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Tino comercial e mercadologia

ARTIGOS

Tino comercial e mercadologia

Bruno M. Guerreiro

Professor-Adjunto e Chefe do Departamento de Mercadologia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo

"No comércio, a ocasião é tudo. Quem não prende o sucesso segurando-se à sua crina, perde a oportunidade de enriquecer."

BALZAC

Para os homens de emprêsa do passado a solução de seus problemas de venda dependia, antes de mais nada, de seu "tino comercial". Por tino comercial poderíamos compreender sua capacidade de avaliar as oportunidades que se lhes apresentavam e sua habilidade de desenvolver e usar os meios para melhor aproveitamento dessas oportunidades. Entre os homens de emprêsa de hoje muitos são os que atingem o sucesso contando para isso apenas com o seu tino comercial. É, porém, crescente o número daqueles que melhor aproveitam seu tino comercial com o auxílio da Mercadologia.

Para fixarmos a maneira pela qual a Mercadologia pode contribuir para que o homem de emprêsa alcance da maneira mais eficiente seus objetivos de vendas e, ao mesmo tempo, examinarmos os argumentos daqueles que ao ouvirem falar de Mercadologia dizem não ser ela uma novidade, confundindo-a com o que se considera tino comercial, examinaremos neste artigo um processo de mercadização do comêço do século XIX, extraído da obra "História da Grandeza e César Birotteau", de Honoré de Balzac, escrita em 1837,

Para melhor esclarecimento do que vai narrado a seguir, lembremo-nos de que são acontecimentos passados quase cem anos antes do aparecimento da palavra "Marketing (Mercadologia) nos Estados Unidos, denominando uma área específica de estudos.

César Birotteau e o Lançamento de Produtos

" César Birotteau era o primeiro caixeiro da Rainha das Rosas. Tendo adquirido as existências da Rainha das Rosas a transportou para uma bela casa perto da Praça Vendôme. Durante o primeiro ano, César Birotteau pôs a mulher a par da venda e das particularidades das perfumarias, tarefa na qual se acertou admiravelmente bem: parecia ter sido criada e trazida ao mundo para tratar com os fregueses. Terminado o ano, o balanço apavorou o ambicioso perfumista. Resolveu, então, alcançar a fortuna mais ràpidamente e a princípio teve a idéia de acrescentar a fabricação à venda a varejo. Alugou um galpão com um terreno no bairro do Templo e mandou pintar uma tabuleta com letras grandes: FÁBRICA DE CÉSAR BIROTTEAU. Subornou e levou para sua companhia um operário de Grasse, com quem constituiu uma sociedade para a fabricação de sabonetes, essência e água-de-colônia. Essa sociedade não durou mais de seis meses e terminou com perdas que êle suportou sozinho."

Lendo ABDECKER ou a arte de conservar a beleza, pretenso livro árabe, escrito por um médico do século XVIII, teve César Birotteau a idéia de consultar o sábio Vauquelin,

"a quem pediu com tôda a naturalidade instruções sôbre a maneira de conseguir um duplo cosmético que produzisse efeitos apropriados aos diversos tipos da epiderme humana. Vauquelin protegeu o perfumista e permitiu-lhe que se intitulasse inventor de uma pomada para branquear as mãos cuja composição lhe indicou".

César Birotteau deu a êsse cosmético o nome de DUPLA POMADA DAS SULTANAS.

"A fim de completar a obra, aplicou o processo da pomada para as mãos numa água para o rosto que denominou ÁGUA CARMINATIVA. Imitou, na sua indústria, o sistema do Pequeno Marinheiro

"A Pomada das Sultanas e a Água Carminativa foram introduzidas no mundo galante e comercial por meio de cartazes coloridos encimados por estas palavras: APROVADAS PELO INSTITUTO."

"Essa fórmula, empregada pela primeira vez, teve um efeito mágico. Não só a França, mas o continente inteiro foi coberto de cartazes amarelos, vermelhos e azuis pelo soberano da Rainha das Rosas, que tinha em depósito, fornecia e fabricava, a preços módicos, tudo quanto dizia respeito ao ramo. Numa época em que só se falava no Oriente, dar a um cosmético o nome de Pomada das Sultanas, prevendo a magia que exerceriam tais palavras num país onde o homem tem tanta vontade de ser sultão como a mulher de ser sultana, era uma inspiração que tanto podia ocorrer a um homem vulgar como a um homem inteligente; mas o público, julgando, como sempre, pelos resultados, passou a considerar César Birotteau um homem superior, comercialmente falando, tanto mais que êle mesmo redigiu um prospecto cuja ridícula fraseologia constituiu um elemento de sucesso, pois, na França, o povo somente acha graça das coisas e dos homens que o interessam, e ninguém se interessa por aquilo que não triunfa. Eis o prospecto:

DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUA CARMINATIVA

de César Birotteau

DESCOBERTA MARAVILHOSA

aprovada pelo Instituto de França!

Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele vinham sendo geralmente desejadas pelos dois sexos na Europa. Após ter consagrado longas vigílias ao estudo do derma e da epiderme nos dois sexos, que, tanto um como o outro, dão, com tôda razão, o maior aprêço ã suavidade, ã maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o Sr. César Birotteau, perfumista largamente conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma água, justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes e pelas elegantes de Paris. Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis propriedades para agir sobre a pele, sem enrugá-la prematuramente, conseqüência infalível das drogas que inconsideradamente têm sido usadas até agora e inventadas por ignorantes ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação dos temperamentos, que se dividem em duas grandes categorias indicadas pela côr da pomada e da água, que são côr-de-rosa para o derma e a epiderme das pessoas de constituição linfática e branca para as pessoas de temperamento sanguíneo.

Esta pomada é denominada POMADA DAS SULTANAS porque já fôra descoberta por um médico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo com o parscer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da Pomada.

Esta preciosa pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as sardas mais rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores das mãos de que tanto se queixam as mulheres e os homens.

A ÁGUA CARMINATIVA faz desaparecer essas pequenas espinhas que em certos momentos acometem inopinadamente as mulheres e contrariam seus projetos de ir a um baile. Refresca e reaviva as côres, abrindo ou fechando os poros segundos as exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua propriedade de deter os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, já a denominaram de A AMIGA DA BELEZA.

A água de colônia é pura e simplesmente um perfume banal sem eficácia especial, ao passo que a DUPLA POMADA DAS SULTANAS e a ÁGUA CARMINATIVA são duas composições operantes, duma fôrça motriz que age, sem perigo, sôbre as funções internas, secundando-as; seus odores, essencialmente balsâmicos e dotados duma faculdade recreativa, alegram admiravelmente o coração e o cérebro, dão encanto às idéias e as estimulam; são tão admiráveis por seu mérito como por sua simplicidade; enfim, constituem um atrativo a mais oferecido às mulheres e um meio de sedução colocado à disposição dos homens.

O uso diário de Agua dissipa a ardência causada pela navalha; preserva, igualmente, os lábios de grêtas e os mantém vermelhos; seu emprego continuado apaga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tom à pele. Êsses resultados traduzem sempre, no homem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o que tende a libertar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessa terrível moléstia. Finalmente, a ÁGUA CARMINATIVA, que pode ser empregada pelas mulheres em todos os seus cuidados da pele, evita as afecções cutâneas, sem prejudicar a transpiração dos tecidos, ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludado persistente.

Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos ao Sr. César Birotteau, sucessor de Ragon, antigo perfumista da rainha Maria Antonieta, na RAINHA DAS ROSAS, Rua São Honorato, em Paris, próximo à Praça Vendóme.

O preço do pote de pomada é de três francos e o do vidro de água de seis francos.

O Sr. César Birotteau, a fim de evitar as imitações, previne o público de que a Pomada vem envolta em papel com a sua assinatura e que os vidros trazem seu monograma gravado."

"... O êxito foi devido, sem que César Birotteau desse por isso, a Constança, que o aconselhou a enviar a Água Carminativa e a Pomada das Sultanas em caixas a todos os perfumistas da França, e do estrangeiro, oferecendo-lhes um lucro de trinta por cento se

quisessem adquirir os dois artigos em grosas.

A Pomada e a Água eram, realmente, melhores do que os cosméticos similares e seduziam os ignorantes pela distinção estabelecida entre os temperamentos: os quinhentos perfumistas da França, atraídos pelo lucro, passaram a adquirir anualmente de César Birotteau mais de trezentas dúzias de Pomada e de Água cada um e essa procura lhe proporcionou lucros que, embora restritos quanto ao preço do artigo, foram enormes devido à quantidade das compras."

ANÁLISE DO CASO DA POMADA E DA ÁGUA CARMINATIVA

A leitura dos processos de mercadização de César Birotteau nos mostra que em 1837 já havia, por parte de personagens reais, ou no gênio criativo de Balzac, a compreensão daqueles aspectos essenciais que devem ser integrados para a obtenção do sucesso nas vendas.

No lançamento da Dupla Pomada das Sultanas e da Água Carminativa, César Birotteau:

a) remove sua loja para um local mais apropriado;

b) decide entrar no setor industrial integrando verticalmente seu negócio;

c) solicita a um técnico a criação de um produto adequado para satisfazer uma necessidade do consumidor;

d) apresenta o produto sob duas formas para fins diversos;

e) adota o uso de cartazes promocionais em sua loja;

f) dá nomes sugestivos aos produtos e cria suas marcas;

g) utiliza cartazes coloridos para lançar seus produtos em tôda a Europa;

h) usa a técnica do testemunho na fórmula "Aprovadas pelo Instituto", como garantia da qualidade do produto;

i) elabora prospectos em que dramatiza as vantagens de seu produto;

j) oferece boas margens aos seus possíveis revendedores com a condição de comprarem em grandes quantidades

Contudo, é no segundo caso narrado na novela de Balzac, ou seja, no lançamento do Óleo Cefálico, que se apresentam aspectos ainda mais fascinantes, como veremos a seguir.

POPINOT E O LANÇAMENTO DO ÓLEO CEFÁLICO

Prossegue César Birotteau:

"... Popinot, és valente? - disse, fitando o empregado. - Tens coragem de lutar com uma coisa mais forte do que tu, de combater corpo a corpo?...

- Sim, senhor.

- De sustentar um combate longo, perigoso?

- De que se trata?

- De derrubar o Óleo de Macassar! - Disse Birotteau, erguendo-se como um herói de Plutarco. - Não nos iludamos, o inimigo é forte, sólido, temível. O Óleo de Macassar foi lançado com muita inteligência. A concepção é engenhosa: as garrafinhas quadrangulares têm a seu favor a originalidade da forma. Para o meu projeto pensei em fazer as nossas triangulares! Mas, depois de muitas reflexões, acho que preferiria umas garrafinhas de vidro muito fino cobertas de uma cestinha de vime; teriam uma aparência misteriosa e o consumidor gosta de tudo que o intriga.

- É muito caro - disse Popinot. - Seria preciso fazer tudo pelo menor preço possível, a fim de dar uma grande margem de lucro aos varejistas.

- Bem, meu rapaz, aqui estão os verdadeiros princípios. Pensa bem nisto, o Óleo de Macassar se defenderá! É atraente, tem um nome sedutor. Apresentam-no como uma importação estrangeira e nós teremos a infelicidade de ser nacionais. Então, Popinot, tens coragem de matar o Macassar? De início terás de levar vantagem nas expedições para ultramar, pois parece que o Macassar provém realmente das índias: será mais natural, assim, enviar o produto francês para os indianos do que mandar-lhes de volta uma coisa que êles têm fama de nos fornecer. Toma conta dos mascates! É preciso lutar no estrangeiro, lutar nos departamentos! Ora, o Óleo de Macassar foi muito bem introduzido, não nos devemos iludir a respeito de sua fôrça, já está lançado, o público o conhece."

... - Inventei, Popinot, um óleo para estimular o crescimento dos cabelos, reavivar o couro cabeludo e manter a côr das cabeleiras masculinas e femininas. Essa essência não terá menor êxito do que a minha pomada e a minha água: Serás tu, meu filho, que lançarás meu óleo comageno. Lembrei-me de ti para fundar uma casa comercial de alta drogaria, na Rua dos Lombardos. Depois do óleo comageno tentaremos a essência de baunilha, o álcool de hortelão. Numa palavra, entraremos no comércio de drogas revolucionando-o, vendendo produtos concentrados em vez de vendê-los ao natural."

Alguns tempos depois, Popinot contrata Gaudissart,

"... Vou tomar conta de todos os lojistas da França e de Navarra. Oh! tenho uma idéia! Ia partir, mas resolvo ficar, vou pegar comissões do comércio parisiense.

- Para quê?

- Para estrangular teus rivais, inocente! De posse das tuas comissões, posso deixar por terra os seus pérfidos cosméticos, falando e ocupando-me únicamente do teu. Um golpe notável de viajante. Irei à Itália, à Alemanha, à Inglaterra! Carrego comigo os cartazes em todas as línguas, faço-os afixar em tôda a parte, nas aldeias, à porta das igrejas, em todos os lugares que conheço nas cidades da provincia!"

Popinot narra, então a César Birotteau suas atividades:

"... Temos conosco o ilustre Gaudissart, estamos milionários! exclamou o perfumista. Temos ainda outra coisa! disse o venturoso caixeiro, tirando do bôlso uma garrafinha achatada, facetada em forma de abóbora. - Encontrei dez mil frascos iguais a êste modêlo, já fabricados, prontos para entrega, a... quatro sous... com seis meses de prazo.

- Quatro sous! Seis meses de prazo! Uma forma original! Sabes que podemos lançar o óleo a três francos e ganhar trinta sous, deixando um lucro de vinte para os varejistas? A três francos o Óleo Cesariano! O Óleo de Macassar custa o dôbro. Gaudissart está metido nisto, teremos cem mil francos por ano, pois perceberemos de todas as cabeças que se prezam doze frascos por ano, dezoito francos! Digamos dezoito mil cabeças, são cento e oitenta mil francos!"

Mais tarde, Gaudissart contrata Finot

"... O impaciente Gaudissart tomou o manuscrito e leu em voz alta e com ênfase: Óleo Cefálico.

- Eu preferiria Óleo Cesariano - disse Popinot.

- Meu amigo - disse Gaudissart - não conhece a gente da província: há uma intervenção cirúrgica que tem êsse nome. Essa gente é tão estúpida que iria pensar que o teu óleo fôsse para apressar os partos; e daí para levá-la até aos cabelos teríamos muito que fazer."

Gaudissart lê, então, o manuscrito:

"Medalha de Ouro na Exposição de 1824

Óleo Cefálico

Patentes de Invenção e de Aperfeiçoamento

Nenhum cosmético pode fazer nascer cabelos, do mesmo modo que nenhum preparado químico os tinge sem perigo para a sede da inteligência. A ciência declarou recentemente que os cabelos são uma substância morta e que agente algum pode impedi-los de cair nem de embranquecer. Para prevenir a Xerasia e a Calvície, basta preservar o bulbo de onde êles saem de tôda a influência exterior atmosférica e manter na cabeça o calor que lhe é próprio. O Óleo Cefálico, baseado nesses princípios estabelecidos pela Academia das Ciências, proporciona êsse resultado importante a que recorriam os antigos, os romanos, os gregos e as nações do Norte para os quais a cabeleira era preciosa. Sábias pesquisas demonstraram que os nobres que antigamente se distinguiam pelo comprimento dos cabelos, não empregavam outro meio; acontece, porém, que a sua técnica de preparo, habilmente redescoberta por A. Popinot, inventor do Óleo Cefálico, fora perdida.

Conservar em vez de tentar um estímulo impossível ou nocivo sobre a derme que contém os bulbos, tal é, pois, a finalidade do Óleo Cefálico. Com efeito, ésse Óleo, que se opõe à esfoliação das películas, que exala um odor suave e que, pelas substâncias que o compõe, entre as quais figura, como elemento principal, a essência de avelãs, impede qualquer influência do ar exterior sobre as cabeças, ao mesmo tempo que evita os resfriados, a coriza e todas as afecções dolorosas do encéfalo, mantendo a sua temperatura interna. Desta maneira, os bulbos que contêm os líquidos geradores dos cabelos nunca são atingidos pelo frio nem pelo calor. A cabeleira - êsse magnífico produto - a que os homens e as mulheres dão tanto valor, conserva, assim, até a idade avançada de quem se serve do Óleo Cefálico, êsse brilho, essa delicadeza, êsse esplendor que tornam tão encantadoras as cabeças das crianças. A maneira de usar acompanha cada frasco e lhe serve de invólucro.

Êste óleo é vendido em frascos que levam a assinatura do inventor, para impedir qualquer falsificação, e ao preço de três francos, na casa de A. Popinot, na Rua dos Cinco Diamantes, bairro dos Lombardos, Paris.

PEDE-SE ESCREVER LIVRE DE PORTE

"... Aconselhado por Gaudissart e Finot, Popinot lançara o seu óleo com audácia. Dois mil cartazes haviam sido afixados, nos últimos três dias, nos pontos mais visíveis de Paris. Ninguém podia evitar de dar com os olhos no Óleo Cefálico nem de ler uma frase concisa, inventada por Finot, sobre a impossibilidade de fazer nascer cabelos - e o perigo de tingi-los, acompanhada da citação da memoria lida por Vauquelin à Academia de Ciências. Todos os cabeleireiros de Paris, barbeiros e perfumistas haviam decorado suas portas com molduras douradas contendo um belo impresso, sobre velino, ao alto do qual brilhava a estampa de Hero e Leandro, reduzida, com esta asserção por epígrafe:

OS ANTIGOS POVOS DA ANTIGUIDADE CONSERVAVAM SEUS CABELOS COM O EMPRÊGO DO ÓLEO CEFÁLICO

Popinot prometeu a Finot quinhentos francos por jornal grande (e havia dez) e trezentos francos por jornal secundário (e havia outros dez) se falassem no Óleo Cefálico, três vêzes por mês.

Finot encontrava-se sempre na tipografia, ocupado, como se tivesse um artigo a revisar. Amigo de todos, fêz o Óleo Cefálico vencer a Pomada de Regnaud, a Mistura Brasileira e tôdas as outras invenções que haviam sido as primeiras a ter o talento de perceber a influência do jornalismo e o efeito de pistão produzido sôbre o público por um artigo reiterado.

Êsses artigos alegravam a alma de Gaudissart, que se armava de jornais para destruir os preconceitos, e fazia, na província, isso que os especuladores, depois dêle, denominaram de "carga a fundo."

ANÁLISE DO CASO DO ÓLEO CEFÁLICO

No lançamento do Óleo Cefálico, constatamos um tratamento ainda mais cuidadoso dos aspectos essenciais a um processo de mercadização:

1) avaliação das necessidades reais do consumidor e consulta a um técnico para o desenvolvimento de um produto adequado para a satisfação dessas necessidades;

2) exame do produto concorrente quanto à sua qualidade, efeitos de sua marca, vantagens de sua embalagem, seu preço para o consumidor final, e sua etapa de penetração no mercado;

3) análise dos motivos de compra dos consumidores potenciais e suas prováveis reações ao nome do produto, sua embalagem e apelos de venda;

4) análise e escolha do nome para o produto e criação da marca;

5) determinação do tipo de embalagem para maior diferenciação do produto;

6) exame e determinação da margem para os revendedores;

7) determinação do preço de revenda ao consumidor final;

8) elaboração dos prospectos para acompanhamento do produto;

9) contratação do vendedor viajante;

10) afixação de cartazes nos diversos pontos da cidade;

11) utilização dos jornais como veículo de propaganda;

12) distribuição de cartazes aos revendedores para serem afixados na porta de suas lojas;

13) desenvolvimento de frases concisas a serem utilizadas em todos os esforços promocionais.

ANÁLISE GERAL

No lançamento dos três produtos, verificamos que muitas das decisões foram tomadas com base em impulsos, em decorrência de circunstâncias ocasionais, enfim, fruto do "tino comercial" de César Birotteau e de Popinot e, em certos casos, das pessoas a êles ligadas. A embalagem que deveria ser "misteriosa", recoberta de vime, acabou achatada, em forma de abóbora.

O nome dado ao produto seria derivado do nome do comerciante, não fosse a análise de Gaudissart. O calculo de César Birotteau relativo ao número de vidros a ser vendidos anualmente baseou-se em um número que imaginou de consumidores prováveis, como podena ter sido imaginado qualquer outro. Aparentemente, a determinação da margem para os intermediários não envolveu a consideração de qual a margem oferecida pelo produto concorrente. Na estimativa do preço para o consumidor final foi considerada apenas a oportunidade de se oferecer o produto a um preço razoàvelmente inferior ao do concorrente. A elaboração dos prospectos no primeiro caso ficou a cargo do próprio comerciante que o elaborou de maneira extravagante, e no segundo caso ficou a cargo de um escritor falido que o elaborou pràticamente de improviso.

Nessas e em outras providências tomadas, verifica-se uma tentativa de exame sistemático dos fatores de vendas, mas com base apenas na experiência e no "tino comercial dos personagens centrais e daqueles que vêm a participar do empreendimento.

Por que, todavia, não poderíamos chamar a êsse processo de Mercadologia? Respondemos, dizendo que a Mercadologia não se confunde com o processo de levar um produto do fabricante ao consumidor final. O caso narrado e a história de um processo de mercadização, o qual, na época, não poderia inspirar-se na Mercadologia pois essa, como a entendemos, não existia. Mercadologia "é o estudo sistemático da mercadização; e esta é a execução das atividades administrativas pertinentes ao fluxo de bens e serviços do produtor ao consumidor final industrial ou comercial",

Os casos narrados por Balzac constituem indubitavelmente processos de mercadização, em que o sucesso decorreu do que se chamava e se chama, ainda, de tino comercial.

Entretanto, um administrador moderno poderia aliar ao seu tino comercial uma enorme soma de conhecimentos, padrões de análise e técnicas que constituem hoje a Mercadologia, restringindo, dessa forma, a sua possibilidade de êrro nas tomadas de decisões necessárias ao desenvolvimento de um processo de mercadização. Porém, é importante notar que, para que seja realizado o estudo sistemático dos fatôres a serem considerados em quaisquer processos de mercadização, é necessário que o homem de emprêsa esteja consciente de que é a sua experiência, controlada e analisada, que, somada às experiências de outros homens de emprêsa, proporciona a matéria-prima, ou a base sôbre a qual se desenvolve a Mercadologia.

  • 1
    1) "A Comédia Humana" de Honoré de Balzac, Editôra Globo, 2.ª edição, livro VIII, com Introduções, Notas e Orientação de Paulo Rónai.
  • 1
    () que provàvelmente retrata personagens e fatos de Paris do início do século XIX. fcssa obra é famosa pela precisão com que trata dos pormenores da vida comercial da época, sendo considerada pelos advogados de então como livro de consulta nos assuntos relativos a falências.
  • 2
    () e foi o primeiro dentre os perfumistas a usar êsses luxos de cartazes, de anúncios e de meios de publicidade que se denominam, talvez injustamente, charlatanismo."
  • 3
    () o rei dos caixeiros viajantes e êste, entusiasmado, lhe diz:
  • 4
    () para que êste escreva o folheto que deveria acompanhar o óleo.
  • 5
    () de acordo com a definição da "American Marketing Association".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1963
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