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Determinantes precoces das doenças cardiovasculares no curso da vida: uma mudança de paradigma para a prevenção

EDITORIAL

Determinantes precoces das doenças cardiovasculares no curso da vida: uma mudança de paradigma para a prevenção

Lucia Campos Pellanda

Doutora em Cardiologia; Especialista em Pediatria; Coordenadora do PPG Ciências da Saúde: Cardiologia, Fundação Universitária de Cardiologia, RS; Professora do Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), RS, Brasil

Correspondência Correspondência: Avenida Princesa Isabel, 370 Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90620-001 lupellanda@cardiol.br

Recentemente, tem crescido na literatura brasileira o número de publicações investigando as origens da aterosclerose e seus fatores de risco desde o início do curso da vida. Essa tendência reflete uma nova forma de pensar as doenças cardiovasculares como resultantes de complexas interações entre múltiplos fatores ao longo de todo o curso da vida de um indivíduo, e não apenas como resultado de herança genética e comportamentos da vida adulta. Esse modelo inclui o estudo de possíveis mecanismos biológicos, comportamentais, psicológicos e sociais ao longo da vida, mas também através das gerações. Além disso, in-corpora o conceito de que estímulos nocivos, ocorrendo durante períodos considerados críticos para o desenvolvimento, podem levar a modificações permanentes do metabolismo e estrutura do organismo1.

O primeiro período crítico dentro desse modelo seria a fase intrauterina. Durante esse período, estímulos nocivos como, por exemplo, a desnutrição materna poderiam provocar modificações permanentes no metabolismo fetal. Essas modificações, dependendo do ambiente que o indivíduo vai enfrentar no ambiente extrauterino, podem predispor ao desenvolvimento de doenças crônicas na vida adulta2,3, ou até mesmo ainda durante a infância e a adolescência4-6.

Após a fase intrauterina, o período neonatal, a infância e a adolescência representam os próximos períodos críticos. Com relação às doenças cardiovasculares, alterações decorrentes de aterosclerose podem ser identificadas muito antes do surgimento de sintomas da doença. Estudos de autópsias demonstram correlação entre a presença de lesões coronarianas e fatores de risco como dislipidemias, hipertensão arterial e tabagismo, em crianças e adultos jovens, ressaltando a necessidade de buscar, em fases cada vez mais precoces da vida, a origem da doença7. Os estilos de vida causadores de aterosclerose podem iniciar ainda na infância8, o que tem resultado no aumento da prevalência dos fatores de risco tradicionais nessa faixa etária, com potenciais efeitos sobre a prevalência de doenças crônicas em um futuro não muito distante.

A grande importância dessa mudança de paradigma reside no surgimento de novas oportunidades de prevenção. As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no Brasil, e a OMS prevê um grande aumento global durante a próxima década9. Pela primeira vez na história da humanidade, com exceção de épocas de guerras, a geração atual viverá menos que a geração de seus pais10. Essa triste realidade pode ser atribuída ao aumento da prevalência de fatores de risco, principalmente a obesidade. Assim, a abordagem do curso da vida permite pensar na prevenção como um processo que se inicia ainda intraútero, com a nutrição materna e um cuidado pré-natal adequados, e continua ao longo da infância e da adolescência, com o desenvolvimento de hábitos saudáveis e o envolvimento de toda a família na prevenção da instalação dos fatores de risco. Intervenções nessas fases mais precoces da vida podem apresentar um impacto significativo no futuro.

Pode-se levantar a hipótese de que as perspectivas para o futuro podem ser ainda mais sombrias se considerarmos as diferenças de prevalências de fatores de risco cardiovascular durante a infância entre a geração que hoje é adulta e a prevalência desses mesmos fatores nas crianças de hoje, adultos de amanhã11-13. As evidências demonstram que as crianças brasileiras hoje apresentam níveis preocupantes de obesidade14-19, hipertensão20,21, sedentarismo22,23, dislipidemias24, hábitos alimentares inadequados25 e resistência à insulina26, em geral com vários fatores de risco presentes simultaneamente.

Há um grande grupo de pesquisadores e profissionais considerando essas questões em nosso país, o que se reflete no aumento da produção científica qualificada na área. Agora é o momento de juntar forças e focar na identificação de marcadores precoces de risco27 para a elaboração de estratégias preventivas mais eficazes, que impeçam as consequências de uma epidemia de doenças crônicas em nosso futuro próximo28.

©2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.

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  • Correspondência:

    Avenida Princesa Isabel, 370
    Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90620-001
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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