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Insuficiência hepática fulminante após transplante simultâneo de rim-pâncreas: um relato de caso

Resumo

Descrevemos um caso incomum de insuficiência hepática hiperaguda após a anestesia geral em uma paciente que recebeu um transplante simultâneo de rim-pâncreas. Apesar de uma avaliação agressiva das causas estruturais, imunológicas, virais e toxicológicas, uma causa definitiva não pôde ser identificada. A paciente precisou de um transplante de fígado que resultou em prolongamento da internação hospitalar. Discutimos as potenciais causas da insuficiência hepática fulminante e o manejo da anestesia no período perioperatório de seu subsequente transplante de fígado.

PALAVRAS-CHAVE
Insuficiência hepática; Transplante de rim-pâncreas; Agentes voláteis; Transplante de fígado; Reação medicamentosa; Toxicidade por isoflurano; Reação medicamentosa adversa; Anestesia inalatória

Abstract

We describe an unusual case of hyperacute hepatic failure following general anesthesia in a patient receiving a simultaneous kidney-pancreas transplant. Despite an aggressive evaluation of structural, immunological, viral, and toxicological causes, a definitive cause could not be elucidated. The patient required a liver transplant and suffered a protracted hospital course. We discuss the potential causes of fulminant hepatic failure and the perioperative anesthesia management of her subsequent liver transplantation.

KEYWORDS
Liver failure; Kidney-pancreas transplant; Volatile agents; Liver transplant; Drug reaction; Isoflurane toxicity; Adverse drug reaction; Inhalational anesthesia

Introdução

A hepatotoxicidade há muito foi reconhecida como um efeito adverso do metabolismo de anestésicos voláteis halogenados. O desenvolvimento de novos agentes que sofrem menos metabolismo hepático diminuiu consideravelmente sua incidência na anestesia moderna. Classicamente descrita como manifestação pós-operatória de febre, mialgia, erupção cutânea e icterícia após 48–72 horas (h) de exposição, a hepatotoxicidade por agentes voláteis está associada a taxas significativas de morbidade e mortalidade. De acordo com nossa pesquisa da literatura, este é o primeiro caso de insuficiência hepática hiperaguda após exposição ao isoflurano. Nossa paciente desenvolveu insuficiência hepática manifesta dentro de 24 h de exposição, o que exigiu um transplante de fígado no segundo dia de pós-operatório. Descrevemos aqui o nosso trabalho e a revisão da hepatotoxicidade por agentes voláteis. Todas as informações sobre a paciente foram adequadamente desidentificadas, de acordo com a política institucional e IRB da Mayo Clinic e também com a Lei de Portabilidade e Responsabilidade do Seguro de Saúde (Nota de redação: Legislação dos Estados Unidos da América).

Relato de caso

Paciente asiática, 60 anos, com doença renal terminal secundária ao diabetes e hipertensão, que se apresentou para transplante simultâneo de rim-pâncreas. Sua história médica pregressa era anemia crônica, tuberculose latente (tratada havia dois anos com isoniazida), teste positivo para anticorpo contra o núcleo da hepatite B sem carga viral detectável, hipertensão pulmonar leve, derrame ocular e doença arterial coronariana pós-droga que evitava a colocação de stent. Fora submetida a uma fístula arteriovenosa em membro superior esquerdo em outro hospital, presumivelmente com anestesia geral, mas seus registros médicos não estavam disponíveis para revisão. O transplante de rim-pâncreas transcorreu sem incidentes após a indução com propofol (120 mg), fentanil (250 mcg) e midazolam (2 mg), seguidos de isoflurano, hidromorfona (1 mg) e cisatracúrio (36 mg por 436 min) para manutenção da anestesia. A concentração expirada de isoflurano foi mantida entre 1,0% e 1,5% durante todo o procedimento. O regime antirrejeição no intraoperatório consistiu em uma infusão de timoglobulina e 500 mg de metilprednisolona. A paciente começou a apresentar débito urinário e a glicemia diminuiu após a reperfusão do rim e pâncreas, respectivamente. Não houve episódios prolongados de hipotensão. Uma unidade de concentrado de hemácias foi transfundida intraoperatoriamente para obter uma hemoglobina de 7,3 g.dL−1. O tempo total de anestesia foi de 436 minutos (min) e o tempo cirúrgico de 339 min. O curso em sala de recuperação pós-anestésica transcorreu sem incidentes e a paciente foi transferida para a enfermaria.

Na manhã seguinte, a paciente estava muito letárgica, mas despertável. Os resultados laboratoriais estavam elevados para os testes de função hepática, com aspartato aminotransferase (AST) em 3.904 UI.L−1 e alanina aminotransferase (ALT) em 2.596 UI.L−1, acima de 23 UI.L−1 e 31 UI.L−1 no pré-operatório. A paciente foi transferida para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com diagnóstico de insuficiência hepática aguda e foi intubada após uma encefalopatia que piorou rapidamente. O débito urinário diminuiu progressivamente e uma terapia de reposição renal contínua foi iniciada. Além disso, a paciente desenvolveu uma acidose metabólica que exigiu tratamento com infusão de bicarbonato. No segundo dia de pós-operatório, os testes de função hepática atingiram o máximo, com AST em 58.960 e ALT em 6.684, e o Índice Internacional de Normalização (INR: International Normalized Ratio) também aumentou para 5,8 (valor basal 1,0). A paciente foi classificada como Estado 1 para transplante hepático, indicava doença hepática grave com expectativa de vida de horas a dias. Ao mesmo tempo, a paciente recebeu tratamento agressivo para determinar a causa da insuficiência hepática. Os estudos imunológicos, virais, estruturais e toxicológicos não foram diagnósticos. Uma revisão intensa dos medicamentos da paciente foi feita para identificar o medicamento com potencial hepatotóxico. No segundo dia de pós-operatório, a paciente foi submetida a um transplante de fígado. Com a possibilidade de isoflurano ser a causa da reação idiossincrática da paciente, a equipe de anestesia decidiu não usar anestesia inalatória e optou por uma abordagem de anestesia intravenosa total. Infusões de propofol (50-100 mcg.kg−1.min−1) e midazolam (0,25–0,5 mg.h−1) foram administradas, com titulação para manter o índice bispectral entre 10 e 40 no monitor. Além disso, bolus de cisatracúrio e fentanil foram administrados de acordo com a necessidade. A terapia de reposição renal contínua foi mantida na sala de cirurgia. O transplante ortotópico de fígado foi feito com a técnica de preservação da veia cava (piggy-back) e transcorreu sem incidentes, exceto por uma síndrome de reperfusão leve após a recirculação que exigiu uma breve adição de vasopressina.

Na inspeção visual, o fígado parecia totalmente necrótico. O exame patológico do explante revelou necrose submaciça, caracterizada por grandes áreas de necrose confluente multilobular, bem como necrose centrilobular, necrose em ponte e hemossiderose hepatocelular. Inclusões virais não foram observadas.

A recuperação da paciente foi bastante complicada, embora a função do enxerto hepático tenha sido preservada. As complicações pós-operatórias incluíram vários retornos à sala de operação devido a aumento das pressões intra-abdominais, drenagem de hematoma e lavagem abdominal. A paciente sofreu parada cardíaca secundária à insuficiência respiratória hipóxica no 10° dia de pós-operatório. A função renal melhorou e a diálise foi interrompida no 24° dia de pós-operatório. A paciente teve uma breve alta hospitalar no 34° dia de pós-operatório. Porém, logo retornou e deu início a uma longa internação hospitalar com febre neutropênica e um abscesso intra-abdominal que resultou em pancreatectomia de aloenxerto. A melhoria da paciente foi contínua após a pancreatectomia e, atualmente, passa bem.

Discussão

A insuficiência hepática fulminante é definida como uma insuficiência hepática em rápida evolução com necrose hepatocelular, aumento do INR superior a 1,5 e qualquer nível de encefalopatia em paciente sem doença hepática prévia.11 Polson J, Lee WM. AASLD position paper: the management of acute liver failure. Hepatology. 2005;41:1179-97. A insuficiência hepática aguda após anestesia geral é um evento raro em pacientes sem doença hepática pré-existente e geralmente traz como consequência uma alta taxa de mortalidade. Embora uma reação idiossincrática a medicamento tenha sido o diagnóstico com o qual trabalhamos, o caso foi clinicamente desconcertante devido à rapidez do início e grau de insuficiência hepática, sem um evento instigante óbvio. A lista das potenciais causas é extensa; porém, vamos nos concentrar nas causas mais comuns em nossa discussão.

A deterioração hepática de nossa paciente foi rápida, ocorreu em 24 h desde a cirurgia original para o transplante de rim-pâncreas, deixou uma pequena janela para possíveis causas estruturais. Não houve lesão vascular durante a cirurgia e a perda sanguínea intraoperatória não foi significativa o suficiente para ser uma causa provável do comprometimento do fluxo sanguíneo hepático. A hemoglobina no intraoperatório foi mantida entre 7,3 e 9 g.dL−1, a partir de um valor basal de 11,2 g.dL−1 no pré-operatório. Quando a disfunção hepática foi identificada no pós-operatório, as repetidas avaliações radiográficas com ultrassom e tomografia computadorizada não apresentaram anormalidades novas incontestáveis na comparação com os estudos pré-operatórios e o bom fluxo sanguíneo em todas as estruturas vasculares.

Existe a possibilidade de que infecções bacterianas ou reativação de doença viral latente tenham ocorrido devido ao estresse da cirurgia, imunossupressão ou contaminação do sítio cirúrgico, induziu uma condição semelhante à sepse. A paciente recebeu hemoderivados e foi exposta a procedimentos perianestésicos invasivos (intubação, linha arterial e canulação venosa central, dentre outros), o que a colocou em risco para uma etiologia infecciosa. A sepse poderia criar um ambiente no qual a pouca perfusão hepática predisporia o fígado à lesão isquêmica. Nossa paciente, entretanto, não apresentou sinais clínicos de choque séptico. Além disso, a bateria de exames para sepse que avaliou culturas de sangue, urina e escarro não apresentou crescimento. As culturas de fungos e bacilos ácido-rápidos de lavagens broncoalveolares foram negativas, bem como as sorologias virais para hepatite A, B e C, ciclomegalovírus, herpes-vírus, influenza A/B e vírus sincicial respiratório.Várias doenças que envolvem o fígado podem resultar em insuficiência hepática aguda. A doença de Wilson é um distúrbio no metabolismo do cobre e pode causar insuficiência hepática aguda. Essa doença tem uma taxa de mortalidade extremamente alta com o tratamento médico isolado.22 Singanayagam A, Bernal W. Update on acute liver failure. Curr Opin Crit Care. 2015;21:134-41. Com frequência, a hepatite autoimune insidiosamente apresenta sintomas não específicos, mas o espectro clínico é amplo, varia de apresentação assintomática a doença grave aguda.33 Manns MP, Czaja AJ, Gorham JD, et al. Diagnosis and management of autoimmune hepatitis. Hepatology. 2010;51:2193-213. Nossa investigação incluiu avaliação de ceruloplasmina sérica, imunoglobulinas séricas, anticorpos antimúsculo liso e anticorpos antimitocondriais, todos foram não diagnósticos.

A paciente recebeu vários medicamentos hepatotóxicos antes do início da insuficiência hepática, inclusive sulfametoxazol/trimetoprim, fluconazol, ganciclovir e acetaminofeno. Não tínhamos conhecimento de quaisquer medicamentos à base de plantas que a paciente pudesse ter tomado em casa. Com a exceção do acetaminofeno, a maioria dos casos de insuficiência hepática induzida por medicamento apresenta-se de forma subaguda no prazo de seis meses após o início e tem um mau prognóstico.22 Singanayagam A, Bernal W. Update on acute liver failure. Curr Opin Crit Care. 2015;21:134-41. A causa mais comum de insuficiência hepática induzida por medicamento (acetaminofeno) geralmente se manifesta de forma hiperaguda e tem um prognóstico melhor do que o de outras causas de insuficiência induzida por medicamento.44 Fontana RJ, Ellerbe C, Durkalski VE, et al. Two-year outcomes in initial survivors with acute liver failure: results from a prospective, multicentre study. Liver Int. 2015;35:370-80. Embora não tenha sido usada nessa paciente, um distúrbio hepático veno-oclusivo primário historicamente associado ao transplante renal ocorre secundariamente ao uso prolongado de azatioprina. Esse processo envolve lesão induzida por metabolitos nas células endoteliais sinusoidais e nos hepatócitos da zona 3, resulta em estreitamento progressivo do fluxo sinusoidal por detritos celulares.55 Carreras E. How I manage sinusoidal obstruction syndrome after haematopoietic cell transplantation. Br J Haematol. 2015;168:481-91. Outros agentes imunossupressores foram implicados nesse transtorno; porém, de acordo com nossa pesquisa da literatura, não há registro de insuficiência hepática hiperaguda publicado até o momento. Os níveis de acetaminofeno e os grupos de drogas de abuso não foram notáveis durante nossas investigações iniciais.

Quando as causas mais comuns de insuficiência hepática pós-operatória foram descartadas, o foco de nossa atenção mudou para a hepatite induzida por isoflurano. Historicamente, alguns dos primeiros anestésicos inalatórios (clorofórmio e halotano) foram associados à hepatotoxicidade secundária, tanto à destruição direta de hepatócitos quanto aos mecanismos imunológicos complexos. Os anestésicos voláteis halogenados, como o halotano, são muito lipofílicos; logo, uma pequena porcentagem é metabolizada no fígado em vez de ser eliminada através do sistema respiratório. Como resultado, vias oxidativas e redutoras dentro dos hepatócitos são necessárias para o seu metabolismo e subsequente excreção do corpo. O produto final primário da oxidação (ácido trifluoroacético [TFA]) forma complexos via ligação a proteínas específicas dos hepatócitos (teoria de Hoptun). Essa reação estimula uma resposta mediada por células T contra as proteínas modificadas do TFA e leva à hepatite necrosante grave.

Os voláteis halogenados mais recentes, como isoflurano e sevoflurano, não demonstraram ter a mesma propensão que o halotano para causar disfunção hepática.66 Peiris LJ, Agrawal A, Morris JE, et al. Isoflurane hepatitis-induced liver failure: a case report. J Clin Anesth. 2012;24:477-9. Acredita-se que a diminuição da incidência de hepatotoxicidade seja atribuída aos voláteis mais recentes que usam diferentes vias de biotransformação do citocromo. A via CYP2E1, que elimina aproximadamente 25% do halotano, processa apenas 0,2% de todo o isoflurano absorvido e 0,02% do desflurano. No entanto, devido às semelhanças estruturais do citocromo, ainda há um risco teórico de que o metabolismo oxidativo de qualquer volátil possa levar a complexos que podem desencadear respostas comparáveis às observadas na hepatotoxicidade por halotano. A insuficiência hepática relacionada a anestésicos voláteis foi descrita em pacientes mais idosos, com insuficiência hepática mais de 48 h após a exposição e que apresentavam outros sinais de reações imunológicas/alérgicas.66 Peiris LJ, Agrawal A, Morris JE, et al. Isoflurane hepatitis-induced liver failure: a case report. J Clin Anesth. 2012;24:477-9.,77 Hasan F. Isoflurane hepatotoxicity in a patient with a previous history of halothane-induced hepatitis. Hepatogastroenterology. 1998;45:518-22. Observação importante: a exposição a um anestésico halogenado foi associada à sensibilidade cruzada a outros agentes voláteis.77 Hasan F. Isoflurane hepatotoxicity in a patient with a previous history of halothane-induced hepatitis. Hepatogastroenterology. 1998;45:518-22.

Nossa paciente, no entanto, apresentou-se de forma bem diferente dos casos anteriores de toxicidade por isoflurano. A manifestação da insuficiência hepática ocorreu menos de 24 h após a exposição e a paciente não apresentou sinal concomitante de reações imunológicas/alérgicas. Classicamente, a detecção de anticorpos para proteínas TFA foi usada para fazer o diagnóstico juntamente com quadros clínicos. Infelizmente, não conseguimos usar esse ensaio, pois parece que esse teste não é mais vendido. Portanto, não conseguimos diagnosticar definitivamente o isoflurano como a causa principal. Apesar disso, o consenso de nossa equipe multidisciplinar manteve a hepatite induzida por isoflurano como um diagnóstico de exclusão. Nosso diagnóstico foi sustentado pelos achados histológicos e evidentes no momento do transplante. Histologicamente, o fígado da paciente demonstrou necrose centrilobular e em ponte; um achado compartilhado por casos semelhantes de hepatite induzida por isoflurano.

Nosso manejo do transplante hepático e das subsequentes reoperações teve como foco evitar a anestesia inalatória e o uso de anestésico intravenoso total. Em teoria, a remoção de seu fígado nativo removeria as proteínas ligadas ao TFA e diminuiria a probabilidade de induzir uma recorrência da insuficiência hepática aguda. Contudo, uma revisão da literatura não conseguiu confirmar ou refutar essa opinião.

References

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    Manns MP, Czaja AJ, Gorham JD, et al. Diagnosis and management of autoimmune hepatitis. Hepatology. 2010;51:2193-213.
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    Hasan F. Isoflurane hepatotoxicity in a patient with a previous history of halothane-induced hepatitis. Hepatogastroenterology. 1998;45:518-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2017
  • Aceito
    20 Jan 2018
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