Acessibilidade / Reportar erro

Ultrassonografia automatizada das mamas: estamos prontos para colocá-la em prática no Brasil?

A ultrassonografia automatizada das mamas (automated breast ultrasound - ABUS) é uma técnica ultrassonográfica na qual todo o volume da mama é escaneado com voxels quase isotrópicos, permitindo a reconstrução das imagens em todos os planos. Foi desenvolvida na década de 70, porém, não teve grande aceitação na época em razão do uso de transdutores com baixa frequência (4 a 7 MHz), que resultava em imagens com pouca qualidade. Contudo, com o aumento da importância da ultrassonografia no rastreamento do câncer de mama, ressurgiu o interesse na automação do exame. Atualmente, os sistemas utilizam transdutores com alta frequência (10 a 14 MHz) e grandes dimensões (15 a 17 cm), acoplados em um braço mecânico que desliza sobre a mama, permitindo uma leitura completa e com boa qualidade em cerca de 15 minutos(11 Karst I, Henley C, Gottschalk N, et al. Three-dimensional automated breast US: facts and artifacts. Radiographics. 2019;39:913-31.,22 Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.).

A principal vantagem da ABUS em relação à ultrassonografia manual ou hand-held (HHUS) é a aquisição padronizada das imagens, independente do médico, permitindo uma maior reprodutibilidade do exame e acesso a todas as imagens retrospectivamente. Com esta técnica, o tempo de aquisição da imagem é separado da interpretação do exame, como nos exames de mamografia, tomossíntese e ressonância magnética. A coleta seria realizada por um técnico ou tecnólogo treinado que aplicaria um protocolo padronizado para a aquisição das imagens. A interpretação seria realizada por um radiologista em uma estação de trabalho dedicada, com tempo médio de leitura relatado na literatura de 3 a 10 minutos(22 Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.,33 van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.).

A aplicação clínica foi inicialmente focada no cenário de rastreamento e os trabalhos tiveram como objetivo testar a técnica em mulheres com mamas densas. Embora as evidências de benefícios em longo prazo sejam limitadas, o rastreamento com ABUS tem demonstrado alta sensibilidade na detecção do câncer, semelhante ao desempenho da HHUS. Vários estudos demonstraram aumento da detecção do câncer entre 1,9 e 7,7 casos por 1.000 mulheres. A sensibilidade aumentou de 21,6% até 41,0%, mas a especificidade variou. As taxas de reconvocação e biópsia aumentaram, enquanto o valor preditivo positivo 3 (PPV3) diminuiu de 4,2% até 15,8%(11 Karst I, Henley C, Gottschalk N, et al. Three-dimensional automated breast US: facts and artifacts. Radiographics. 2019;39:913-31.

2 Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.

3 van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.
-44 Brem RF, Tabár L, Duffy SW, et al. Assessing improvement in detection of breast cancer with three-dimensional automated breast US in women with dense breast tissue: the SomoInsight study. Radiology. 2015;274:663-73.). Um dos maiores estudos com a ABUS, denominado de SomoInsight(44 Brem RF, Tabár L, Duffy SW, et al. Assessing improvement in detection of breast cancer with three-dimensional automated breast US in women with dense breast tissue: the SomoInsight study. Radiology. 2015;274:663-73.), detectou, adicionalmente, 1,9 câncer por 1.000 mulheres, semelhante aos resultados do estudo randomizado J-START(55 Ohuchi N, Suzuki A, Sobue T, et al. Sensitivity and specificity of mammography and adjunctive ultrasonography to screen for breast cancer in the Japan Strategic Anti-cancer Randomized Trial (J-START): a randomised controlled trial. Lancet. 2016;387:341-8.), mas inferior aos resultados do ACRIN 6666(66 Berg WA, Zhang Z, Lehrer D, et al. Detection of breast cancer with addition of annual screening ultrasound or a single screening MRI to mammography in women with elevated breast cancer risk. JAMA. 2012;307:1394-404.). A maioria dos tumores foram invasivos (93,3%), com tamanho médio de 12,9 mm e com linfonodos axilares negativos (92,6%)(44 Brem RF, Tabár L, Duffy SW, et al. Assessing improvement in detection of breast cancer with three-dimensional automated breast US in women with dense breast tissue: the SomoInsight study. Radiology. 2015;274:663-73.). Já as indicações da ABUS para a avaliação de pacientes sintomáticas, como nos casos de fluxo papilar ou lesões palpáveis, são bastante estudadas, porém, ainda permanecem incertas(11 Karst I, Henley C, Gottschalk N, et al. Three-dimensional automated breast US: facts and artifacts. Radiographics. 2019;39:913-31.

2 Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.
-33 van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.).

Como toda técnica, a ABUS possui algumas limitações. Primeiro, quanto ao tipo de mama: algumas são de difícil posicionamento, como as volumosas e com implantes. Segundo, quanto ao aparelho: não é possível avaliar algumas regiões, como a axilar, assim como existe uma maior dificuldade na região retroareolar. Terceiro, quanto à interpretação: existem alguns artefatos que são exclusivos desta técnica, assim como pode haver dificuldade na identificação de alguns sinais sutis de malignidade. Por isso, o treinamento e a experiência do médico, assim como dos técnicos e tecnólogos, desempenham papel importante na obtenção de imagens de alta qualidade, resultando em interpretação qualificada(11 Karst I, Henley C, Gottschalk N, et al. Three-dimensional automated breast US: facts and artifacts. Radiographics. 2019;39:913-31.

2 Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.
-33 van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.,77 Butler RS. Invited commentary: handheld or automated-staying focused on the goals of screening US, with response from Drs van Zelst and Mann. Radiographics. 2018;38:683-7.). Foi esse aspecto que Calas et al.(88 Calas MJG, Pereira FPA, Gonçalves LP, et al. Preliminary study of the technical limitations of automated breast ultrasound: from procedure to diagnosis. Radiol Bras. 2020;53:293-300.) demonstraram no artigo publicado neste número da Radiologia Brasileira. Em apenas 1,1% dos casos a interpretação do estudo foi inaceitável. Referiram também que em 19,5% dos casos houve alguma dificuldade relatada pela técnica, como mama rígida, mama grande, mama pequena, mama flácida, esterno elevado ou anatomia difícil. Também observaram que em 6,8% dos casos ocorreu alguma limitação relatada pelo médico avaliador, como falta de compressão, avaliação incompleta da região mamária e artefatos(88 Calas MJG, Pereira FPA, Gonçalves LP, et al. Preliminary study of the technical limitations of automated breast ultrasound: from procedure to diagnosis. Radiol Bras. 2020;53:293-300.).

Portanto, já estamos prontos para utilizar a ABUS na prática clínica no Brasil? A resposta não é fácil e nem simples. Isto porque para a introdução da ABUS é necessária uma mudança importante na forma como o exame é conduzido, ou seja, implica em mudança no papel desempenhado pelo médico durante o exame. No Brasil, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, a execução e a interpretação da ultrassonografia são atualmente realizadas pelo médico. E um dos objetivos da automação seria que a execução não dependa mais do médico, podendo ser realizada por técnicos ou tecnólogos treinados. Nesse contexto, o médico radiologista seria o responsável por supervisionar a realização do exame, garantir sua execução dentro dos parâmetros técnicos adequados, interpretar seus achados e fornecer o relatório médico, como na mamografia e na ressonância magnética. Seria o responsável legal pelo exame. Mas a pergunta é se temos profissionais qualificados para iniciar essa execução, já que muitas variáveis devem ser controladas durante o exame, como o ajuste da profundidade, do foco e do ganho, que devem ser otimizados individualmente, ou o reconhecimento de artefatos no curso da aquisição, de quando e como solucioná-los. Outra questão é se a paciente aceita se submeter ao exame sem a presença do médico, por estar habituada a realizá-lo dessa forma, isto em um momento de luta para reduzir os exames falso-positivos e a taxa de reconvocação no rastreamento. Outros fatores são o custo de aquisição de um equipamento de alta tecnologia, muito maior em comparação aos aparelhos tradicionais, a remuneração final do exame, que deverá incluir o técnico ou tecnólogo, além do médico, em um momento em que a ultrassonografia é um dos exames com a maior defasagem de remuneração na área da radiologia(33 van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.,77 Butler RS. Invited commentary: handheld or automated-staying focused on the goals of screening US, with response from Drs van Zelst and Mann. Radiographics. 2018;38:683-7.).

Enfim, a ABUS é uma técnica nova, em desenvolvimento, que tem o potencial de superar algumas limitações da ultrassonografia convencional, como a padronização da aquisição das imagens e a reprodutibilidade do exame. Entretanto, mais estudos e uma ampla discussão são necessários para definir questões referentes ao fluxo de trabalho e custo-efetividade, assim como seu papel no rastreamento complementar no Brasil.

REFERENCES

  • 1
    Karst I, Henley C, Gottschalk N, et al. Three-dimensional automated breast US: facts and artifacts. Radiographics. 2019;39:913-31.
  • 2
    Kim SH, Kim HH, Moon WK. Automated breast ultrasound screening for dense breasts. Korean J Radiol. 2020;21:15-24.
  • 3
    van Zelst JCM, Mann RM. Automated three-dimensional breast US for screening: technique, artifacts, and lesion characterization. Radiographics. 2018;38:663-83.
  • 4
    Brem RF, Tabár L, Duffy SW, et al. Assessing improvement in detection of breast cancer with three-dimensional automated breast US in women with dense breast tissue: the SomoInsight study. Radiology. 2015;274:663-73.
  • 5
    Ohuchi N, Suzuki A, Sobue T, et al. Sensitivity and specificity of mammography and adjunctive ultrasonography to screen for breast cancer in the Japan Strategic Anti-cancer Randomized Trial (J-START): a randomised controlled trial. Lancet. 2016;387:341-8.
  • 6
    Berg WA, Zhang Z, Lehrer D, et al. Detection of breast cancer with addition of annual screening ultrasound or a single screening MRI to mammography in women with elevated breast cancer risk. JAMA. 2012;307:1394-404.
  • 7
    Butler RS. Invited commentary: handheld or automated-staying focused on the goals of screening US, with response from Drs van Zelst and Mann. Radiographics. 2018;38:683-7.
  • 8
    Calas MJG, Pereira FPA, Gonçalves LP, et al. Preliminary study of the technical limitations of automated breast ultrasound: from procedure to diagnosis. Radiol Bras. 2020;53:293-300.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020
Publicação do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem Av. Paulista, 37 - 7º andar - conjunto 71, 01311-902 - São Paulo - SP, Tel.: +55 11 3372-4541, Fax: 3285-1690, Fax: +55 11 3285-1690 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: radiologiabrasileira@cbr.org.br