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Tolerância oral: uma nova perspectiva no tratamento de doenças autoimunes

Oral tolerance; Autoimune diseases; Gut mucosa; Antigens

Tolerância oral; Mucosa intestinal; Antígenos; Doença autoimune

Artigo de Revisão

Tolerância oral: uma nova perspectiva no tratamento de doenças autoimunes

V. Bueno, A. Pacheco-Silva

Trabalho realizado pela Disciplina de Nefrologia da Escola Paulista de Medicina ¾ UNIFESP, São Paulo, SP.

UNITERMOS: Tolerância oral. Mucosa intestinal. Antígenos. Doença autoimune.

KEY WORDS: Oral tolerance. Autoimune diseases. Gut mucosa. Antigens.

INTRODUÇÃO

As doenças autoimunes são causadas por uma resposta inadequada do sistema imune, que passa a reagir contra órgãos, tecidos ou células próprias, levando à sua destruição ou prejudicando sua função adequada. Existem mais de 40 doenças autoimunes identificadas com número considerável de pacientes acometidos1.

Várias drogas imunossupressoras têm sido utilizadas na tentativa de controle da progressão de doenças autoimunes, sendo que entre elas a ciclofosfamida tem ação principalmente sobre linfócitos B, e a ciclosporina A e a azatioprina sobre linfócitos T. Contudo, tais drogas necessitam de administração contínua, são pouco específicas, isto é, apresentam vários efeitos em outras células e tecidos e nem sempre conseguem bloquear a resposta imunológica indesejada. Além disso, o uso destas drogas leva a um risco aumentado de infecções oportunistas e aparecimento de tumores. Dessa forma, tem-se buscado formas de imunossupressão dirigidas exclusivamente ao sítio de ativação imune, e que utilize os mecanismos do próprio sistema imune do hospedeiro para bloquear uma resposta indesejada1.

Nas doenças autoimunes, onde nem sempre o antígeno alvo é conhecido e o processo pode ser mediado por linfócitos T e/ou B, a solução terapêutica ideal seria a indução de tolerância. Tolerância é a ausência de resposta imunológica agressora a um antígeno específico na ausência de imunossupressão contínua. Em modelos experimentais de doenças autoimunes, nas quais ocorre quebra da tolerância ao "self" (próprio), tem sido possível a regeneração da tolerância, ou seja, bloqueio da doença autoimune, através da administração de antígenos ou de peptídeos contra os quais a resposta imunológica ocorre.

Uma das formas de indução de tolerância é aquela que ocorre pela administração de antígenos por via oral e que é denominada tolerância oral. A tolerância oral foi descrita de maneira sistemática pela primeira vez em 1911 por Wells, como forma de prevenção da anafilaxia sistêmica em cobaios, através da alimentação prévia dos mesmos com proteína do ovo de galinha. Porém, desde 1829 Dakin havia descrito a utilização pelos índios americanos da via oral para prevenir dermatite alérgica a uma planta sensibilizante. Em 1946 Chase demonstrava que a dermatite de contato ao dinitroclorobenzeno ou cloreto de picrila poderia ser evitada pela administração oral dos mesmos. A partir de 1970 o mecanismo imunológico da tolerância oral passou a ser investigado através do uso de altas doses de proteínas externas como a ovalbumina2. Recentemente, a tolerância oral passou a ser utilizada terapeuticamente em modelos experimentais e humanos nas doenças autoimunes, ou ainda, com menor sucesso na tentativa de diminuir a rejeição à transplantes3.

A utilização da via oral para tolerização se baseia no fato de que o trato gastro-intestinal entra em contato diariamente com variados tipos de produtos alimentícios, bacterianos, parasitários, e químicos, e que para contornar esse constante estímulo antigênico seria estimulada a regulação negativa às respostas imunes sistêmicas4. Acredita-se que a tolerância oral seja um mecanismo regulatório e protetor do organismo contra a hipersensibilidade causada pelos compostos não totalmente digeridos e absorvidos através do intestino. Existem evidências de que proteínas intactas entram para a circulação após as refeições, e deficiências na indução de tolerância podem causar por exemplo nefrites mediadas por IgA. A tolerância oral não se desenvolve, contudo, em situações de antígenos que persistem e replicam na mucosa intestinal, ou frente a viroses patogênicas e bactérias que invadem diretamente esse ambiente5.

A indução e manutenção do estado de tolerância oral depende da natureza e dose do antígeno, da freqüência das exposições ao antígeno e intervalos entre as mesmas, experiências imunológicas prévias, idade em que o primeiro contato com o antígeno ocorre, e fatores genéticos6-8. Tem sido demonstrado em animais de experimentação que a ingestão durante a fase neonatal de antígenos como ovalbumina ou gamaglobulina humana pode resultar em imunização, enquanto se obtém tolerância com esses mesmos antígenos quando administrados oralmente na fase adulta9.

Apesar da possibilidade do uso da tolerância oral como agente modulador da resposta imune, os eventos imunológicos dela decorrentes não se encontram totalmente esclarecidos. Assim, esta revisão pretende abordar os principais elementos envolvidos no estabelecimento da tolerância oral, e os resultados obtidos com seu uso em modelos experimentais e clínicos para doenças autoimunes e transplantes.

Mecanismos imunológicos da tolerância

A tolerância imunológica aos antígenos próprios (self) ocorre principalmente no timo por mecanismos que destroem ou inativam linfócitos T autoreativos através de deleção clonal, anergia clonal ou supressão9. Tem sido relatado que da totalidade de linfócitos T imaturos provenientes da medula óssea que chegam ao timo, apenas 5% atingem a circulação periférica, sendo intensa a taxa de apoptose. As células que chegam a periferia são imunocompetentes contra antígenos estranhos, porém incapazes de desenvolver resposta imune contra seus próprios antígenos. Dessa forma, o desenvolvimento de processos autoimunes poderia estar vinculado a presença de linfócitos T autoreativos que não foram deletados no timo10, e a inativação dessas células na periferia seria a condição necessária para a manutenção da tolerância imunológica. Portanto, não é apenas a deleção intratímica dos linfócitos T autoreativos que é responsável pela tolerância ao próprio, sua manutenção provavelmente envolve a interação de diversos mecanismos imunológicos na periferia que operam continuamente11. A evolução da doença autoimune está relacionada à infiltração de células T do subtipo helper 1 (Th1) no sítio alvo com secreção de citocinas como interleucina-2 (IL-2), interferon-gama (IFN-g), além do aumento de expressão do receptor de IL-2 (IL-2R)12,13. Por outro lado, a supressão da doença autoimune está ligada à presença de células T do subtipo helper 2 (Th2) com secreção de interleucina 4 (IL-4) e fator de crescimento e transformação b (TGF-b)14,15.

O termo tolerância oral indica a incapacidade na montagem de resposta imune sistêmica a antígenos solúveis expostos previamente ao trato gastrointestinal, e apresentados posteriormente por imunização parenteral. É um fenômeno ativo que pode ser transferido para camundongos naive através de linfócitos T16-19. De acordo com o antígeno, a dose, e o protocolo de imunização utilizado, a tolerização pode ficar restrita ao compartimento de linfócitos T, já que a tolerização ao sistema de células B pode requerer doses de antígeno 100 a 1000 vezes maiores. A tolerização das células B não é completa, ocorrendo contudo um bloqueio na produção de anticorpos pela falha dos linfócitos T helper em fornecer as interações necessárias para a diferenciação e secreção em células B. Quando a tolerância por células T é quebrada, as células B são capazes de montar resposta efetiva por anticorpos20.

Tem se mostrado que um dos mecanismos primários associados a tolerância oral é a supressão ativa, sendo que mais recentemente a anergia clonal também tem sido proposta, havendo poucas evidências de que a tolerância oral ocorra por deleção clonal.

A supressão ativa é mediada por um clone de células regulatórias capazes de suprimir a resposta de células efetoras que reconhecem o mesmo antígeno. As células supressoras podem não reconhecer o mesmo epítopo antigênico, mas devem reconhecer um componente da estimulação antigênica e assim interferir com a resposta ao antígeno21. A geração do mecanismo de supressão parece estar ligada a inibição da reação de hipersensibilidade tardia (DTH) que ocorre após a ingestão da proteína tolerógena6. A supressão pode ser transferida pelas células regulatórias T CD4+ a outro animal, e apesar das células T CD8+ não apresentarem efeitos supressores diretos, elas são requeridas para a expressão de tolerância dependente de CD4+21. Em tolerância oral, a supressão (Fig.1) é obtida pela administração de baixas doses do antígeno, que induz a ativação de vias supressivas dependentes de linfócitos T helper do subtipo 2 (Th2) e fator de crescimento de transformação b (TGF-b)14,15.


Na supressão cruzada, linfócitos respondendo à imunização específica podem sofrer imunossupressão inespecífica por citocinas liberadas a partir de células regulatórias (supressoras) originárias de tolerização prévia a outro antígeno. Esse fenômeno sugere mecanismo de supressão cruzada, já que a exposição parenteral a um imunógeno tolerizado pode ocasionar alterações no sistema imune como uma inibição das respostas imunes a um imunógeno não relacionado. Em ratos tolerizados pela via oral à Ova (Ovalbumina), a injeção de tal substância foi capaz de inibir a imunização encefalitogênica com MBP (proteína básica de mielina)22. A supressão cruzada é transferível não necessitando que o autoantígeno alvo seja utilizado, e sim que a proteína administrada seja capaz de induzir células Th2 à produção de citocinas supressoras no órgão alvo23.

A anergia clonal foi descrita por Lamb et al21, e corresponde a um estado de não resposta pelos linfócitos T caracterizado por ausência de proliferação, e da produção de interleucina-2 (IL-2), com expressão diminuída do receptor dessa interleucina (IL-2R)9. A anergia parece estar relacionada à estimulação do receptor de antígeno (1o sinal) na ausência de sinais coestimulatórios adequados (2o sinal)21, o que impediria a progressão da resposta imune. Células epiteliais intestinais humanas normais não expressam as moléculas coestimulatórias B7.1 e B7.2 ou ICAM-1, que funcionam como sinalizadores secundários durante o processo de ativação da célula T24, podendo assim através do processo de anergia induzir a tolerização. Na tolerância oral, a anergia (Fig.1) é causada pela administração de altas doses de antígeno, culminando com paralisia das células T capazes de reação a tais antígenos, e inibição da imunidade humoral6. Em ratos, o uso oral de altas doses de Ova induz tolerância por afetar a resposta imune mediada por anticorpos. Tal fato pode ser confirmado pela não reversão da tolerância oral à Ova (altas doses) após administração de ciclofosfamida, uma vez que a ação dessa droga se dá na resposta imune mediada por células. As características principais da anergia são incapacidade de transferência dessa condição para outro animal, e a restauração das funções efetoras pelas células anérgicas quando em presença de IL-29,14.

Assim, a tolerância periférica induzida por ingestão de antígenos pode ser mediada por anergia e supressão, sendo que a dose do antígeno parece ser a responsável pelo mecanismo estabelecido, associando-se também ao evento a secreção de citocinas, e o nível de tolerância periférica14. É postulado que a indução de supressão ativa após a ingestão de baixa dose de antígeno ocorre primariamente no tecido linfóide do intestino, enquanto a anergia associada com alta dose de antígeno é gerada tanto sistêmica quanto localmente. O mecanismo pelo qual os antígenos administrados por via oral induzem tolerância relaciona-se provavelmente com a interação dos antígenos proteícos e o tecido linfóide associado ao intestino e geração subsequente de células T regulatórias ou supressoras10.

Tecidos envolvidos na indução de tolerância oral

Devido a estrita relação entre os fenômenos "sistêmicos" e "ligados às mucosas" é adequada a descrição destes últimos para o entendimento do processo de tolerância oral.

Sistema imune comum de mucosa

O sistema imune comum de mucosa consiste de sítios indutivos de IgA, via de migração circulatória celular, e sítios efetores de IgA. Para o homing dos linfócitos B sensibilizados (IgA+) do tecido linfóide associado ao sistema gastrointestinal (GALT) aos sítios efetores de IgA, os linfonodos mesentéricos, os ductos toráxicos e a circulação do sangue periférico representam uma via de migração circulatória no sistema imune comum de mucosa. Sítios efetores de IgA compreendem tecidos e glândulas que formam as secreções externas que banham as membranas mucosas do corpo (regiões oral e intestinal, trato respiratório superior e genitourinário e tecidos glandulares associados), sendo que através de estudos de imunização oral tem se verificado que as glândulas salivares são o principal tecido efetor de IgA na região oral25.

Tecido linfóide associado à mucosa (MALT)

O tecido linfóide associado à mucosa (MALT) é encontrado no sistema digestivo (GALT), e também no respiratório (BALT)23. Linfócitos ativados na mucosa intestinal migram aos linfonodos mesentéricos e linfáticos, entram na circulação sistêmica, voltando para a lâmina própria intestinal e outros sítios como trato respiratório e trato genital feminino, além do seio materno durante a gestação e lactação. O sistema de homing está associado a moléculas de adesão em linfócitos e seus recíprocos ligantes nas mucosas5.

Tecido linfóide associado ao trato gastro intestinal (GALT)

É formado por placas de Peyer, linfócitos intraepiteliais nos perivilos, e linfócitos da lâmina própria23.As células do intestino capazes de apresentação do antígeno (APCs) incluem os macrófagos, células dendríticas nas Placas de Peyer e lâmina própria, linfócitos B, e células epiteliais, sendo que o complexo principal de histocompatibilidade (MHC) classe II é expresso constitutivamente no epitélio do intestino delgado9.

Quando ministrados em baixas doses, os antígenos estimulam o tecido linfóide associado ao intestino (GALT) e geram preferenciamente resposta imune do tipo Th29. As células regulatórias geradas por esse fenômeno (supressão) agem pela secreção de citocinas supressoras como TGF-b e interleucina-4 (IL-4). Essas células regulatórias específicas ao antígeno migram para órgãos linfóides e podem inibir a geração de células efetoras, liberando no órgão alvo citocinas capazes de suprimir a doença14. Por outro lado, altas doses de antígeno administradas oralmente resultam na sua passagem pelo intestino, com posterior apresentação sistêmica. Nessa situação, as células com função Th1 apresentam ausência de resposta imune ocasionando anergia clonal9.

Placas de Peyer (PP)

É o tecido linfóide mais organizado do intestino, com distribuição irregular em humanos ao longo do intestino delgado, apresentando maior ocorrência de folículos no íleo do que no jejuno17. Constituem um centro germinativo de linfócitos B, sendo fonte de células precursoras, reguladoras9, e produtoras de IgA9, 17, 26, ocorrendo no íleo a promoção de hipermutação independente de antígeno para os genes das imunoglobulinas. As células precursoras submetidas à estímulação antígeno-específica podem migrar, multiplicar e diferenciar, além de repopular tecidos de mucosa distantes através do sistema imune comum de mucosa.

As subpopulações de células T encontradas nas PP são helper (Th), citotóxicas (TCTL), supressoras (Ts), além de células acessórias (macrófagos e células dendríticas)9,25. As células T que populam a lâmina própria e a região intraepitelial do intestino parecem derivar também das placas de Peyer5. Os linfócitos T da cúpula são predominantemente CD4+ com os fenótipos Th1 e Th2, já as células parafoliculares são tanto CD4+ como CD8+.

Após a administração de antígenos via oral, é possível encontrar células supressoras nas PP, com posterior migração sistêmica10, 27, tendo sido demonstrada a transferência de tolerância através de células das PP de animais tolerizados para animais naive9. As PP são revestidas por células M, que constituem o maior sítio de entrada de antígenos nos folículos linfóides da mucosa, principalmente os antígenos particulados5. As células M apesar de não apresentarem MHC classe II, e serem incapazes de apresentar antígenos às células T CD4+, têm a superfície especializada para endocitose24 podendo processar parcialmente o antígeno, e entregá-lo às APCs profissionais das PP6, 23, 26.

Linfócitos intra epiteliais (IELs)

Os IELS são encontrados em superfícies basolaterais das células epiteliais, sendo em torno de 80% CD8+ em camundongos9, 28, 29. As células T CD8+ de camundongos que expressam principalmente receptor de célula T (TCR) do tipo gd, são originadas provavelmente na medula óssea e têm desenvolvimento no epitélio intestinal, sem influência tímica29, sendo consideradas como as principais células efetoras na imunidade de mucosa28, 29.

Os linfócitos intraepiteliais em humanos, são predominantemente do fenótipo CD8+ e TCR do tipo ab, sendo que apenas 5 a 10% das células apresentam o TCR da forma gd5. Esses linfócitos T apresentam moléculas de superfície que parecem dirigir o homing e ancoração na região intraepitelial30.

Não existem evidências de que as IELs tenham papel na indução de tolerância oral, e as tentativas de transferência de tolerância com IELs não foram bem sucedidas9 ocorrendo a restauração da resposta imunológica por anticorpos em animais previamente tolerizados 28, 29.

Lâmina própria

Na lâmina própria, a maioria dos linfócitos T tem o fenótipo CD4+, são geralmente restritas a moléculas MHC classe II, apresentando o TCR do tipo ab e tendo função helper para respostas mediadas por anticorpos e células T9.

Protocolos experimentais de tolerização oral

Encefalomielite autoimune experimental (EAE)

Modelo de doença autoimune na qual a bainha do axônio do SNC é destruída pelas células T infiltrantes específicas para os componentes da proteína básica de mielina (MBP). A injeção de MBP em ratos causa paralisia similar a desordem humana na esclerose múltipla. Em animais controle (não-tolerizados), no pico da doença encontra-se no cérebro a infiltração perivascular com células mononucleares ativadas secretando citocinas como IL-1, IL-2, TNF-a, IFN-g, IL-6 e IL-8, e ausência de TGF-b, IL-4 e prostaglandinas. Em ratos, a recuperação espontânea da doença ocorre simultaneamente com a secreção de IL-4, IL-10, e TGF-b113. Ratos Lewis (Fig.2) que recebem MBP de cobaio por via oral apresentam supressão da EAE quando injetados com MBP6. Esse processo mediado por células T CD8+ específicas ao antígeno com secreção de TGF-b, resulta na redução do infiltrado e regulação negativa das citocinas inflamatórias9, 10, 31, além de diminuição do anticorpo específico para MBP no soro12.


Artrite por colágeno e adjuvante

Os modelos experimentais de indução da doença em ratos e camundongos são obtidos pela injeção de colágeno tipo II, pristona, e adjuvante32. Tem sido evidenciada a importância do colágeno II como autoantígeno no desenvolvimento da artrite reumatóide. A resposta imune é mediada por células Th1 com secreção de IL-2, IFN-g, e TNF-a. A supressão da artrite experimental tem sido obtida por ingestão do colágeno tipo II em altas doses, o que sugere o fenômeno de supressão cruzada ao invés de anergia clonal, já que a supressão ativa pode ser perdida em altas doses12. O uso oral do extrato de Escherichia coli, rico em glicoproteína (Om-89), tem causado a melhora dos parâmetros clínicos da poliartrite induzida em ratos. Ocorre diminuição do inchaço da pata, além do aumento da migração das células CD8+ supressoras (oriundas das placas de Peyer) para o tecido alvo e aumento da produção de prostaglandinas E2 33.

Uveíte

O autoantígeno retinal S-Ag (55 kDa) presente na região fotoreceptora da retina, e a proteína ligante do fotoreceptor retinóide IRBP (140 kDa) utilizados oralmente em ratos e camundongos previnem ou diminuem a inflamação ocular na dependência do regime de administração34, 35. A uveíte experimental é mediada por células Th1, surgindo com o passar do tempo células Th2 provavelmente na tentativa de diminuição da resposta inflamatória34. A ingestão dos fragmentos M e N (uveitogênicos) de S-Ag diminui a uveíte. In vitro essa supressão mostrou ser dependente de células T CD8+, e enquanto baixas doses do antígeno favorecem a supressão, altas doses induzem não resposta ou anergia12.

Diabetes

O diabetes autoimune insulino dependente (IDDM) é uma doença para a qual ainda não se encontra totalmente esclarecido o autoantígeno. Camundongos NOD desenvolvem espontaneamente a diabetes autoimune que é utilizada como modelo da doença humana. Em camundongos a doença parece ser mediada por células Th1, sendo que a administração sistêmica de IL-4 (Th2) tem ação supressora36. Camundongos NOD apresentam infiltração densa de células mononucleares com produção de IFN-g, TNF-a, IL-2 e IL-2R (Th1). O uso oral de insulina eqüina nesses animais diminui IL-2R e suprime a produção de IL-2, IFN-g TNF-a, com surgimento de IL-4, IL-10, TGF-b e PGE (Th2). A administração oral de insulina suína nesse modelo experimental também diminui a severidade da infiltração linfocítica, ocorrendo aumento de IL-4 nas ilhotas dos animais tratados. A administração oral dos peptídeos de insulina como a cadeia B, ou a descarboxilase glutamato (GAD) suprime in vitro a proliferação das células provenientes de animais diabéticos. Linfócitos T do baço de animais tratados oralmente com insulina são capazes de transferir a proteção contra diabetes para animais naive9,12,36.

Transplante

A ingestão pelo receptor de esplenócitos do doador previne a sensibilização a posterior enxerto de pele, e transforma a rejeição acelerada de alotransplantes cardíacos em forma aguda3, com aumento da IL-4 no enxerto após a ingestão do aloantígeno9. A resposta na reação mista de linfócitos in vitro e as respostas DTH foram suprimidas após a administração oral do antígeno9.

Protocolos clínicos de tolerância oral

Protocolos clínicos de tolerância oral têm sido utilizados para o tratamento da esclerose múltipla, artrite reumatóide, uveíte, e diabetes melito dependente de insulina (IDDM). A esclerose múltipla é uma doença crônica do sistema nervoso central com destruição da mielina, sendo mediada presumivelmente por células T do subtipo Th1. O uso oral de MBP bovina (epitopo imunodominante 84-102 é igual em humanos e bovinos) em 15 pacientes na dose diária de 300mg reduziu os ataques agudos em 50% no período de um ano sem causar toxicidade. Após dois anos do referido tratamento os resultados se mantiveram, não sendo observada sensibilização dos pacientes à MBP, além do que foi encontrado menor nível de células circulantes reativas à MBP e surgimento de células secretórias de TGF-b na circulação 12,13,27,31.

A artrite reumatóide em humanos é de etiologia desconhecida, pouco responsiva às formas disponíveis de terapia, e parece estar relacionada à presença do antígeno principal de histocompatibilidade HLA-DR437,38. O uso por três meses de colágeno tipo II de frango num grupo de 10 pacientes dos quais foi retirada a imunossupressão demonstrou ausência de toxicidade e resultados satisfatórios, onde um paciente apresentou resolução completa do quadro12. O protocolo foi expandido para 30 pacientes tratados (100mg/dia -1o mês e 500mg/dia - 2o e 3o meses) e 30 placebos. Os pacientes tratados tiveram diminuição significante da inflamação nas juntas e da dor, sendo que quatro apresentaram resolução completa do quadro12,37,38,39. Contudo, o término do protocolo (após três meses) evidenciou a necessidade da administração adicional do agente tolerógeno para a manutenção dos resultados obtidos37.

O tratamento da uveíte em dois pacientes com 30mg/dia de antígeno S-retinal em regime de três vezes por semana por 18 meses levou à diminuição do uso de imunossupressão ou não uso da mesma34.

Para a IDDM, o uso da insulina suína por via oral, se encontra em andamento em protocolos randomizados9, 31. Pelos resultados já obtidos, a tolerância oral tem demonstrado ser uma poderosa estratégia de supressão do sistema imune no controle das doenças autoimunes. Certamente, a caracterização do tipo de célula envolvido, citocinas ou fatores secretados, assim como o papel do sistema de mucosa favorecerá a aplicação da tolerância oral nas demais doenças autoimunes atualmente conhecidas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 1999
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