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Fazendo pesquisa antropológica de alta qualidade fora da academia

Doing high-quality anthropological research outside academia

Price, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens: Georgia University Press, 2022

Este é um livro fascinante. Richard Price é um dos mais conhecidos antropólogos norte-americanos. Junto com sua esposa, a também antropóloga Sally Price com a qual sempre trabalhou em condições de igualdade, ele produziu alguns dos melhores livros de antropologia sobre o Caribe, sua área de especialização. Ele inaugurou um estilo que é ancorado em sólida etnografia e ao mesmo tempo baseado em uma experimentação de diferentes estilos de escrita. Agora, ele nos brinda com suas memórias intituladas Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology (Price, 2022Price, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022.).

O livro começa com Richard aos 16 anos participando de uma viagem a reservas indígenas nos Estados Unidos e depois se matriculando na Harvard University, onde o que mais lhe fascinava era o período de férias acadêmicas que lhe permitiam fazer trabalho de campo. Sua primeira pesquisa foi na Martinica, marcando uma relação com o Caribe que lhe acompanhou durante toda a vida. Ainda aluno de graduação e já casado com Sally Price, os dois foram passar um ano de estudos em Paris onde estabeleceram uma duradoura relação com Claude Lévi-Strauss. Sobre este, Richard disse: “Que paradoxo! O antropólogo que provavelmente fez menos trabalho de campo que qualquer dos grandes contemporâneos atribuía mais importância à etnografia (e à história) que qualquer antropólogo que eu tenha encontrado” (Price, 2022, pPrice, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022.. 53).

Após passar uma temporada pesquisando na Andaluzia espanhola, Richard volta a Harvard, onde começou seus estudos de pós-graduação, sendo muito influenciado por Sidney Mintz, professor da Yale University especializado no Caribe, que estava como professor visitante no Massachusetts Institute of Technology. Nas férias, ele foi ao sul do México para participar de uma pesquisa em Chiapas. A seguir, ele e Sally foram ao Suriname estudar os Saamaka, um povo composto por aproximadamente 20.000 pessoas vivendo em setenta vilas no alto Rio Suriname. Eles eram maroons, isto é, quilombolas, cujos ancestrais assinaram em 1762 um acordo de paz com a Holanda que lhes dava total controle sobre seu território. Depois de passar dois anos convivendo com eles, Richard volta aos Estados Unidos, conclui seu doutorado e é contratado como professor assistente na Yale University. Ele recebe um ano para realizar um pós-doutorado nos Países Baixos a fim de trabalhar com especialistas do Suriname.

Alguns anos depois, ele foi convidado para criar o Departamento de Antropologia da Johns Hopkins University. Aos 33 anos, ele se torna não só professor titular como chefe do Departamento e convida seu mentor Sidney Mintz a integrá-lo. O departamento tornou-se a principal instituição de formação de antropólogos especializados no Caribe, atraindo excelentes estudantes que depois se tornaram pesquisadores famosos como Michel-Rolph Trouillot.

Depois de alguns anos, lecionando, pesquisando e dirigindo o departamento e cansados da vida acadêmica e seus conflitos internos, Richard e Sally decidem abandonar seus empregos na Johns Hopkins University e se mudam para a Martinica, uma ilha do Caribe que é um departamento da França, onde passaram 35 anos vivendo, pesquisando e escrevendo. Lecionando esporadicamente em diferentes universidades, eles optam então por ser antropólogos freelancers baseados no Caribe rural. Eles deixaram de ser “antropólogos corporativos” e, nas palavras de Richard, “Eu, me exonerei, como o fez Sally, de posições vitalícias e lucrativas numa universidade prestigiosa, no final para ter mais tempo e liberdade de seguir nosso trabalho. Agora nós não temos empregos, nem estabilidade. Estamos materialmente mais pobres e não temos seguridade. Mas temos nossa independência - e a liberdade e escrever, pensar e experimentar como quisermos” (Price, 2022, pPrice, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022.. 157).

Richard aprofunda suas pesquisas no Suriname, mostrando como a identidade coletiva dos Saamaka está baseada na oposição liberdade versus escravidão. Por isso, o papel do “First-Time”, ou seja, o momento em que eles travaram conhecimento com os brancos, é central para esses quilombolas e a preservação de seu conhecimento é o seu modo de dizer “nunca mais”. Seu livro First Time, de 1983, será publicado com o título de Os Primeiros Tempos em janeiro de 2023 pela Editora da USP. Impossibilitados de continuar vivendo no Suriname, de onde foram expulsos em 1986 pelo governo que assumiu depois do golpe de estado de 1980 e a guerra civil que seguiu, Richard e Sally voltaram para a Martinica.

De 1986 a 2020, a Guiana Francesa se tornou seu principal local de pesquisa. Morando na Martinica, Richard e Sally estavam bastante próximos do país. Eles escreveram o livro Les Marrons, que teve alta vendagem no aeroporto de Cayenne, capital da Guiana Francesa, em supermercados e em livrarias. Na Guiana, eles encontraram Tooy Alexander, um saamaka, que se torna o amigo mais próximo de Richard e personagem principal de seu livro Travels with Tooy. History, Memory, and the African American Imagination. Atualmente, os maroons são 36% da Guiana Francesa, constituindo seu maior grupo étnico.

Ter lido autores como Borges, Carpentier, Garcia Márquez, Cortázar e Vargas-Llosa e ter sido um frequentador assíduo de cinema, foi fundamental para criar um modelo não-linear na mente de Richard. Ele começou a experimentar com novas formas de narrar seus achados de pesquisa. Isto se refletiu no seu estilo de escrita em que usou fontes diferentes para diferentes vozes. Alguns críticos classificaram isso como “pós-moderno”, mas para Richard era simplesmente uma forma de apresentar vozes nativas com a mesma seriedade que eram apresentadas as vozes ocidentais. Combinando preocupações teóricas sobre a política de representação com soluções práticas envolvendo a poética da representação, ele argumentou que diferentes situações históricas e etnográficas se emprestam a diferentes estilos literários e que o etnógrafo ou historiador deveria enfrentar cada sociedade ou período problematizando-o de forma nova, buscando ou mesmo inventando um estilo literário que não tivesse sido pré-selecionado.

Estas experiências tiveram continuidade em três livros de Richard e Sally, Equatoria, Enigma Variations e Alabi’s World que foram considerados “pós-modernos”. Este último livro acabou recebendo o mais prestigioso prêmio em Antropologia, o J.I. Stanley Prize of the School of American Research.

Richard e Sally não só deixaram de ser antropólogos corporativos, mas tiveram uma importante atuação como ativistas, o que ocorreu principalmente entre 1990 e 2020. Em 1990, Richard foi contactado pela Inter-American Commission on Human Rights para atuar num caso conhecido como Aloeboetoe v. Suriname, que estava sendo julgado em San Jose, Costa Rica e através do qual o povo Saamaka recebeu uma indenização de quase um milhão de dólares em compensação pela tortura e assassinato de sete jovens desarmados do exército nacional do Suriname. Alguns anos mais tarde, a Associação de Autoridades Saamaka, entrou com uma ação na Inter-American Comission on Human Rights em Washington, D.C. contra o governo do Suriname, que começou a arrendar vastos pedaços de suas florestas para madeireiras multinacionais. Neste caso, tratava-se de manejar conceitos antigos da Antropologia como “cultura”, “povos tribais” /”povos indígenas”. Embora estes conceitos tenham sido criticados pela antropologia moderna, no contexto do julgamento eles funcionavam já que repercutiam no universo jurídico dos juízes. De acordo com Price (2022)Price, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022., “O depoimento que teve lugar diante da Corte deixa claro que a necessidade prática de apoiar a ideia de que existe algo como “povos tribais” e simultaneamente criticar a bagagem cultural que a fortalece cria tensões que nem sempre são resolvidas tanto pelo advogado solidário ou pelo antropólogo que atua como parecerista” (Price, 2022, pPrice, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022.. 189). Por sua atuação em favor dos Saamaka, Richard recebeu várias ameaças e não pode retornar ao Suriname, sob o risco de ser preso ou assassinado.

Richard e Sally passaram longas temporadas das primeiras décadas do século XXI vivendo novamente me Paris, onde Sally trabalhou num livro sobre o Musée du Quai Branly, um museu de arte não-ocidental criado pelo Presidente Jacques Chirac. Lá, em 2014, ambos receberam o título de Chevalier de l’Ordre des Arts e des Lettres do Ministro da Cultura da França. Considerando que a Martinica que eles conheceram estava se modificando rapidamente, com uma crescente modernização e um lento desaparecimento de um modo de vida que eles tinham conhecido, eles chegaram a cogitar de se mudar permanentemente para a França, mas a burocracia envolvida era de tal monta que desistiram. Eles acabaram se mudando para a Florida, em Coquina Key, onde residem atualmente. Segundo Price (2022)Price, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022., “é um lugar onde nos sentimos mais perto do Caribe do que qualquer outro sítio nos Estados Unidos” (Price, 2022, pPrice, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology. Athens, Georgia University Press, 2022.. 247).

Não é fácil escrever um livro de memórias. A tendência é enaltecer nossas conquistas e esquecer nossas derrotas. Inside/Outside não cai nesta armadilha. Ao mesmo tempo em que é um livro agradável de ser lido, ele é um relato sincero e objetivo de um antropólogo que abandonou a vida acadêmica tradicional e mostrou que é possível realizar antropologia de alta qualidade fora dela e ao mesmo tempo manter uma responsabilidade social e moral com os sujeitos que pesquisa.

Bibliografia

  • Price, Richard. Inside/Outside. Adventures in Caribbean History and Anthropology Athens, Georgia University Press, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Aceito
    28 Out 2022
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