maranhão”. Bolsonaro referia-se ao governador Flávio Dino, do Partido Comunista do Brasil, um adversário político. A expressão “paraíba” foi usada de forma pejorativa para conotar pessoas nascidas na região Nordeste. O presidente reclamou que os políticos locais, muitos deles oriundos de partidos de esquerda, estariam incitando a população a uma visão antagonística em relação aos demais estados. Aproveitando ainda para criticar, na mesma toada, a decisão do Supremo Tribunal Federal de enquadrar a homofobia como crime de racismo, justificou sua atitude dizendo que “não se pode mais contar piada, não se poder ter uma liberdade mais neste país. Não pode brincar mais, tudo é politicamente correto”.8 8 Disponível e, https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-critica-governadores-do-nordeste-querem-fazer-disso-uma-cuba/, acessado em 22/02/2020. Os exemplos se multiplicam. Em todos, a justificação de que uma dada declaração se tratava, no fim das contas, de uma mera brincadeira é contumaz.

Fine (1983)FINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag. relata uma situação parecida, que levou à renúncia do Secretário de Agricultura Earl Butz nos Estados Unidos, em 1974. O político imitara um sotaque ítalo-americano para zombar do Papa Paulo VI e gerou inúmeras queixas sobre o teor de discriminação étnica e religiosa do comentário, que foi classificado pelo próprio Butz como uma piada.

Não sendo exclusiva do contexto brasileiro, portanto, a justificação como brincadeira ou piada é frequentemente acionada, como uma tentativa de inverter o posicionamento dos sujeitos na controvérsia, transformando o ofensor em vítima de má interpretação. Na literatura dos critical humour studies, é muito comum a remissão, a título de discussão, à expressão just a joke (“apenas uma piada”), como uma justificação recorrentemente empregada para normalizar o humor racista ou misógino (BILLIG, 2001BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.; WEAVER, 2011WEAVER, Simon. (2011), “Jokes, rhetoric and embodied racism: a rhetorical discourse analysis of the logics of racist jokes on the internet”. Ethnicities, 11, 4.; PÉREZ, 2013PÉREZ, Raúl. (2013), “Learning to make racism funny in the ‘color-blind’ era: Stand-up comedy students, performance strategies, and the (re)production of racist jokes in public”. Discourse & Society, 24, 4. DOI: 10.1177/0957926513482066.
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; YOON-RAMIREZ, 2016YOON-RAMIREZ, Injeong. (2016), “Why is it not Just a Joke? Analysis of Internet Memes Associated with Racism and Hidden Ideology of Colorblindness”. Journal of Cultural Research in Art Education, 33.). Este argumento encontra respaldo inclusive entre pesquisadores do campo do humor, como Davies (1998)DAVIES, Chrissie. (1998), Jokes and their relation to society. Berlim: Mouton de Gruyter., para quem uma piada é apenas uma piada.

A tentativa de separar radicalmente a dimensão política da instância do entretenimento não é exatamente uma novidade, e tem servido para alimentar tanto o ressentimento com a mácula do entretenimento politizado quanto, no diâmetro oposto, a crítica à superficialização da política (CHAGAS e FONSECA, 2020CHAGAS, Viktor; FONSECA, Vivian. (2020), “Faster, higher, stronger: sports fan activism and mediatized political play in the Rio 2016 Games”. Transformative Works and Culture, 32. DOI: 10.3983/twc.2020.1707.
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). Davies (1998)DAVIES, Chrissie. (1998), Jokes and their relation to society. Berlim: Mouton de Gruyter. distingue a ludicidade (playfulness) de uma piada da seriedade (seriousness) do anti-semitismo. O sociólogo compila uma série de piadas étnicas em diferentes países e realiza uma análise comparada, argumentando que os motes são geralmente os mesmos, mas a nacionalidade dos alvos muda. Ele sustenta, a partir da constatação de que os motivos são semelhantes senão idênticos, que o humor étnico não teria conotação política, já que possui uma dimensão universal, isto é, as mesmas piadas são contadas tendo sujeitos distintos como alvo, como é o caso das piadas de português, no Brasil, basicamente as mesmas contadas de alentejanos, em Portugal. Para Davies, esse tipo de piada não teria absolutamente nenhum efeito na exacerbação de conflitos culturais, já que a interpretação delas é sempre atravessada por uma ambiguidade latente. “A guerra”, ele diz (DAVIES, 1998, pDAVIES, Chrissie. (1998), Jokes and their relation to society. Berlim: Mouton de Gruyter.. 6), “é empreendida com ferro e sangue, não com piadas”.

Billig (2001)BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12., por outro lado, lembra Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento, para ressaltar que o fascismo permite o que é geralmente proibido, e sustenta que a piada é um meio de promover a aceitabilidade social de estereótipos étnicos negativos. O fundamento é o mesmo encontrado em Freud ([1905] 2017), para quem o chiste se configura como um modo aceitável socialmente para se quebrar tabus. Contra a posição de Davies, Billig (2001, pBILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.. 270) insiste que, “as pessoas fazem coisas retoricamente com suas justificações”. Simultaneamente uma reivindicação por permissividade e uma negativa por empreender uma ação passível de repreensão, “eu estava apenas fazendo uma piada” é uma justificação comum para piadas ofensivas, ele comenta (id., ibid.).

Como Kuipers (2006)KUIPERS, Giselinde. (2006), “The social construction of digital danger: debating, defusing and inflating the moral dangers of online humor and pornography in the Netherlands and the United States”. New Media & Society, 8, 3. afirma, em uma comparação entre os tratamentos conferidos ao humor racista e à pornografia visual nos Estados Unidos e nos Países Baixos, há muitos modos de lidar com perigos morais na sociedade. Entre as estratégias mais habituais estão (a) a negativa, apelando à experiência de sociabilidade e divertimento, (b) a atribuição de culpa à vítima da ofensa, e (c) a normalização do risco, como parte inevitável da vida. A socióloga chama a atenção para o fato de que a liberdade de expressão se tornou uma defesa importante contra o humor racista na internet (KUIPERS, 2006KUIPERS, Giselinde. (2006), “The social construction of digital danger: debating, defusing and inflating the moral dangers of online humor and pornography in the Netherlands and the United States”. New Media & Society, 8, 3.), da mesma forma que para os comediantes de stand-up (PÉREZ, 2013PÉREZ, Raúl. (2013), “Learning to make racism funny in the ‘color-blind’ era: Stand-up comedy students, performance strategies, and the (re)production of racist jokes in public”. Discourse & Society, 24, 4. DOI: 10.1177/0957926513482066.
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). Assim, muitas vezes, as piadas potencialmente ofensivas são antecedidas por um aviso legal de modo a apelar para a responsabilidade individual das audiências (KUIPERS, 2006KUIPERS, Giselinde. (2006), “The social construction of digital danger: debating, defusing and inflating the moral dangers of online humor and pornography in the Netherlands and the United States”. New Media & Society, 8, 3.; ORING, 2003ORING, Elliott. (2003), Engaging humor. Urbana: UIP.; BILLIG, 2001BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.). Esse tipo de estratégia remonta ao que Richardson (2006)RICHARDSON, John. (2006), Analysing newspapers. Basingstoke: Palgrave Macmillan. denomina de triângulo retórico do humor, a necessidade de observar que o efeito cômico implica em um argumento, um arguidor e uma audiência. Diferentes audiências geram diferentes expectativas (WEAVER, 2011WEAVER, Simon. (2011), “Jokes, rhetoric and embodied racism: a rhetorical discourse analysis of the logics of racist jokes on the internet”. Ethnicities, 11, 4.). Ou, ainda, como lembra Fine (1983), oFINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag. humor é sempre dependente de um grupo de referência. Esta observação fica clara com os achados da investigação empreendida por Jaret (1999)JARET, Charles. (1999), “Attitudes of whites and blacks towards ethnic humor: a comparison”. Humor, 12, 4., que aplica um survey em um extrato da população do estado americano da Georgia, no final da década de 1990, e descobre que os entrevistados brancos, notadamente do sexo masculino, tendiam a minimizar os efeitos de piadas racistas, ao passo que os negros, particularmente as mulheres, diziam-se mais afetados por esses comentários.

Desse modo, tentativas de analisar retoricamente o humor, com base no modelo da incongruência, por exemplo, segundo o qual, o efeito cômico emerge de uma quebra de expectativas em relação aos acontecimentos narrados, são fundamentalmente baseadas em uma avaliação do humor como texto (FINE, 1983FINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag.), ao passo que grande parte da natureza do humor é interacional. Os bons comediantes investem na metacomunicação inclusive para indicar à audiência quando ou não rir, e o humor desenvolve-se não apenas por meio da conversação, mas serve também para constituir relações sociais e estabelecer comunidades de sentido (FINE, 1983FINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag.). Como já afirmava Freud ([1905] 2017)FREUD, Sigmund. (2017), O chiste e sua relação com o inconsciente. São Paulo: Companhia das Letras., o prazer da piada não está apenas no discurso, mas na ação implícita, ou seja, no meta-discurso (BILLIG, 2001BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.), ou no que Bateson (1972)BATESON, Gregory. (1972), “A theory of play and fantasy”. In: BATESON, G. Steps to an ecology of mind. Nova Iorque: Ballantine. conceituou como metacomunicação, um dos aspectos centrais da brincadeira.

A metacomunicação, ou, simplificadamente, a troca de sinais entre dois sujeitos que carrega uma mensagem implícita sobre a natureza de uma dada ação comunicativa (“isto é brincadeira!”), sugere como uma ação ou comportamento devem ser interpretados, mas o emprego da ironia acaba por criar um certo distanciamento entre o sujeito que perfaz a brincadeira e o que é dito por ele (PÉREZ, 2013PÉREZ, Raúl. (2013), “Learning to make racism funny in the ‘color-blind’ era: Stand-up comedy students, performance strategies, and the (re)production of racist jokes in public”. Discourse & Society, 24, 4. DOI: 10.1177/0957926513482066.
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), pois o dispositivo da ironia implica em uma ambiguidade retórica (RAPPORT e OVERING, 2003RAPPORT, Nigel; OVERING, Joanna. (2003), “Irony”. In: RAPPORT, N.; OVERING, J. Social and Cultural Anthropology: the key concepts. Nova Iorque: Routledge.) ou um contra-texto que oculta da audiência elementos que a habilitem a reconhecer o sentido verdadeiro (BILLIG, 2001BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.). Assim, ser ou não uma brincadeira ou uma piada é uma interpretação confinada pela ambivalência ao juízo de quem a performa. É por isso que a justificação “foi apenas uma brincadeira” incorre em uma abordagem construtivista da piada (BILLIG, 2001, pBILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12.. 272), e consequentemente dos seus efeitos políticos. Mas, na prática, embora a linguagem da extrema-direita nunca seja clara e direta, aquele que profere uma piada racista sabe que ela não é apenas uma piada, ele tem discernimento suficiente, por exemplo, para compreender que negros não são macacos, como diz Billig (2001), eBILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12. que os estereótipos carregam o intuito óbvio de desumanizar o alvo. Por conta desta disposição retórica, Weaver (2011)WEAVER, Simon. (2011), “Jokes, rhetoric and embodied racism: a rhetorical discourse analysis of the logics of racist jokes on the internet”. Ethnicities, 11, 4. recusa a concepção de humor étnico. O pesquisador prefere caracterizar este tipo de piada como uma forma de humor racista, lembrando que a comicidade é sempre uma decorrência das relações de poder estabelecidas na sociedade. Oring (2003, pORING, Elliott. (2003), Engaging humor. Urbana: UIP.. 42) nota que o argumento de que a presença do humor como modo de comunicação subtrai de uma determinada situação outras formas de violência mais explícitas é falacioso. Afinal, o humor é empregado, muitas vezes, para comunicar ressentimentos políticos e obliterar resistências.

A maior parte dos estudos sobre humor incide sobre a análise discursiva de piadas. Tannen (1992)TANNEN, Deborah. (1992), That’s not what I meant! Londres: Virago Press., Billig (2001)BILLIG, Michael. (2001), “Humour and hatred: the racist jokes of the Ku Klux Klan”. Discourse & Society, 12. e Weaver (2011)WEAVER, Simon. (2011), “Jokes, rhetoric and embodied racism: a rhetorical discourse analysis of the logics of racist jokes on the internet”. Ethnicities, 11, 4. realizam investigações sobre o conteúdo textual de piadas racistas. Estratégia semelhante utilizam Oring (2003)ORING, Elliott. (2003), Engaging humor. Urbana: UIP., para charges supremacistas, Bogerts e Fielitz (2018)BOGERTS, Lisa; FIELITZ, Maik. (2018), “"Do You Want Meme War?" Understanding the Visual Memes of the German Far Right”. In: FIELITZ, M.; THURSTON, N. Post-digital cultures of the far right. Bielefeld: Verlag. e Yoon-Ramirez (2016)YOON-RAMIREZ, Injeong. (2016), “Why is it not Just a Joke? Analysis of Internet Memes Associated with Racism and Hidden Ideology of Colorblindness”. Journal of Cultural Research in Art Education, 33., para memes e a estética de comunidades trolls. Já Fine (1983)FINE, Gary A. (1983), “Sociological approaches to the study of humor”. In: McGHEE, P.; GOLDSTEIN, J. Handbook of humor research. Nova Iorque: Springer-Verlag. chama a atenção para a necessidade de se investir em uma compreensão do humor como forma de comunicação e não apenas como texto. Ele sugere mais atenção à dinâmica interacional do que à mecânica da piada, e sublinha o que reconhece como funções do humor – fortalecer a coesão do grupamento social, extravasar disputas entre grupos ou intragrupo, e funcionar como dispositivo de controle social. Nessa linha de análise, outras abordagens metodológicas que merecem destaque são apresentadas por Jaret (1999)JARET, Charles. (1999), “Attitudes of whites and blacks towards ethnic humor: a comparison”. Humor, 12, 4., que realiza um survey para avaliar as reações de indivíduos ao humor étnico-racial, e Pérez (2013)PÉREZ, Raúl. (2013), “Learning to make racism funny in the ‘color-blind’ era: Stand-up comedy students, performance strategies, and the (re)production of racist jokes in public”. Discourse & Society, 24, 4. DOI: 10.1177/0957926513482066.
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, que empreende uma interessante etnografia em uma escola de stand-up comedy e relata as estratégias empregadas por instrutores comediantes profissionais para fazer o racismo soar palatável – como o cuidado com a fronteira do aceitável (hurtline), o lugar de fala, o humor autodepreciativo, o distanciamento através de personagens, e o aviso legal ou a retratação.

A insistência na estratégia da retratação coloca o humor em estado de suspensão, uma liminalidade que restringe o alcance da política. Paralelamente, ela confere ao agressor a brecha para evocar a liberdade individual de ofender. A respeito da sátira, Caufield (2008)CAUFIELD, Rachel. (2008), “The influence of ‘infoenterpropagainment’: exploring the power of political satire as a distinct form of political humor”. In: BAUMGARTNER, J.; MORRIS, J. Laughing matters. Nova Iorque: Routledge. explica que ela é resultado de um somatório de quatro componentes: a agressão, a brincadeira, o riso e o juízo de valor. Baym (2008)BAYM, Geoffrey. (2008), “Serious comedy: expanding the boundaries of political discourse”. In: BAUMGARTNER, J.; MORRIS, J. Laughing matters. Nova Iorque: Routledge., semelhantemente, argumenta que a sátira é capaz de dar vazão à comédia séria, mas insiste na distinção pouco produtiva de Griffin (1994)GRIFFIN, Dustin. (1994), Satire: a critical reintroduction. Lexington: The University Press of Kentucky., que diferencia a retórica da brincadeira (rhetoric of play) da retórica da sindicância (rhetoric of inquiry). Esta última compreenderia o uso da sátira-como-provocação, ao passo que a primeira englobaria a sátira-como-brincadeira.

Embora as definições de Griffin sejam úteis para o contexto dos talk shows na televisão norte-americana, que misturam doses de sátira política ao noticiário, elas parecem não dar conta especificamente das justificações que este artigo analisa, pois, aqui, a sátira-como-provocação é desmentida através da pretensão de brincadeira. Além disso, os casos analisados pelo presente artigo não estão plenamente cobertos pelo debate travado na literatura, pois, na ampla maioria dos estudos, se não em sua totalidade, os pesquisadores têm procurado observar uma expressão inequívoca da piada – ainda que resulte em um efeito cômico questionável. Por outro lado, quando um ator político retrocede em sua declaração e justifica seu comentário como sendo uma brincadeira, há uma reelaboração de quadros, que procura enunciar a posteriori um elemento metacomunicativo que deveria ter sido sinalizado anteriormente. Não se trata, portanto, de uma situação que nos coloca apenas diante de um humor questionável, mas de uma estratégia que borra intencionalmente as fronteiras entre o decoro da autoridade política atendendo a um pronunciamento público e comportamentos ou sentimentos privados, isto é, uma conversão de uma ação séria em brincadeira política, como ritual de defesa. Ainda que, como toda brincadeira, esta performance estabeleça uma relação cooperativa, no sentido de demandar aprovação pública, o simples ato de enunciá-la como algo que não é a caracteriza como uma ação retórica, o que aqui se buscou denominar de uma retórica da brincadeira.

Como Phillips, Beyer e Coleman (2017)PHILLIPS, Whitney.; BEYER, Jessica; COLEMAN, Gabriella. (2017), “Trolling scholars debunk the idea that the alt-right’s shitposters have magic powers”. Motherboard, 22 de março de 2017. Disponível em: https://www.vice.com/en_us/article/z4k549/trolling-scholars-debunk-the-idea-that-the-alt-rights-trolls-have-magic-powers, consultado em 20/02/2020.
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argumentam, justificações deste tipo “oferecem aos fanáticos uma maneira fácil de desviar a responsabilidade pessoal por ações odiosas”, redirecionando-a para seus alvos, e criando um quadro divisivo na sociedade. Muda-se o enquadre para que o status de dominação política e social se mantenha. Esta avaliação é reforçada pela reiterada crítica aos limites impostos ao humor e à liberdade de expressão, materializadas na acepção de que o “politicamente correto” teria tirado a graça de tudo. Se o humor, como demonstra a leitura dos critical humour studies, está sempre comprometido politicamente, a que(m) serve a brincadeira cujo principal intento é reforçar estereótipos, desumanizar e subjugar grupos já correntemente marginalizados?

4. Não se pode mais contar piada

A exortação do deputado federal Eduardo Bolsonaro ao farmeme é, por si só, ambivalente. Ela pode ser lida, a um só tempo, como uma recusa ao revide, a partir de um presumível apelo à não-violência, ou, ao contrário, como uma incitação ao discurso de ódio online, à medida que estimula a provocação e a diminuição do adversário político por meio da retórica da brincadeira. Há dois esforços envolvidos neste aceno. O primeiro é o de caracterizar a brincadeira como inofensiva, excluindo sua leitura como uma forma de agressão. O segundo é o de normalizar, através da brincadeira, um comportamento ou um sentimento pernicioso ao ambiente social e que reforça estruturas de poder. Nesse sentido, a retórica da brincadeira empregada por atores políticos do campo das elites difere da brincadeira performada por grupos apartados do poder.

Inglehart e Norris (2016)INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa. (2016), “2016 Trump, Brexit, and the rise of populism: economic have-nots and cultural backlash”. HKS Working Paper No. RWP16-026, julho de 2016. reconhecem duas teses para a emergência recente de um populismo de extrema-direita em diversas sociedades ocidentais. A primeira delas considera que mudanças no espectro social e econômico dessas sociedades têm gerado um estado crescente de anomia e insegurança, que se reflete, por sua vez, em uma crise na representação política, experimentada na maior parte das democracias liberais. Mas uma outra tese tem ganhado atenção entre os cientistas políticos, a de que o recrudescimento do campo extremista e conservador é, na realidade, resultado de uma retroação de setores da elite em função do avanço de pautas sociais importantes nas últimas décadas. Os pesquisadores denominam essa tese de reacionarismo cultural (cultural backlash).

De acordo com Mansbridge e Shames (2008)MANSBRIDGE, Jane; SHAMES, Shauna. (2008), “Toward a Theory of Backlash: dynamic resistance and the central role of power”. Politics & Gender, 4, 4., um backlash pode ser compreendido como um contexto específico resultante da reação de um grupo outrora predominante a um cenário em que um segundo grupo, cujo status quo é menosprezado pelo primeiro, age em questionamento à sua condição subalterna e desafia a estrutura de poder. A resistência das elites e do bloco no poder a mudanças no status, isto é, as providências tomadas para dar conta do sentimento de que o grupo privilegiado está perdendo poder é o que finalmente evidencia o fenômeno. Mais do que isso, o backlash é, afirmam as autoras, uma expressão de poder coercitivo. Muitas vezes, continuam, ele envolve formas sutis de poder, como condenar ao ostracismo, censurar ou ridicularizar.

A análise de Mansbridge e Shames é cristalina no entendimento de que a reação é geralmente mais forte e mais nociva quando (a) o ator político que a conduz pretende tensionar limites e (b) esse mesmo ator é insensível às preocupações do adversário ou do público em geral. Por seu turno, a discussão proposta por Hirschman ([1991] 2019) parte de uma crítica às conferências de T. H. Marshall (1967)MARSHALL, Thomas H. (1967), Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar., sobre os conceitos de Cidadania, classe social e status. Ao descrever o desenvolvimento da cidadania nas sociedades ocidentais, Marshall apresenta um modelo linear e progressivo em que os direitos civis, políticos e sociais são decorrentes diretamente de movimentos de afirmação e conquistas. O que Hirschman questiona é o que chama de a natureza otimista e confiante de Marshall, incapaz de observar que essas lutas por direitos foram entremeadas por um conjunto significativo de reações das classes estabelecidas. Contra o sociólogo, o economista, então, recupera uma série de acontecimentos e reconhece três estratégias distintas empregadas por grupos reacionários aos movimentos de afirmação de direitos, o que ele denomina de retóricas da intransigência.

São três as retóricas da intransigência identificadas por Hirschman, a retórica da perversidade, a da futilidade e a da ameaça. A tese da perversidade compreende reações que, em um primeiro momento, endossam as propostas de reforma progressistas, mas que, na sequência, procuram demonstrar que, uma vez aplicadas, elas darão origem a um efeito não intencional oposto ao objetivo proclamado e perseguido.

Enumerando argumentos historicamente associados a esta tese – como a chamada Lei de Ferro das Oligarquias, do sociólogo Robert Michels, para quem a busca por uma organização mais democrática nos partidos políticos termina por gerar estruturas oligárquicas –, Hirschman esclarece que diferentes contextos políticos foram marcados por este tipo de reação. Ao detalhar a crítica ao Welfare State, segundo a qual programas sociais gerariam, cada vez mais, em vez de menos, pobreza, o efeito tiro pela culatra faz lembrar episódios recentes de reações estimuladas pelo avanço de programas como o Bolsa Família, no Brasil, cuja crítica comum era de que eles culminariam em uma geração dependente do Estado e pouco produtiva.

A tese da futilidade de Hirschman prevê que qualquer tentativa de mudança é abortiva e será, ao desencadear dos eventos, reconhecida como mera fachada ou ilusão. O sentimento de crescente incômodo em relação às estruturas partidárias, no Brasil e em diferentes partes do mundo, reflete, em certa medida, este argumento. Todos os políticos, em última instância, são iguais. Desse modo, o autor avalia que esta é uma retórica que se autorrealiza, nos termos de Robert Merton, pois, se as democracias não comportam mudanças através de eleições, não adiantaria votar, e consequentemente tudo permaneceria da mesma forma.9 9 Hirschman alude ao argumento marxista-revolucionário, para chamar a atenção para o fato de que mesmo grupos situados à esquerda no espectro político-ideológico fazem uso deste tipo de argumento.

Por fim, a tese da ameaça preconiza que uma eventual mudança acarretaria custos e consequências inaceitáveis. Ameaças, de variados perfis, são, assim, recorrentemente acionadas para evitar reordenações estatutárias. Tal como a ameaça de que o Brasil iria se tornar uma Venezuela (CHAGAS et al.; 2019CHAGAS, Viktor; MODESTO, Michelle; MAGALHÃES, Dandara. (2019), “O Brasil vai virar Venezuela: medo, memes e enquadramentos emocionais no WhatsApp pró-Bolsonaro”. Esferas, 14. DOI: 10.31501/esf.v0i14.10374.
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), circulada em grupos de WhatsApp bolsonaristas nas últimas eleições, movimentos de caça aos comunistas e outras formas de mobilização de sentimentos a fim de configurar um clima de pânico moral são geralmente empreendidas em cenários contrarreformistas.

As três retóricas da intransigência de Hirschman são capazes de descrever uma miríade de cenários a partir de reações tomadas por grupos que se ressentem de uma eventual reavaliação de seus privilégios. Elas, no entanto, não acomodam perfeitamente o que até aqui se denominou de uma retórica da brincadeira. À moda do que propôs Wanderley Guilherme dos Santos (1998)SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1998), “Poliarquia em 3D”. Dados, 41, 2. ao desdobrar um terceiro eixo dos dois originais no modelo da poliarquia desenvolvido por Dahl ([1972] 2005)DAHL, Robert. (2005), Poliarquia. São Paulo: EdUSP., a leitura de Hirschman à luz do “esporro do palhaço” talvez mereça um pequeno corolário.

A retórica da brincadeira, isto é, a assimilação de um enquadramento lúdico e performático como justificação para a agressão, configura uma retórica da intransigência adicional. Na realidade, tanto esta, quanto a tese do efeito perverso, a tese da futilidade e a tese da ameaça, reconhecidas por Hirschman, são respostas reacionárias a uma perda do poder como capacidade (MANSBRIDGE e SHAMES, 2008MANSBRIDGE, Jane; SHAMES, Shauna. (2008), “Toward a Theory of Backlash: dynamic resistance and the central role of power”. Politics & Gender, 4, 4.), mas, no caso da tese da brincadeira, não há expectativa gerada em torno das consequências da ação reformadora, mas uma exaltação de sua própria posição, ao mesmo tempo em que se refuta e desqualifica o argumento progressista em sua origem. Em suma, ela pretende fazer crer que a posição reacionária é mais civil, mais sensata e mais bem-humorada que a dos reformistas.

O apelo à brincadeira busca um efeito de complacência ou normalização, invertendo convenientemente os quadros de ação e procurando amenizar a agressão e desqualificar a queixa dos agredidos. O farmeme, em certo sentido, pode ser compreendido também como um memefare, o uso estratégico do enquadramento da brincadeira para infligir danos políticos à imagem dos adversários ou defender-se de acusações legítimas desviando-se o foco da atenção através da provocação e ridicularização dos acusadores ou seus correligionários. A incorporação deste quadro, na prática, estimula uma inversão de sentidos e apresenta como intransigente o ator ou grupo social que luta por reconhecimento. Assim, o farmeme é, de uma só vez, inércia e reação, uma retórica da intransigência que simula transigir.

5. Menos Piaget, mais Pinochet10 10 A frase é citada por Allan Santos, influenciador digital e apoiador de Bolsonaro. Disponível em https://twitter.com/allantercalivre/status/1198433111517859842, consultado em 20/02/2020.

Tendo se envolvido em diferentes controvérsias ao longo de sua trajetória, Jair Bolsonaro adquiriu uma aura folclórica em seu entorno, que o associa à figura de um herói salvador, sem deixar de lado a natureza populista de sua representação como homem ordinário, com hábitos familiares. O político passou a ser reconhecido pelo epíteto de “mito” em função desses aspectos. As respostas atravessadas e indelicadas que dá a uma série de interlocutores, sempre com um tom ríspido e autoritário, ficaram conhecidas como “mitadas”. Bolsonaro ganhou ainda uma série de seguidores e clones em tom de piada nas mídias sociais. Entre as mais famosas fanpages, estavam Bolsonaro Zuero e Bolsonaro Opressor. Os filhos mais velhos, Flávio, Carlos e Eduardo, os ministros e parlamentares afinados com o discurso se assemelham na administração da retórica da brincadeira. Todo o ecossistema de humor constituído em torno da figura de Bolsonaro exalta a intransigência e o reacionarismo.

A tese da brincadeira pressupõe, nos termos de Bennett (1979)BENNETT, W. Lance. (1979), “When politics becomes play”. Political Behavior, 1, 4., uma disputa pelo controle da cena política. A piada, como na cultura troll, é uma espécie de capital de visibilidade e domínio da cena. Os trolls designam este capital de lulz, uma derivação de lols (ou laughing out loud, rindo muito alto). Isto posto, a mesma justificação que o humor racista encontra, é proferida por esta subcultura como just for the lulz, ou “apenas pela brincadeira”, em tradução livre (PHILLIPS, 2015PHILLIPS, Whitney. (2015), This is why I can’t have nice things. Cambridge: MIT Press.). A brincadeira é, nesta acepção, também uma espécie de moeda de troca, cujo acumulado denota o predomínio entre os contendores da batalha metacomunicativa.

Diferentemente do que pressupunham os teóricos que, no apogeu do movimento dos direitos civis, ressaltaram o papel da brincadeira política como expediente de grupos marginalizados, é possível conceber, como se vê, o uso da retórica da brincadeira para reafirmar uma condição de poder colocada em xeque por conquistas recentes do campo progressista. Em resumo, a brincadeira não tem lado.

Também é importante sublinhar que, embora a maior parte dos estudos sobre humor se concentre na análise do conteúdo textual e enunciativo de piadas de cunho racista e misógino, a admissão do fenômeno como uma estratégia da comunicação política não condiz com o modo como ele vem sendo observado por esses investigadores. Vale dizer, a retórica da brincadeira não está fundada no uso político do humor, mas na reproposição de uma ação séria sob o pretexto de um enquadramento de brincadeira. Muito embora o humor racista e misógino apresente elementos em comum, inclusive na justificação de seus malfeitos, sob um ponto de vista construtivista, ele, desde a origem, se pretende explicitamente cômico. Não é o caso da retórica da brincadeira, que aposta na ironia para borrar essas fronteiras.

Finalmente, as reflexões contidas neste artigo apontam na direção de uma necessidade de se discutir de modo mais apurado as dimensões lúdica, performativa e autotélica da política, não apenas como manifestação de protesto e questionamento das autoridades e grupos no poder, mas também como ação reacionária. O tratamento legado à atividade política tem rotineiramente negligenciado o olhar sobre o fenômeno a partir das lentes da brincadeira. É comum a avaliação de que o ambiente duro e de sérias consequências advindo da política não pode ser conspurcado pelo deboche e pelo entretenimento. Os múltiplos usos conferidos à brincadeira, como retórica ou como prática política, parecem depor em contrário.

Há, ainda, uma série de limitações a serem encaradas por investigações futuras nesta seara. A primeira e mais evidente é a de como confrontar ou sobrestar a retórica da brincadeira. Este artigo não se ocupou de prescrever soluções à atual conjuntura e menos ainda de externar um juízo ingênuo sobre o uso reacionário e orientado do que aqui se denominou meme-fare. Tem-se claro, contudo, que o reconhecimento desses usos e apropriações e a compreensão apurada dos modos como se dá a batalha pelo controle da cena política através da brincadeira é passo importante para o desenvolvimento do campo progressista e a luta pela afirmação de direitos a grupos reprimidos. Como se diz popularmente: “toda brincadeira tem um fundo de verdade”.

Agradecimentos

Este artigo conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, por meio de bolsa de produtividade em pesquisa (CNPq PQ-2 nº 306791/2021-8), e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, por meio de bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj JCNE nº 259788) e de auxílio à pesquisa (Faperj APQ1 nº 249104).

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Publication Dates

  • Publication in this collection
    17 July 2023
  • Date of issue
    2023

History

  • Received
    13 Aug 2022
  • Accepted
    26 Mar 2023
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