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Anestesia para paciente com cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito portador de cardioversor desfibrilador implantável: descrição de caso

Resumo

Introdução e objetivo:

A Cardiomiopatia Arritmogênica do Ventrículo Direito (CAVD) é uma cardiomiopatia genética caracterizada por taquicardia ventricular potencialmente letal. Descrevemos um paciente com CAVD com Cardioversor Desfibrilador Implantável (CDI) submetido a anestesia geral para cirurgia de seio maxilar.

Relato do caso:

Paciente masculino, 59 anos, a ser submetido a anestesia geral para cirurgia de seio maxilar. O paciente foi diagnosticado com CAVD há 15 anos, momento em que foi submetido a implante de CDI. A eletrocardiografia mostrou onda épsilon nas derivações II, aVR e V1-V3. O ecocardiograma transtorácico revelou função cardíaca normal. Após a entrada do paciente na sala de cirurgia, o CDI foi temporariamente desativado e uma via intravenosa foi instalada. Um desfibrilador externo foi mantido próximo ao paciente caso fosse detectada alguma anormalidade eletrocardiográfica que indicasse desfibrilação do paciente. Foram administrados 0,3 mg/kg/min de remifentanil, 0,1 mg de fentanil, 154 mg de propofol e 46 mg de rocurônio para indução da anestesia. A intubação traqueal foi realizada por via oral. A anestesia foi mantida com 1 L/min de oxigênio, 2 L/min de ar, 5-7 mg/kg/h de propofol e 0,1-0,25 µg/kg/min de remifentanil. O procedimento cirúrgico proposto foi concluído e o CDI foi reativado. O tubo traqueal foi retirado após administração de 200 mg de sugamadex.

Conclusão:

Descrevemos técnica de anestesia bem sucedida sem arritmia letal em paciente com CAVD e CDI. Analgesia adequada deve ser administrada durante a anestesia geral para manter profundidade anestésica correta e evitar estresse e dor.

PALAVRAS-CHAVE
Cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito; Taquicardia ventricular; Cardioversor desfibrilador implantável

Abstract

Background and objectives:

Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy (ARVC) is a genetic cardiomyopathy characterized by potentially lethal ventricular tachycardia. Here we describe a patient with ARVC and an Implantable Cardioverter Defibrillator (ICD) in whom maxillary sinus surgery was performed under general anesthesia.

Case report:

The patient was a 59 year-old man who was scheduled to undergo maxillary sinus surgery under general anesthesia. He had been diagnosed as having ARVC 15 years earlier and had undergone implantation of an ICD in the same year. Electrocardiography showed an epsilon wave in leads II, aVR, and V1-V3. Cardiac function was within normal range on transthoracic echocardiography. The ICD was temporarily deactivated after the patient arrived in the operating room and an intravenous line was secured. An external defibrillator was kept on hand for immediate defibrillation if any electrocardiographic abnormality was detected. Remifentanil 0.3 µg/kg/min, fentanyl 0.1 mg, propofol 154 mg, and rocuronium 46 mg were administered for induction of anesthesia. Tracheal intubation was performed orally. Anesthesia was maintained oxygen 1.0 L.min−1, air 2.0 L.min−1, propofol 5.0-7.0 mg.kg−1.h−1, and remifentanil 0.1-0.25 µg.kg−1.min−1. The surgery was completed as scheduled and the ICD was reactivated. The patient was then extubated after administration of sugammadex 200 mg.

Conclusion:

We report the successful management of anesthesia without lethal arrhythmia in a patient with ARVC and an ICD. An adequate amount of analgesia should be administered during general anesthesia to maintain adequate anesthetic depth and to avoid stress and pain.

KEYWORDS
Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy; Ventricular tachycardia; Implantable cardioverter defibrillator

Introdução

A Cardiomiopatia Arritmogênica do Ventrículo Direito (CAVD) é uma condição genética degenerativa do miocárdio, caracterizada por fibrilação ventricular e Taquicardia Ventricular (TV), aumento do risco de morte súbita e substituição fibrogordurosa do ventrículo direito e da região subepicárdica do ventrículo esquerdo.11 Corrado D, Link MS, Calkins H. Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy. N Engl J Med. 2017;376:1489-90. A presença da onda épsilon no traçado eletrocardiográfico é diagnóstica e específica da CAVD. A prevalência estimada de CAVD é de 1:5000. Os homens são mais comumente afetados do que as mulheres e em idade mais jovem.22 Marcus FI, Zareba W, Calkins H, et al. Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy/dysplasia clinical presentation and diagnostic evaluation: results from the North American Multidisciplinary Study. Heart Rhythm. 2009;6:984-92.

Os sintomas apresentados são geralmente palpitações (30-60%), tontura (20%) e síncope (10-30%).11 Corrado D, Link MS, Calkins H. Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy. N Engl J Med. 2017;376:1489-90. Esses sintomas estão associados a arritmia ventricular não sustentada ou sustentada. Até 19% dos pacientes com CAVD apresenta parada cardíaca.33 Gupta R, Tichnell C, Murray B, et al. Comparison of features of fatal versus nonfatal cardiac arrest in patients with arrhythmogenic right ventricular dysplasia/cardiomyopathy. Am J Cardiol. 2017;120:111-7. Pacientes com displasia/cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito podem ocasionalmente apresentar sintomas de dor torácica, acompanhada por alterações eletrocardiográficas isquêmicas transitórias e elevação da troponina, que simulam miocardite aguda ou infarto do miocárdio.

Pacientes com CAVD geralmente são sensíveis a catecolaminas e propensos a arritmias letais devido à resposta excessiva ao estresse. Pacientes com sintomas refratários são submetidos ao implante de cardioversor desfibrilador implantável (CDI). Acreditamos que o manejo intraoperatório, incluindo a técnica de anestesia geral, é importante em pacientes com CAVD. Descrevemos o manejo anestésico realizado para prevenir a ocorrência de arritmia letal em um paciente com CAVD e CDI que foi submetido à anestesia geral para cirurgia radical do seio maxilar.

Descrição do caso

Obtivemos o consentimento do paciente para a publicação do relato de caso. Paciente masculino, 59 anos (altura 171 cm, peso 77 kg), a ser submetido a anestesia geral para cirurgia eletiva do seio maxilar. O paciente foi diagnosticado com CAVD aos 44 anos de idade após três episódios de convulsões com perda de consciência. O eletrocardiograma mostrou onda épsilon em V1-V3 e inversão de onda T em V2-V3. Além disso, o primeiro episódio de TV foi do tipo bloqueio do ramo esquerdo. O ecocardiograma transtorácico mostrou discreta dilatação do ventrículo direito. A biópsia da parede do ventrículo direito mostrou degeneração do miocárdio e substituição por tecido adiposo. Não havia história familiar relevante e o teste genético não foi realizado. O CDI foi implantado na região superior direita do tórax no mesmo ano. Com 50 anos, ele apresentou um episódio de TV com perda de consciência. O CDI produziu um único choque efetivo e o ritmo sinusal foi restaurado. TV não foi mais detectada desde então. A medicação antiarrítmica consistiu em 100 mg/dia de amiodarona e 2,5 mg/dia de carvedilol.

A eletrocardiografia pré-operatória mostrou ondas épsilon nas derivações II, aVR e V1-V3 (fig. 1). No ecocardiograma transtorácico, a fração de ejeção do ventrículo esquerdo era de 71% e a movimentação da parede do ventrículo direito estava dentro da faixa normal. No entanto, observou-se discreto aumento do diâmetro do ventrículo direito. As programações do CDI incluíam estimulação para TV, desfibrilação para fibrilação ventricular e modo VVI a 40 por minuto para estímulo anti-bradicardia.

Figura 1
Traçado do eletrocardiograma mostrando onda épsilon nas derivações II, aVR, e V1-V3.

Os sinais vitais do paciente na chegada à sala de cirurgia foram Pressão Arterial (PA) 146/85 mmHg, Frequência Cardíaca (FC) 67 bpm e SpO2 = 96%. A monitorização do índice bispectral (A-3000 Vista; Nihon Kohden, Tóquio, Japão) também foi realizado através de eletrodo aplicado na fronte. O CDI foi desativado temporariamente após a instalação do acesso intravenoso. Um desfibrilador externo era mantido próximo para uso imediato caso a presença de anormalidade eletrocardiográfica fosse detectada. Foram utilizados 0,3 mg/kg/min de remifentanil, 0,1 mg de fentanil e 154 mg de propofol para indução da anestesia (PA = 90/58 mmHg, FC = 52 bpm e SpO2 = 100%). A intubação traqueal foi realizada por via oral após a administração de 46 mg de rocurônio (PA = 95/63 mmHg, FC = 59 bpm e SpO2 = 100%). A anestesia foi mantida com 1 L/min de oxigênio, 2 L/min de ar, 5-7 mg/kg/h de propofol e 0,1-0,25 µg/kg/min de remifentanil. Após a indução da anestesia, infiltrou-se 2 mL de lidocaína a 2% na área operatória e iniciou-se a cirurgia. O sangramento da mucosa nasal no intraoperatório foi controlado com bisturi elétrico bipolar. A cirurgia proposta foi concluída e o CDI foi reativado. Foram administrados 1000 mg de acetaminofeno. O paciente foi extubado após administração de 200 mg de sugamadex. Os sinais vitais do paciente eram PA = 158/63 mmHg, FC = 85 bpm e SpO2 = 100%.

O tempo cirúrgico foi de 94 minutos, o tempo anestésico foi de 141 minutos, a perda de sangue foi de 5 mL e o volume de líquido administrado no intraoperatório foi de 550 mL. Os sinais vitais permaneceram estáveis e o paciente recebeu alta hospitalar sem dor pós-operatória ou distúrbio de humor. Não foram observadas arritmias ventriculares potencialmente letais durante ou após a cirurgia.

Discussão

Conseguimos manejo bem sucedido da anestesia geral sem arritmia letal em paciente com CAVD. Descrita pela primeira vez por Frank et al. em 1978, a CAVD é uma cardiomiopatia degenerativa hereditária que provoca arritmias potencialmente letais. O manejo anestésico é importante em pacientes com CAVD; entretanto, não há consenso sobre o manejo perioperatório desses pacientes, particularmente durante a anestesia geral.

Pacientes com CAVD geralmente são sensíveis a catecolaminas e propensos a arritmias letais devido à resposta excessiva a estresse. Há relatos de TV induzida por catecolamina. Denis et al. relataram que a administração de altas doses de isoproterenol (beta agonista) em pacientes com CAVD induziu múltiplos episódios de TV. Em uma revisão que analisou a mortalidade em 27 pacientes com CAVD, 17 mortes coincidiram com uma situação estressante.44 Mu J, Zhang G, Xue D, et al. Sudden cardiac death owing to arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy: two case reports and systematic literature review. Medicine (Baltimore). 2017;96:e8808.

O remifentanil suprime significativamente a secreção de adrenalina e noradrenalina, por isso é considerado eficaz no controle da liberação excessiva de catecolamina. Por isso, empregamos a infusão contínua de remifentanil para indução e manutenção da anestesia, para evitar a liberação excessiva de catecolaminas enquanto monitoramos alterações na hemodinâmica. Também empregamos anestesia local para reduzir a dor no local da cirurgia.

O CDI foi previamente implantado no paciente para prevenção secundária de arritmia letal. Deve-se tomar cuidado durante o uso do eletrocautério em paciente com CDI, porque o instrumento pode fazer com que o CDI libere uma descarga no paciente. As medidas de proteção incluem o uso de eletrocautério bipolar e, se possível, o emprego de descargas curtas e intermitentes do eletrocautério nos níveis mais baixos possíveis de energia e maximizando a distância entre o eletrocautério e o CDI. Esses fatores, combinados com a urgência e o tipo de cirurgia e a disponibilidade de pessoal com experiência em CDI, determinarão, em última análise, o tipo e a extensão da avaliação realizada nos diferentes hospitais. Além dessas medidas, as diretrizes publicadas pelo American College of Cardiology e pela American Heart Association afirmam que desativar a função de cardioversão no programa do CDI (e reativá-la após a cirurgia) é o método preferencial para resolver esses problemas. Portanto, em nosso paciente, desligamos a função de cardoiversão do CDI e usamos um eletrocautério bipolar devido a curta a distância entre o bisturi eletrônico bipolar e o CDI. Não obstante, um desfibrilador externo estava pronto para uso, caso ocorresse arritmia ventricular durante a cirurgia. Além disso, garantimos a presença de um engenheiro clínico para que, se necessário, o CDI pudesse ser reativado imediatamente durante a cirurgia.55 Essandoh MK, Mark GE, Aasbo JD, et al. Anesthesia for subcutaneous implantable cardioverter-defibrillator implantation: perspectives from the clinical experience of a U.S. panel of physicians. Pacing Clin Electrophysiol. 2018;41:807-16.

Conclusão

O manejo da anestesia foi realizado com sucesso sem a ocorrência de arritmia potencialmente letal em paciente com CAVD e CDI. Durante a anestesia geral, analgesia adequada deve ser administrada para manter correta profundidade anestésica e evitar estresse e dor. Um desfibrilador externo também deve estar pronto para uso imediato, quando o CDI intraoperatório é temporariamente desativado para uso de eletrocautério.

References

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    Corrado D, Link MS, Calkins H. Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy. N Engl J Med. 2017;376:1489-90.
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    Gupta R, Tichnell C, Murray B, et al. Comparison of features of fatal versus nonfatal cardiac arrest in patients with arrhythmogenic right ventricular dysplasia/cardiomyopathy. Am J Cardiol. 2017;120:111-7.
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    Mu J, Zhang G, Xue D, et al. Sudden cardiac death owing to arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy: two case reports and systematic literature review. Medicine (Baltimore). 2017;96:e8808.
  • 5
    Essandoh MK, Mark GE, Aasbo JD, et al. Anesthesia for subcutaneous implantable cardioverter-defibrillator implantation: perspectives from the clinical experience of a U.S. panel of physicians. Pacing Clin Electrophysiol. 2018;41:807-16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Jun 2019
  • Aceito
    15 Fev 2020
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