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Tendências e paradoxos do varejo no Brasil

COMENTÁRIOS

Tendências e paradoxos do varejo no Brasil

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor do Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas

Quais são as tendências do varejo no Brasil? Caminhamos no sentido de uma sociedade capitalista de consumo em massa? Vamos aos poucos reproduzindo e nos aproximando do padrão norte-americano de distribuição de bens de consumo, ou nossa sociedade apresenta características particulares, que permitem a previsão de um modelo original para o sistema de vendas a varejo? Estas são algumas perguntas com que nos defrontamos ao procurarmos realizar uma análise global da estrutura presente e das tendências futuras do sistema de distribuição de bens de consumo no Brasil.

O sistema varejista brasileiro está baseado em um paradoxo: as instituições varejistas "modernas", que foram desenvolvidas nos países capitalistas avançados com o objetivo de realizar distribuição em massa de bens de consumo, existem no Brasil para atender a uma elite. Usamos técnicas de distribuição em massa, que aliam eficiência operacional e alto grau de conveniência para o consumidor, para vender quantidades relativamente pequenas de mercadorias muito diversificadas.

Existe uma técnica para os futurólogos desavisados dos países subdesenvolvidos preverem as tendências em seus países: imaginar que, com o tempo, nos aproximaremos dos padrões norte-americanos. Ao usarem essa técnica, porém, provavelmente ficarão perplexos, por que verificarão que no Brasil já existem as instituições varejistas características das sociedades industriais modernas. Existem, todavia, para servir a uma estrita minoria da população.

1. O varejo moderno

Estas instituições são, na distribuição de gêneros alimentícios, os supermercados; na distribuição dos demais artigos, as lojas de variedades (dime setores ou "lojas de dois réis"), as iojas de departamentos e as lojas de desconto; e na distribuição de todos os tipos de mercadorias, os hipermercados e os centros comerciais que reúnem lojas e serviços de todos os tipos.

As características comuns das lojas modernas de. varejo são a economia de pessoal, a venda em massa com margens baixas, uma diversificação dos produtos rigorosamente controlada que garanta uma razoável escolha por parte dos fregueses e ao mesmo tempo a venda em massa de produtos padronizados, bastante espaço que permita a venda em grandes quantidades combinada com diversificação de mercadorias, e, finalmente, prédios e instalações quase luxuosos, que proporcionem ao freguês conforto e ambiente agradável para fazer compras.

Estas características estão evidentemente interligadas formando um único sistema. A economia de pessoal é obtida seja através do auto-serviço, típico dos supermercados e hipermercados, seja através da auto-seleção, própria das lojas de departamento e das lojas de variedades modernas. Esta economia de pessoal e a limitação da linha de mercadorias a produtos padronizados possibilitam o estabelecimento de margens relativamente baixas, que conduzem à venda em massa. A grande dimensão das lojas também leva à venda em massa, ao mesmo tempo que permite maior diversificação da linha, sem quebra do princípio de que só produtos de alta rotação serão vendidos. A única característica que age em sentido contrário às margens reduzidas e à venda em massa é o relativo luxo dos prédios e instalações. Historicamente, porém, o que se verificou foi que, em uma primeira fase, os novos tipos de loja de varejo, como os supermercados ou as lojas de desconto começaram fazendo economia nessa área, instalando-se em barracões e prédios improvisados, para logo descobrir que os investimentos realizados em capital fixo nas lojas são altamente rentáveis dada a definitiva preferência dos consumidores por instalações de boa qualidade.

Estas instituições já existem no Brasil, mas, ao invés de servirem à grande maioria da população, como nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental, servem a uma minoria pertencente à classe média superior e à classe alta. Os supermercados, por exemplo, em todas as grandes cidades brasileiras, situam-se quase exclusivamente nos bairros residenciais elegantes, onde habitam os profissionais liberais e os administradores de classe média superior ou então proprietários da classe alta. Em São Paulo, eles se encontram, em sua grande maioria, na zona sul da cidade. Os supermercados fora dessa zona geralmente estão situados junto a enclaves mais abastados dentro de bairros pobres. Em toda a zona norte e leste de São Paulo, por exemplo, não existem mais do que meia dúzia de supermercados dignos desse nome. Embora menos claramente, o mesmo acontece em relação às lojas de variedades, às lojas de departamentos, aos hipermercados e shopping centers. Todos esses tipos de varejos, dadas suas dimensões mínimas elevadas, necessitam de consumidores com razoável poder aquisitivo e que possuam automóveis, de forma a aumentar o raio de influência da loja. Por isso definem sua clientela básica da classe média para cima. Em São Paulo existem apenas dois shopping centers para atender a uma população de mais de 8 milhões de habitantes. Um deles, que foi muito bem sucedido, compara-se ao que há de melhor em matéria de concepção mercadológica de shopping centers. Localizado em uma área de alto poder aquisitivo, está orientado para atender exclusivamente à classe média superior e à classe alta. No Rio de Janeiro só existe um shopping center funcionando. O restante são galerias de lojas, que não podem ser chamadas de centros comerciais.

Em termos de domínio de tecnologia de varejo, o atraso do Brasil em relação aos países industriais mais avançados é portanto pequeno. O Brasil possui lojas varejistas comparáveis às mais modernas dos países desenvolvidos. E as técnicas lá introduzidas são muito rapidamente transferidas para o Brasil. No caso dos hipermercados, por exemplo, a defasagem entre a instalação dos primeiros na França e nos Estados Unidos e sua instalação no Brasil foi mínima. E nossos hipermercados em nada ficam a dever aos melhores do exterior. Começam, inclusive, a surgir os sitemas de vendas automáticas, através de máquinas. Mas é preciso assinalar que mesmo nos Estados Unidos esse tipo de varejo é marginal. Serve para vender uma pequena percentagem das vendas totais de refrigerantes, doces, chocolates e cigarros. A idéia de que o futuro do varejo está nos sistemas de vendas automáticas é uma crença popular sem a menor base na realidade.

2. As tendências e a distribuição da renda

As tendências do comércio varejista no Brasil, portanto, não podem ser definidas em termos de criação de novos tipos de instituições de varejo ou de introdução de novas técnicas radicalmente mais modernas. A modernização continuará a ocorrer, mas o fato básico que deveríamos esperar seria a difusão das formas mais modernas de varejo. Acontece, porém, que ao nível da classe média e da classe alta, esta difusão já se realizou em grande parte nos últimos 10 anos. Em São Paulo, Salvador, ou Porto Alegre, por exemplo, já não existem muitos lugares para novos supermercados nas zonas residenciais de classe média superior e de classe alta.

A probabilidade de que estes tipos modernos de varejo se estendam para a classe média inferior e para a classe média baixa é pequena, já que suas características exigem dos fregueses potenciais um certo poder aquisitivo e a posse de automóvel. Temos, assim, duas alternativas além da manutenção do status quo: ou a sociedade brasileira se moderniza e se integra, através de um processo de desenvolvimento com distribuição de renda cada vez mais equitativa, ou se desenvolvem novas formas de instituições varejistas, adaptadas às populações pobres.

Há poucas probabilidades para qualquer das duas alternativas, nos próximos cinco ou 10 anos. De um lado, até hoje não foi possível, apesar das tentativas realizadas, desenvolver um tipo de varejo moderno eficiente, operando a baixas margens e oferecendo boas condições ambientais e boa variedade de mercadorias, para populações pobres. Se examinarmos com cuidado a conceituação de técnicas modernas de varejo, que demos no início deste trabalho, veremos que há uma contradição básica entre as mesmas e as populações de baixo poder aquisitivo. De outro lado, todo o desenvolvimento recente do Brasil vem sendo marcado por um processo de concentração de renda da classe média para cima e de marginalização do restante da população. E não há perspectiva de mudança nessa tendência, a qual aliás é comum à grande maioria dos países subdesenvolvidos.

No Brasil, como no México, na índia, e em muitos outros países está-se definindo cada vez mais claramente um dualismo social e econômico radical. Esse dualismo divide a economia e a sociedade em um setor moderno, industrializado, dominado por uma minoria de classe média e de classe alta, que adota padrões de consumo e um sistema de valores muito semelhantes aos dos países metropolitanos, e um setor tradicional, agrícola, artesanal, mesmo de pequenas indústrias tradicionais e do pequeno e médio comércio, onde se localiza a massa da população, marginalizada dos benefícios do desenvolvimento. Cada vez mais, uma redefinição de país subdesenvolvido vai-se impondo. País subdesenvolvido não é simplesmente país pobre e dependente que adota padrões de comportamento tradicionais, mas é um país em que o setor moderno é pequeno, relativamente ao setor tradicional, marginalizado.

O setor moderno existe. Faz parte do grande sistema capitalista internacional. Por isso, como temos uma indústria altamente sofisticada, podemos ter os sistemas de varejo mais modernos do mundo já implantados no Brasil. Mas é setor pequeno, se comparado ao grande setor marginalizado da sociedade. A medida que ocorre a industrialização e o desenvolvimento, o setor moderno, que pode compreender de 20 a 30% da população brasileira, tem sua renda aumentada. Dadas, porém, as técnicas capital-intensivas que adota, não absorve praticamente nenhuma mãode-obra do setor marginalizado, que permanece estagnado.

3. A concorrência do setor tradicional

A existência do setor tradicional constitui-se em sério obstáculo para o desenvolvimento do varejo moderno. Na área dos serviços, o setor moderno e o tradicional entram freqüentemente em concorrência. O setor tradicional é por definição trabalhointensivo. Sua taxa de capitalização é sempre muito baixa. No setor secundário, em que a tecnologia disponível é em geral capital-intensiva, técnicas pouco capitalizadas de produção têm poucas chances. No setor terciário, porém, e especialmente na área do varejo, em que os coeficientes técnicos são consideravelmente mais flexíveis, os excedentes populacionais tendem a concentrar-se. Não apenas no comércio ambulante, mas também no pequeno comércio estabelecido. Nesses termos, o setor terciário da economia não cessa de crescer em termos demográficos. Os excedentes liberados pelo setor primário, que o setor secundário não consegue absorver, dadas as técnicas capital-intensivas usadas, afluem para o setor de serviços. Este vai aparentemente se "inchando", ganhando participação no total da população maior do que nos países desenvolvidos. Nestes, o setor terciário já começa a crescer depois que o setor secundário alcançou alto grau de desenvolvimento. Nesse momento, a elevação do poder aquisitivo da população faz aumentar sua demanda por serviços, cuja participação percentual na população e na renda passa então a crescer. Já nos países subdesenvolvidos, inclusive o Brasil, o setor terciário começa a crescer mais cedo. Os coeficientes técnicos relativamente fixos da indústria, da segunda metade do século XX, tornam desnecessário todo um contingente de mão-de-obra, que o setor de serviços, com coeficientes técnicos mais flexíveis, pode absorver, aproveitando os baixos salários vigentes. O setor de serviços torna-se, assim, em termos de mão-de-obra empregada, relativamente maior do que nos países desenvolvidos, em fases correspondentes de desenvolvimento industrial.

Isto não significa, porém, que toda essa gente esteja vivendo em regime de desemprego disfarçado, com produtividade marginal do trabalho igual a zero. Dados os baixos salários e a flexibilidade dos coeficientes técnicos, permitindo uma ampla substituibilidade de capital por mão-de-obra nesse setor, a atividade dos ambulantes e do pequeno comércio tradicional é economicamente justificável. Tem razoáveis condições de concorrer com as técnicas varejistas modernas, mais capital-intensivas, mesmo para servir parte do setor moderno, de classes média e alta da população. Sua atividade só é marginal na medida em que seus membros não participam dos frutos do desenvolvimento econômico, que está ocorrendo no setor moderno. Na medida, todavia, em que conseguem concorrer com relativo sucesso com as técnicas modernas de varejo, constituem-se em mais um obstáculo para o desenvolvimento destas - obstáculo que pode, inclusive, levar-nos a pôr em dúvida a validade social daquelas técnicas.

4. Um segundo paradoxo

0 varejo moderno já existe, portanto, no Brasil; usa de técnicas de distribuição em massa para servir uma elite, e tem dificuldades para se desenvolver, de um lado porque as dimensões dessa elite são relativamente pequenas, e de outro porque sofre concorrência dos serviços tradicionais. O quadro completa-se com um segundo paradoxo: em um dos setores específicos do varejo moderno - o dos supermercados - não há nenhuma correlação entre o grau de desenvolvimento dos centros urbanos e o êxito desse tipo de varejo. Aqueles que identificam desenvolvimento com modernização, imaginariam imediatamente que cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro deveriam ter sistemas de vendas através de supermercados muito mais avançados do que as duas ou três principais capitais do Nordeste. Paradoxalmente, porém, é o inverso que ocorre. Estas cidades, embora muito mais pobres, são provavelmente abastecidas por super-mercados em proporção muito maior do que o Rio de Janeiro e principalmente São Paulo.

Isto ocorre porque naquelas cidades as redes de supermercados surgiram de antigos atacadistas, os quais conservando um relativo monopólio de compra de produtos no Sul, principalmente em São Paulo, tiveram condições de eliminar rapidamente os pequenos comerciantes e ambulantes. As empresas industriais fornecedoras de alimentos situam-se em sua grande maioria na região de São Paulo. Seu sistema de comercialização permitelhes fornecer a pequenos comerciantes na área próxima a suas fábricas. Nesses termos, em São Paulo e no Rio de Janeiro os pequenos comerciantes têm condições de comprar a preços quase iguais aos das grandes redes de supermercados. Já nas cidades mais distantes isto não é possível, dando uma vantagem muito grande para as grandes redes, que dispõem de escritórios de compra e armazéns em São Paulo. Este fenômeno aconteceu com muita evidência em Salvador e em Fortaleza. Nestas duas cidades surgiram duas grandes redes de supermercados, que dominaram totalmente o abastecimento, valendo-se principalmente do fato de possuírem uma central de compras em São Paulo. Já nesta cidade, que é a mais desenvolvida do Brasil, as feiras continuam a responsabilizar-se por grande parte do abastecimento. Seu maior inimigo não é a concorrência dos supermercados, que só atingiu as feiras nas zonas mais abastadas da cidade, mas a Prefeitura Municipal, que deseja racionalizar o abastecimento e liberar as ruas da cidade para o trânsito.

As formas modernas de varejo, portanto, já existem no Brasil, mas tendem a difundir-se lentamente. A difusão principal, ao nível da classe média superior e da classe alta, já foi realizada, principalmente nos últimos 10 anos. Há ainda campo, embora limitado, para desenvolvimento nessas classes e na classe média inferior. Já a sua difusão para a classe baixa é pouco provável em um futuro próximo, dadas as características do desenvolvimento econômico dependente e marginalizador em que o Brasil está envolvido. O paradoxo do emprego de técnicas de varejo de venda em massa para servir uma elite continuará a ocorrer. Mas afinal é mais razoável esperar que o sistema de varejo se adapte às condições econômicas e sociais do País que o inverso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1973
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