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Uma democracia inconclusa e em desconstrução

An unfinished and deconstructing democracy

MIGUEL, Luís Felipe. . O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Expressão Popular, 2019. 216 p. (Coleção Emergências).

O momento brasileiro é de retrocesso generalizado. O golpe de 2016 retirou do poder uma presidente que dispunha da legitimidade conferida pelas urnas, sem que sua destituição encontrasse respaldo na Constituição. Rompeu-se o pacto que, bem ou mal, regia a vida nacional e impunha limites à expressão do conflito político. (MIGUEL, 2019, p. 179).

O livro O colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016, do cientista político Luís Felipe Miguel, é trabalho indispensável para a compreensão da magnitude e da gravidade do regresso político que atravessamos, iniciado em meados de 2013, ainda em curso e intensificado com a eleição do líder de extrema-direita, Jair Bolsonaro. Esse momento recessivo, no entanto, não se explica pelas ações de uma personalidade política. Longe disso. Trata-se de um contexto social mais amplo que, inserido no quadro de crise do capitalismo neoliberal, caracterizado pela retração de políticas de promoção da cidadania, pela criminalização da atividade política e dos movimentos sociais, pela crescente violência contra minorias etc.; em suma, pela destruição das conquistas e das esperanças de liberdade e de justiça social consolidadas na Constituição de 1988. Mas detectar sintomas não é o mesmo que explicar, isto é, identificar propriamente os nexos de causalidade entre os fenômenos estudados. Que categoria permite uni-los, então, em um único quadro analítico?

O livro O colapso da democracia no Brasil explica, e não apenas descreve, esses fenômenos que compõem o regresso nacional contemporâneo a partir da ideia de desigualdades. Ou seja, o colapso da nossa incipiente experiência democrática está diretamente relacionado com a estrutura de desigualdades que forma ainda a nação em meados do século XX e XXI. Conhecido pela publicação de inúmeros artigos e livros nos quais aborda a questão das desigualdades socioeconômicas produzidas pelo capitalismo, das desigualdades de gênero e raça, das desigualdades no acesso à informação e sua relação com o modo como os meios de comunicação se estruturam e se comportam, entre outros, o professor da Universidade de Brasília nos brinda, agora, com um escrito voltado ao grande público e dotado de uma ampla análise, quer dizer, menos circunscrito a uma dimensão específica da realidade política, como nos seus trabalhos anteriores, mas que, como esses, tem ainda as desigualdades como elemento decisivo de compreensão da política. Esta publicação e, em especial, a disponibilização gratuita do livro no formato digital, no site da Editora Expressão Popular, reforçam o caráter inclusivo do escrito, bem como a sua intenção mais explícita de intervenção no debate público.

Miguel inicia o livro discutindo o processo de transição democrática nos anos 1980, passa à análise dos governos petistas (Lula e Dilma) e de suas contradições internas, ao processo de recomposição da direita nacional após a derrota nas eleições presidenciais de 2014, ao comportamento dos meios empresariais de comunicação nesse contexto, à articulação pela deposição de Dilma em meio às operações espetaculares da Lava-Jato e das manifestações de rua, chegando à eleição de Bolsonaro (mas não se dedica a analisar as ações desse governo).

Definido como um “ensaio de interpretação”, Miguel não pretende propriamente constituir um amplo panorama que explique “tudo” (desde a Constituição de 1988 até o golpe de 2016, como sugere o subtítulo da obra), mas que identifique, isto sim, um sentido para as últimas três décadas do país e para o impasse político no qual nos situamos. Para tal, ele afirma que o golpe de 2016 deve ser compreendido como parte de uma reação das elites para preservar (ou mesmo repor) as desigualdades abissais que caracterizam o país há séculos, desigualdades essas questionadas muito timidamente pelos governos petistas de Lula e de Dilma. Sim, o golpe foi dado para que o país persistisse a ser uma das nações mais desiguais do planeta. Mas não só. Para que continuasse também a ser um dos países nos quais mais se assassinam travestis, mulheres, negros, entre outros. Para que os meios de comunicação de massa - ferramenta sine qua non para o bom funcionamento da democracia liberal - perseverem sendo monopólio de poucas e grandes empresas no país etc. Em resumo, a sua análise, compreendendo uma razoável temporalidade (de quase trinta anos), assevera que a Nova República foi instituída por meio de um processo gradual, de conciliação e concessão com a ditadura militar, no qual as desigualdades pregressas não foram superadas e permanecem sendo o impasse decisivo do processo inconcluso de democratização da sociedade brasileira.

Este é o principal ganho analítico do presente livro: analisar as disputas, contradições, avanços e retrocessos da jovem democracia nacional à luz das diversas formas de desigualdade que a constituem - o que confere à obra uma abordagem crítica e fidedigna da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que sugere inúmeras possibilidades de interpretação a serem aprofundadas posteriormente. Contra uma visada institucionalista, comum ao mainstream da ciência política, segundo a qual a democracia é explicada quase exclusivamente pelo comportamento do Congresso, dos líderes no Parlamento, do Judiciário etc., mas também diversamente de uma concepção de inspiração marxista, segundo a qual o conflito entre as classes sociais é o fator central de compreensão da realidade política, O colapso da democracia no Brasil considera a nossa última experiência democrática a partir de diversos prismas de análise, disponibilizando ao leitor um escrito direto e simples, sem ser simplificador e limitado. Se não é correto pensar a política como restrita aos espaços formais de disputa de poder (sendo ela também constituída pela esfera familiar, pelo mercado, pelas relações raciais etc.), se não se deve tomar a isonomia e as liberdades típicas do Estado Democrático de Direito como condição suficiente para caracterizar um país como plenamente democrático, tampouco deve-se limitar a compreensão das desigualdades à dimensão econômica. Apropriando-se, sim, da perspectiva crítica própria ao marxismo contemporâneo, Miguel não se limita a ela, incorporando à sua análise, por exemplo, contribuições do feminismo negro, da teoria sociológica francesa, entre outras fontes teóricas, para pensar como as assimetrias entre homens e mulheres, pobres e ricos, negros e brancos, entre outros, é um ponto incontornável da história brasileira e do regresso político que a caracteriza hoje.

Penso que ao lado de se destacar esse ganho analítico frente a abordagens limitadas e pouco críticas da política, institucionalistas ou economicistas, é preciso salientar também como O colapso da democracia no Brasil nos faz lembrar de alguns feitos do pensamento político brasileiro. Talvez não seja exagerado comparar essa obra com importantes contribuições da sociologia política de Florestan Fernandes (um dos poucos clássicos nacionais citado pelo próprio Miguel) e, mais especificamente, contribuições de um Florestan mais engajado politicamente, que curiosamente assumia aspectos da tradição “ensaísta” brasileira, que ele criticara nos anos de 1940, em conhecida polêmica com Alberto Guerreiro Ramos. Como se sabe, após o golpe de 1964, que expôs o quão distante estávamos de ser uma sociedade tipicamente moderna, com uma burguesia engajada em um projeto de desenvolvimento nacional, Fernandes publica um dos principais livros de sua vida, A revolução burguesa no Brasil (1974)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1974., cujo subtítulo é “ensaio de interpretação sociológica”. Nele, o sociólogo paulista mantém o rigor científico que caracteriza sua trajetória intelectual, mas sem postular mais uma neutralidade axiológica do cientista social. Mas o que significa definir essa obra de Fernandes ou, no caso, a de Luís Felipe Miguel, como um ensaio?

O termo já teve caráter negativo na história das ciências sociais. Muitos dos primeiros cientistas sociais formados no país (Cf. SANTOS, 2002SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Roteiro bibliográfico do pensamento político-social brasileiro. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Ed. UFMG; Casa de Oswaldo Cruz, 2002.), rejeitavam as tradições intelectuais do passado sob a alegação de que se tratava de trabalhos destituídos de fundamentação científica, de caráter especulativo, baseados em dados secundários e feitos por alguém sem formação nos métodos das modernas ciências sociais. Escritos de Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, Caio Prado Jr., dentre muitos outros autores do passado (em geral, formados em faculdades de Direito - as únicas existentes no país, na área das ciências humanas até os anos de 1930), sendo ensaios, não teriam nada a contribuir com a produção do conhecimento científico. Na melhor das hipóteses, teriam uma importância histórica, como depoimentos de um tempo passado.

Mas é verdade que tal postura em desqualificar o passado intelectual brasileiro, além de não ter sido consensual, tem-se tornado, hoje em dia, bem menos comum. Depois das sucessivas críticas ao caráter neopositivista das ciências sociais, a natureza do estudo empírico foi posta sob judice e a diferenciação entre uma ciência mais “explicativa” e o pensamento brasileiro, de cunho mais “interpretativo”, ou “ensaísta”, é difícil de ser sustentada (LESSA, 2011LESSA, Renato. Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do conhecimento político no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 82, p. 17-60, 2011., p. 2). Não há, em resumo, porque assumir que o texto escrito sobre política, por exemplo, por um diletante ou político brasileiro do século XIX seja menos relevante para a ciência do que qualquer artigo publicado, em um periódico bem qualificado, por um pós-doutor em ciências sociais.

Mas, retornando ao ponto, o que caracteriza um ensaio? A meu ver, podemos defini-lo como um gênero textual marcado por quatro características fundamentais. Um escrito é qualificado como um ensaio na medida em que apresenta, de forma bastante resumida, uma tese de interpretação de determinado fenômeno social, que, todavia, não chega propriamente a ser comprovada no texto. Ou seja, o ensaio mais anuncia uma interpretação de determinado fenômeno do que propriamente a fundamenta cientificamente. Isso nos leva a uma segunda característica: a de procurar abarcar a realidade social como um todo, não se limitando a uma variável ou dimensão específica. Trata-se, em suma, de um trabalho generalista, de amplo alcance, que, por essa razão, opera com médias ou largas temporalidades. Uma outra característica específica do ensaio é o fato de não se deixar limitar pelas regras e formalidades do conhecimento científico mais ortodoxo. Normas de citação e procedimentos metodológicos são, em alguma medida, “suspensos” em prol de uma maior liberdade de imaginação e de escrita que caracteriza o ensaio - quando comparado, por exemplo, ao tratado científico, ou mesmo ao paper, forma mais valorizada hodiernamente. Por fim, mas não menos importante, o ensaio é um tipo de texto redigido para o grande público, usualmente concebido com o desejo de intervir na cena pública, orientando os atores sociais, polemizando e combatendo teses concorrentes etc. Quer nas ciências sociais ou na filosofia, esse gênero textual comparece na modernidade, ao menos desde Michel de Montaigne, como uma forma de expressão do conhecimento científico e filosófico, mas que preserva certa autonomia, usualmente cerceada pelos critérios inflexíveis do saber formal.

Penso que O colapso da democracia no Brasil é corretamente definido por Miguel como um ensaio e, nesse sentido, retoma certa herança do pensamento político brasileiro, segundo o qual a ciência precisa ser também um instrumento de resistência política. Primeiro, pelo caráter sintético e enunciativo de uma tese ou conjunto de teses de interpretação sobre a realidade social. Segundo, pelo fato de tentar abarcar toda a realidade social, e não apenas parte dela, o que faz com que Miguel, para explicar a crise da democracia brasileira no último decênio, recue até o processo de transação com nossa última experiência ditatorial, nos anos de 1980. Além disso, a linguagem simplificada e a pouca formalidade do livro (bastante econômico nas citações e nas referências bibliográficas). E, por fim, sua clara intenção de intervir na cena pública, polemizando com outras interpretações e estabelecendo alguns elementos que podem servir para que os atores balizem melhor sua ação política.

Outro aspecto que salta aos olhos do leitor de O colapso da democracia no Brasil é a análise feita pelo autor dos governos petistas Lula e Dilma, tema do segundo capítulo, mas que também atravessa toda a sua narrativa. Impossível, no caso, não comparar a leitura que Miguel faz desse fenômeno com os excelentes trabalhos de André Singer (2012SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., 2018)SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do governo Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.. Penso que o livro ora resenhado não seja propriamente um contraponto aos estudos de Singer, ainda que questione aspectos de sua leitura do lulismo como sendo, em essência, uma estratégia política de “reformismo fraco”. Como um intelectual de esquerda, Miguel, não recai, todavia, na crítica comum de condenação “purista” desses governos, segundo a qual, inclusive, o impeachment de Dilma Rousseff comprovaria os erros do partido. Como sintetiza muito bem o autor, Dilma e o PT caíram por seus erros, mas também pelos seus acertos. Assim, cuidadosamente, o autor procura salientar os limites da estratégia petista (como o de valorizar demasiadamente a vitória na disputa pela presidência da República, em detrimento de outras disputas eleitorais, a “flexibilização ética” e sua acomodação às práticas políticas tradicionais do fisiologismo e em nome da “governabilidade”, a qual o PT, originalmente, visava combater, bem como a desmobilização dos movimentos sociais, entre outros), mas Miguel não deixa de reconhecer também os avanços representados tanto pela história desse partido quanto pelas políticas promovidas pelo lulismo.

Referências

  • FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
  • LESSA, Renato. Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do conhecimento político no Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 82, p. 17-60, 2011.
  • SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Roteiro bibliográfico do pensamento político-social brasileiro. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Ed. UFMG; Casa de Oswaldo Cruz, 2002.
  • SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do governo Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    18 Mar 2021
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