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Múltiplos bloqueios de nervos periféricos guiados por ultrassom, uma saída para anestesia em pacientes com obesidade mórbida para aspiração de medula óssea

Resumo

A obesidade mórbida se associa a várias alterações fisiopatológicas que afetam o desfecho da anestesia e cirurgia. É, portanto, um desafio anestesiar tais pacientes. Apresentamos uma mulher adulta de 59 anos, obesa mórbida, hipertensa, diabética, com hipotiroidismo, submetida a cirurgia devido a fratura proximal do úmero e que compareceu ao serviço com fratura não consolidada, e com indicação de injeção percutânea de aspirado de medula óssea da crista ilíaca na fratura não consolidada. A paciente estava extremamente ansiosa e recusou o procedimento sob anestesia local ou sedação e exigiu anestesia. Em função de suas comorbidades, Anestesia Geral (AG) foi evitada e o procedimento foi realizado usando bloqueio do Plano Transverso Abdominal (PTA) guiado por Ultrassonografia (USG) e bloqueio do Nervo Cutâneo Femoral Lateral (NCFL) para aspiração de medula óssea da crista ilíaca. O bloqueio do nervo Intercostobraqueal (T2) foi realizado para evitar dor durante a injeção do aspirado. Dexmedetomidina e ketamina foram dadas para sedação profunda e analgesia. O Bloqueio PTA e bloqueio NCFL geralmente são usados para analgesia pós-operatória, mas também podem ser usados para anestesia cirúrgica substituindo a anestesia geral em condições clínicas específicas. O emprego desses bloqueios no perioperatório e seu uso potencial no lugar de AG têm sido discutidos.

PALAVRAS-CHAVE
Anestesia regional; Obesidade mórbida; Bloqueio do plano transverso abdominal

Abstract

Morbid obesity is associated with various pathophysiological changes which affect the outcome of anaesthesia and surgery. So it's challenging to give anaesthesia to such patients. We present a 59-year-old adult morbidly obese, hypertensive, diabetic female with hypothyroidism operated for proximal humerus fracture and now presented with non-union of fracture, requiring percutaneous injection of bone marrow aspirate from the iliac crest to the site of non-union. The patient was extremely anxious and refused to undergo the procedure under local anaesthesia or sedation and demanded anaesthesia. Given her comorbidities general anaesthesia (GA) was avoided and the procedure was accomplished using Ultrasound (USG) guided Transversus abdominis plane (TAP) block and Lateral Femoral Cutaneous Nerve (LFCN) block for the bone marrow aspirate from the iliac crest and Intercostobrachial nerve block (T2) was given to prevent pain while injecting the aspirate into the non-union site. Dexmedetomidine and ketamine were given for deep level sedation and analgesia. TAP block and LFCN block is generally used for post-op analgesia but can be also used for surgical anaesthesia instead of General anaesthesia in specific scenarios. Its perioperative application and its potential use instead of GA have been discussed.

KEYWORDS
Regional anaesthesia; Morbidly obese; Transversus abdominis plane block

Introdução

A Organização Mundial da Saúde estima que, em 2016, havia 650 milhões de adultos obesos (Índice de Massa Corporal - IMC > 30 kg.m-2) no mundo. Alterações anatômicas e fisiológicas associadas à obesidade causam limitações e problemas em procedimentos anestésicos. O aspirado de medula óssea é usado como tratamento de fraturas não consolidadas. A medula óssea é fonte de células osteoprogenitoras que são elementos chave no processo de osteogênese e consolidação de fratura. Essa terapêutica oferece a vantagem de tratar uma fratura não consolidada sem cirurgia. Apesar de significar avanço terapêutico, tal procedimento continua sendo doloroso para a maioria dos pacientes. Não existem diretrizes efetivas para prevenção da dor. A Anestesia Geral (AG) pode ser necessária para tais procedimentos dolorosos, mas tem suas limitações. Para pacientes obesos, a Anestesia Regional (AR) é melhor do que a anestesia geral, mas o bloqueio neuroaxial tem seus desafios. É difícil palpar os espaços e obter a posição apropriada para o bloqueio havendo o risco de bloqueio espinhal alto. Para procedimento moderadamente doloroso e curto, sedação com manutenção de ventilação espontânea pode ser usada, mas o uso excessivo de propofol pode levar a depressão respiratória. O crescente uso de ultrassonografia nos últimos anos tem superado muitas limitações. Levando-se em conta essas considerações, indicamos como anestesia para a paciente duas técnicas de anestesia regional Guiadas por Ultrassom (USG): bloqueio do Plano Transverso Abdominal (PTA) e bloqueio do Nervo Cutâneo Femoral Lateral (NCFL) associados à sedação.

Relato de caso

Uma paciente de 59 anos, pesando 102 kg (Peso Ideal - PI = 46,4 kg) com história de acidente de veículo a motor e cirurgia de fratura proximal do úmero, compareceu ao serviço com fratura não consolidada de úmero com indicação de aspirado de crista ilíaca e injeção percutânea no sítio não consolidado. A paciente não tinha queixa de dor no sítio não consolidado (fig. 1). O exame pré-operatório de vias aéreas revelou Mallampati Classe 3. A avaliação pré-anestésica foi realizada e a paciente foi classificada como ASA III devido à hipertensão, diabetes mellitus, hipotireoidismo, obesidade mórbida (IMC = 44,3 kg.m-2). A paciente fazia uso de 5 mg de amlodipina, 500 mg de metformina, 200 µg tiroxina. Não fazia uso de medicação anticoagulante. Todos os exames de rotina estavam normais. O escore STOP-BANG era 5/8 (risco alto). Foi realizado ecocardiografia 2 D que revelou hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo, fração de ejeção de 60%, disfunção diastólica Grau I e demais exames dentro dos limites normais. Bloqueio PTA e bloqueio NCFL guiados por USG foram planejados para a aspiração de medula óssea da crista ilíaca, e bloqueio intercostobraquial (T2) foi planejado para prevenir a dor ao injetar o aspirado no local de não consolidação no lado medial do braço. O procedimento foi explicado e o consentimento assinado. A paciente foi mantida em jejum absoluto por 8 horas antes do procedimento. A paciente foi colocada em posição de rampa (fig. 2). A frequência cardíaca de base era 68 min-1, Pressão Sanguínea 130/80 mmHg e saturação de 94%. Oxigênio suplementar foi administrado com fluxo a 10 L.min-1 via cânula nasal de alto fluxo e a medida de CO2 ao final da expiração oscilava entre 32-34 mmHg. Devido à ansiedade excessiva da paciente foi administrada sedação. Foi iniciada infusão de dexmedetomidina com dose de manutenção de 0,5 µg.kg-1.h-1 durante todo o procedimento. Doses de 1 mg.kg-1 de ketamina foram administradas antes do início do procedimento. Foram administrados um total de 40 mg de ketamina e 30 µg de dexmedetomidina. Com a paciente em posição supina e abdome exposto, o panículo adiposo foi tracionado em direção cefálica e fixado com ajuda de esparadrapo porque o tecido adiposo abdominal pendente tornava difícil o acesso à região inguinal. Adotando-se todas as medidas de assepsia, a paciente foi escaneada com sonda curvilínea de aparelho de USG; a sonda foi colocada sobre o lado direito, movimentando-se da região medial para a lateral até que os três planos musculares fossem identificados entre o rebordo costal e crista ilíaca. Agulha espinhal 23G foi inserida em plano sob a orientação do USG até que alcançasse o plano do transverso abdominal. 10 mL de bupivacaina a 0,5% e 10 mL de lidocaína/adrenalina a 2% foram injetados em tempo real e as sombras hipoecóicas da difusão do Anestésico Local (AL) foram monitoradas e confirmadas. A espinha ilíaca ântero-superior foi identificada empregando-se o USG, a sonda foi deslocada para baixo de forma a identificar o NCFL e a área foi então infiltrada com AL, seguindo-se injeção de 5 mL de bupivacaína a 0,5% e 5 mL de lidocaína/adrenalina a 2% no plano, sendo observadas as sombras hipoecóicas da difusão do AL. Depois de 15 minutos a área coberta pelo bloqueio foi testada constatando-se presença de anestesia. O bloqueio do nervo intercostobraquial (T2) foi realizado pela infiltração subcutânea de 5 mL de lidocaína a 2% (sem vasoconstritor), superior e inferiormente ao longo da prega axilar via agulha 22G de 1,5 polegada para anestesiar toda extensão do aspecto medial do braço. Os sinais vitais da paciente se mantiveram dentro de limites normais durante toda a cirurgia. Na Unidade de Cuidado Pós-Anestésico (UCPA) a paciente estava completamente desperta, orientada e satisfeita. A dor foi avaliada usando a Escala Visual Análoga (EVA) com 0 mínima e 10 máxima. A EVA da paciente imediatamente pós-procedimento era 1 após a chegada à UCPA. A paciente foi transferida para a enfermaria depois de um período de observação de 2 horas e recebeu alta após 24 horas.

Figura 1
Raio X do úmero.

Figura 2
Paciente em posição de rampa.

Discussão

A obesidade mórbida está associada a várias alterações fisiopatológicas relacionadas às vias aéreas e sistemas cardiovascular e respiratório. Nossa paciente era obesa mórbida (PI = 46,4 kg, IMC = 44,3 kg.m-2, circunferência cervical 40 cm e circunferência abdominal 155 cm). Manutenção da via aérea, intubação difícil, broncoaspiração de conteúdo ácido, capacidade residual funcional reduzida, discrepância ventilação-perfusão aumentada, hipertensão pulmonar, apnéia obstrutiva do sono, sobrecarga ventricular aumentada, arritmias, doença isquêmica cardíaca são os desafios enfrentados ao fazer AG nesses pacientes. A AR não interfere com as condições cardiovasculares e respiratórias e oferece diversas vantagens em termos de conduta em pacientes obesos: manipulação mínima nas vias aéreas, melhor analgesia no pós-operatório, menor consumo de opioide, menos náusea e vômito no pós-operatório, menor tempo de internação hospitalar.11 Fyneface-Ogan S, Abam DS. Anaesthetic management of a super morbidly obese patient for total abdominal hysterectomy: a few more lessons to learn. Afr Health Sci. 2012;12:181-5. Entretanto, a execução de bloqueio neuroaxial pode ser desafiadora em função de espaços interespinhosos não palpáveis e do posicionamento do paciente. O risco de colapso cardiopulmonar e problemas respiratórios associados a níveis de bloqueio mais altos é maior em pacientes obesos. Fazer somente anestesia com infiltração local não era boa opção devido à quantidade excessiva de tecido adiposo e a dor causada pelo uso de agulha trefina para aspiração da medula óssea. Bloqueios de nervos periféricos podem ajudar em tais situações. Nos pacientes obesos os nervos periféricos estão sob tecido adiposo denso e localizados mais profundamente. Assim, a técnica cega não é possível e a USG é necessária. O tecido alvo tem localização profunda, daí a visualização da ponta da agulha é mais difícil. Assim, maior experiência e conhecimento são necessários para usar ultrassonografia em pacientes obesos. A sonda curvilínea é opção adequada para pacientes obesos por usar frequências mais baixas, além de apresentar melhor penetração.

O bloqueio PTA é largamente usado como técnica analgésica, mas não como técnica anestésica. As raízes nervosas tóraco-lombares T8?L1 são bloqueadas, e correm em um plano entre os músculos transverso abdominal e oblíquo interno e fazem a inervação sensorial para a pele, músculos e peritônio parietal da parede abdominal anterior. Quando comparado ao bloqueio neuroaxial, o bloqueio PTA não propicia anestesia cirúrgica efetiva. Entretanto, pode ser usado em pacientes com hipertensão intracraniana, que não toleram posicionamento para execução do bloqueio neuroaxial e que podem não tolerar as consequências hemodinâmicas da simpatectomia. A ultrassonografia permite visualização direta dos nervos e redução das doses locais de anestésico e das complicações, permitindo assim a realização de múltiplos bloqueios de nervo. O bloqueio PTA guiado por USG tem sido usado para apendicectomia aberta em pacientes com comorbidades em que a AG é contraindicada e o paciente recusa a anestesia raquidiana.22 Ali HM, Shehata AH. Open Appendectomy using ultrasound guided transversus abdominis plane block: a case report. Anesth Pain Med. 2017;7:e38118. O NCFL inerva a crista ilíaca.

A dexmedetomidina é geralmente efetiva para procedimentos não invasivos e não tem sido bem sucedida para procedimentos invasivos. Portanto, a ketamina é dada juntamente com a dexmedetomidina para alcançar 5 na escala de sedação-agitação de Richmond quando o paciente se torna não responsivo a estímulo verbal e doloroso.33 Sessler CN, Gosnell MS, Grap MJ, et al. The Richmond Agitation-Sedation Scale: validity and reliability in adult intensive care unit patients. Am J Respir Crit Care Med. 2002;166:1338-44. Relatos de casos isolados têm demonstrado a utilidade de dexmedetomidina e ketamina para alcançar o nível profundo de sedação desejado mantendo respiração espontânea e sem mudanças significativas nos parâmetros hemodinâmicos. Acredita-se que a dexmedetomidina previna a taquicardia, hipertensão, salivação e os fenômenos de emergência associados à ketamina. A ketamina pode prevenir a bradicardia e hipotensão que tem sido relatadas com o uso da dexmedetomidina.44 Rozmiarek A, Corridore M, Tobias JD. Dexmedetomidine-ketamine sedation during bone marrow aspirate and biopsy in a patient with duchenne muscular dystrophy. Saudi J Anaesth. 2011;5:219-22.

Conclusões

No caso descrito de paciente portadora de obesidade mórbida, via aérea difícil e comorbidades, os múltiplos bloqueios de nervos periféricos guiados por ultrassonografia foram realizados com sucesso para um procedimento invasivo superficial. Apesar das dificuldades técnicas, a técnica descrita é uma boa alternativa à anestesia geral e ao bloqueio neuroaxial.

References

  • 1
    Fyneface-Ogan S, Abam DS. Anaesthetic management of a super morbidly obese patient for total abdominal hysterectomy: a few more lessons to learn. Afr Health Sci. 2012;12:181-5.
  • 2
    Ali HM, Shehata AH. Open Appendectomy using ultrasound guided transversus abdominis plane block: a case report. Anesth Pain Med. 2017;7:e38118.
  • 3
    Sessler CN, Gosnell MS, Grap MJ, et al. The Richmond Agitation-Sedation Scale: validity and reliability in adult intensive care unit patients. Am J Respir Crit Care Med. 2002;166:1338-44.
  • 4
    Rozmiarek A, Corridore M, Tobias JD. Dexmedetomidine-ketamine sedation during bone marrow aspirate and biopsy in a patient with duchenne muscular dystrophy. Saudi J Anaesth. 2011;5:219-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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