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O primeiro a utilizar anestesia em cirurgia não foi um dentista. Foi o m édico Crawford Williamson Long

El primero en utilizar la anestesia en cirugía no fue un dentista, fue el médico Crawford Williamson Long

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A história da descoberta da anestesia continua incompletamente esclarecida em vários de seus aspectos. Mas é fácil definir que Crawford Williamson Long foi o primeiro a utilizar o éter sulfúrico para operar vários pacientes, sem dor, e realizar analgesias obstétricas. A história é uma ponte que liga o passado ao presente e deve ser estudada e entendida desde os seus primeiros pilares. Assim, justifica-se lembrar ou dar a conhecer quem foi Long, um nome certamente pouco conhecido entre nós, e qual a participação dele na descoberta da anestesia. CONTEÚDO: São discorridos porque e como Crawford Williamson Long foi levado a se tornar o primeiro médico a operar sem dor, quatro anos e meio antes de Morton, e o papel que desempenhou numa das maiores descobertas da Medicina. A biografia de Long é narrada, ressaltando-se o seu caráter, a competência, a dedicação, a modéstia, o desprendimento e um certo desapego com relação à conquista da glória. Descrevem-se as circunstâncias que o levaram a não divulgar de imediato sua descoberta. É analisado o envolvimento de Long na discussão pela primazia da descoberta da anestesia e relatado o seu falecimento. As numerosas homenagens recebidas por Long nos EUA e em outros países são citadas. CONCLUSÕES: W. T. G. Morton costuma ser considerado como o autor da descoberta da anestesia geral, sobretudo por ter sido o primeiro a fazer demonstração pública bem-sucedida, em importante hospital de Boston (EUA). Contudo, provou-se que Long foi o primeiro a utilizar a anestesia cirúrgica e é reconhecido em várias regiões de seu país como o pai da anestesia cirúrgica e "o seu descobridor". É necessário, ainda, reverter o fato de ser Long pouco conhecido entre nós e inseri-lo no lugar a que tem direito na história da anestesia geral.

ANESTESIA, Geral; ANESTESIOLOGIA


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La historia del descubrimiento de la anestesia continúa sin ser completamente aclarada en varios de sus aspectos. Pero es fácil definir que Crawford Williamson Long fue el primero a utilizar el éter sulfúrico para operar varios pacientes, sin dolor, y realizar analgesias obstétricas. La historia es un puente que conecta el pasado al presente y que debe ser estudiada y entendida desde sus orígenes. Así se justifica recordar o dar a conocer quien fue Long, un nombre seguramente poco conocido entre nosotros, y cual fue su participación en el descubrimiento de la anestesia. CONTENIDO: El texto nos cuenta lo que llevó Crawford Williamson Long a convertirse en el primer médico a operar sin dolor cuatro años y medio antes de Morton, por qué y cómo eso se dio, y el papel que desempeñó en uno de los más grandes descubrimientos de la Medicina. La biografía de Long se narra, resaltando su carácter, la competencia, la dedicación, la modestia, el desprendimiento y un cierto desapego con relación a la conquista de la gloria. Las circunstancias que lo llevaron a no divulgar inmediatamente su hallazgo se describen. Analizamos su involucración en la discusión por la primacía del descubrimiento de la anestesia y su fallecimiento. Finalmente, los numerosos homenajes recibidos por Long en los EUA y en otros países. CONCLUSIONES: W. T. G. Morton es generalmente considerado como el autor del descubrimiento de la anestesia general, principalmente por haber sido el primero a hacer una exitosa demostración pública, en un importante hospital de Boston (EUA). Pero quedó probado que Long fue el primero a utilizar la anestesia quirúrgica y que es reconocido en varias regiones de su país como el padre de la anestesia quirúrgica y "su descubridor". Es necesario, incluso, revertir el hecho de ser Long poco conocido entre nosotros e insertarlo en el lugar a que tiene derecho en la historia de la anestesia general.


BACKGROUND AND OBJECTIVES: The history of the discovery of anesthesia is not totally explained, but it is easy to establish that Crawford Williamson Long was the first to use sulfuric ether to operate several patients with no pain and to perform obstetric procedures. History is a bridge connecting the past to the present and should be studied and understood from its first pillars. So, it is justifiable to recall or get to know who was Long, certainly a name almost unknown for many of us, and which has been his participation in the discovery of anesthesia. CONTENTS: Why and how Crawford Williamson Long became the first physician to operate with no pain four and a half years before Morton are discussed, in addition to the role he played in one of the major Medical discoveries. Long's biography is narrated, stressing his character, competence, dedication, modesty, altruism and a certain unconcern with conquests and glories. Circumstances leading him not to immediately publicize his discovery are described. Long's involvement in the discussion about the discoverer of anesthesia is analyzed and his passing away is reported. Finally, numerous honors to Long by the USA and other countries are described. CONCLUSIONS: W.T.G. Morton is often considered the discoverer of general anesthesia, especially for being the first to make a successful public demonstration in a major hospital in Boston (USA). However, it has been proven that Long has been the first to use surgical anesthesia and he is acknowledged in several regions of his country as the father of surgical anesthesia and "its discoverer". It is also necessary to revert the fact that Long is almost unknown among us and give him the place he is entitled to in the history of general anesthesia.

ANESTHESIA, General; ANESTHESIOLOGY


ARTIGO DIVERSO

O primeiro a utilizar anestesia em cirurgia não foi um dentista. Foi o médico Crawford Williamson Long* * Recebido do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, SP.

El primero en utilizar la anestesia en cirugía no fue un dentista, fue el médico Crawford Williamson Long

Almiro dos Reis Júnior, TSA

Anestesiologista do Serviço Médico de Anestesia (SMA) de São Paulo, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Almiro dos Reis Júnior Rua Jesuíno Arruda, 479/11 Itaim-Bibi 04532-081 São Paulo, SP E-mail: carmen@diskfoto.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A história da descoberta da anestesia continua incompletamente esclarecida em vários de seus aspectos. Mas é fácil definir que Crawford Williamson Long foi o primeiro a utilizar o éter sulfúrico para operar vários pacientes, sem dor, e realizar analgesias obstétricas. A história é uma ponte que liga o passado ao presente e deve ser estudada e entendida desde os seus primeiros pilares. Assim, justifica-se lembrar ou dar a conhecer quem foi Long, um nome certamente pouco conhecido entre nós, e qual a participação dele na descoberta da anestesia.

CONTEÚDO: São discorridos porque e como Crawford Williamson Long foi levado a se tornar o primeiro médico a operar sem dor, quatro anos e meio antes de Morton, e o papel que desempenhou numa das maiores descobertas da Medicina. A biografia de Long é narrada, ressaltando-se o seu caráter, a competência, a dedicação, a modéstia, o desprendimento e um certo desapego com relação à conquista da glória. Descrevem-se as circunstâncias que o levaram a não divulgar de imediato sua descoberta. É analisado o envolvimento de Long na discussão pela primazia da descoberta da anestesia e relatado o seu falecimento. As numerosas homenagens recebidas por Long nos EUA e em outros países são citadas.

CONCLUSÕES: W. T. G. Morton costuma ser considerado como o autor da descoberta da anestesia geral, sobretudo por ter sido o primeiro a fazer demonstração pública bem-sucedida, em importante hospital de Boston (EUA). Contudo, provou-se que Long foi o primeiro a utilizar a anestesia cirúrgica e é reconhecido em várias regiões de seu país como o pai da anestesia cirúrgica e "o seu descobridor". É necessário, ainda, reverter o fato de ser Long pouco conhecido entre nós e inseri-lo no lugar a que tem direito na história da anestesia geral.

Unitermos: ANESTESIA, Geral: inalatória; ANESTESIOLOGIA: história.

RESUMEN

JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La historia del descubrimiento de la anestesia continúa sin ser completamente aclarada en varios de sus aspectos. Pero es fácil definir que Crawford Williamson Long fue el primero a utilizar el éter sulfúrico para operar varios pacientes, sin dolor, y realizar analgesias obstétricas. La historia es un puente que conecta el pasado al presente y que debe ser estudiada y entendida desde sus orígenes. Así se justifica recordar o dar a conocer quien fue Long, un nombre seguramente poco conocido entre nosotros, y cual fue su participación en el descubrimiento de la anestesia.

CONTENIDO: El texto nos cuenta lo que llevó Crawford Williamson Long a convertirse en el primer médico a operar sin dolor cuatro años y medio antes de Morton, por qué y cómo eso se dio, y el papel que desempeñó en uno de los más grandes descubrimientos de la Medicina. La biografía de Long se narra, resaltando su carácter, la competencia, la dedicación, la modestia, el desprendimiento y un cierto desapego con relación a la conquista de la gloria. Las circunstancias que lo llevaron a no divulgar inmediatamente su hallazgo se describen. Analizamos su involucración en la discusión por la primacía del descubrimiento de la anestesia y su fallecimiento. Finalmente, los numerosos homenajes recibidos por Long en los EUA y en otros países.

CONCLUSIONES: W. T. G. Morton es generalmente considerado como el autor del descubrimiento de la anestesia general, principalmente por haber sido el primero a hacer una exitosa demostración pública, en un importante hospital de Boston (EUA). Pero quedó probado que Long fue el primero a utilizar la anestesia quirúrgica y que es reconocido en varias regiones de su país como el padre de la anestesia quirúrgica y "su descubridor". Es necesario, incluso, revertir el hecho de ser Long poco conocido entre nosotros e insertarlo en el lugar a que tiene derecho en la historia de la anestesia general.

INTRODUÇÃO

Antes da descoberta da anestesia geral, que precedeu de quase meio século à da anestesia locorregional, a cirurgia só podia ser raramente empregada em pequenas operações superficiais e em amputações de membros. O paciente era literalmente contido, e o sofrimento, atroz. A rapidez cirúrgica era essencial. A esperança de alteração de tal situação praticamente não existia. Velpeau dizia: "Excluir a dor das operações é uma quimera que hoje em dia não é mais possível perseguir." Isso mudou radicalmente a partir de 16 de outubro de 1846, quando o mundo tomou conhecimento da possibilidade de se operar sem dor. Naquela data, William Thomas Green Morton, jovem estudante da Faculdade de Medicina de Harvard e odontologista, demonstrou e divulgou publicamente, em importante ambiente médico, o uso, ainda que extremamente precário, da anestesia geral para cirurgia, utilizando vapores de éter sulfúrico 1-3. A notícia chegou primeiro à Inglaterra, a seguir à França e depois aos demais países da Europa. No Brasil, a primeira anestesia foi realizada pelo Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo, nascido em Portugal, em um estudante da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, Francisco d'Assis Paes Leme, com intenção apenas experimental, em 20 de maio de 1847 4. Morton, então, passou a ser considerado entre nós e em muitos países como o autor dessa mudança e o descobridor da anestesia 1,2, palavra esta proposta, embora não idealizada, por Oliver Wendell Holmes, professor da Faculdade de Medicina de Harvard, em carta que enviou a Morton alguns dias depois da primeira anestesia deste 2-5 , e que se consolidou e passou para a posteridade a partir dessa época 6,7.

Entretanto, quatro anos e meio antes do feito de Morton, um jovem do sul dos EUA, Crawford Williamson Long (Figura 1), tornou-se o primeiro médico a operar sem dor, realizando pequenos atos cirúrgicos e obstétricos sob anestesia.


QUEM FOI CRAWFORD WILLIAMSON LONG?

Crawford W Long nasceu em Danielsville, Geórgia, EUA, em 1º de novembro de 1815; descendente de irlandeses, teve uma infância feliz e um ambiente familiar previlegiado 8-12. Era filho de James Long e de Elizabeth Ware Long 13,14. Seu pai era um abastado líder de negócios, ativo na política, progressista e intelectual 10. Long formou-se na Franklin College, agora Universidade da Geórgia, em Athens, aos 14 anos 13-15. Fazia parte da classe que viria a ser uma das mais célebres da história estudantil norte-americana; dela saíram eminentes cientistas, generais, senadores, secretário do Tesouro e governador 8. Iniciou seus estudos de Medicina em 1836 em Lexington, Kentucky, e, por decisão de seu pai, formou-se em 1839 na Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, uma das mais famosas escolas médicas do país 8,10,14,15. Estagiou por 18 meses em centros médicos de Nova York 10,11,13. Foi convidado para tornar-se médico da Marinha, mas recusou. A educação que recebeu foi importante para o futuro profissional de Long e ele poderia praticar Medicina em qualquer lugar, mas algumas razões fizeram com que escolhesse Jefferson, cidade com maior possibilidade de desenvolvimento que sua terra natal: o dever filial, a ligação ao seu Estado, a oportunidade de assumir a boa clínica do Dr. George R. Grant, que se mudava para o Tennessee, e provavelmente Caroline, a quem conhecia desde que ela tinha apenas 14 anos 13. Assim, em 1841, com 26 anos, retornou à Geórgia e lá começou a praticar Clínica, Cirurgia e Farmácia, na pequena cidade de Jefferson (500 habitantes), condado de Jackson (8.500 habitantes), nordeste de Atlanta, situada a 220 km da mais próxima estrada de ferro, onde adquiriu grande clientela 11-13. Jefferson era uma região agrícola com água abundante e solo fértil, com plantações principalmente de algodão, passou, então, a contar com três médicos 13. Long, alto, olhos azuis, cavalheiro, distinto, culto, interessado em literatura inglesa, dedicado à Medicina, caráter marcante, honrado, elegante, esbelto e sempre bem vestido, fez muitos amigos e tornou-se logo o comandante da juventude masculina e o ídolo das jovens da cidade 2,10,14. Casou-se com Mary Caroline Swain em 11 de agosto de 1842 na igreja metodista de Jackson 13. Long era tão atarefado que se atrasou para o próprio casamento, depois do qual voltou a ver seu paciente e só se encontrou com a esposa no dia seguinte 8; viveram casados por 36 anos e tiveram 12 filhos, dos quais apenas seis sobreviveram aos pais 13. Apesar de estar sempre muito ocupado, Long achava tempo para escrever artigos para jornal de Athens, com certo humor e sob pseudônimo 14.

A IDÉIA DE USAR ÉTER SULFÚRICO PARA ANESTESIA CIRÚRGICA

Em princípios do século XIX, conferencistas ambulantes percorriam os EUA ganhando dinheiro com demonstrações que faziam com o óxido nitroso, descoberto por Priestley 2,6,10,16, ou gás hilariante, nome criado por Humphry Davy 8 que, por sinal, desde 1800 sabia muito bem que este gás poderia ser usado em cirurgia 10. Durante o inverno de 1841, tais demonstrações, conhecidas nos EUA como festas do gás do riso, laughing-gas parties ou gas frolics, chegaram a Jefferson e causaram grande sensação 2,14. Todos, adultos e crianças, entusiasmados, foram assistir à sessão. Logo após a conferência, os amigos de Long, impressionados com o que viram, foram à casa dele e aguardaram o seu retorno na esperança de que, sendo médico, pudesse lhes explicar os fatos observados. Quando Long chegou, noite adentro, excitados, levaram-no à sala de estar e o atordoaram com perguntas a respeito do que haviam presenciado. Ele os ouviu em silêncio e prometeu pesquisar o assunto em sua biblioteca médica; porém, logo depois, voltou à sala e aplicou ao nariz de cada presente um lenço embebido com éter sulfúrico. As reações foram incompreensíveis para eles; riam, cantavam, gesticulavam, falavam sem coerência e discutiam entre si. Long sorria. Quando a embriaguez dos amigos se foi, Long, que desde os tempos de estudante conhecia os efeitos da droga, pois durante o curso médico assistiu a várias demonstrações sobre alguns dos efeitos do óxido nitroso e dos vapores do éter sulfúrico, realizadas por professores de Química e Física com os próprios estudantes, lhes disse: "O que pode fazer um forasteiro, pode-o também um médico de Jefferson" 2. A cena teve grande repercussão no conceito dos presentes, que o fizeram repeti-la nas noites seguintes. As reuniões de inverno da mocidade elegante de Jefferson, realizadas na casa do Dr. Long, para tratar de literatura, jogar xadrez ou discutir assuntos sérios, foram substituídas pelas "folias do éter" (ether-parties). Tais reuniões cresceram tanto a ponto de interessar a juventude feminina local e permitir que um grupo de moças um dia invadisse seu consultório e implorasse para que lhes possibilitasse presenciar uma dessas famosas reuniões; chefiava o grupo uma jovem de 16 anos, considerada como a mais bela de todas, Mary Caroline Swain, sobrinha de antigo governador da Carolina do Norte e sua futura esposa 2,13. Long que já a conhecia superficialmente, encantou-se com a jovem e cedeu aos olhares e pedidos suplicantes dela, concordando quanto a preparar uma ether-party para os próximos dois dias.

O médico, percebendo que seu estoque de éter sulfúrico estava no fim, comunicou-se com seu amigo Robert G. Goodman, farmacêutico em Jefferson e mais tarde em Athens, e pediu-lhe alguns vidros do líquido volátil nos seguintes termos: "Querido Bob, tenho hoje um pequeno favor a pedir-te. Não disponho mais de éter aqui e desejo tê-lo para amanhã à noite, se for possível recebê-lo a tempo. Algumas moças de Jefferson querem experimentar-lhe os efeitos" 2. Na noite aprazada, Long, já prevendo o resultado da recusa e da insistência das presentes, disse: "Bem, vou então inalar o gás para lhes causar prazer, mas prometem que não se zangarão comigo, haja o que houver?" 2 As jovens, naturalmente, concordaram. Long, então, fechou a porta para que ficassem isolados das irmãs que eram da seita dos Quakers e que não viam com bons olhos tais comportamentos. Logo após embeber seu lenço e colocá-lo sob as narinas, passou a andar pelo ambiente e a beijar todas as presentes. Após a recuperação de Long, as jovens puseram-se em fila e começaram a aspirar vapor de éter, uma após outra. A reunião foi um sucesso e deu impulso às ether-parties em Jefferson 2.

O que seria apenas uma diversão, foi para Long motivo de importante observação. Descreveu ele: "Inalei inúmeras vezes o éter por causa de suas propriedades inebriantes e observei no meu corpo contusões e equimoses arroxeadas, provindas de quedas involuntárias durante as inalações da droga e notei que meus amigos debatiam-se tão fortemente que deveriam sentir alguma dor mas que, inquiridos depois, responderam-me que nada haviam sentido" 2,14,17,18. Assim, imaginou que a inalação do vapor de éter durante operações cirúrgicas poderia levar a resultados semelhantes, mas faltava-lhe a confirmação da idéia, que viria dentro de pouco tempo 2,18,19. Na verdade, antes de Long, numerosos pesquisadores observaram a ação anestésica dessa droga, como Paracelso von Hokenhein (1540), Faraday (1818), Goodman (1833), Jackson (1833), Wood e Bache (1834) e outros mas, inacreditavelmente, nada fizeram, por décadas, para livrar a humanidade da dor cirúrgica, continuando o mundo a usar apenas o mesmerismo e outros meios paliativos, como cânhamo, álcool, mandrágora, uísque, etc. 3,6,20,21.

A PRIMEIRA ANESTESIA GERAL COM FINALIDADE CIRÚRGICA

Ocorreu em Jefferson em 30 de março de 1842 1,2,12,15-17,18,22. James M. Venable, um estudante amigo de Long, sofria muito com dois pequenos tumores na região posterior do pescoço (cistos sebáceos infectados) mas tinha pavor da dor que sofreria para os retirar cirurgicamente. Long escreveu: "Mencionei com detalhes a ele que eu já havia tido contusões enquanto estava sob o efeito do éter sem sentir dor, que eu estava acostumado a inalar essa droga e que sugeria a ele a possibilidade de que a operação poderia ser realizada sem dor" 1,2,15,17,19. Após recusa inicial, Venable aceitou a proposta de Long para extrair tais tumores, sem nenhum sofrimento. Foi colocado sentado (Figura 2), rodeado por alguns participantes das ether-parties. Long colocou sobre o nariz e a boca do paciente um lenço embebido com éter e monitorizou o pulso com uma das mãos enquanto administrava o anestésico com a outra 12. Venable dormiu calmamente, pelo menos como descrito. Long confirmou a insensibilidade cutânea com uma agulha e, em seguida, ressecou com rapidez um dos tumores e fez um curativo; retirou o lenço e aos poucos Venable recobrou por completo a consciência e permaneceu incrédulo até que o tumor lhe foi mostrado 11,14,19. Este foi o teatro do primeiro ato cirúrgico indolor que se conhece, testemunhado por, pelo menos, três pessoas, a saber: Andrew Thurmond, William Thurmond e Edmund Rawls; desta forma, o consultório de um jovem médico da pequena cidade de Jefferson foi onde aconteceu a chamada "maior contribuição da América à ciência médica" 1,2,9,12,14,19,23. Dois meses depois, da mesma forma, Long operou o outro tumor 1,12,17,19. Cobrou dois dólares por cada intervenção cirúrgica e mais 25 centavos pelo éter utilizado, manipulado por Powers e Weightman e fornecido pela farmácia de Reese e Ware, de Athens 14,23,24.


Mas, inacreditavelmente, Long ficou em dúvida: deveria atribuir a anestesia ao éter ou a forças mesmerianas de que era possuidor? Uma nova oportunidade surgiu em julho quando o filho de um escravo necessitava amputar dois dedos de um dos pés, aparentemente por queimadura 1,2,14,18. O menino aceitou submeter-se à anestesia. Long adormeceu-o e amputou um dos dedos sem nenhuma reação do paciente. Por mais incrível que possa parecer, para comprovar a ação do éter, amputou o outro dedo sem uso de anestesia. Desta vez, o menino gritou desesperadamente e debateu-se com tamanha violência que Long foi obrigado a amarrá-lo para conseguir terminar a intervenção; só assim convenceu-se de que o éter era o responsável pela insensibilização que inicialmente conseguira e não forças mesmerianas de que seria detentor 2,14,17. Mas, não acreditou que a insensibilidade pudesse ser duradoura pois deixou escrito: "O resultado de minhas experiências fez-me pensar que a duração da ação do éter era tão curta que não poderia ser mantida, a não ser que se fizesse o paciente respirá-lo durante todo o tempo da intervenção" 2,14,17. "A dedução era exata, mas ele não possuía a fé ardente que, por si só, transformava a observação, o conhecimento e a prova em descoberta; ele nunca teve coragem para realizar uma experiência desta importância" 2. Long operou, ao todo, seis 1 ou oito 2,3,8 pacientes sob a ação anestésica do éter. A descoberta da anestesia, como tantas outras, é, por muitos, considerada como mais um exemplo de serendipidade, ou seja, ocorrência de fato inesperado, boa sorte, acurado espírito de observação, além de conhecimento e preparo para entender o fato e estabelecer deduções coerentes 25. Os que não tiveram oportunidade de estudar em profundidade o papel de Long com relação à descoberta da anestesia pensam que esta foi totalmente acidental ou derivada no todo ou em grande parte das experiências sociais com óxido nitroso ou éter sulfúrico; no entanto, foi bem mais do que isto 10.

POR QUE LONG NÃO CONTINUOU A OPERAR SEM DOR?

Como aconteceu com outros pioneiros da ciência, Long sofreu interferência de religiosos radicais e mentes tacanhas. Habitantes de Jefferson passaram a atacá-lo e propalavam que cedo ou tarde ele mataria um paciente e deveria ser proibido de continuar com sua novidade para que desgraças fossem evitadas. Long fez inimigos que o acusavam de possuir uma droga diabólica para insensibilização de pacientes, capaz de alterar as suas faculdades mentais. Toda a população da cidade passou a ter medo do éter sulfúrico e do próprio Dr. Long, o que dificultava a continuidade de sua experiência com o anestésico. Certa ocasião, uma comissão surgiu no consultório de Long pedindo-lhe que interrompesse suas práticas audaciosas; a tônica do discurso indicava que gostavam muito dele, mas se alguém fosse vítima do éter sulfúrico, ninguém poderia impedir seu linchamento 2,13.

É clássico que numerosas descobertas científicas espetaculares, mesmo as que trouxeram enormes progressos para a humanidade, quase sempre foram seguidas de reações absurdas por parte de pessoas ou até de segmentos conservadores da sociedade. Isto aconteceu em Jefferson. Long parou de usar o éter em sua clínica e recomeçou a operar seus pacientes à moda antiga, infligindo-lhes sofrimentos atrozes. A partir deste momento, a confiança e a estima dos seus concidadãos voltaram a reinar. Mas Long continuou a crer na importância da anestesia e administrou éter à sua esposa durante o nascimento de seu segundo filho em 1845 e para outros partos dela, tornando-se, assim, sem nenhuma dúvida, o pioneiro da analgesia obstétrica 8,11.

POR QUE LONG NÃO DIVULGOU IMEDIATAMENTE SUA DESCOBERTA NO ÂMBITO MÉDICO?

Conquanto tenha tornado conhecida a descoberta da anestesia em Jefferson, Athens e nos arredores dessas cidades e não tenha feito segredo dela 22, Long nunca tomou qualquer iniciativa para tornar universalmente conhecida a extraordinária, revolucionária e bem-sucedida idéia da intervenção cirúrgica sem dor, embora fosse um médico bem treinado, que falava e escrevia bem 12,23. Não o fazendo, deploravelmente privou a humanidade do alívio de tanto sofrimento por mais quatro e meio longos anos e, se não fossem a tentativa de Wells e, sobretudo, os esforços de Jackson e Morton, é possível que a anestesia tivesse morrido com ele 16,23,24. Long deixou registradas suas explicações 1,2,8,12,14,17,19,23,26,27:

1) Desejo de que a anestesia não fosse confundida com o mesmerismo – a grande importância do alívio da dor cirúrgica não ficou no início óbvia para Long, que falhou por completo no entendimento do valor da descoberta. Sobre isto, lembram muitos que ele deveria ter procurado o Dr. Paul F. Eve, professor de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Geórgia e Editor do Southern Medical and Surgical Journal, que publicou artigo desmascarando e desacreditando o mesmerismo.

2) Medo de ser considerado charlatão por suas idéias revolucionárias – a introdução de idéias radicalmente diferentes das vigentes é sempre difícil e na Geórgia daquela época era ainda muito mais. Long sabia que se falhasse ou fosse considerado charlatão, sem dúvida não conseguiria continuar a ter bom conceito médico e a mesma confortável vida familiar. Em 1912, o professor de cirurgia norte-americano J. Chalmers Da Costa, escreveu: "Morton e Warren fizeram o mundo tomar conhecimento, Long fez a descoberta e poderia ter feito o mundo sentir a importância dela se houvesse procurado um grande centro médico como fórum para apresentar a descoberta e um famoso cirurgião para defendê-la." Em 1913, os eleitores do Panteão da Fama da Universidade de Nova York estudaram longamente a questão e concluíram que Long só publicou sua experiência em 1849, sendo inconcebível, se bem que pouco provável, que ele desconhecesse a importância da divulgação imediata da possibilidade de eliminação da dor cirúrgica. Realmente, parece inacreditável que, depois de anestesiar um segundo paciente e de empregar analgesia em sua própria esposa durante o nascimento de seu segundo filho, não tenha Long entendido bem as conseqüências benéficas da sua descoberta.

3) Obrigação de maior experiência com o método – Long deixou escrito: "A questão ocorreu, sem dúvida, por que eu não publiquei os resultados de meus experimentos com a eterização tão logo eles foram feitos? Eu estava ansioso para, antes de publicar, acumular um suficiente número de casos para satisfazer por completo meu conceito de que a anestesia foi produzida pelo éter e não foi efeito de minha imaginação ou por qualquer peculiar insuscetibilidade à dor das pessoas que tratei." Neste aspecto, Long seguiu à risca os ensinamentos do Dr. George B. Wood, seu professor na Universidade da Pensilvânia, que condenava publicações prematuras, com base em observações de casos isolados e em métodos inadequados. Mas, diante dessas dificuldades, Long deveria ter solicitado pesquisas mais sérias a médicos com maior prática cirúrgica, mesmo no menos evoluído sul dos EUA da primeira metade do século XIX.

4) Expectativa de que alguém houvesse empregado a anestesia antes dele – deduz-se claramente isto ao ler anotações de Long: "Resolvi esperar alguns meses antes de publicar um relato da minha descoberta e aguardar para ver se algum cirurgião apresentaria uma notícia de que havia usado o éter sulfúrico por inalação em operações cirúrgicas, antes da época em que ele foi usado por mim". Long era bom médico, gentil, dedicado, distinto, leal, cavalheiro, introvertido, tímido e relutava impor-se pela força. Fica claro que não podia crer que um simples médico do interior e, ainda mais, do Sul, pudesse competir com as sumidades médicas do mundo inteiro ou mesmo do norte dos EUA. Pensou que, indubitavelmente, não era nem o primeiro nem o único a ter tido a idéia da anestesia. Na verdade, era quase patologicamente modesto ou com pouca imaginação.

5) Necessidade de realizar operações maiores com anestesia geral – Long queria comprovar a eficácia do éter em cirurgias maiores, mas sabia que em sua clínica não conseguiria tal objetivo. Long registrou: "Depois de me satisfazer completamente acerca do poder do éter de produzir anestesia, eu desejava administrá-lo numa operação cirúrgica difícil que eu nunca havia realizado. Na minha prática, antes de publicar sobre o uso do éter como anestésico, nunca tive oportunidade de experimentá-lo numa operação grande, pois meus casos eram restritos a extirpações de pequenos tumores ou amputações de dedos de mãos ou pés."

6) Vida muito atarefada – segundo narração de Long: "Eu comecei a escrever ao Editor do Medical Examiner para que aquele jornal divulgasse o uso do éter sulfúrico, que poderia, quando inalado, tornar operações cirúrgicas indolores, e que havia sido usado por mim com tal propósito por mais de quatro anos. Fui interrompido quando já havia escrito algumas linhas e impedido de resumir minha publicação por uma trabalhosa prática rural, quando recebi o número de janeiro de 1847. Também considerável tempo decorreu antes que eu fosse capaz de acertar o exato período em que as minhas primeiras operações foram realizadas. Avaliando esse fato, provavelmente por negligência eu tenha permitido de novo que decorresse um tempo mais longo do que eu imaginava..." Assim, tendo sido exposto a um predominante conservadorismo médico como estudante em Filadélfia e Nova York, Long não teria sido surpreendido com a reação inicial externada em publicação no Medical Examiner de 1846 pelos defensores de Morton, entre os quais incluíam-se os famosos médicos H. J. Bigellow e J. C. Warren, de Boston.

O CONHECIMENTO DA ANESTESIA REALIZADA EM BOSTON

Numa noite de dezembro de 1846, Long encontrou uma notícia sobre o sucesso da primeira operação sem dor, escrita por H. J. Bigelow 1,2,16,17,24, na qual ele relata que "a preparação usada por Morton (Letheon) tem odor de éter e é, temos pouca dúvida, uma solução etérea de alguma substância narcótica". Morton, com a conivência de Jackson, utilizou um produto secreto e procurou enganar os médicos para conseguir patentear a "descoberta" e convertê-la em fonte de dinheiro. Long nunca pensou nisso nem fez nada às escondidas mas, como já relatamos, divulgou a descoberta entre os médicos de Jefferson, Athens e de toda a região em que trabalhava 18,22. Teria havido um diálogo entre ele e a esposa 2: "Veja só isto, Caroline, a primeira! Descrevem como um acontecimento sensacional uma operação cirúrgica efetuada em outubro passado no Hospital Geral de Massachusetts e declaram ter sido a primeira operação feita sem dor! E as que eu fiz em Jefferson em 1842? Ainda mais, diz a revista médica que o inventor da anestesia, um dentista de Boston, queria esconder o nome do anestésico usado para registro de patente". Caroline: "Devias ter publicado imediatamente uma relação daqueles fatos, eu bem te aconselhei." Long: "Sabes perfeitamente como as coisas se passavam naquela época. O pessoal de Jefferson tinha-me na conta de feiticeiro, o que quase me fez perder toda a clientela. Era preferível não tocar mais no assunto. Agora, outro passou na minha frente." "Como assim?" perguntou Caroline. "Ainda não é tarde demais. Basta que escrevas hoje mesmo ao Medical Examiner, para dizer que já fizeste, há quatro anos, algumas operações sem dor."

Long passou a acreditar que seria fácil confirmar a veracidade da sua primazia com o atestado de Venable e com os depoimentos de outros pacientes e testemunhas, com o que nunca antes havia se preocupado. Achou que se encaminhasse à revista uma declaração de que utilizara o éter para anestesias cirúrgicas conseguiria provar indiscutivelmente a prioridade do invento. Procurou agir com rapidez, começou a reunir papéis e a escrever a declaração pretendida. No entanto, foi chamado para um parto na zona rural de Athens, cidade para a qual havia se mudado, e, assim, deixou o consultório e a farmácia cheios de clientes, voltando apenas ao amanhecer; o mesmo fato ocorreu no dia seguinte. Por falta de tempo, decidiu publicar seus documentos no próximo número do Medical Examiner. Mas, antes que o fizesse, recebeu um exemplar dessa revista, de janeiro de 1847, no qual Morton, sob pressão da Associação Médica Norte-americana, esclarecia que o anestésico que usava era o éter sulfúrico. Com isto, Long perdeu as esperanças de se defender, sobretudo ao ler no número seguinte da mesma revista o anúncio de que Wells, outro odontologista, também havia tentado empregar um método inalatório (óxido nitroso) para insensibilizar pacientes, antes de Morton.

A LUTA PELA PRIORIDADE DA DESCOBERTA DA ANESTESIA

Em 1847, a disputa pela prioridade da descoberta da anestesia, sobretudo entre Horace Wells, Charles Thomas Jackson e William Thomas Green Morton, ficou tão acirrada que o Congresso Americano resolveu iniciar a arbitragem da questão, conhecida como "a controvérsia do éter" 8 .

Havia anos que Jackson disputava violentamente a prioridade da descoberta da anestesia inalatória com Morton, tentando conquistar a glória para si ou, pelo menos, para ambos. Sabe-se que Morton de início negou, mas depois confirmou que desconhecia o éter sulfúrico e que só o utilizou por sugestão de Jackson, médico e químico, internacionalmente conhecido. Jackson, para vencer Morton, chegou a apoiar Wells; quando sentiu que essa causa estava perdida, voltou-se para Long 2. A história deixa claro que Jackson, além de brilhante, era muito competitivo e astuto mas dissimulado e manipulador 8. Em certa ocasião foi perguntado a ele se durante a demonstração de Morton o paciente houvesse morrido, teria ele reclamado para si o mérito da descoberta ou mesmo o crédito da sugestão? Jackson não respondeu 1,8.

Jackson tinha uma memória prodigiosa e guardava recortes das numerosas revistas de Medicina, Geologia e Química que lia e que mais o interessavam. Um dia, pediu ao seu assistente, James, que procurasse em seu arquivo um artigo de um médico de um dos estados sulinos sobre ter sido o primeiro a usar o éter para operar seus doentes. "Deve ser um relatório da Associação Médica da Georgia", lembrou-se ele 2 . Realmente, em 1848, Long dispôs-se a falar nessa sociedade sobre seu papel na descoberta da anestesia; tendo obtido boa recepção e sido encorajado a publicá-la, o fez em 1849, no Southern Medical and Surgical Journal, onde afirmava haver administrado éter a alguns pacientes em 1842, portanto, quatro anos e meio antes do hoje conhecido nos EUA como "Ether Day" 1,2,7,15,28. Nesse artigo, Long declarava com enorme desapego: "Sei que tardei muito a tornar conhecida minha descoberta para poder reivindicar a primazia deste invento e deixo à Faculdade de Medicina a incumbência de resolver a questão" 2,17. Mas, a descoberta de Long somente teve verdadeira repercussão após a publicação do artigo escrito por J. M. Sims, importante médico de Nova York, em 1877 3,14,18.

Jackson imediatamente pensou em tirar proveito do fato e adotou o argumento de que pelo baixo conceito científico que tinha o Sul naquela ocasião, o mundo não tomou conhecimento da importante descoberta médica 2. Em seu próprio interesse, sem dúvida, queria que toda a América conhecesse o nome de Crawford W. Long, médico este que teria, pela primeira vez, aplicado a idéia dele, Jackson, e que, portanto, deveria ser o único a dividir com ele a primazia da descoberta da anestesia 2. Jackson desceu do trem em Athens, onde na ocasião vivia Long com a família, após passar um ano em Atlanta (1850), e cuja clínica aumentara muito, permitindo que se tornasse sócio da maior farmácia da região e possuísse grande propriedade agrícola 2,8. Jackson foi até Athens alegando ter sido encarregado de inspecionar as minas de ouro de Dahlonega 2 mas, segundo outra versão, ele foi ao encontro de Long a pedido do Congresso para a decisão final sobre o verdadeiro descobridor da anestesia 8. A propósito, acreditam alguns que Jackson tenha visitado a pequena cidade de Jefferson na primavera de 1842, no exato momento em que Long aplicava éter em seu primeiro paciente, e que, se verdadeiro isto, parece improvável que Jackson não tenha sabido pelos cidadãos do local sobre a grande novidade na cidade 8; ainda mais, suspeita-se dessa estada de Jackson em Jefferson porque, ao regressar à Universidade de Harvard, contou ele que aspirara éter para tratar uma dor de garganta, o que o deixara sentado e inconsciente 8. De fato, parece que Jackson foi a Athens para convencer Long a unir-se a ele contra os propósitos de Morton 18,22.

Na manhã de 8 de março de 1854, Jackson entrou na farmácia da qual Long era sócio, onde foi recebido por C. H. Andrews, um funcionário do estabelecimento, que o informou que Long chegaria dentro de pouco tempo e o convidou para sentar-se ao lado da lareira 1. Andrews o descreveu como de cútis morena, cerca de 1,80 m de altura, cabelos negros e olhos brilhantes e com idade em torno de 40 anos; ao que parece, ele estava bronzeado por ter estado a trabalho no campo, como geólogo 1. Jackson esperou, nervoso, a chegada de Long. Ouvindo o ruído causado por um cavalo a galope, Jackson saiu apressadamente da farmácia e dirigiu-se a Long que, mesmo antes de desmontar, recebeu um cartão do forasteiro com os seguintes dizeres: Dr. Charles Thomas Jackson, médico, Cavaleiro da Legião de Honra, geólogo do governo, químico e moedeiro 2. Admirado, Long ouviu de Jackson que viera a Athens para conversar com o homem que pela primeira vez havia usado éter sulfúrico para atos operatórios 2. Long atendeu Jackson e chamou Andrews para testemunhar a conversa, o qual, em 1900, 46 anos depois daquele encontro, relatou: "Eles foram francos e corretos, mas cautelosos; foi um cansativo dia de trabalho"17,22. Andrews também deixou registrado que quem conhecia Long sentia por ele reverência e carinho 1 .

Jackson passou dois dias em Athens, a maioria do tempo no escritório de Long estudando as anotações deste, e dois outros dias em Jefferson, onde esteve para conversar com médicos e testemunhas das anestesias realizadas por Long 22. Voltou a Athens para encontrar-se de novo com Long. "É meu dever ajudar-lhe a defender seus direitos", disse-lhe Jackson, depois de outra vez analisar minuciosamente os arquivos de Long, e acrescentou: "Tudo isto é de efeito muito convincente, caro doutor. A única coisa que não compreendo é que o senhor não houvesse até hoje reivindicado seus direitos" 2. Long deu suas desculpas e Jackson entendeu que necessitaria transmitir segurança ao modesto e apagado médico de Athens. "Foi uma pena que o senhor não me tivesse escrito naquela ocasião. Graças às minhas relações, eu teria feito valer seus direitos diante da Academia de Ciências de Paris e teríamos obtido juntos o reconhecimento do mundo científico. Porque o senhor não deve ignorar que tenho grande participação nessa descoberta" 2. Relatou, a seguir, que realizara pesquisas teóricas e práticas com o éter sulfúrico, as quais, dizia ele, na verdade eram bem anteriores a 1842. Realmente parece que Jackson descobriu em seu laboratório, por casualidade, a ação analgésica dos vapores do éter, o que o levou à idéia de empregá-los contra as dores provocadas pelas intervenções cirúrgicas, mas não a implementou. "Certamente não efetuei operações cirúrgicas. Neste ponto reconheço sua prioridade. Falo, bem entendido, do ponto de vista prático, pois, sem dúvida, a idéia que o senhor aplicou em primeiro lugar, meu caro colega, eu já a alimentava desde 1838. É por essa razão que nossas duas causas estão intimamente ligadas. Mas diga-me, caro doutor, não é uma injustiça ver recair a recompensa que nos é devida em um insignificante dentista de Boston? Não valeria a pena unirmos nossos esforços para pôr um termo à insolência daquele impostor?" 2. Jackson já tivera uma conversa semelhante em Hartford com a viúva de Wells que, em 1844, realizou a fracassada demonstração da anestesia geral com uns poucos litros de óxido nitroso não associado a oxigênio 2.

Long era irresoluto e duvidava de sua prioridade, mas era inteligente e não se deixava enganar com facilidade. Após ouvir a argumentação de Jackson, médico ilustre, que estava a par de tudo que se sabia sobre a anestesia, e se ele, Long, era de fato o inventor da anestesia, concluiu que não necessitaria de parceria com mais ninguém para defender sua causa e lutaria sozinho, mesmo sem o apoio dele 17. Transmitiu corajosa e respeitosamente sua opinião a Jackson. Para este, renunciar para sempre à qualquer participação na descoberta da anestesia e reconhecer que a prioridade desta caberia unicamente a um doutor do sul dos EUA estava quase acima de suas forças. Mas o ódio que dedicava a Morton era imenso e mais forte que qualquer coisa, doentio mesmo; cedeu e concordou com os argumentos de Long, embora tendo de aceitar o abandono de suas pretensões. Com grande amargura e dificuldade, Jackson declarou que estava convencido dos direitos de Long, que só ambicionava a verdade e que este poderia contar com sua integral e desinteressada colaboração 2. Agora, a Jackson, o que mais importava era aniquilar as pretensões de Morton. "O Dr. Jackson afirmará perante o mundo inteiro que o senhor é o único inventor da anestesia" 2.

Imediatamente, estimulados e coordenados pelo próprio Jackson, Long, Caroline, o assistente James, amigos e clientes começaram a se ocupar integralmente com o preparo da documentação necessária para a comprovação do feito daquele que se transformou no ídolo de Jefferson, de Athens e da Geórgia; também cuidaram de estabelecer contato com o senador W. C. Dawson, representante do Estado, para que este expusesse o caso ao plenário do Congresso dos EUA. Comentavam todos os cidadãos de Athens: "Quem sabe por quanto tempo Long manteria a grande descoberta em segredo; tão modesto que foi preciso que um sábio ilustre viesse do Norte para divulgar o segredo tão bem guardado; que glória para nossa cidade e que honra para a União!" 2.

Quando a decisão sobre o descobridor da anestesia chegava ao fim e tendia para a indicação de Morton como merecedor da recompensa devida, o senador W. C. Dawson, representante da Geórgia, opôs-se, declarando que, sem dúvida, a glória cabia não aos estados do Norte, mas indiscutivelmente ao seu Estado. Mostrou um enorme dossiê para comprovar sua argumentação mas não o usou; apenas leu duas pequenas folhas de papel, sem alterar a voz, o que impressionou o Congresso. Uma delas, uma fatura de dois dólares, datada de 1842, paga ao Dr. Crawford W. Long pelo estudante Venable, de Jefferson, pela extração de um tumor sob anestesia pelo éter sulfúrico 2,16,23. Fez circular a fatura pelo recinto e esperou que a emoção criada por este documento inesperado atingisse o ponto culminante. Depois, calmamente, prosseguiu o discurso, comedido e lacônico, e leu uma mensagem de Jackson confessando que já pleiteara para si, junto ao próprio Senado, a prioridade e a recompensa oferecida pela descoberta da anestesia, desde que fora ele o primeiro a explorar este campo médico e quem recomendara a Morton experimentar o éter sulfúrico; depois, continuava Jackson, reclamara para si e para Morton as mesmas vantagens e que mantivera esta decisão até aquele momento, quando confirmou que Crawford W. Long realizara, com sucesso, várias operações indolores em doentes insensibilizados pelo éter sulfúrico, e mais, que agora gostaria de se corrigir e renunciar à paternidade da descoberta em favor de Long 2,29. O senador Dawson pediu a seus pares que atentassem para a declaração objetiva, elegante e desinteressada de Jackson 2. O senador Truman Smith, recordando declarações anteriores em defesa de Wells e Morton, irritadíssimo, pediu explicações a Jackson, que respondeu: "Ignorava totalmente que este médico desconhecido do Estado da Geórgia nos tivesse precedido, mas o sentimento de justiça faz com que me incline diante da verdade" 2. O pedido de Morton foi adiado mais uma vez. Como fizera antes com relação a Wells e Morton, o Congresso não poderia ignorar as novas evidências e foi obrigado a estudar a questão levantada pelo senador Dawson e para decidir sobre os 100.000 dólares que seriam devidos ao descobridor da anestesia 2.

Contudo, numerosas outras reivindicações surgiram. As discussões no Congresso Norte-Americano prolongaram-se por anos e foram examinados todos os documentos e provas que lhe foram submetidos pela maioria dos reclamantes, o que afastou quase todos os pedidos. Finalmente, concluiu, não-oficialmente, que Morton era o verdadeiro inventor da anestesia 2. Que outros, antes dele, tiveram a mesma idéia, ninguém pensou em contestar, mas foi ele o único a transformar esta idéia em ato, e só o ato contava. Foi do anfiteatro do Hospital-Geral de Boston que a anestesia pelo éter levantou vôo para a conquista do mundo. Só a ele caberia a doação dos 100.000 dólares 2. A resolução sobre o mérito de Morton chegou à mesa do Presidente Franklin Pierce mas não foi concretizada, em virtude de algumas dúvidas que este externou quanto ao mérito da questão 2,19. Independentemente da conclusão do Congresso dos EUA, que continuou pendente, vários governos, entidades e associações médicas dos EUA e de diversos outros países aprovaram variadas resoluções e passaram a homenagear um dos quatro principais participantes da descoberta da anestesia, Long, Jackson, Wells e Morton 2,8,22. Em 1852, a Associação Médica da Geórgia passou a considerar oficialmente Long como o primeiro a utilizar o éter sulfúrico como anestésico em cirurgia e levou a discussão sobre esta prioridade à consideração da Associação Médica Americana 14.

É interessante lembrar que durante a controvérsia sobre a prioridade da descoberta da anestesia, na qual Long pouco se envolveu, Oliver Wendell Holmes respondeu, quando inquirido sobre o assunto, com um trocadilho que, como tal, não pode ser literalmente traduzido para o português: "The credit might well be given to e(i)ther" 3.

LONG E A GUERRA CIVIL NORTE-AMERICANA (1861-1865)

Alguns anos depois, durante a Guerra Civil norte-americana, Long servia no serviço sanitário dos exércitos do Sul; Morton lutava do outro lado, do Norte 2,14. O fim da guerra estava próximo e antes que fosse tarde demais, Long, certa noite, foi a cavalo até sua casa, acordou sua filha Frances (há relatos de que ela e um irmão já estavam fugindo) e recomendou a ela que reunisse rapidamente seus objetos pessoais e que, antes do amanhecer, fugisse para a casa da irmã de seu ajudante, que já estava avisada. Foi ao seu consultório e retirou de uma gaveta secreta um pequeno cofre de vidro cuidadosamente fechado, que há muito mantinha com o maior carinho, deu-o à filha e pediu a ela que o guardasse com muita atenção, pois ele continha todas as provas de sua descoberta da anestesia e acrescentou: "Prometes-me que esconderás estes papéis assim que chegares ao teu destino, de maneira que ninguém os encontre?" 2. Depois acrescentou: "Se fores surpreendida no caminho pelo inimigo... então tudo estará terminado para mim; podes entregar os papéis se te pedirem" 2. Em seguida, Long montou e voltou incontinente ao seu posto. Frances sabia da importância daqueles papéis e só quando estava em segurança na casa da irmã do tenente revelou a esta o segredo. À noite, as duas moças foram à floresta e enterraram o cofre aos pés de uma árvore, que foi marcada 2.

Terminada a guerra, Long, envelhecido, abatido, amargurado e empobrecido, voltou à sua clínica e à sua farmácia. Dias depois, Frances alegremente entregou ao pai os importantes documentos que escondera e procurou animá-lo: "Não desanime papai, um dia você será célebre, graças à sua descoberta da anestesia" 2. Irritado, Long lhe disse: "Não me fale mais nisso, não quero mais ouvir a palavra anestesia. Basta!" 2. Frances deixou escrito: "Eu era ainda moça e despreocupada naquela época, no entanto, percebia a coragem silenciosa com a qual meu pai dissimulou, durante anos, a tristeza que lhe causara o não-reconhecimento da sua descoberta" 2. Mas ele continuava sempre a remexer nos documentos relativos às primeiras anestesias cirúrgicas 2. Tais papéis eram as provas documentais da prioridade de Long na descoberta da anestesia (cartas, certificados, declarações escritas e juramentadas, memorandos, registros, apontamentos, etc.), cujos originais permaneceram com as filhas de Long, guardados em depósito seguro 29. Suas filhas o queriam muito e Emma, outra delas, dedicou-lhe um belo e longo poema que termina: "Algum dia o coração da sua Nação orgulhosamente aclamará seu talentoso filho" 14.

A MORTE DE LONG

Certa noite do inverno de 1878 Long foi atender uma parturiente cujo marido, desesperado em virtude das dores sofridas pela esposa, pedia com insistência que o médico usasse um determinado remédio de que tinha notícia existir na cidade 2. Long relutou bastante mas finalmente decidiu: "Bem, espere um instante, vou buscar uma coisa que aliviará sua mulher" 2. Foi à farmácia, pegou um pequeno vidro e partiu para a fazenda onde os gritos da parturiente eram de longe ouvidos. Ao lado do leito, disse: "Em poucos instantes não sentirá mais nada, minha filha" 2. A mulher sorriu agradecida. Contudo, ao aplicar uma esponja sobre o nariz da paciente e iniciar a anestesia, suas mãos tremeram, deixou cair o vidro de éter e tombou ao solo; alguns familiares tentaram ajudá-lo mas ele insistiu: "Cuidem da mãe e do bebê primeiro" 2,8,11,14. Morreu algumas horas depois 11,14, supostamente por violenta hemorragia cerebral 8, sem que a notícia da sua descoberta houvesse passado muito além dos limites de sua cidade 30.

Estudando-se as vidas dos participantes dessa maravilhosa descoberta, percebe-se que Long foi o único que não teve sua existência tão estragada por desavenças e disputas. O foco da vida de Long não foi procurar colher recompensa material pela descoberta da anestesia, mas muitas vezes ele disse que gostaria de ser lembrado como um benfeitor da humanidade 9,14,22. Wells viciou-se em clorofórmio e suicidou-se na Prisão de Tombs, em 23 de janeiro de 1848 2,27. Jackson morreu aos 75 anos de idade, em 1880, num hospício de Sommerville, onde viveu por sete anos2,18. Morton, estressado pela luta com Jackson, sucumbiu no Hospital São Lucas, de Nova York, após sofrer uma crise cardíaca quando atravessava o Central Park, num quente dia de verão, em 15 de julho de 1868, deixando esposa e cinco filhos relegados ao abandono 2,18.

RECONHECIMENTOS A CRAWFORD W. LONG

Long recebeu homenagens da Inglaterra, do México, da França e de outros países da Europa 14. Contudo, parte do mundo parece ter olvidado Long. Infelizmente, no Brasil ele é quase totalmente desconhecido. Porém, os EUA e sobretudo as cidades em que viveu como médico, Jefferson e Athens, e o seu estado natal, a Geórgia, nunca o esqueceram, e o consideram como um dos 32 georgianos mais importantes 11. Há em Jefferson um monumento a Long em uma de suas praças. A Universidade da Geórgia o considera como descobridor da anestesia, benfeitor da humanidade e o homenageia com um monumento. Nova Orleans construiu um monumento a um dos maiores benfeitores que a América deu ao mundo 14. Em 1921, o Colégio Norte-Americano de Cirurgiões de Atlanta decidiu considerar Long como o descobridor da anestesia e fundou a Associação Crawford Long 8. Long foi retratado por vários pintores, em geral com barba espessa; há um quadro pintado por uma de suas filhas que está no Hospital Crawford W. Long de Atlanta (Emory University) 11. O Palácio Estadual de Atlanta conserva em seu saguão uma pintura a óleo desse grande norte-americano 14. A Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia tem um retrato de Long pintado pelo famoso artista R. Lahey 11. A mesma universidade, para manter na lembrança o seu aplicado aluno, criou um medalhão de bronze projetado pelo Dr. R. T. McKenzie para homenageá-lo em 30 de março de 1912, no qual ele aparece, bastante jovem, administrando éter a um paciente e no qual se lê, em inscrição circular: "Para Crawford W. Long, Primeiro a Usar Éter como Anestésico em Cirurgia, 30 de março de 1842, De Sua Alma Mater", no centro, "1815-1878" e, embaixo, "Classe de 39 – Pensilvânia" 3,10,14. Um dos maiores atos de gratidão dos EUA a Long foi a colocação de uma estátua de mármore no Salão das Estátuas do Capitólio, em Washington, D.C., em 30 de março de 1926, onde se lê: "Crawford W. Long (1815-1878) – que descobriu o valor anestésico do éter sulfúrico para a cirurgia em 30 de março de 1842, em Jefferson, no condado de Jackson, na Geórgia" 3,14.

O Museu Crawford W. Long, aberto em 1957, na College Street, 28, em Jefferson, num edifício possivelmente situado ao lado do consultório que Long mantinha em 1842 13, é outro dos maiores monumentos à memória deste pioneiro; hoje, é mantido pela Sociedade de Anestesiologia da Geórgia e por Amigos do Museu, voluntários e diversas sociedades de Anestesiologia e tem como missão "preservar, interpretar e promover as realizações, a vida e a época de Long, médico da Geórgia e descobridor da anestesia" 9. A associação inclui chefes de Departamentos de Anestesiologia da Faculdade de Medicina da Emory University e de diversos outros centros médicos 9. Em 1986, o museu foi ampliado com a aquisição de dois prédios vizinhos. A configuração do jardim que havia em 1842 é quase a mesma e contém a rosa cherokee, típica da Geórgia, além de plantas ornamentais também comuns no século XIX. O museu tem uma biblioteca com temperatura e umidade controladas, exibe aparelhos de anestesia, coleções de fichas e vídeos da história da anestesia e guarda objetos pessoais e instrumentos médicos de Long e, ainda, um volume de Shakespeare com trechos favoritos por ele marcados, além de numerosos memorandos, cartas escritas por Long ou por este recebidas, declarações de testemunhas ou pacientes da primeira e de outras intervenções cirúrgicas sem dor, inclusive de Venable e da mãe deste, de Andrew sobre o encontro de Jackson com Long e a carta de Jackson, escrita em abril de 1861, na qual declara ter examinado documentos, ouvido testemunhas e pacientes de Long e cita outros fatos e argumentos já relatados 9,29. Lá ainda há um quadro mostrando Long operando um dos cistos de Venable e três testemunhas e outro exibe retrato de Long, esposa e filhos. A Sociedade de História do Condado de Jackson tem sua sede neste museu, visitado todos os anos por milhares de pessoas 9. O museu desenvolve atualmente programas culturais focalizando sobretudo os tempos de Long e, todo ano, a última semana de março é sempre dedicada à descoberta da anestesia e, todo dia 30 deste mês, há celebração do "Doctors Day" 9. O Museu Crawford W. Long foi palco em 1940 da cerimônia do primeiro dia de lançamento do selo comemorativo da série de norte-americanos famosos, que aproveitou um retrato de Long, quando ele tinha entre 55 e 60 anos (Figura 3) e que se tornou a mais amplamente usada e circulada imagem dele 9,11,31,32; a única outra iniciativa deste tipo foi um selo para homenagear a Dra. Virginia Apgar, lançado em 24 de outubro de 1994 9,11. Em 1992, entre 27 e 31 de março, realizou-se ali um simpósio sobre a História da Anestesia, durante o qual foi comemorado o sesquicentenário da descoberta de Long 9,11. Como curiosidade: a empresa Coca-Cola homenageou o evento gravando em garrafas da bebida o retrato de Long e os dizeres: Crawford W. Long – Descobridor da Anestesia – 1842, Jefferson, Geórgia.


Finalmente, uma rara fotografia do tipo ferrótico (Figura 4) foi descoberta há pouco mais de duas décadas em uma feira de livros em Austin, Texas, adquirida pelo Dr. Scott Smith, residente de Anestesiologia do Medical Center Hospital, e doada à P. I. Nixon Medical Historical Library – University of Texas Health Science Center at San Antonio, em homenagem ao Dr. Maurice S. Albin, professor de Anestesiologia do Health Science Center e diretor de Neuroanestesiologia do Medical Center Hospital e do V. A. Medical Center 32-34. Ela foi feita entre 1854, quando tal processo fotográfico foi criado, e 1861, quando explodiu a Guerra Civil Americana, possivelmente em 1855, para simular uma intervenção cirúrgica sob a ação do éter. Essa fotografia foi descoberta por um negociante de antiguidades em Gainsville, Geórgia, que a comprou de um descendente de Long e a passou para outro comerciante de livros raros de Athens. É um importante documento para a história da Medicina, porque parece ser a única fotografia existente de Long, sendo possivelmente pinturas a óleo todas as demais imagens dele. Fortes indícios, posto que não haja evidências conclusivas, indicam ser realmente Crawford W. Long, que deveria ter entre 39 e 45 anos de idade, quem aparece preparando-se para amputar uma perna de um paciente descalço, com torniquetes aplicados acima do joelho e na região média da perna e, imagine-se, colocado sobre um engradado ou caixão de madeira; Long está acompanhado de um assistente, que cuida dos instrumentos cirúrgicos, e de alguém que administra éter e monitoriza o pulso do paciente. Pela postura profissional médica e grande semelhança física com a família, o jovem "anestesista" parece ser Robert, também médico e irmão de Long. Ainda mais, no caixão de madeira que serve como mesa cirúrgica estão escritas palavras, provavelmente referentes ao nome e endereço de Long: Williamson, GA e Temperane, que na verdade deveria ser Temperance, cidade próxima de Athens, de um terminal ferroviário, Union Point, e de Crawfordsville.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história de Long serve para reforçar duas questões essenciais para o entendimento da "controvérsia do éter", isto é, estabelecer se o maior mérito cabe ao descobridor (Long) ou ao de fato introdutor no âmbito médico e divulgador da anestesia geral (Morton) e para posicionar o mérito dos dois outros principais participantes da descoberta: Jackson, pela sugestão e orientação que deu a Morton, e Wells, por ter tentado demonstrar a possibilidade do emprego do óxido nitroso, até hoje amplamente utilizado. Na verdade, a história nem sempre é totalmente correta; com freqüência ela sofre influências culturais, religiosas, étnicas, econômicas e políticas que desvirtuam fatos verdadeiros. A solução está na definição de descoberta ou descobridor, muito clara nos mais modernos dicionários. Entretanto, já aconteceu em outras ocasiões: alguém fez uma descoberta e não a divulgou até que, tempos depois, outro também descobriu a mesma coisa, inclusive captando idéia de um terceiro, e a tornou amplamente conhecida. Sem dúvida, todos os principais participantes têm seus méritos.

Ainda que existam algumas críticas a respeito de condutas de Morton, não há como negar o grande valor e a enorme importância dele, certamente um dos maiores benfeitores da humanidade. A demonstração que fez e, sobretudo, a imediata divulgação da possibilidade de se poder operar sem dor tornaram factível o enorme desenvolvimento da cirurgia, antes disto bastante limitada. Por outro lado, não há nenhuma dúvida de que Long praticou a primeira anestesia cirúrgica. Como resultado, poderia com facilidade ter conseguido um lugar muito mais alto na história da anestesia mundial mas, em grande parte, as razões anteriormente expostas explicam por que não o alcançou, o que não impede que lhe seja dado o valor que merece. Há muito criou-se a imagem estereotipada de Long, que tem passado de geração em geração, de um simples médico de roça, considerando que seu conhecimento e sua experiência não eram compatíveis com a grandiosidade da descoberta da anestesia; tais noções preconcebidas são inadequadas e falsas. Long tem o direito de figurar entre os dois principais dos quatro norte-americanos que tornaram possível uma das mais notáveis descobertas da Medicina e a obra dele não pode ser esquecida e deve ser cultivada por anestesiologistas do Brasil e de todo o mundo, bem como lembrada ou comemorada todos os dias 30 de março de cada ano.

AGRADECIMENTOS

Ao Crawford W. Long Museum e à P. I. Nixon Medical Historical Library University of Texas Health Science Center at San Antonio, por valiosas informações bibliográficas e imagens do Dr. Long. Ao Dr. Carlos P. Parsloe, pela intermediação desses materiais e por nos ter fornecido dados de sua imensa biblioteca pessoal. À minha filha, Márcia N. R. Carvalho, pela localização atual e obtenção do original da fotografia.

Apresentado em 31 de outubro de 2005

Aceito para publicação em 15 de março de 2006

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    Rua Jesuíno Arruda, 479/11 Itaim-Bibi
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    Recebido do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      15 Mar 2006
    • Recebido
      31 Out 2005
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