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Crise tireotóxica associada à doença trofoblástica gestacional

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A gonadotrofina coriônica humana (HCG) e o hormônio tireotrófico (TSH) apresentam analogia entre suas estruturas, assim como seus receptores. Os altos níveis de HCG encontrados nas doenças trofoblásticas gestacionais podem induzir um quadro de hipertireoidismo secundário. O objetivo deste relato é apresentar um caso em que a administração de contraste iodado precipitou um quadro de crise tireotóxica. RELATO DO CASO: Paciente com mola hidatiforme completa foi admitida no centro cirúrgico com sangramento vaginal intenso após realização de tomografia com contraste iodado. Durante indução anestésica, paciente apresentou quadro compatível com crise tireotóxica. CONCLUSÕES: A incidência de quadros graves associados à doença trofoblástica gestacional tende a diminuir com seu diagnóstico precoce. Ainda que isso aconteça, o anestesiologista deve estar atento à possibilidade de crise tireotóxica nesses pacientes.

CIRURGIA; COMPLICAÇÕES; DOENÇAS; DOENÇAS


BACKGROUND AND OBJECTIVES: Human chorionic gonadotropin (HCG) and thyrotrophic hormone (TSH) have analogies in their structures, as well as in their receptors. The high levels of HCG seen in gestational trophoblastic diseases may induce secondary hyperthyroidism. The objective of this report was to present a case in which the administration of iodinated contrast triggered a thyrotoxic crisis. CASE REPORT: Patient with complete hydatidiform mole who was admitted to the operating room with severe vaginal bleeding after a tomographic exam with iodinated contrast. During anesthetic induction, the patient presented symptoms compatible with thyrotoxic crisis. CONCLUSIONS: The incidence of severe presentations associated with gestational trophoblastic disease tends to decrease with early diagnosis. Still, the anesthesiologist should be aware of the possibility of those patients developing thyrotoxic crisis.

Hydatidiform mole; Intraoperative Complications; Hyperthyroidism; Iodopyridones


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La HCG y el TSH presentan una analogía entre sus estructuras, como también sus receptores. Los altos niveles de HCG encontrados en las enfermedades trofoblásticas de la gestación pueden inducir a un cuadro de hipertiroidismo secundario. El objetivo de este relato es presentar un caso en que la administración de contraste yodado precipitó un cuadro de crisis tirotóxica. RELATO DEL CASO: Paciente con mola hidatiforme completa que entró en quirófano con sangramiento vaginal intenso después de la realización de una tomografía con contraste yodado. Durante la inducción anestésica, la paciente presentó un cuadro compatible con la crisis tirotóxica. CONCLUSIONES: La incidencia de cuadros graves asociados a la enfermedad trofoblástica gestacional tiende a reducirse con su diagnóstico precoz. Pero incluso si eso ocurre, el anestesiólogo debe estar atento a la posibilidad de una crisis tirotóxica en esos pacientes.

CIRUGÍA; COMPLICACIONES; ENFERMIDADES; ENFERMIDADES


INFORMAÇÕES CLÍNICAS

Crise tireotóxica associada à doença trofoblástica gestacional

Carlos Eduardo David de Almeida, TEAI; Erick Freitas Curi, TSAII; Carlos Roberto David de Almeida, TEAIII; Denise Fernandes VieiraIV

ITEA MEC/SBA pela Universidade de São Paulo (USP); Médico-assistente do Serviço de Anestesiologia do HUCAM/UFES

IIPresidente da Sociedade de Anestesiologia do Espírito Santo (SAES); Corresponsável pelo CET Integrado HUCAM/HAFPES; Médico-assistente do Serviço de Anestesiologia do HUCAM/UFES

IIITEA MEC/SBA pela UFES; Médico-assistente do Serviço de Anestesiologia do HUCAM/UFES

IVME3; Médica em Especialização em Anestesiologia no CET/SBA Integrado HUCAM/HAFPES

Correspondência para Correspondência para: Dr. Carlos Eduardo David de Almeida Av. Cesar Helal, 1.181, apt 1.903 Praia do Suá 29052-230 - Vitória, ES E-mail: cedalmeida@terra.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A gonadotrofina coriônica humana (HCG) e o hormônio tireotrófico (TSH) apresentam analogia entre suas estruturas, assim como seus receptores. Os altos níveis de HCG encontrados nas doenças trofoblásticas gestacionais podem induzir um quadro de hipertireoidismo secundário. O objetivo deste relato é apresentar um caso em que a administração de contraste iodado precipitou um quadro de crise tireotóxica.

RELATO DO CASO: Paciente com mola hidatiforme completa foi admitida no centro cirúrgico com sangramento vaginal intenso após realização de tomografia com contraste iodado. Durante indução anestésica, paciente apresentou quadro compatível com crise tireotóxica.

CONCLUSÕES: A incidência de quadros graves associados à doença trofoblástica gestacional tende a diminuir com seu diagnóstico precoce. Ainda que isso aconteça, o anestesiologista deve estar atento à possibilidade de crise tireotóxica nesses pacientes.

Unitermos: CIRURGIA: Cuidados intraoperatórios; COMPLICAÇÕES: Mola hidatiforme; DOENÇAS: Hipertireoidismo; iodopiridonas.

INTRODUÇÃO

A doença trofoblástica gestacional (DTG) caracteriza-se pela proliferação anormal do epitélio trofoblástico (citotrofoblasto, sinciciotrofoblasto e trofoblasto intermediário). Tem potencial de invasão local ou emissão de metástases.

A Organização Mundial de Saúde classifica a DTG de acordo com características anatomoclínicas em: neoplasia maligna (coriocarcinoma gestacional, tumor trofoblástico do sítio placentário e tumor trofoblástico epidermoide), másformações das vilosidades coriônicas que predispõem ao desenvolvimento de neoplasias malignas (mola hidatiforme e seus subtipos) e entidades benignas (reação exagerada do sítio placentário e nódulo do sítio placentário).

O trofoblasto normal ou patológico produz a gonadotrofina coriônica humana (HCG). Estudos apontaram analogia entre o HCG e o hormônio tireotrófico (TSH), assim como entre seus receptores 1. Os altos níveis de HCG encontrados nas DTG podem induzir um quadro de hipertireoidismo secundário.

A administração de medicação com iodo pode precipitar um quadro de tireotoxicose, pois a produção trofoblástica do HCG não é inibida pela produção de hormônios tireoidianos.

A seguir, apresenta-se relato de um caso de crise tireotóxica em gravidez molar completa associado ao uso de contraste iodado para realização de tomografia.

RELATO DE CASO

Paciente de 13 anos, cor branca, 45 kg, admitida no serviço de ginecologia e obstetrícia com queixa de amenorreia, dor abdominal e sangramento vaginal. Apresentava-se taquipneica, taquicárdica (112 bpm), hipertensão arterial (165 x 92 mmHg), hipocorada, desidratada. Exames laboratoriais na admissão eram: 9,9 mg.dL de hemoglobina, hematócrito de 31,3%, 11.800 leucócitos com 6% de bastonetes, 254.000 plaquetas com coagulograma dentro dos limites da normalidade e TSH 0,009 (referência 0,35 a 5,5). Os valores de HCG eram superiores a 400.000 UI.L-1. Exame ultrassonográfico mostrava volume uterino de 1.780 cm3, com múltiplas vesículas císticas compatíveis com mola hidatiforme.

Deu entrada em caráter de urgência no centro cirúrgico, no mesmo dia da internação, para se submeter a uma curetagem uterina devido a sangramento vaginal intenso após a realização de tomografia de tórax, abdome e pelve com contraste iodado.

Realizou-se anestesia geral balanceada com indução venosa com fentanil (10 µg.kg-1), propofol (2 mg.kg-1) e atracúrio (0,5 mg.kg-1). Após intubação orotraqueal, a paciente evolui com taquicardia sinusal (170 bpm), hipertensão arterial (160 x 120 mmHg), hipercarbia (52 mmHg) e edema agudo de pulmão. Iniciada terapêutica com esmolol e nitroprussiato sódico endovenoso com resposta satisfatória, nas doses de 75 µg.kg-1.min-1 e 2,0 µg.kg-1.min-1, respectivamente. Encaminhada à unidade de tratamento intensivo estável hemodinamicamente, recebeu alta para enfermaria após dois dias.

DISCUSSÃO

Estima-se um caso de mola hidatiforme (MH) para cada 1.000-2.000 gestações no Ocidente, sendo a doença trofoblástica mais comum 2. As estatísticas brasileiras se baseiam em dados de hospitais-escola e podem traduzir falsa incidência elevada 3.

Idade materna, antecedentes de mola hidatiforme, infecções virais, estado nutricional, paridade, consanguinidade e contracepção oral são fatores de risco. Os extremos de idade apresentam risco aumentado e mulheres com mais de 40 anos apresentam risco relativo dez vezes maior que mulheres entre 22 e 40 anos.

A MH pode ser dividida em parcial ou completa. Na completa, não há desenvolvimento de embrião, cordão umbilical e membranas. Ocorre dilatação hidrópica em todas as vilosidades e formação de uma cisterna central repleta de líquido. Não há eritrócitos ou vasos fetais nas vilosidades, porém é possível haver sensibilização RH em gestantes negativas. A MH completa tem cromossomos exclusivos paternos (androgênese) e sua maioria é 46,XX. O óvulo vazio é fecundado por um espermatozoide 23,XY, ocorrendo duplicação do genoma paterno. Cerca de 5% a 10% são 46,XY devido à fecundação de um óvulo sem carga genética por dois espermatozoides (X e Y). A MH completa evolui para formas malignas em cerca de 20% das vezes.

Na MH parcial pode-se ver, macroscopicamente, embrião com má-formação. Em 90% dos casos tem origem em um óvulo normal fecundado por dois espermatozoides resultando em uma célula triploide (69,XXX ou 69,XXY). Apenas 5% dos casos progridem para formas malignas 4.

O sangramento vaginal é o sinal clínico mais frequente (84%), associado ou não ao atraso menstrual. Vômitos estão presentes em 28% dos casos e podem ser refratários ao tratamento. A hiperêmese gravídica aparece com mais frequência em casos de molas volumosas com altos níveis de HCG 5.

O crescimento uterino exagerado é queixa frequente em casos avançados. É comum a presença de cistos tecaluteínicos devido à hiperestimulação ovariana consequente a altos níveis de HCG. A doença hipertensiva da gravidez está presente em cerca de 30% dos casos de MH completa.

O aumento do volume uterino, associado a altos níveis de HCG e, consequentemente, de progesterona na gestação molar, pode favorecer a aspiração do conteúdo gástrico durante o procedimento anestésico sob sedação ou sem controle adequado da via aérea. Na ausência de contraindicações, há preferência pela realização de bloqueios espinhais para esvaziamento uterino. Sangramento intenso e risco aumentado de perfuração uterina são outras complicações do procedimento cirúrgico.

Em cerca de 2% dos casos pode ocorrer embolização trofoblástica cursando com taquipneia, dor torácica e taquicardia. Dessa forma, na presença de sintomas indicativos, devem-se realizar exames radiológicos que a comprovem.

Altos níveis de HCG promovem estimulação tireoidiana com supressão da liberação do TSH hipofisário. Concentrações séricas acima de 200.000 mUI.mL-1 demonstraram suprimir o TSH (menor ou igual a 0,2 mUI.mL-1) em 67% dos casos e níveis superiores a 400.000 mUI.L-1 promoveram supressão em 100% dos casos 6. A produção trofoblástica de HCG não sofre inibição (feedback negativo) pelo aumento dos hormônios tireoidianos.

Em menos de 10% dos casos pode haver hipertireoidismo clínico. Os sintomas são: taquicardia, hipertensão, tremores, hipertensão arterial, taquipneia, emagrecimento, intolerância ao calor, fraqueza muscular, diarreia, nervosismo e reflexos hiper-reativos.

A utilização de substâncias com iodo pode levar ao desencadeamento de crise tireotóxica (fenômeno Jod-Basedow) 7. Além de fármacos, o uso de desinfetantes, antissépticos e contraste iodado podem ser fatores desencadeantes. A amiodarona é o fármaco mais correlacionado à estimulação tireoidiana. Um comprimido de 100 mg contém 250 vezes a exigência diária recomendada de iodo 8.

Em condições fisiológicas, o aumento dos níveis séricos de iodo ocasiona um aumento do transporte e aumento do "pool" de iodo, resultando na inibição da síntese de hormônios tireoidianos e inibição autorregulatória do transporte de iodo (fenômeno Wolff-Chaikoff) 9. Assim, o excesso de iodo e a ausência de sistema regulatório podem ocasionar aumento persistente da produção de hormônio tireoidiano e tireotoxicose.

No caso relatado, a utilização de contraste iodado para a realização das tomografias antes da intervenção cirúrgica pode ter sido um contribuinte para o desenvolvimento da crise tireotóxica. O uso de antitireoidiano profilático em exames com contraste iodado é controverso 10.

A redução dos hormônios tireoidianos é o passo inicial para o tratamento da tireotoxicose. As tionamidas (propiltiouracil, metimazol) são os antitireoidianos mais usados. Têm ação inibitória na peroxidase tireoidiana, inibindo a incorporação de iodo à tireoglobulina. O propiltiouracil (PTU) tem o mecanismo adicional de inibição da conversão periférica de T4 em T3.

A escolha do antitireoidiano depende de vários fatores. O metimazol apresenta efeitos colaterais dose-dependente. Os casos de hepatoxicidade são menos graves e são administrados em dose única diária. O PTU pode ser a droga de escolha na gravidez e lactação devido à menor passagem placentária e aos menores níveis no leite materno quando comparado ao PTU. Em casos mais graves, como tempestade tireotóxica, o PTU deve ser a droga de escolha, pois, além do efeito inibitório na liberação do hormônio tireoidiano, inibe perifericamente sua conversão.

A terapêutica com iodo, com o objetivo de inibir a síntese de hormônios tireoidianos, deve ser feita uma hora após a administração do PTU, impedindo que o iodo sirva como substrato.

Em casos de tempestade tireotóxica são necessárias doses maiores de PTU. O beta-bloqueador de escolha é o propranolol, pois além dos efeitos cardiovasculares, inibe a conversão periférica dos hormônios tireoidianos. Os outros beta-bloqueadores não estão contraindicados. O nível de cortisol tende a ser normal, porém é indicado o uso de corticosteroides visando à obtenção de níveis compatíveis com os níveis de estresse. Publicações relatam o uso de plasmaférese no preparo pré-operatório em casos selecionados 11. Os procedimentos eletivos devem ser adiados até controle dos hormônios tireoidianos.

O início precoce do pré-natal e a utilização rotineira da ultrassonografia contribuem para o diagnóstico precoce da DTG. Assim, quadros clínicos com molas de grandes volumes, eliminação de vesículas, anemia e situações de emergência tornaram-se cada vez menos frequentes.

Submetido em 4 de novembro de 2010.

Aprovado para publicação em 31 de janeiro de 2011.

Recebido da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM), Brasil.

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  • Correspondência para:

    Dr. Carlos Eduardo David de Almeida
    Av. Cesar Helal, 1.181, apt 1.903 Praia do Suá
    29052-230 - Vitória, ES
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      04 Nov 2010
    • Aceito
      31 Jan 2011
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