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Política, memória e espaço público: a via dos sentimentos

Politique, mémoire et espace public: la voie des sentiments

Politics, memory and public space: the via for the feelings

Resumos

O artigo aborda diversas mobilizações e estratégias simbólicas contra a violência e a favor da justiça efetivadas por uma família vítima do assassinato do pai, até então prefeito de Acaraú, cidade do interior do Ceará. A campanha contra a imunidade parlamentar dos acusados do crime, baseada no "combate ao esquecimento", é movida por sentimentos radicais que produzem rituais, tendo as mulheres como principais protagonistas e porta-vozes de uma explosão discursiva. Baseada em consulta a jornais, entrevistas com familiares e moradores da cidade de Acaraú, além da análise de documentos judiciais, a autora visa investigar os diferentes circuitos dessa memória mobilizada por sentimentos que fazem a mediação entre esfera pública e esfera privada. Analisa o modo como a política se realiza, através da reconversão dos sentimentos que vão consolidando cisões familiares, grupo de adeptos, visões de mundo, acenando com sensibilidades coletivas e preceitos morais. Em síntese, as idéias desenvolvidas convergem para a compreensão dos sentimentos e valores como matéria que institui ritualidades e modos expressivos diferenciados: luto, palavras de ordem, emoções e linguagens de denúncia.

Memória; Sentimentos; Família; Política; Mulheres; Espaço público


L'article aborde diverses mobilisations et stratégies symboliques contre la violence et en faveur de la justice accomplies par une famille victime de l'assassinat du père, jusqu'à lors maire d'Acaraú, ville de province de l'État de Ceará. La campagne contre l'immunité parlementaire de ceux accusés de crimes, fondée sur le "combat contre l'oubli", est poussée par des sentiments radicaux qui produisent des rituels, dont les femmes sont les principales protagonistes et messagères d'une explosion discursive. L'auteur, s'appuyant sur des recherches dans des journaux, des interviews avec des membres de la famille et des habitants de la ville d'Acaraú, ainsi que sur l'analyse de documents de justice, à pour but de rechercher les différents circuits de cette mémoire impulsionnée par des sentiments qui font la médiation entre la sphère publique et la sphère privée. L'article analyse la façon par laquelle la politique se met en place, grâce à la reconversion des sentiments qui consolident des fissures familiales, des groupes d'adeptes, des approches du monde, s'exprimant par des sensibilités collectives et des préceptes moraux. En bref, les idées développées convergent vers la compréhension des sentiments et des valeurs comme une matière qui institue des rites et des modes expressifs différenciés: deuil, mots d'ordre, émotions et langages de dénonciation.

Mémoire; Sentiments; Famille; Politique; Femmes; Espace public


The article analyses different mobilization and symbolic strategies against violence and in favor of justice led by a family victim of the murder of the father, at that time the mayor of a city called Acaraú, in the countryside of Ceará State. The campaign against the parliamentary immunity of the accused of the crime, based on a "combat against oblivion", is motivated by radical feelings that produce rituals with the women as the main characters and spokespersons of a discursive explosion. Based on newspapers, interviews with the families and inhabitants of Aracaú City and judicial documents, the author aims to investigate the different circuits of this memory mobilized by feelings that mediate public and private spheres. The article analyses the way politics take place, observing the reconversion of feelings that consolidate family divisions, partisan groups, points of view, showing collective sensibilities and moral principles. In sum, the discussed ideas converge on the comprehension of feelings and values that create distinctive rituals and expressive ways: mourning, slogans, emotions and denouncing speech.

Memory; Feelings; Family; Politics; Women; Public space


POLÍTICA, MEMÓRIA E ESPAÇO PÚBLICO:

a via dos sentimentos* * Texto originalmente apresentado no GT Biografia e Memória Social, XXIV Encontro Anual da Anpocs, Petrópolis, RJ, 23-27 de outubro de 2000.

Irlys Alencar Firmo Barreira

Preâmbulo

Uma hora antes de morrer, o prefeito fez recomendações à serviçal de seu escritório situado em Fortaleza e aguardou no seu gabinete uma reunião que não chegou a se realizar. Personagens inesperados anteciparam-se aos participantes do marcado encontro, disparando dois tiros no dirigente municipal de Acaraú.1 1 Município de economia pesqueira, situado ao norte do Estado do Ceará, a 252 km de Fortaleza, com população de 50 mil habitantes. O fato revelou uma trama de conflitos latentes ou explícitos que cercam a história política da cidade, acentuada pela indignação e pela moral familiar: o processo judicial envolveu o vice-prefeito e seus dois irmãos,2 2 Os primos do prefeito assassinado João Jaime Ferreira Gomes Filho, indiciados no processo judicial como co-autores intelectuais do crime ocorrido em 8 de maio de 1998, foram o vice-prefeito de Acaraú, Amadeu Ferreira Gomes, e seus dois irmãos, Aníbal Ferreira Gomes, deputado federal à época pelo PSDB (CE), e Manuel Duca da Silveira Neto (Duquinha), deputado estadual à época pelo PSDB (CE). primos em primeiro grau da vítima, que ocupavam os cargos políticos de deputado estadual e federal. Também explicitou as formas tradicionais de resolução de conflitos políticos através da eliminação física de adversários, configurando o crime, mediante provas contidas nos autos, como sendo de pistolagem. Os conflitos políticos familiares, anteriormente resolvidos mediante acordos ou pactos circunstanciais, foram nesse momento radicalizados, dando origem a uma cisão entre a família da vítima e a outra ala acusada de autoria intelectual do crime.

Uma campanha, desenvolvida principalmente na capital do estado, contra a violência e a favor da justiça liderada por Maria Cyntia N. Ferreira Gomes, filha do prefeito assassinado, retoma, em circuito amplo, o significado social e político da morte do dirigente municipal. Em diferentes instâncias ocorrem denúncias veiculadas por meio de ações na esfera pública. Entrevistas, reportagens televisivas, distribuição de panfletos e grandes outdoors dão publicidade ao evento, que ultrapassa a condição de acontecimento local para tornar-se exemplo da ilegalidade e alerta contra a impunidade.3 3 Dos três acusados do crime, dois eram, na época, deputado federal e deputado estadual candidatos à reeleição pelo PSDB, estando em pleno processo de campanha eleitoral. Não obstante a propagação das denúncias, os candidatos foram reeleitos. As pressões junto à Assembléia Legislativa produzem um resultado inédito: a quebra da imunidade parlamentar do deputado estadual acusado de mandante do crime. O "caso Acaraú" traz à tona outros acontecimentos de natureza semelhante, emergindo como evento paradigmático de demanda por justiça e luta por direitos sociais.

Uma constelação de significados

A recomposição destes cenários daria tema de novela policial, constituindo uma espécie de saga política com tramas e conflitos que poderiam ser nomeados de "acontecimento social total". O enredo conflitante da trama familiar, típico do poder local já anunciado por Leal (1978), Queiroz (1976) e tantos outros estudiosos da política tradicional, aqui encontraria farto material. Também os dramas da morte encomendada (César Barreira,1998) e os circuitos que habitam as fronteiras da corrupção e ilegalidade (Bezerra, 1995) configuram uma situação do tipo-ideal a ser explorada. Além de um acontecimento exemplar, o evento promove ações em cadeia, desdobramentos que incidem sobre os temas da política cotidiana e das grandes manchetes que "povoam os cardápios" das transgressões na esfera da política. Este é um caso bom para se pensar, condensando significados sociologicamente relevantes, sobretudo se for possível construir outra trajetória no plano das análises mais recorrentes, que supõem totalizar a explicação de eventos dessa natureza caracterizando-os como a expressão pura do poder tradicional.

Sabe-se, também, que as redes integrantes de fatos dessa ordem são complexas, envolvendo valores ou sentidos nem sempre imediatamente captados à primeira observação. Nesse "caso", o espanto deve também ser desnaturalizado, ainda que a indignação possa permanecer. O significado desse acontecimento demanda, mais do que uma explicação para a ocorrência, um recorte. Foi em busca de entender como os fatos se condensavam e ganhavam significados precisos que escolhi como centro de minhas reflexões a gênese política dos sentimentos em seus trajetos, mediações, conversões e espaços públicos de enunciação. Percebi que, embora o fato inesperado da morte aparecesse como o elemento mais impactante da observação, não menos relevante era a sua memória, que tinha a singularidade de transformar-se em palavra de ordem ou conjunto de versões por onde fluíam as linguagens dos direitos, dos sentimentos e da política.

O assassinato do prefeito é, sem dúvida, um acontecimento gerador, portanto, indutor de campanhas, acionador de valores e propulsor de múltiplos sentimentos ritualizados em expressões radicais, contidas ou negociadas de acordo com o espaço em que aparecem, visando transformar a perda familiar em demandas por justiça.

Os ideais relativos aos direitos sociais e políticos servem de referência a um movimento que ocupa a Assembléia Legislativa, o setor jurídico, a Comissão de Direitos Humanos, incluindo também manifestações variadas empreendidas na esfera pública. As pressões familiares visando ao julgamento do crime acionam valores éticos que transitam estrategicamente em diferentes momentos e espaços. Evocam sentimentos de perda e indignação que permeiam diferentes esferas da vida social, questionando o modo como se costuma considerar as divisões entre o público e o privado.

A condição de viúva e a circunstância de órfã dignificam uma ausência recuperada metaforicamente na eleição da esposa para a Prefeitura de Acaraú e na campanha por justiça liderada principalmente pela filha, também eleita posteriormente pre-sidente da Associação dos Parentes e Amigos de Ví-timas da Violência (APAVV). As facções familiares, divididas entre vítimas e acusados, radicalizam seus antagonismos e as rupturas se expressam em conflitos vividos em diferentes instâncias da esfera públi-ca nos diversos municípios e na capital do estado.

Difunde-se, nesse contexto, uma "sensibilidade em movimento" que aponta o trânsito entre emoções, constrangimentos familiares e valores políticos, liderada por mulheres na condição de "protagonistas do ressentimento". Princípios de um julgamento moral perpassam as ações e opiniões, expressando nova divisão familiar do trabalho político que mobiliza instâncias de legitimidade institucional. O acontecimento revela também uma forma consolidada e naturalizada de exercer o poder, desnudando os temas da legalidade, legitimidade e ilegalidade que informam a chamada "política do interior".

Neste artigo, penso tomar como ângulo de observação os efeitos provocados pelo assassinato do dirigente municipal da cidade de Acaraú, analisando o modo como os sentimentos vão construindo cisões familiares, grupo de adeptos, visões de mundo que se incorporam às instituições e acenam com sensibilidades coletivas, fazendo vir à tona preceitos morais. Menos voltadas para o suposto tema da ruptura do poder local, que a situação à primeira vista parece revelar, as questões aqui postas priorizam a conjugação de sentimentos explicitados em múltiplos rituais, linguagens e ações desempenhadas por personagens específicos, com formas diferenciadas de aparecimento. As mobilizações contra a violência e pelos direitos humanos lideradas pela família da vítima servem, assim, de referência empírica a este artigo.

Os recursos de pesquisa englobaram a consulta a jornais, entrevistas com familiares e moradores da cidade de Acaraú, além da análise de documentos, entre os quais se incluíram os depoimentos judiciais. A coleta de dados foi beneficiada pelo desejo da família da vítima de difundir o crime como forma de reação ao possível arquivamento do processo. Houve, portanto, uma disponibilidade em fornecer informações por parte dos parentes próximos e participantes da campanha, além de outros interlocutores, como deputados e lideranças locais moradores da cidade de Acaraú.

Em síntese, as idéias aqui desenvolvidas convergem para a compreensão dos sentimentos e valores como matéria que institui rituais e modos expressivos diferenciados: luto, palavras de ordem, emoções e linguagens de denúncia. Buscar a política nos registros inusitados dos sentimentos e nas relações de parentesco constitui o principal desafio deste escrito, que se propõe investir nas zonas de interseção não facilmente articuláveis no plano das análises mas, certamente, vividas por seus interlocutores de modo totalizador.

A morte de um político — ritos de rememoração

Os rituais após a morte do prefeito, que englobaram as exéquias e homenagens em diferentes expressões, podem ser analisados como construções de sentido e tomadas de posição. Com efeito, os ritos evocadores da perda do dirigente municipal transformaram-se gradativamente em rememoração e enaltecimento de papéis desempenhados pela vítima, acompanhados de "protesto familiar", posteriormente transformado em situações públicas de denúncia.

A memória da vítima era, portanto, simultaneamente, a difusão da tragédia, fazendo emergir discursos de impactos variáveis na esfera pública, que suscitavam solidariedade. Os ritos familiares do luto poderiam ser comparados, nestas circunstâncias, guardadas as devidas distâncias e singularidades, aos ritos funerários analisados por Mauss (1979), que visavam ao estabelecimento da vindita, afirmada nos cânticos e gestos que invocavam a reparação da perda de parentes. A idéia do luto, no caso da morte do prefeito, está fortemente associada às circunstâncias da perda, muito embora o ressarcimento da morte confira à instância jurídica o poder de resolução do conflito:

Cabe à justiça a ação legítima na reparação dos danos brutais de que somos vítimas, com a punição dos responsáveis, a fim de impedir que eles prossigam ampliando o seu rastro de sangue em nome da ambição e da inveja, dilacerando lares, ceifando mais vidas e aniquilando inocentes e homens de bem. (Mensagem de João Magno, filho do prefeito assassinado, pronunciada na missa de 7o dia do ex-dirigente municipal; publicada em Ferreira Gomes, 1998).

Nesse conjunto de rituais que se seguem ao assassinato do prefeito, o livro4 4 Trata-se de uma edição organizada pelo irmão e os filhos do prefeito João Jaime Ferreira Gomes, com produção gráfica artesanal, publicada um mês após a morte do dirigente municipal. que objetivou divulgar "dados biográficos do prefeito" destaca-se pela articulação entre um código de sentimentos familiares e um código político: o duplo significado da perda do dirigente e chefe de família. O livro, tendo por capa o slogan da campanha da vítima às eleições municipais — "Eu amo Acaraú, ame você também" —, faz da memória do prefeito um ponto de afirmação de seu papel na vida política local. Trata-se, na realidade, de uma biografia calcada em uma identidade construída estrategicamente conforme a acepção de Collowald (1988), tendo em vista a junção idealizada de uma personalidade pública com um modelo familiar. Como personagem principal, o prefeito é apresentado quase sempre no desempenho de múltiplos papéis (pai, esposo, avô), todos narrados como fruto de sua dedicação. A própria vida política do prefeito reeditava a experiência política de seu pai, também nomeado João Jaime e eleito três vezes para a chefia do Executivo em Acaraú.

As indicações de uma vida pautada pela responsabilidade trazem, por outro lado, o significado da perda e violência do assassinato. A denúncia explícita é uma referência constante, fortalecida pela dimensão freqüentemente anunciada de uma "vida exemplar". O coro de vozes vindo de familiares, conterrâneos e demais solidários opera como testemunho público que alude o sentido da perda através de exemplos emanados da vida cotidiana. Os gostos do prefeito, seu último pedido de um jantar a ser preparado pela mulher, minutos antes do falecimento, produzem a percepção da vítima como um cidadão comum, o que acentua, por contraste, o caráter violento da ação. A morte do dirigente municipal é também narrada em sua ritualidade. Recordam-se o último dia, as últimas palavras, o sepultamento e as palavras de pesar. Estas incluem mensagens de autoridades, entre as quais os telegramas do vice-presidente da República, Marcos Maciel, do governador do Ceará e de representantes de vários municípios.

O livro, produzido pela família após a morte do prefeito, constitui também bom exemplo de refundação da memória familiar. Parte das fotos apresentadas compõe uma espécie de genealogia da família, em que está presente um conjunto de eventos que marcam a maioria das histórias familiares de tradição cristã: batizados, primeira comunhão, festas, bodas de ouro e de diamante. O registro de um desses acontecimentos omite a presença dos primos acusados de autoria intelectual do crime, a exemplo da foto que apresenta a diplomação do prefeito e seu vice, propositadamente cortado da imagem, segundo relato de parentes, por ser considerado um dos mandantes do crime. Outros registros visuais ilustram eventos que marcaram as atividades políticas de João Jaime. São acontecimentos familiares e ações filantrópicas exemplificadas na "entrega de leite" do Programa de Gestantes, "distribuição de bicicletas" e outras benfeitorias feitas no Município de Acaraú.

O livro revela, principalmente, a conjugação de interesses afetivos simbólicos e políticos. Funcionando como homenagem, a edição transforma a morte do prefeito em denúncia e monumento, apontando um modo peculiar de elaboração da memória: o passado como exemplo a ser seguido e reparado no presente. Perpassa em diferentes momentos a mensagem da morte como hiato de uma missão inconclusa, vazio de um mandato político não terminado. A relação entre homenagem e recomposição política da ala familiar da vítima aparece, em diferentes circunstâncias, em poesias, orações, relatos e diversas rememorações.

A esse respeito, vale a pena mencionar as discussões de Vernier (1991) referidas às poesias de homenagem aos mortos feitas entre os gregos da ilha de Karpathos. O autor lembra que os poemas para os mortos aludem também às estratégias que envolvem os vivos, tornando-se, nas circunstâncias de morte, inseparáveis da troca econômica e simbólica. Nesse sentido, pode-se verificar que a maioria das palavras enunciadas nos poemas da filha dirigidos ao pai sinaliza, de um lado, a perversidade da ação e, de outro, a necessária continuidade de um trabalho político súbita e inesperadamente interrompido.

A edição póstuma da biografia do prefeito aponta, fundamentalmente, o significado de uma missão não terminada, idéia passada em todos os poemas da filha quando se refere aos "projetos inacabados" do pai. O mesmo sentido aparece em outro momento de referência à vida política de João Jaime: "Agora, como prefeito pela segunda vez, exercia seu mandato com entusiasmo e trabalho. Porém, foi perversamente abatido antes do meio de seu caminho" (Ferreira Gomes, 1998, p. 35).

As circunstâncias nas quais transitam os ritos de rememoração viabilizam a construção de uma espécie de capital simbólico que se desloca para a política e alimenta diferentes ações. Na cidade de Acaraú, a eleição da prefeita é conseqüência de uma campanha efetivada sob o lema de continuidade da gestão anterior. Esse é o tema de seu discurso por ocasião da cerimônia de posse:

Ao assumir o cargo de prefeita deste Município de Acaraú, dois sentimentos distintos afloram à minha mente. O primeiro, um misto de lembrança, saudade e perda, uma vez que fui eleita para cumprir metade do mandato que antes fora integralmente conferido pelo povo de minha terra ao meu inesquecível marido Joãozinho. O segundo é a convicção da grande responsabilidade que estou assumindo [...] (O Povo, 18/1/1999)

Os ritos sinalizadores de rememoração não se restringem ao luto, tornando-se também símbolo de legitimidade, cultivado no cotidiano das ações da viúva e atual prefeita. Os 150 anos do município foram celebrados em julho de 1999 com rituais que evocam a memória do ex-prefeito assassinado. A título de exemplo, na abertura da comemoração havia uma exposição da vida do ex-prefeito, explicitando suas realizações e rememorando aspectos de sua vida íntima. A música Amigos para sempre foi cantada, acompanhada de homenagem prestada pelos funcionários da Prefeitura.5 5 É importante mencionar que o prefeito, antes de morrer, atualizou o pagamento dos funcionários, situação bastante mencionada por parentes, nas entrevistas, como exemplo de dedicação e empenho pela causa pública. Por ocasião da missa de sétimo dia de sua morte, os funcionários renderam-lhe homenagem. Outros ritos comemorativos foram também acionados, dentro desse mesmo espírito, como o hino com a oração de São Francisco "em homenagem ao saudoso prefeito João Jaime Ferreira Gomes Filho".

A função política dos sentimentos pode, na situação analisada, ser percebida com base em alguns registros: no espaço das cisões familiares, da reorganização da família da vítima como outra facção política, no âmbito de sensibilização da opinião pública e nas demandas e pressões dirigidas às instituições jurídicas. Os ritos de luto e rememoração podem assim ser considerados como ritos de diferenciação entre as duas alas familiares, indicando a expressão de uma ruptura radical e o necessário ressarcimento de uma dívida moral.

As denúncias de violência que serão exploradas mais detidamente no decorrer do artigo indicam também a travessia de sentimentos e ritualidades que se transformam em palavras de ordem, queixas e incitamento à sensibilidade pública. A memória do político emerge como memória politizada: lembrar para denunciar, evocando princípios de justiça e punição.

Pela justiça e contra a violência: "mais do que um sentimento, uma campanha"

A campanha pela justiça e contra a violência organizada pela família da vítima mobilizou diferentes espaços de atuação e modos de aparecimento no cenário público, envolvendo principalmente a capital do Ceará. As motivações para o desenvolvimento da campanha foram de ordem pessoal e política, acionando diferentes estratégias, conforme o depoimento de uma de suas organizadoras:

A gente resolveu que tinha que começar a se mexer, tinha que fazer alguma coisa. Eu já estava há seis meses sem sair de casa. A família ameaçada de morte [...] quando a gente começou a se mexer a imprensa deu o maior apoio. Nós praticamente largamos o trabalho. A gente tomava café, almoçava e dormia com esse crime, não tinha outro assunto. Então isso virou uma coisa que foi consumindo, consumindo. Aí, quando eles viram que a gente começou a se mexer, e a imprensa dando o maior apoio do mundo, eles começaram a ameaçar [...] (Sâmia, sobrinha de João Jaime e líder da campanha contra a impunidade. Entrevista concedida à autora em 22/7/1999).

A notícia do assassinato do prefeito de Acaraú rapidamente difundiu-se pela imprensa, ultrapassando o espaço restrito das disputas familiares e tornando-se fato conhecido e comentado. Destaca-se, nesse contexto, a opção de não restringir a dor à experiência subjetiva, o que representa uma transfiguração de sentimentos, pois "toda vez que falamos de coisas que só podem ser experimentadas na privacidade ou intimidade, trazemo-las para uma esfera na qual assumirão uma espécie de realidade que, a despeito de sua intensidade, elas jamais poderiam ter tido antes" (Arendt, 1991, p. 60). A difusão familiar da tragédia institui outra forma de enunciação na qual emergem os mecanismos de denúncia, indignação e pedido de justiça. A fala dos familiares através de entrevistas, panfletos e cartazes ultrapassa a "descrição dos fatos", restaurando a narrativa trágica que enfatiza o sofrimento dos parentes agora também apresentados como novas vítimas potenciais.

O assassinato do prefeito João Jaime sinalizou dupla ruptura, unificando outras famílias de Acaraú, também vítimas de perdas de parentes em circunstâncias semelhantes de violência.6 6 O empresário lagosteiro Afonso Henrique Fontes Neto, potencial candidato a deputado federal, foi assassinado em 1986, em Fortaleza, sete meses antes das eleições. O processo jurídico, que teve o deputado Manuel Duca Silveira como um dos acusados, foi arquivado em 1988. Após o assassinato de João Jaime a família Fontes aderiu às mobilizações da família Ferreira Gomes visando à reabertura do processo jurídico. Este movimento de articulação entre famílias reforçou a visibilidade dos "casos", acentuando a polaridade no interior da família Ferreira Gomes. Aos acusados foi atribuído um conjunto de crimes e agressões morais, além de malversação e desvio de verbas públicas.7 7 A versão familiar sobre o assassinato de João Jaime Ferreira Gomes aponta os interesses econômicos no repasse de verbas, exemplificado na execução de um projeto de drenagem em desacordo com a opinião do prefeito, que considerava a obra cara e sem sentido.

A ocorrência do crime deu origem também a uma refundação da ancestralidade, baseada na separação nítida entre os dois ramos do parentesco. Sob a égide da disputa, a família rompe o princípio da unidade e elabora a própria política interna, conforme o relato de Sâmia em entrevista anteriormente mencionada:

Na hora do crime foi aquele choque, toda a família foi para a casa do meu avô. Eles já sabiam, mas diziam: não pode ter sido! Nós não aceitamos que ninguém ficasse em cima do muro. Ou diziam que eles eram assassinos e ficavam do nosso lado ou a gente não aceitava. Nós tomamos uma atitude radical que acho que foi correta.

Prosseguindo no relato, a entrevistada assinala que a não adesão da maioria dos parentes à facção familiar da vítima justificava-se porque o Duquinha (Manuel Duca), um dos principais acusados, havia "plantado uma semente em cada família arranjando emprego para todos os primos".

Nessa perspectiva, a resolução de dar publicidade ao evento não contou com a adesão total da família, inclusive de membros já posicionados pela ala da vítima. Segundo depoimento de uma das organizadoras da mobilização, havia desconfiança quanto à eficácia da campanha, medo do escândalo ou temor de represálias.

A campanha, acionada sobretudo na capital do estado, apareceu como estando desvinculada de interesses políticos locais, posicionando as demandas por justiça e a denúncia contra a violência em um patamar de universalidade diferente, porém complementar à atuação política peculiar que se apresentava nas eleições em Acaraú. A esse respeito, é importante mencionar um outro trecho da entrevista de Sâmia:

[...] enquanto a gente cuidava da parte daqui, eles [os filhos] cuidavam da parte de lá e não largavam a mãe por nada e nem podiam, o estado psicológico dela, a segurança e a campanha política.

As rupturas e acordos familiares são assim revelados após o assassinato do prefeito, momento em que cada lado se posiciona e, mais do que isso, se inscreve no novo espaço das rupturas radicais. Busca-se, nesse sentido, as origens longínquas legitimadas. O irmão do prefeito reconhece no bisavô o início da linhagem, porém omite o tio-avô, que é pai dos acusados agora nomeados de assassinos. A filha do ex-prefeito reconstitui outro tipo de genealogia familiar, que se restringe aos avós e descendentes, negando a existência de relacionamentos anteriores com o restante dos parentes:

A convivência com a família dos assassinos do meu pai era única e exclusivamente política [...] a minha família mesma ela é restrita só aos descendentes do meu avô, que são meus primos, meus tios legítimos com quem a gente tem uma convivência muito saudável. (Cyntia, entrevista concedida à autora em 14/5/1999)8 8 As divisões familiares inicialmente expressam a cor da pele, separando o ramo dos "Filomenos pretos", descendentes do pai do prefeito, que tinha cor moreno-escuro, de seu irmão de pele clara. Trata-se de uma nomeação que em princípio não prenuncia uma cisão, mas que posteriormente é reapropriada como divisão de perspectivas políticas. Tais divisões são também construídas na esfera de ocupação de cargos. Como se referiu a imprensa por ocasião da difusão do assassinato do prefeito: "Enquanto os Filomenos brancos atuavam na esfera estadual, os Filomenos pretos atuavam na esfera federal."

As referências aos ascendentes tornam a memória familiar uma espécie de recomposição dos afetos. Assim, o irmão do prefeito assassinado evoca o tempo dos avós, que, se vivos, não agüentariam receber a trágica notícia. A nomeação de assassinos para referir-se aos três irmãos e primos em primeiro grau do ex-prefeito representa o marco de uma ruptura definitiva que desarticula presente e passado. As marcas dessa cisão radical estão bem definidas no episódio narrado pela sobrinha de João Jaime:

Havia um túmulo da família Ferreira Gomes onde tava enterrado o meu bisavô, meus tios-avôs e o tio Joãozinho, que foi morto sem ninguém esperar. Nós resolvemos fazer um túmulo à parte. Tiramos o meu avô de lá, minha avó e tio Joãozinho.

Os efeitos da ruptura familiar sobre o plano da memória atingem também as edificações e ruas da cidade de Acaraú. A mudança de nome de ruas e monumentos criados durante a gestão municipal dos parentes acusados do crime integra os projetos de reforma urbana empreendidos pela atual prefeita, a viúva Magda Maria Nascimento Gomes. Tudo se passa como se a história da família se confundisse com o enredo político do município, agora recontado a partir do presente. Valores ligados à honra, à justiça e aos direitos entram no circuito dos sentimentos, tornando indissociáveis os planos dos afetos e das ações políticas.

A campanha contra a impunidade tinha várias metas, dentre as quais, visitas aos jornais e emissoras de televisão e rádio. Em decorrência da curiosidade suscitada pela opinião pública, o fato foi largamente difundido na imprensa, sendo conhecido como "caso Acaraú". As notícias veiculadas abordavam principalmente o acompanhamento do inquérito policial, as eleições em Acaraú e entrevistas com os diretamente envolvidos no assunto, conforme o depoimento pessoal de Sâmia:

[...] desde o início a imprensa esteve do nosso lado. A gente fazia visita ao canal 10, à Tribuna, ao Povo. A gente teve uma abertura muito grande no jornal O Povo, porque tio Joãozinho era colega do Demócrito,9 9 Sócio majoritário do jornal O Povo, de Fortaleza. de turma, estudaram juntos. Então a gente não fazia uma campanha por telefone, mas ia ao jornal e tudo o que a gente queria, como uma entrevista com a tia Magda, a gente conseguia.

É importante mencionar que as notícias veiculadas na imprensa apresentam também diferentes matizes. Encontram-se, por exemplo, uma perspectiva de narração dos fatos, acompanhada geralmente de um quadro de resumo dos acontecimentos com o título "para entender o caso", e outra de apresentação da matéria, na qual o jornalista assume o lugar de crítica, denunciando outras situações de impunidade ou rapidez no arquivamento de processos. Exemplo contundente dessa última versão, não por acaso, vem de Eliane Cantanhêde, colunista da Folha de S. Paulo: "É dramático que suspeitos de assassinato sejam reeleitos deputados e mantenham automaticamente a imunidade parlamentar" (Folha de S. Paulo, 14/5/1999). Outras reportagens locais, embora não assumam de forma explícita as acusações sobre a autoria do crime, enfatizam as virtudes referentes à coragem familiar, exemplificada sobretudo na ação organizada dos parentes.

A instância principal de atuação da campanha foi a Assembléia Legislativa, onde se lutou pela quebra da imunidade parlamentar do deputado estadual Manuel Duca da Silveira. Os esforços pela suspensão desse direito constitucional envolveram várias estratégias e momentos, contando com a participação de simpatizantes e membros de outras famílias de Acaraú, além de deputados posicionados contra o princípio da imunidade parlamentar.

A solicitação da quebra de imunidade passou inicialmente pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, como instância de avaliação da procedência ou não do pedido. Nesse momento, a condição de parlamentar do acusado tornava parciais os posicionamentos, pondo em xeque a opção entre uma política baseada na justiça e uma justiça mediada pela política. Sensibilizar a opinião pública, ganhar adeptos na Assembléia e sobretudo conseguir que o julgamento fosse levado a plenário constituíram a pauta de tarefas que movimentou a família durante longo período.

Momentos significativos desse processo dão conta dos ânimos acionados nestas circunstâncias e das formas de explicitação do conflito:

A gente ia direto à Assembléia e gritava "assassinos na cadeia!". Fazíamos manifestação e chamávamos a imprensa. No dia de votação na Comissão de Direitos Humanos o esquema de Duquinha estava todo montado; era 15 de dezembro e havia risco de a votação em plenário ocorrer com a presença de novos deputados por conta do recesso. Mas, Deus tira de um lado e bota do outro, porque véspera da votação recebemos de uma pessoa anônima uma fita de vídeo com uma gravação de uma mulher que disse haver um corpo jogado dentro da cacimba do sítio do deputado. Então a gente fez um requerimento para o presidente da Assembléia e levamos muita gente. Nossa intenção era adiar a votação para a sessão extraordinária. Tava todo mundo reunido e de repente a gente entra e diz que tem uma novidade no caso. Entregamos a fita lacrada e um requerimento da tia Magda pedindo o adiamento da votação em sessão extraordinária. Quando o Duquinha entrou na sala houve uma briga de família que quase teve agressão. Teve choro e a Comissão só assistindo, vendo o nosso desespero, implorando, chorando. Aí nós combinamos com o deputado João Alfredo de pedir vistas, porque tinha direito pela via jurídica, já que o sentimental não tinha dado certo. (Sâmia, entrevista concedida à autora em 22/7/1999)

O argumento da necessidade de melhor conhecimento da causa prevaleceu, sendo a votação na Comissão adiada por 15 dias. O tempo que antecedeu a votação foi permeado por matérias de jornais das partes em disputa, além de atuações em instâncias variadas, tendo em vista formar opinião pública e pressionar a Assembléia.

Nesses quinze dias a gente não pensava em outra coisa. Dormia, almoçava e tomava café pensando na votação. Nós fizemos dossiês pros 15 deputados, entregamos na casa de cada um. Fomos direto na imprensa e o Duquinha não ficou parado não. Era briga de um lado e briga do outro. Ele deu uma reportagem de página inteira onde chegou ao disparate de dizer que tinha vestido meu tio morto.10 10 Nos dias 20 e 21 de dezembro de 1998, o jornal O Povo registra entrevistas de página inteira com a viúva e o deputado Manuel Duca da Silveira Neto. Até com as mulheres de deputados nós falamos, aquela coisa de mulher pra mulher. Minha tia, a viúva e a outra irmã fizemos uma relação, ligamos para as esposas. A gente sabe que o marido só faz o que quer, isto é, não vamos ser preconceituosas com o ser humano. Mas se a mulher quiser, existe o lado sentimental. A gente tinha que jogar com tudo e até promessa a gente fez. A gente trouxe o povo de Acaraú e colocamos 300 pessoas na plenária. Compramos 300 bandeiras do Brasil pra comover. Nesse dia distribuímos 15 mil panfletos pela cidade. Nesse dia ele levou também a família dele. Devia ter umas 40 pessoas, nossos primos. Nós passamos a manhã todinha naquela confusão. Levamos rosas brancas, retratos do tio e faixas. O presidente da Assembléia esvaziou a plenária e ficamos esperando o resultado do lado de fora. Depois da vitória nós rezamos e levamos as flores brancas para o túmulo. (Sâmia, em entrevista citada)

Uma das preocupações fundamentais da campanha era manter o assassinato vivo na memória. A família tentava, com isso, construir um tempo de urgência contra a morosidade da Justiça. Um processo arquivado significa o espaço do esquecimento e, conseqüentemente, impunidade. Observa-se também que o desencadear da campanha é entremeado por momentos diferenciados de disciplinamento dos sentimentos, conforme a narrativa de Sâmia: "a gente chegava a se descontrolar emocionalmente, mas chegamos à conclusão de que ali era mais do que sentimento, era mesmo uma campanha".

Nota-se, portanto, no curso dessa campanha, uma gestão racional dos sentimentos que se manifesta tanto em momentos de controle e retração, como em situações de expressão radical das emoções que provocam adesões da opinião pública. Da perspectiva do presidente e dos representantes da Assembléia, uma disciplina dos ânimos era freqüentemente acionada, a exemplo do pedido de retirada da família para o procedimento da votação sobre a quebra da imunidade parlamentar do deputado estadual Manuel Duca.

Esse duplo cenário da família à espera do lado de fora e decisões que se efetivavam dentro da Assembléia representa a metáfora de uma separação entre instituições sociais dotadas formalmente de atribuições distintas, agora postas em situações fronteiriças que explicitam "excessos" ou "controles" a serem negociados. Na perspectiva de aplacar os ânimos, manifestações realizadas por componentes familiares e adeptos na Assembléia Legislativa foram reprimidas, sendo os manifestantes impedidos de ter acesso à galeria, sob protestos de deputados de oposição, que alegavam ser a Assembléia a "casa do povo" (Diário do Nordeste, 2/9/1998).

Os sentimentos como palavra de ordem

As mobilizações contra a violência e a favor da justiça tiveram diferentes momentos de visibilidade e impacto social. Em uma primeira instância, tratava-se de interferir na campanha eleitoral dos deputados acusados, difundindo o crime e incitando palavras de ordem: "Não votem em deputados assassinos!". Estampados em outdoors, tais dizeres, acompanhados da foto do prefeito assassinado, causavam impacto sobretudo por estarem colocados em pontos estratégicos de Fortaleza, que incluíam zonas de lazer e bairros de classe média e centro. A tentativa, por parte dos deputados, de retirada dos cartazes sob ordem judicial foi indeferida pela Justiça Eleitoral, que argumentou a inexistência de uma acusação explícita, visto não haver referência ao nome dos acusados. A foto do prefeito era, porém, a referência direta ao "caso Acaraú", já bastante difundido na imprensa e conhecido pela maioria da população.

Assim, do ponto de vista da forma de comunicação, os cartazes eram uma espécie de anticampanha, tendo em conta o uso de uma estética similar à normalmente utilizada em situações de disputa eleitoral. Se, vistos à distância, os cartazes assemelhavam-se aos usuais outdoors de candidatos que estampam fotos e slogans de campanha, a foto do prefeito e os dizeres "Abaixo os crimes de pistolagem! Não dê imunidade a deputados assassinos!" representam a inversão da comunicação eleitoral a partir de recursos simbólicos semelhantes, incluindo o próprio local onde usualmente os cartazes de propaganda eleitoral são expostos. A campanha contra a violência era, nesse sentido, a anticampanha dirigida aos acusados, nesse momento candidatos a deputados estadual e federal.

A propagação do acontecimento em todo o estado efetivou-se principalmente por meio de panfletos e comícios de candidaturas adversárias. Assim, a difusão do "caso" era acionada em campanhas de outros candidatos à Assembléia Legislativa, visando sobretudo impedir a reeleição dos acusados. Especificamente em Acaraú, o acontecimento foi constantemente rememorado, tanto durante as eleições para o Legislativo como na campanha para a Prefeitura, realizada em caráter excepcional seis meses após a morte do prefeito.

Os outdoors, cartazes e panfletos voltaram a ser usados por ocasião do aniversário de morte do ex-dirigente municipal de Acaraú. A foto da vítima, ao lado da frase "Mataram nosso pai, e se fosse o seu?", representa um dos objetivos da campanha: rememorar o assassinato e reforçar as lutas por justiça. Os cartazes somam-se também a um conjunto de mobilizações na Assembléia e à distribuição de 50 mil panfletos que visavam construir adesões junto à opinião pública através da palavra de ordem: "Não dê imunidade a deputados assassinos".

A mobilização de opiniões realizou-se em diferentes espaços, com múltiplas expressões. Panfletagens, caminhadas e concentrações compuseram uma ritualidade fortalecida sobretudo em situações especiais de acionamento do processo ou momentos de rememoração, como foi o primeiro aniversário de morte de João Jaime. As mobilizações familiares valeram-se, portanto, de estratégias típicas de movimentos sociais, exemplificadas no uso de artefatos de campanha, denúncias na imprensa e concentrações na Assembléia, que revelavam a tentativa de fazer do sentimento de luto uma palavra de ordem. A transformação do "caso" em causa é alimentada pela articulação entre disputa familiar e disputa política, na qual se destaca o papel de liderança desempenhado por mulheres.

As protagonistas do ressentimento

A participação das mulheres nesse processo com relação à busca de justiça, no caso de Joãozinho, é muito forte. Eu digo isso porque nós fomos procurados pelos familiares da vítima e quem encaminhou todo esse processo de pressão junto à Assembléia para a quebra da imunidade do deputado Manuel Duca foram as mulheres. A viúva, a filha, as sobrinhas e primas. Então, mesmo tendo filhos homens, todo esse processo de encaminhamento de dossiê, de busca da imprensa, de pressão junto aos deputados e presença nas galerias foi um processo encaminhado por mulheres. (João Alfredo, deputado estadual pelo PT e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Ceará)

Não me parece casual que as campanhas contra a violência e a favor da justiça tenham as mulheres como principais protagonistas. São várias as situações em que as viúvas, organizadas ou não em movimentos, apresentam-se como porta-vozes de denúncias e testemunhas de situações de impunidade. Na perspectiva de se contrapor ou acionar os instrumentos formais de justiça, nem sempre rápidos ou eficazes, as mobilizações dão sentido e visibilidade aos atos de violência no cenário público, ajudando a construir uma categoria social e política, as viúvas, que se apresentam como signatárias da condição de vítima. 11 11 A título de exemplo, destaca-se o Movimento de Mulheres de Trabalhadores Assassinados (MOMTRA), no Maranhão, que tem como um de seus objetivos pressionar os órgãos públicos por justiça e direitos sociais (Andrade, 1997).

Como heroínas da tragédia, as viúvas são vítimas dotadas de credibilidade inquestionável, o que torna suas ações na esfera pública politicamente mais eficazes. Nessa perspectiva, a transformação do sentimento de perda em capital simbólico reveste-se de uma condição quase conseqüente, vista como sendo natural. A Ásia, por exemplo, possui inúmeros exemplos desse tipo de cabedal político que transforma a condição de viúva ou órfã em passaporte para o desempenho de papéis políticos anteriormente efetivados por pais ou maridos.12 12 Corazón Aquino, nas Filipinas, por exemplo, foi levada ao mundo político em 1986, após o assassinato do marido, Benigno Aquino, em 1983. Megawaki Sukarno, na Indonésia, e Aung San Suu Kyi, na Birmânia, atualmente Mianmá, constituem outros exemplos de lideranças políticas que herdaram o carisma paterno. Ver "Herdeiras do palanque", Época, 3/5/1999. Nesse sentido, a frase "E se fosse seu marido?", utilizada pela prefeita de Acaraú no momento de sua campanha, funciona como apelo e cumplicidade dirigidos às mulheres do município.

A função das mulheres como mobilizadoras de sentimentos e protagonistas de ressentimentos fundamenta-se no interior de uma percepção valorativa do papel feminino na vida social. Nessa perspectiva, as mulheres são consideradas substância de bens simbólicos familiares ou caudatárias de uma reserva moral civilizadora. Em tais circunstâncias, exemplos como as mulheres da Plaza de Mayo ou avós de netos desaparecidos durante a ditadura compõem o acervo de uma representação das vítimas da violência. Encarnam, assim, as mulheres na condição de defensoras de princípios universais que estão além do campo da honra e do próprio espaço da política, um poder simbólico que permite exprimir múltiplas linguagens relacionadas ao sofrimento, à indignação e demais sentimentos associados aos ciclos fundamentais de vida e morte (Bourdieu, 1996).

As mulheres podem, desse modo, lançar mão de uma esfera de valores considerados acima de qualquer suspeita, efetivados em momentos de impasse ou concorrência política. Trata-se de uma estratégia mobilizada especialmente no contexto em que as mediações suscitam o agenciamento de outro conjunto de princípios, situados para além das partes em imediata disputa.

O desempenho das mulheres no circuito das mobilizações por justiça social repõe, por outro lado, a possível articulação entre sentimentos produzidos no mundo privado e sua possibilidade de tradução em direitos sociais. Tudo se passa como se as mulheres fossem a categoria ideal para tornar possíveis os sentimentos de justiça através de ações cotidianas laboriosas. Segundo o depoimento de uma sobrinha de João Jaime, promotora e participante ativa da campanha:

os meninos estão mais envolvidos nas questões de Acaraú. Homem não gosta de lutar ou de se dispor a ir pra rua, pegar sol quente. As pessoas mais atentas são nove sobrinhas (Fernanda, entrevista concedida à autora em 5/11/1999).

A verdade da afirmação não impede que as respostas jurídicas ao caso sejam comemoradas pelos filhos homens como "vitórias" ou comprovação da falência política do outro ramo familiar.

É importante ressaltar que a campanha foi liderada por membros de uma geração mais jovem que mora na capital, alguns com formação universitária, incluindo uma sobrinha promotora de justiça, o que reflete as mudanças construídas no espaço da descendência familiar. O distanciamento das querelas locais de poder em Acaraú e a inscrição dos conflitos em outro espaço social tanto legitima a emergência de interlocuções dessa ordem, como viabiliza certa divisão familiar do trabalho político entre assegurar as bases do poder local e mobilizar situações de denúncia envolvendo uma esfera pública ampla.

A organização da campanha tem também uma funcionalidade entre os participantes, que colaboram segundo as competências pessoais. Assim, Fernanda, na condição de promotora, alerta a família sobre as tarefas necessárias ao andamento jurídico do processo:

Eu dizia à família que tinha que ter uma equipe boa de profissionais. Explicava também que eles podiam ir ao Foro e assistir às audiências. Minhas primas acham que eles vão conseguir convencer sua inocência e fazer sumir as provas, mas eu digo: gente, não pode! o depoimento está lá e a fita não vai sumir. Meu papel é fazer a família acreditar na justiça, mas a lei brasileira beneficia o réu. (Fernanda, entrevista concedida à autora em 5/11/1999)

A participação orgânica das mulheres na campanha contra a violência não leva a pensá-las como naturalmente voltadas para realizar disputas em torno dos direitos e denunciar práticas de corrupção. É importante atentar, em primeiro plano, para o modo como os sentimentos são referendados em papéis sociais, dando sentido a uma espécie de lógica capaz de transitar do pessoal ao genérico e universal. Nessa perspectiva, a condição de protagonistas não se separa da construção anterior de uma condição ou habitus, no sentido utilizado por Bourdieu, que atribui a determinadas personagens a função por excelência de exercício de rituais específicos. As mulheres, em tais circunstâncias, cumpririam o papel de protagonistas de ressentimentos oriundos de uma "consciência familiar" profundamente atingida.

Essa constatação admite ainda uma ressalva. Na realidade, a escolha de porta-vozes especiais não se restringe às mulheres, antes respondendo à necessidade de difundir sentimentos na esfera pública de modo a ampliar as zonas de legitimidade. A título de exemplo, uma manifestação liderada pelo ex-deputado estadual Francisco José Ferreira Gomes, irmão do prefeito assassinado, em frente à Assembléia Legislativa revela essa busca de porta-vozes legítimos estrategicamente escolhidos para o cumprimento de determinadas funções. A condição de filha, percebida como alvo principal da tragédia e conseqüente porta-voz da perda violenta, responde ao imperativo da adequação entre difusão de sentimentos e construção de interlocutores especiais.

A divisão familiar das emoções: "a dor de filha é diferente"

Se as mulheres, no espaço de publicidade dos sentimentos, constituem-se como principais protagonistas, a condição de filha aponta um lugar insubstituível e dotado de credibilidade ímpar:

A campanha começou pela Cyntia. Ela queria gritar, ir à rua e pedir justiça. Ela teve a idéia de fazer camisas, faixas. Ela abraçou a causa. Tudo na vida dela era o pai. (Fernanda)

A legitimidade da campanha contra a violência, efetivada principalmente na capital, era baseada também na participação ativa da filha, conforme observou Sâmia, ao comentar o afastamento de Cyntia da campanha, a pedido da mãe:

A Cyntia foi ameaçada de morte, então a tia Magda exigiu que ela fosse daqui. No início não concordamos porque ela era uma peça muito importante na campanha. A dor de filha é diferente. Se eu encontrar o Duquinha na rua eu fico transtornada, mas a filha tem o direito de xingar e de dizer o que quiser.

O acionamento da Justiça também revela certa divisão do trabalho político de cunho familiar. Assim declara Cyntia em entrevista concedida à autora em 14 de maio de 1999:

Eu tô liderando essa luta porque prefiro carregar todo peso pra mim do que deixar minha mãe ou os meus irmãos [...] a gente ficou sem estrutura alguma, quando a gente perdeu o papai ficou totalmente desestruturado, porque ele era a base de nossa família. Hoje meus irmãos estão carregando a família e têm que tomar conta da mamãe. Por isso eu estou com essa luta pra mim, tô com a minha cara em tudo que é jornal e televisão.

Em outro momento da entrevista, Cyntia revela a singularidade de seu papel:

Eu acho que é mais difícil um filho homem perder o pai e tentar acreditar na justiça. Com essa minha proposta de luta pela justiça eu amenizo a dor deles, porque eu faço com que eles acreditem na justiça.

A gestão de sentimentos, cuja dignidade se conforma ao tipo de porta-voz, faz com que as mulheres sejam consideradas guardiãs de vínculos sociais, tendo atuação decisiva em momentos de impasse.

Corroborando essa compreensão, verifica-se o destaque dado pela imprensa a notícias nas quais a filha aparece como porta-voz principal de declarações sobre o andamento do processo jurídico ou os encaminhamentos dados à campanha. Notícias sobre a presença de Cyntia em Nova Iorque, Brasília e São Paulo somam-se aos registros de outros comentários alusivos aos espaços ocupados pela filha no sentido de pressionar a opinião pública. Longe, no entanto, de ser um lugar natural de expressão dos sentimentos, a condição de filha é reveladora de um papel reconhecido e inquestionável, sendo assim ideal para angariar adesão da opinião pública.

É o porte dessa legitimidade insuspeita que confere à filha um espaço de liderança, tanto alvo de possível revide como álibi protetor de uma atuação mais anônima de outros adeptos da família da vítima. Atribui-se, desse modo, à filha a expressão inquestionável dos sentimentos, sendo sua condição de orfandade a memória freqüente do evento. Ela ocupa, nesse sentido, o lugar do grito, da "batalhadora incansável" que tomou para si o empenho fundamental de acionamento da Justiça: "Meu luto é minha luta".

As expressões da "dor de filha" emergem de maneiras diferentes. A imprensa apresenta matérias elogiosas sobre o papel de Cyntia no desenrolar da campanha jurídica contra a impunidade. Segundo as palavras da coordenadora do Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher:

Nos últimos tempos tenho observado ao longe (pela mídia) o comportamento de uma jovem que sequer conheço pessoalmente, mas que me desperta admiração e respeito pela luta que tem travado em busca de uma resposta que pacifique sua alma violentada pelo assassinato de seu pai; trata-se da jovem Cyntia Ferreira Gomes, filha do prefeito assassinado João Jaime Ferreira Gomes. (O Povo, 27/9/1998)

Outro comentário, da jornalista Adísia Sá, em artigo denominado "Resistência confiante", ilustra também essa percepção:

Cyntia, filha do morto, é de uma firmeza admirável na busca de justiça. Frágil, jovem mulher, mas mulher de uma têmpera admirável — retrato fiel, sem dúvida, da cearense lutadora e gigante na defesa de seus valores. Poderia Cyntia recolher-se à dor que cobre sua família e tortura seu coração dilacerado pela morte trágica do pai, mas não: ela sai bradando aos quatro ventos, arrastando amigos e pessoas que nem conhece, numa cruzada edificante em busca de justiça: não temos escolha e não podemos nos calar. (O Povo, 13/6/1999)

As condições desse enunciado de perda acontecem, portanto, a partir do lugar de filha, como interlocutora legítima que possui as condições plenas para emitir as palavras que pronuncia, dando sentido e eficácia simbólica ao universo dos rituais (Bourdieu, 1996). Princípios e concepções acionados nesse contexto de conflitos e ressentimentos compõem também um quadro amplo e complexo de valores.

Honra, direitos e justiça — a inscrição de valores na política do interior

São freqüentes as menções feitas a procedimentos considerados normais na "política do interior", sobretudo aqueles ligados à compra de votos em tempo de eleições e trâmites financeiros ou pactos políticos nem sempre situados no plano da legalidade. A frase "Sabe como é a política no interior", pronunciada em diferentes circunstâncias da pesquisa, parece resumir atitudes não usuais na denominada "grande política", mas compreensíveis na dinâmica do poder local.

No conjunto dessas práticas políticas, os valores ligados à honra familiar atuam como referentes capazes de superpor-se ao reino da legalidade. Tudo se passa como se as prescrições que se efetivam no plano da lei fossem imperativos considerados corretos, porém artificiais, ou passíveis de serem readaptados aos costumes da "política do interior". Os planos que subsidiam os costumes e prescrições legais convivem com as práticas políticas cotidianas, não tanto como conflito, mas como ajustamento entre a regra instituída e a sua contravenção através de cumplicidade pactuada.

Não só a gestão do poder municipal indica peculiaridades. Enquadra-se também nesse contexto o tema da ocupação de cargos por herança, sendo, portanto, considerado normal que um filho de político siga o caminho do pai, corroborando uma obrigação familiar de que representantes mais consagrados "botem" os parentes na política.

Assim foi o caso da família Filomeno, que tem uma ancestralidade política construída nesses moldes. Segundo a viúva e atual dirigente municipal de Acaraú, Magda Gomes, o pai do prefeito assassinado havia "colocado os sobrinhos na política" antes mesmo de seu filho, o que aumentava a indignação contra os acusados. A sucessão de cargos efetiva-se, assim, por meio de acordos e pactos geralmente subtraídos do conhecimento ou participação do público.

Ao ser indagado sobre a morte de João Jaime, o próprio acusado, deputado estadual Manoel Duca, justifica sua inocência argumentando não ter motivos para haver autorizado o crime, levando em conta o acordo já firmado de que a vítima iria no próximo pleito candidatar-se a deputado estadual, enquanto seu irmão seria o próximo prefeito (O Povo, 21/12/1998).13 13 Para uma descrição dos rodízios na ocupação de cargos, característicos da cidade de Acaraú, ver Batista (1999).

A "política do interior" está circunscrita não só ao espaço dos pactos e cumplicidades entre integrantes do poder local, mas também ao plano das dívidas e favores. Estas são concepções igualmente partilhadas pela população de Acaraú que, não obstante afirmar reconhecer a procedência do crime, alega a existência de benfeitorias feitas pelos acusados:

Acho que eles vão voltar para a prefeitura porque ajudaram o povo com ambulância para o transporte de mortos ou doentes. (depoimento de um pequeno comerciante de Acaraú)

É possível pensar, com base nesses exemplos, que os valores que na sociedade moderna se encontram legitimados na esfera privada, tais como fidelidade, troca de favores ou cumplicidade, transitam usualmente no espaço da política também pensada como uma grande família. São valores que Duarte (1966) considerou como sendo constitutivos do primado da ordem privada sobre a pública, vigente no Brasil desde os tempos da Colônia. Antes, porém, de rotular tais representações de clientelismo ou patrimonialismo, é importante verificar em que núcleo de valores políticos elas encontram justificação.

Nessa direção, torna-se importante discutir concepções de honra que dão sentido a um conjunto amplo de práticas sociais que norteiam esse espaço peculiar da política interiorana. Na perspectiva de Bourdieu (1965), a moral da honra se opõe pelos seus princípios à moral universal e formal, através da qual se afirmam a igualdade e a dignidade de todos os homens. O "código" de honra passa a ter sentido no mundo privado, tendo como lema os seguintes dizeres: "Ajuda os teus, quer eles tenham razão ou não".

Também no campo da política, os acordos que antecedem as instâncias legais de decisão apóiam-se em regras de fidelidade, fazendo emergir o conceito de honra e a possibilidade de resolução de conflitos fora do âmbito restrito da legalidade.14 14 A permanência da honra como valor na sociedade contemporânea aparece não apenas em situações radicais que deixam explícitas as dualidades entre o legal e o político, mas também nas relações personalizadas, acompanhadas de mediações ou acordos usualmente subtraídos do conhecimento público (Teixeira, 1998).

Nessa perspectiva, o episódio da morte do prefeito, sendo configurado pela família da vítima como assassinato de um primo-irmão, traz à tona os códigos de honra e fidelidade, reativando, como contraposição, as dimensões de vingança ou justiça reveladoras de dois registros possíveis na resolução dos conflitos. Eles estão presentes de modo mais ou menos sutil nas entrevistas de pessoas da família ou nos poemas feitos pela filha. Cyntia assim escreve em seu poema, denominado "A verdade", publicado na edição póstuma e biográfica do prefeito (1998): "Meu Deus, eu creio na justiça e no direito. A vingança não é a solução". No mesmo livro, outro poema de um cordelista traz uma alusão mais sutil: "Vou rezar para a família não fazer besteira". O princípio de vingança, não necessariamente realizado, paira no horizonte das possibilidades, sendo a justiça muitas vezes concebida como uma forma de impedir a "guerra por outros meios".

A gestão dos conflitos e ressentimentos na visão dos direitos deixa entre parênteses o princípio da honra, recuperando outras dimensões universais da política.15 15 A esse respeito, é importante lembrar que justiça e ressentimento têm, na crítica de Nietzsche (1998) à genealogia da moral, lugares distintos, não sendo apenas a evolução do sentimento de estar ferido. A justiça nasceria, inclusive, contra os princípios reativos, elevando à categoria de norma certos equivalentes do prejuízo. Nessa perspectiva, o justo e o injusto se inscrevem no espaço genérico da lei e não no ponto de vista do prejudicado. Entre parênteses porque a luta entre princípios existe como plano recalcado à espera de que a justiça possa triunfar e impedir o prolongamento do conflito por outras vias.

Esse sentimento de vingança pode até passar dentro do coração, mas na cabeça não. Porque quem é a pessoa que faz um crime contra um filho ou amigo e você não quer ver aquela pessoa pagando? Aquela pessoa morta? Isso é até inconsciente. Só que a gente não pode trabalhar com esse espírito de vingança. Pra que? Pra perder a nossa família inteira? Se a gente não acreditar na justiça vai acreditar em que? (Sâmia)

A concepção nativa de justiça não necessariamente tem o sentido que lhe atribui a instituição jurídica. Esta, carecendo de "provas" para fazer valer seu veredicto, colabora para a construção de uma cisão entre a representação social da realidade contida nos instrumentos formais do direito e a representação que fundamenta o desejo real de punição por parte da família da vítima, conforme o enunciado da frase: "Agora tem que ser provado, não tem mais questão de sentimento." (Fernanda).

Embora a parte jurídica do mundo reflita um modo de imaginar a realidade, como diz Geertz (1999), os caminhos que levam a conexões entre direitos e representações culturais são complexos e nem sempre convergentes. Na situação analisada, diferentes registros para se pensar a justiça são acionados, incluindo a "justiça de Deus", a "justiça do povo" e as formas institucionais de ressarcimento das dívidas morais. Enquanto a "justiça de Deus" é invocada pela família da vítima, ciente de que a "lei brasileira beneficia o réu", o deputado estadual Manuel Duca afirma que "mais que o julgamento da justiça vale o julgamento do povo que antecipadamente já me julgou", referindo-se à sua reeleição (O Povo, 10/10/1998).

Um confronto entre o que poderia ser nomeado campo da honra e campo dos direitos atravessa então os sentimentos familiares, versão presente em várias das entrevistas que apontam o "trabalho" realizado junto à família do prefeito assassinado tendo em vista reforçar a crença na justiça: "Eu tenho certeza que tem gente na minha família que tem ódio, mas acho que a partir dessa minha luta eu consegui passar por cima desse sentimento." (Cyntia). A concepção de honra liga-se não somente aos preceitos de traição e vingança. Na realidade, ela é constituída por um conjunto de valores que dão sentido às diferentes práticas sociais que habitam os bastidores do "espaço privado" da política.

Noções como humilhação ou inveja gravitam em torno de conflitos de poder movidos por hierarquias reconhecidas ou denegadas: "Eles ficaram com inveja porque meu marido começou a crescer na política." (Magda Maria do Nascimento Gomes, entrevista ao jornal O Povo, 20/12/1998).

A articulação entre valores e sentimentos oriundos de registros distintos difere de práticas punitivas nas quais a autoria é evidente e a regulação de normas se faz através do exercício direto da força. Essa é a situação narrada na etnografia de Evans Pritchard (1993), que discute as relações entre parentesco e homicídio entre os Nuer, povos dotados de uma ritualidade que tem por referência o ressarcimento de mortes por assassinato. Com o objetivo de evitar a vingança, valor moral considerado significativo pelo conjunto das tribos, são estabelecidos mecanismos de intermediação dos conflitos de morte entre parentes. No entanto, a vindita é tolerada e utilizada em situações especiais, sendo uma espécie de instituição política reguladora das disputas entre tribos diferentes.

O uso da vindita tem sentido peculiar em uma sociedade onde não existe o recurso da lei, restando para as partes em disputa a obrigação moral de resolver questões por meio de métodos mais ou menos diretos de enfrentamento radical ou negociação. Sociedades como a nossa, pautadas sob o império da lei, mas geridas em circunstâncias peculiares por valores políticos de vingança ou honra, caracterizam-se, no entanto, pela dubiedade ou presença de cenários que se constroem tanto nas marcas da lei como no espaço menos visível dos labirintos (Irlys Barreira, 1998). Trata-se, no caso brasileiro, de uma sociedade dotada de esfera pública que incorpora o tema das redes personalizadas de poder, indutor de segredos só revelados em circunstâncias especiais.

Esse paradoxo e dualismo das relações sociais, identificados por Simmel (1991) como traço presente na sociedade moderna, torna o segredo um valor que orienta condutas entre os indivíduos. A partilha do segredo no plano da vida social recorta o circuito da amizade e das regras distintivas que separam grupos. Ter a posse de um segredo é, portanto, partilhar da intimidade e revelar cumplicidade e confiança. Nesse espaço peculiar, onde se insere a "política do interior", o segredo é a expressão de códigos restritos de conduta que separam grupos e expressam a resolução de conflitos ou negociações no âmbito privado.

Como exemplo paradigmático, é importante mencionar a existência de uma fita cassete gravada pelo prefeito antes de sua morte. A referida fita, autorizada a vir a público na hipótese de morte do prefeito, representa uma espécie de epílogo do trânsito de valores que saem do segredo para vir a público, do âmbito dos sentimentos não revelados para o espaço da visibilidade. As circunstâncias de gravação da fita merecem ser mencionadas.

Um ano antes de sua morte, João Jaime, sentindo-se fragilizado na sua candidatura a prefeito, por não contar inicialmente com a ajuda dos primos-deputados, resolveu reunir mulher e filhos e "deixar claro na imagem e no som um relato político de sua vida". A fita gravada em vídeo, com cópias distribuídas entre mulher e filhos, é composta de momentos diferentes: "a forma como foi iniciada a vida política de nossos avós"; as tentativas de negociação da candidatura: "se eu fosse eleito ajudaria a pagar o hospital com o dinheiro da Prefeitura, porque isso é uma coisa normal"; as declarações sobre desvios de verbas por parte dos primos; a responsabilidade destes pelas mortes do empresário lagosteiro Afonso Fontes e de um vaqueiro conhecedor do caso. A fita, que funcionou como uma das peças-chave do inquérito sobre a morte do prefeito, tinha um teor premonitório, finalizando com a seguinte declaração: "Se algo acontecer a mim ou a minha família, essa fita deve ser entregue às autoridades policiais."

A declaração de João Jaime e o uso desse segredo na esfera pública só são viabilizados a partir da consolidação de uma ruptura política familiar. Com a morte a fita pôde vir a público, muito embora os crimes fossem conhecidos, principalmente no âmbito familiar. A fala depois da morte adquiria um estatuto de verdade, pois quem falava já não tinha nada a perder ou temer. A difusão do segredo assumia, portanto, o tom da revelação inquestionável, exposta ao julgamento público.

Outras dimensões da vida política anunciadas na fita tocam o terreno do inefável ou dos fatos sabidos e não comprovados ou não explicitados. Trata-se de assassinatos ocorridos em passado mais remoto, que fazem parte da memória local, constituindo uma espécie de arquivo também reaberto por ocasião da morte do prefeito.

É nessa perspectiva que um historiador e professor do município se dispõe também a "revelar", através de entrevista concedida à autora, a morte do vigário de Acaraú, em 1931, e outros assassinatos, na tentativa de "colaborar com a história real do município e contribuir para a quebra do silêncio". Os inquéritos arquivados traduziriam, segundo ele, a "cultura política da eliminação de adversários".

O silêncio, por outro lado, pode expressar tanto o medo como a naturalização de fatos que, embora reconhecidos como trágicos, são mesmo justificados: "O prefeito quis ir longe demais e não cumpriu o acordo que tinha feito com os primos-deputados; o importante é não ter provas, mesmo que todo mundo saiba. Isso cria medo e poder." (candidato a deputado apoiado pelos acusados, em entrevista concedida à autora em 20/5/1999).

A transformação da morte do prefeito em denúncia e a inscrição do fato na esfera pública permitem a entrada mais incisiva de interlocuções que se politizam e contribuem para alocar os conflitos do campo da honra no plano dos direitos, a passagem da ação para o discurso, para usar uma terminologia de Hannah Arendt.

A campanha eleitoral municipal que deu a vitória à viúva e a luta contra a violência são expressões simbólicas fundamentadas no sentimento de perda. É possível dizer que a campanha eleitoral inscreve-se tanto nas representações políticas que fundamentam a existência da esfera pública, como nos valores que integram o circuito da honra, referenciados na recuperação de um lugar de domínio contra a imagem da fragilidade. As circunstâncias de "um nome a zelar", de um lugar político a preservar e uma memória a cultuar promovem a construção de estratégias de reprodução e continuidade da nova facção familiar. Nesse sentido, ganhar as eleições representa também "uma questão de honra", sinalizando o voto como memória e indenização pública de uma dívida moral.

O espaço da campanha a favor dos direitos e contra a violência mobiliza, por seu turno, um registro ímpar de sentimentos mediados por valores e instituições para além do princípio da honra familiar. Os códigos familiares, nesse contexto, submetem-se ou articulam-se aos códigos dos direitos como instância que passa a disciplinar o espaço dos sentimentos.

Mesmo que o sentido de perda seja o referente principal, o registro dos sentimentos toma formas variadas de expressão, conforme os seus lugares de aparecimento público. Aqui, vale a pena evocar os espaços possíveis de expressão dos sentimentos discutidos por Abu-Lughod (1986) em sua etnografia sobre os beduínos. Constata a pesquisadora que os sentimentos inscritos no código de honra, permeados por valores como força e indiferença, convivem simultaneamente com aqueles que aparecem no domínio da poesia, onde a perda e a tristeza podem ter lugar. Na medida em que o sentido de honra está associado à coragem e valorizado positivamente, a poesia ganha o estatuto da fragilidade, sendo explicitada apenas de forma reservada e em ambiente propício a essa finalidade.

Os princípios de honra, direitos e justiça, na situação aqui analisada, indicam registros diferenciados que estão sedimentados em práticas políticas cotidianas e valores inscritos em instituições. Essa dimensão expressiva de valores e sentimentos remete ao tema da eficácia simbólica, incluindo as formas e lugares através dos quais diferentes ritos vão tomando forma e sentido.

O trânsito dos sentimentos e sua eficácia na política

Sentimentos e política parecem situar-se, inicialmente, em campos antagônicos. A política moderna, pensada como expressão da racionalidade no sentido weberiano do termo, seria calcada no monopólio legal e também legítimo da violência, sendo, assim, reguladora dos sentimentos e práticas que habitam o domínio privado dos afetos. A percepção dos sentimentos como fatos políticos evoca, no entanto, as formas contraditórias e complexas das ações sociais. É o próprio Weber quem reconhece o caráter afetivo das condutas sociais, considerando como exemplos as ações movidas pelas paixões, entre as quais está o sentimento de vingança.

A percepção dos afetos como elemento orgânico e não residual da vida social moderna demanda a busca de critérios analíticos capazes de superar a constatação de que eles são reminiscências de um passado ainda não submetido à nova ordem, ou simplesmente, parte das representações do social não factível de análise pelo fato de remeter à esfera do imponderável. Para o pesquisador, surge o desafio de tomar os afetos como parte do próprio objeto de investigação.

Os eventos expressivos de emoções, como bem mostrou Mauss (1979), não têm explicação unicamente psicológica e não estão restritos ao plano individual, mas conectados com dimensões fundamentais da vida social. Desse modo, os sentimentos afirmam princípios, restituem dimensões de moralidade a partir de situações diferentes, sendo, por conseguinte, não só expressão inusitada ou decorrência natural de acontecimentos, mas ações construídas no cotidiano que fazem o próprio mundo social.

Sob esse prisma, lembra o autor, o luto aparece como momento paradigmático de elaboração de significado das perdas com efeitos relevantes na ordem das interações sociais. Contra a idéia de espontaneidade, Mauss chama a atenção para a expressão obrigatória de sentimentos, explicitada através de ritos e formas de inscrição no cenário público.

Essa busca de conexão entre o plano dos sentimentos e a ordem social encontra-se também discutida nas pesquisas de Abu-Lughod e Lutz (1990), quando analisam o discurso da emoção como prática social em diferentes contextos etnográficos. Criticando as análises que consideram os sentimentos como um dado natural e essencial da conduta humana, as autoras se propõem analisar as emoções como discurso, verificando de que modo elas afetam a vida social, induzindo ações e estratégias de efeitos variados na sociedade. Mais do que uma parte específica de representações que se integram à vida social, as emoções são em si mesmas fatos sociais, linguagens constitutivas do mundo social.

As emoções como linguagens indutoras de ritos apropriados, mobilizados e re-significados na política constituem importante ponto de partida para compreender o que, na situação aqui analisada, poderia ser nomeado de "sensibilidade em movimento" ou caracterizado como uma política dos sentimentos. O assassinato do prefeito torna-se um caso exemplar na medida em que realiza o trânsito de sentimentos familiares, vividos usualmente no circuito restrito da privacidade, para expressões amplas, inscritas na esfera pública. Em tal circunstância, a propagação do sentimento de perda torna-se inseparável de uma demanda de posição. A "expressão obrigatória dos sentimentos" implica cumplicidades e delimitações de fronteiras nas quais estão em jogo não só a opção por qualquer das versões divulgadas pelas facções familiares em disputa, mas também princípios e visões de mundo presentes no campo da política. Questões sobre a imunidade parlamentar, a violência, as disputas familiares e a gestão de recursos que caracterizam a "política do interior" passam a fazer parte das discussões cotidianas vividas em diferentes circuitos sociais.

Os sentimentos são politicamente eficazes na medida em que promovem impacto, visibilidade e ações variadas na esfera pública. Precede a essa dinâmica o registro simbólico onde se situa a esfera dos constrangimentos universais, promotora de formas variadas de legitimidade. Não por acaso, os apelos oriundos de situações dramáticas incitam formas de adesão fundadas em discursos performativos que têm o seguinte teor: "E se fosse seu pai, seu filho, sua filha?16 16 Apelos com esse teor foram também utilizados em situações de protesto, como após a morte do estudante Edson Luís, durante a ditadura, ou, mais recentemente, por ocasião do assassinato da atriz Daniela Perez. Trata-se, portanto, de um discurso que remete ao tema da esfera universal inquestionável dos sentimentos, algo que, na terminologia de Durkheim, poderia ser nomeado de consciência coletiva.

As formas de apelo remontam a processos que tocam os temas da identificação, da solidariedade e dever moral. No plano mais genérico da identificação, os sentimentos abarcam condolências efetivadas nos rituais de luto e adesões construídas através da emergência de um coletivo genérico presente nos comentários advindos da difusão, em momentos especiais, do "caso Acaraú". A divulgação nos jornais, as entrevistas em rádio e notícias de televisão compõem esse primeiro momento em que prevalece o teor do impacto, como parte significativa de uma luta simbólica para construir uma "visão de mundo" inseparável das explicações sobre o ocorrido. A exposição e "realidade dos fatos" não exime, desse modo, o jogo composto pelas versões familiares em disputa (Champagne, 1990).

Os espaços de solidariedade acontecem ao longo da consolidação da campanha contra a violência, envolvendo mobilizações e formas variadas de comunicação com a população. É como família que o grupo de "ativistas" se apresenta: "Éramos nós mesmos quem distribuíamos os panfletos ou nós mandávamos confeccionar camisas e cartazes." Nesse momento, aparece a separação cada vez mais radical entre a ala da família da vítima e os primos acusados, em panfletos, do assassinato do prefeito.

A instância do dever moral pode ser percebida como resultado de pressões sociais que induzem a resolução jurídica do caso. Para os deputados na Assembléia ou para os especialistas dotados de poder de definir e avaliar a situação, impunha-se a regra do dever moral, trazida permanentemente como argumento pela família da vítima: "O mínimo que se pode esperar da justiça é o julgamento dos processos". O objetivo último das pressões poderia então ser avaliado como uma espécie de clamor pela justiça, que era a instância para onde convergiam todos os esforços: "Não sei o que teria acontecido se a votação contra a imunidade parlamentar na Assembléia tivesse dado negativa. Nós estávamos preparados com vidros de tinta vermelha para colocar na Assembléia" (sobrinha de João Jaime).

A campanha pela justiça e contra a violência introduz um binômio complexo na relação entre espaço público e espaço privado, produzindo questionamentos na forma como se costuma separar essas dimensões expressivas do mundo social. A situação de entrelaçamento dessas esferas aparece desde a difusão das perdas familiares como motriz de denúncia no espaço público. Papéis tradicionais de pai, viúva e filha são reforçados nesse momento, rompendo o espaço dos sentimentos familiares como parte das atribuições convencionais da instância privada, vinculando os fios que unem vida política e vida familiar. Aqui torna-se evidente a perspectiva de acenos à esfera pública, feitos a partir da mobilização e organização de pessoas privadas,17 17 As discussões de Habermas (1984) sobre o desenvolvimento da esfera pública são relevantes para se compreender como a campanha contra a violência aciona instituições, realocando interesses pessoais no sentido da construção de uma opinião pública. elaborando um momento de passagem ou de trânsito que articula diferentes instituições e interlocutores.

O Parlamento como instância especial da esfera pública situa-se na condição de agenciador de interesses coletivos discutidos e ritualizados. É justamente a mobilização da opinião pública, erguida dentro e fora do Parlamento, que atribuirá significados políticos à decisão sobre a quebra da imunidade do parlamentar, constituindo-se como força de pressão. Entretanto, no espaço do Parlamento, a prerrogativa da imunidade confunde-se com as adesões partidárias, obrigando a um trabalho de justificação por parte dos deputados favoráveis à suspensão desse direito constitucional. As argumentações sobre essa proposta fundamentavam-se na idéia de que estava em jogo apenas o privilégio do recurso especial e não a autoria do crime.

Tratava-se, portanto, da possibilidade de instaurar um espaço acima das adesões ideológicas ou emocionais, rompendo a teia de interações conflitivas, relações pessoais e pressões coletivas acionadas pelas partes interessadas dentro e fora da Assembléia. Conversações em corredores e gabinetes, apelos à opinião pública mediante cartazes e panfletos e telefonemas pessoais tornam inseparáveis as instâncias das adesões e alianças que envolvem sentimentos e posturas políticas.

É importante salientar que a singularidade da campanha esteve no trabalho feito "em todos os níveis", mobilizando suportes variados no âmbito público e no circuito das conversas e formas de persuasão que se efetivam no plano pessoal. Assim, sensibilizar as mulheres dos deputados, apresentar-se conjuntamente nas plenárias e dirigir-se em carta ao presidente da Assembléia, anunciando o "crime contra um homem público, um esposo afetuoso, um pai carinhoso, um avô mais que afetuoso, um irmão e amigo", permitiu a emergência de redes comunicativas que buscavam unir moral familiar e moral política. A rede de interações de sentimentos e práticas políticas era também reforçada pelo fato de o chefe de gabinete do governador do estado ser sobrinho de João Jaime e forte apoiador da campanha contra a imunidade parlamentar.

O acionamento de espaços institucionais e a busca de pressão da opinião pública irão, nesse sentido, corroborar a transformação do "caso" em evento paradigmático, capaz de suscitar princípios não somente referendados na instância legal, mas também calcados nos sentimentos familiares mobilizados e difundidos sob a ótica das emoções partilhadas pelo conjunto da sociedade. Emerge, em tais circunstâncias, um processo que passa pelo ressentimento pessoal mas a ele não se restringe, produzindo uma relação de simpatia e identificação indutora de uma dimensão moral (Strawson, 1974).18 18 O uso das idéias de Strawson para a percepção do insulto moral expresso na negação do reconhecimento da identidade distinta do Quebec encontra-se formulado em Cardoso (1999).

A dimensão moral na realidade circunscreve-se também à Assembléia, que nesse momento busca se afirmar como espaço de credibilidade. A decisão do resultado sobre a quebra da imunidade parlamentar é comentada nos jornais como expressão de "transparência e ausência de corporativismo". O caráter paradigmático do caso põe assim em questão o papel da Assembléia como instituição acima dos interesses privados.

Pensar o conjunto de ações como parte de uma estratégia simbólica não significa duvidar da intensidade dos sentimentos ou supô-los objeto de um cálculo familiar prévio. Ao contrário, as emoções conduzidas e organicamente articuladas na vida dos familiares — "a gente só pensava naquilo" — integram uma espécie de libido agregadora de sensibilidades e investimentos pessoais cujo horizonte inclui momentos capazes de comprovar que "valeu a pena". "A gente sabe que nada vai trazer meu tio de volta, mas se for feita a justiça essa dor vai ser amenizada." (Sâmia).

Mais que a evocação da perda que caracteriza os costumeiros rituais de luto, a carga simbólica da morte trágica faz dos atos de rememoração uma demanda por justiça com alusão direta ou indireta aos considerados responsáveis. Os rituais têm, nesse sentido, a teatralidade dramática, enfaticamente declarada, a que se refere Goffman (1996),19 19 O autor discute a exposição radical de situações de miséria ou doença entre setores desclassificados como parte de uma situação de dramatização geradora de comoção social. dotada de uma idealização negativa, cuja recorrência a uma espécie de "cena inaugural do crime" aparece através de sinais típicos. É nesse sentido que o traje preto da viúva durante sua campanha eleitoral, e posteriormente em outras circunstâncias públicas, o uso constante de guarda-costas por todos da família da vítima ou o porte de armas podem ser visualizados como memória teatralizada do fato acontecido. Destaca-se no conjunto dos eventos um trabalho simbólico de conversão da perda familiar em constrangimentos coletivos capazes de realizar a travessia entre sentimentos, denúncias e demandas dirigidas à Justiça e demais instituições. Nessas circunstâncias, a tarefa de transformar o fato em expressão paradigmática de reivindicações amplas torna-se fundamental. Campanhas contra a pistolagem e contra a impunidade, já legitimadas no cenário político brasileiro, servem de esteio e convergência às mobilizações familiares difundidas em diferentes comissões e organismos a favor dos direitos humanos.

O modo como os sentimentos são construídos, mobilizados e difundidos em diferentes circuitos sociais aponta uma expressividade adaptada a diferentes circunstâncias e espaços de aparecimento. Isso significa que os modos de evidenciar o luto, a revolta e o medo têm significados diferentes conforme as esferas institucionais em que aparecem. Na Assembléia e no Fórum, a lógica da disciplina, segundo os rituais jurídicos e políticos, difere da denúncia nas ruas e espaços públicos nos quais a palavra de ordem radicaliza os sentimentos. As formas de enunciação discursiva são, desse modo, diferenciadas conforme as situações e lugares em que emergem. Denúncias, insultos, depoimentos e solicitações expressam retóricas diferenciadas através das quais se efetiva uma "sensibilidade em movimento", cujo teor vai se configurando conforme os constrangimentos institucionais e os espaços de visibilidade que apontam a "justa dose" de expressão da indignação familiar.

As mobilizações contra a violência exemplificam a inserção dos sentimentos na política, onde as mulheres emergem como reservatório de bens simbólicos, permitindo a transformação do ressentimento em indignação e imagem de protesto, alargando assim as possibilidades de enunciação dos sentimentos no espaço público. As ações e mobilizações efetivadas em torno do assassinato de João Jaime constituem uma espécie de demanda social de reparação das perdas com rituais de luto que recuperam a ligação eclipsada na sociedade contemporânea entre a dor individual e a demonstração pública dos sentimentos.20 20 Para uma discussão sobre as expressões de luto na sociedade contemporânea ver Koury (1996).

É possível dizer que as diferentes ações familiares se inserem em um campo simbólico que atravessa múltiplos caminhos. Os sentimentos, inscrevendo-se fortemente no espaço público, delineiam ritos obrigatórios de solidariedade, demanda de punições e oposições, nos quais as visões de mundo em disputa podem contribuir para explicitar os bastidores da política.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

POLÍTICA, MEMÓRIA E ESPAÇO PÚBLICO: A VIA DOS SENTIMENTOS

Irlys Alencar Firmo Barreira

Palavras-chave

Memória; Sentimentos; Família; Política; Mulheres; Espaço público.

O artigo aborda diversas mobilizações e estratégias simbólicas contra a violência e a favor da justiça efetivadas por uma família vítima do assassinato do pai, até então prefeito de Acaraú, cidade do interior do Ceará. A campanha contra a imunidade parlamentar dos acusados do crime, baseada no "combate ao esquecimento", é movida por sentimentos radicais que produzem rituais, tendo as mulheres como principais protagonistas e porta-vozes de uma explosão discursiva. Baseada em consulta a jornais, entrevistas com familiares e moradores da cidade de Acaraú, além da análise de documentos judiciais, a autora visa investigar os diferentes circuitos dessa memória mobilizada por sentimentos que fazem a mediação entre esfera pública e esfera privada. Analisa o modo como a política se realiza, através da reconversão dos sentimentos que vão consolidando cisões familiares, grupo de adeptos, visões de mundo, acenando com sensibilidades coletivas e preceitos morais. Em síntese, as idéias desenvolvidas convergem para a compreensão dos sentimentos e valores como matéria que institui ritualidades e modos expressivos diferenciados: luto, palavras de ordem, emoções e linguagens de denúncia.

POLITICS, MEMORY AND PUBLIC SPACE: THE VIA FOR THE FEELINGS

Irlys Alencar Firmo Barreira

Keywords

Memory; Feelings; Family; Politics; Women; Public space.

The article analyses different mobilization and symbolic strategies against violence and in favor of justice led by a family victim of the murder of the father, at that time the mayor of a city called Acaraú, in the countryside of Ceará State. The campaign against the parliamentary immunity of the accused of the crime, based on a "combat against oblivion", is motivated by radical feelings that produce rituals with the women as the main characters and spokespersons of a discursive explosion. Based on newspapers, interviews with the families and inhabitants of Aracaú City and judicial documents, the author aims to investigate the different circuits of this memory mobilized by feelings that mediate public and private spheres. The article analyses the way politics take place, observing the reconversion of feelings that consolidate family divisions, partisan groups, points of view, showing collective sensibilities and moral principles. In sum, the discussed ideas converge on the comprehension of feelings and values that create distinctive rituals and expressive ways: mourning, slogans, emotions and denouncing speech.

POLITIQUE, MÉMOIRE ET ESPACE PUBLIC: LA VOIE DES SENTIMENTS

Irlys Alencar Firmo Barreira

Mots-clés

Mémoire; Sentiments; Famille; Politique; Femmes; Espace public.

L'article aborde diverses mobilisations et stratégies symboliques contre la violence et en faveur de la justice accomplies par une famille victime de l'assassinat du père, jusqu'à lors maire d'Acaraú, ville de province de l'État de Ceará. La campagne contre l'immunité parlementaire de ceux accusés de crimes, fondée sur le "combat contre l'oubli", est poussée par des sentiments radicaux qui produisent des rituels, dont les femmes sont les principales protagonistes et messagères d'une explosion discursive. L'auteur, s'appuyant sur des recherches dans des journaux, des interviews avec des membres de la famille et des habitants de la ville d'Acaraú, ainsi que sur l'analyse de documents de justice, à pour but de rechercher les différents circuits de cette mémoire impulsionnée par des sentiments qui font la médiation entre la sphère publique et la sphère privée. L'article analyse la façon par laquelle la politique se met en place, grâce à la reconversion des sentiments qui consolident des fissures familiales, des groupes d'adeptes, des approches du monde, s'exprimant par des sensibilités collectives et des préceptes moraux. En bref, les idées développées convergent vers la compréhension des sentiments et des valeurs comme une matière qui institue des rites et des modes expressifs différenciés: deuil, mots d'ordre, émotions et langages de dénonciation.

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  • 1
    Município de economia pesqueira, situado ao norte do Estado do Ceará, a 252 km de Fortaleza, com população de 50 mil habitantes.
  • 2
    Os primos do prefeito assassinado João Jaime Ferreira Gomes Filho, indiciados no processo judicial como co-autores intelectuais do crime ocorrido em 8 de maio de 1998, foram o vice-prefeito de Acaraú, Amadeu Ferreira Gomes, e seus dois irmãos, Aníbal Ferreira Gomes, deputado federal à época pelo PSDB (CE), e Manuel Duca da Silveira Neto (Duquinha), deputado estadual à época pelo PSDB (CE).
  • 3
    Dos três acusados do crime, dois eram, na época, deputado federal e deputado estadual candidatos à reeleição pelo PSDB, estando em pleno processo de campanha eleitoral. Não obstante a propagação das denúncias, os candidatos foram reeleitos.
  • 4
    Trata-se de uma edição organizada pelo irmão e os filhos do prefeito João Jaime Ferreira Gomes, com produção gráfica artesanal, publicada um mês após a morte do dirigente municipal.
  • 5
    É importante mencionar que o prefeito, antes de morrer, atualizou o pagamento dos funcionários, situação bastante mencionada por parentes, nas entrevistas, como exemplo de dedicação e empenho pela causa pública. Por ocasião da missa de sétimo dia de sua morte, os funcionários renderam-lhe homenagem.
  • 6
    O empresário lagosteiro Afonso Henrique Fontes Neto, potencial candidato a deputado federal, foi assassinado em 1986, em Fortaleza, sete meses antes das eleições. O processo jurídico, que teve o deputado Manuel Duca Silveira como um dos acusados, foi arquivado em 1988. Após o assassinato de João Jaime a família Fontes aderiu às mobilizações da família Ferreira Gomes visando à reabertura do processo jurídico.
  • 7
    A versão familiar sobre o assassinato de João Jaime Ferreira Gomes aponta os interesses econômicos no repasse de verbas, exemplificado na execução de um projeto de drenagem em desacordo com a opinião do prefeito, que considerava a obra cara e sem sentido.
  • 8
    As divisões familiares inicialmente expressam a cor da pele, separando o ramo dos "Filomenos pretos", descendentes do pai do prefeito, que tinha cor moreno-escuro, de seu irmão de pele clara. Trata-se de uma nomeação que em princípio não prenuncia uma cisão, mas que posteriormente é reapropriada como divisão de perspectivas políticas. Tais divisões são também construídas na esfera de ocupação de cargos. Como se referiu a imprensa por ocasião da difusão do assassinato do prefeito: "Enquanto os Filomenos brancos atuavam na esfera estadual, os Filomenos pretos atuavam na esfera federal."
  • 9
    Sócio majoritário do jornal
    O Povo, de Fortaleza.
  • 10
    Nos dias 20 e 21 de dezembro de 1998, o jornal
    O Povo registra entrevistas de página inteira com a viúva e o deputado Manuel Duca da Silveira Neto.
  • 11
    A título de exemplo, destaca-se o Movimento de Mulheres de Trabalhadores Assassinados (MOMTRA), no Maranhão, que tem como um de seus objetivos pressionar os órgãos públicos por justiça e direitos sociais (Andrade, 1997).
  • 12
    Corazón Aquino, nas Filipinas, por exemplo, foi levada ao mundo político em 1986, após o assassinato do marido, Benigno Aquino, em 1983. Megawaki Sukarno, na Indonésia, e Aung San Suu Kyi, na Birmânia, atualmente Mianmá, constituem outros exemplos de lideranças políticas que herdaram o carisma paterno. Ver "Herdeiras do palanque",
    Época, 3/5/1999.
  • 13
    Para uma descrição dos rodízios na ocupação de cargos, característicos da cidade de Acaraú, ver Batista (1999).
  • 14
    A permanência da honra como valor na sociedade contemporânea aparece não apenas em situações radicais que deixam explícitas as dualidades entre o legal e o político, mas também nas relações personalizadas, acompanhadas de mediações ou acordos usualmente subtraídos do conhecimento público (Teixeira, 1998).
  • 15
    A esse respeito, é importante lembrar que justiça e ressentimento têm, na crítica de Nietzsche (1998) à genealogia da moral, lugares distintos, não sendo apenas a evolução do sentimento de estar ferido. A justiça nasceria, inclusive, contra os princípios reativos, elevando à categoria de norma certos equivalentes do prejuízo. Nessa perspectiva, o justo e o injusto se inscrevem no espaço genérico da lei e não no ponto de vista do prejudicado.
  • 16
    Apelos com esse teor foram também utilizados em situações de protesto, como após a morte do estudante Edson Luís, durante a ditadura, ou, mais recentemente, por ocasião do assassinato da atriz Daniela Perez.
  • 17
    As discussões de Habermas (1984) sobre o desenvolvimento da esfera pública são relevantes para se compreender como a campanha contra a violência aciona instituições, realocando interesses pessoais no sentido da construção de uma opinião pública.
  • 18
    O uso das idéias de Strawson para a percepção do insulto moral expresso na negação do reconhecimento da identidade distinta do Quebec encontra-se formulado em Cardoso (1999).
  • 19
    O autor discute a exposição radical de situações de miséria ou doença entre setores desclassificados como parte de uma situação de dramatização geradora de comoção social.
  • 20
    Para uma discussão sobre as expressões de luto na sociedade contemporânea ver Koury (1996).
  • *
    Texto originalmente apresentado no GT Biografia e Memória Social, XXIV Encontro Anual da Anpocs, Petrópolis, RJ, 23-27 de outubro de 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
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